REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202505241738
Marcos Túlio Pereira Correia Junior1
Fabi Diniz de Queiróz Pilate2
RESUMO
O Tribunal do Júri é um dos pilares do sistema jurídico brasileiro, sendo responsável pelo julgamento de crimes dolosos contra a vida. Em seu processo, a participação da sociedade é garantida por meio dos jurados, que têm a responsabilidade de decidir sobre a culpabilidade ou inocência do réu. Nos últimos anos, casos de justiçamento têm se tornado cada vez mais frequentes, especialmente em contextos de insegurança e violência urbana. O clamor popular por justiça rápida e eficaz tem levado a um aumento da atuação da população em situações de flagrante, muitas vezes sem a devida análise jurídica ou observância das normas legais. Desta forma, o presente trabalho tem como objetivo analisar a obrigatoriedade do quesito genérico de absolvição nos julgamentos realizados pelo Tribunal do Júri, especificamente em casos de flagrante, como os de justiçamento cometidos pela população. Conclui-se que, o quesito genérico, embora necessário para garantir um julgamento imparcial e fundamentado nas provas, muitas vezes entra em conflito com o desejo popular por respostas rápidas e exemplares em casos de justiçamento. O impacto dessa obrigatoriedade não pode ser ignorado, uma vez que ela influencia diretamente a percepção pública sobre a eficácia do sistema judicial e a legitimidade das suas decisões, especialmente quando se trata de crimes que geram forte comoção social.
Palavras-chave: Tribunal do júri; Quesito genérico; Absolvição; Justiçamento;
1 INTRODUÇÃO
O Tribunal do Júri é um dos pilares do sistema jurídico brasileiro, sendo responsável pelo julgamento de crimes dolosos contra a vida. Em seu processo, a participação da sociedade é garantida por meio dos jurados, que têm a responsabilidade de decidir sobre a culpabilidade ou inocência do réu. Uma das questões fundamentais que envolve o Tribunal do Júri é a obrigatoriedade do quesito genérico de absolvição, especialmente em casos de flagrante, como os de justiçamento cometidos pela população. O quesito genérico, que trata da absolvição do réu de forma ampla, sem especificar as razões, tem gerado controvérsias quando aplicado em casos em que a população toma a justiça para si, como nos casos de linchamento ou outros tipos de violência social.
Nos últimos anos, casos de justiçamento têm se tornado cada vez mais frequentes, especialmente em contextos de insegurança e violência urbana. O clamor popular por justiça rápida e eficaz tem levado a um aumento da atuação da população em situações de flagrante, muitas vezes sem a devida análise jurídica ou observância das normas legais. Nestes casos, a aplicação do quesito genérico de absolvição no Tribunal do Júri torna-se ainda mais polêmica, pois envolve não apenas a responsabilidade do indivíduo acusado, mas também o contexto social e as motivações que levaram à ação. A questão, portanto, envolve o equilíbrio entre a justiça formal e a justiça popular, e o impacto que isso pode ter no julgamento de casos em que a reação social ultrapassa os limites da legalidade.
Além disso, a obrigatoriedade de que o quesito genérico de absolvição seja aplicado em todos os casos de julgamento pelo Tribunal do Júri, independentemente da natureza do crime, tem gerado debates sobre a sua legitimidade. A população, em muitos casos, pode sentir que o réu não merece o benefício da absolvição, especialmente quando o crime é visto como uma forma de resposta a injustiças sociais ou crimes violentos cometidos por pessoas com histórico de impunidade. Nesse cenário, é importante analisar até que ponto a obrigatoriedade do quesito genérico compromete a imparcialidade dos jurados e a aplicação da justiça, especialmente em casos de justiçamento.
Assim, este estudo é relevante para a compreensão das tensões existentes entre a aplicação formal do direito e os sentimentos populares que envolvem certos tipos de crimes. O fenômeno do justiçamento é um reflexo de um sistema social em que a impunidade e a violência geram respostas extremas e, muitas vezes, ilegais da população. A análise da obrigatoriedade do quesito genérico de absolvição, especialmente em casos de flagrante de justiçamento, visa esclarecer as implicações jurídicas e sociais dessa exigência, além de avaliar se a aplicação dessa norma contribui para a efetividade do Tribunal do Júri ou se, pelo contrário, mina a sua legitimidade e a confiança da sociedade no sistema de justiça.
A principal problemática deste estudo reside na tensão entre a obrigatoriedade do quesito genérico de absolvição e a atuação de justiça popular em casos de flagrante, como os de justiçamento. A dúvida central é se a obrigatoriedade desse quesito, em casos de crimes cometidos pela população em flagrante, interfere na correta aplicação do direito, considerando o contexto social e as motivações que envolvem esses crimes. Além disso, há o questionamento sobre a efetividade do Tribunal do Júri, que visa representar a sociedade, quando é confrontado com um sistema de justiça que precisa equilibrar a lei e as expectativas populares.
Hipotetiza-se que a obrigatoriedade do quesito genérico pode comprometer a imparcialidade dos jurados, especialmente em contextos de forte comoção social e justiçamento, em que a pressão popular influencia a aplicação da justiça formal.
Desta forma, o presente trabalho tem como objetivo analisar a obrigatoriedade do quesito genérico de absolvição nos julgamentos realizados pelo Tribunal do Júri, especificamente em casos de flagrante, como os de justiçamento cometidos pela população.
Assim como, estudar o papel do Tribunal do Júri e a aplicação do quesito genérico de absolvição no sistema jurídico brasileiro; e examinar as implicações jurídicas e sociais do justiçamento, especialmente em relação à atuação da população em flagrante.
A pesquisa é de natureza bibliográfica, tendo como base a análise de doutrinas, artigos acadêmicos, legislações e jurisprudências relacionadas ao Tribunal do Júri e ao quesito genérico de absolvição. A partir do levantamento bibliográfico, foram discutidos os aspectos legais, sociais e éticos envolvidos na obrigatoriedade do quesito genérico, com foco especial nos casos de justiçamento.
2 O TRIBUNAL DO JÚRI E SUA FUNÇÃO NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO
O Tribunal do Júri é uma das mais importantes instituições do sistema judiciário brasileiro, com uma função essencial no processo de justiça criminal de acordo com Rangel (2018). Sua origem remonta ao período imperial, quando foi instituído pela Constituição de 1824, sendo baseado na ideia de que crimes de maior relevância para a sociedade, especialmente os crimes dolosos contra a vida, deveriam ser julgados pela população, por meio de jurados. A popularização do Tribunal do Júri como conhecemos hoje se consolidou ao longo dos anos, com modificações legislativas que reforçaram seu papel na busca pela justiça democrática e na participação do cidadão comum no processo judicial. Assim, o Tribunal do Júri se tornou um dos pilares do direito penal brasileiro, sendo, até hoje, um espaço de legítima expressão da soberania popular na justiça.
Desde sua criação, o Tribunal do Júri tem sido considerado um dos mais democráticos, pois dá ao cidadão comum a responsabilidade de julgar os acusados de crimes graves, como homicídios. A ideia por trás do Júri é promover a justiça através da participação ativa da sociedade, permitindo que aqueles que compõem a comunidade decidam sobre a culpabilidade ou inocência de um réu. Ao longo dos anos, o Tribunal do Júri passou por diversas transformações, com o Código Penal de 1940, e a Constituição de 1988, que reforçaram a sua importância no sistema jurídico. Mesmo com as críticas e discussões sobre sua efetividade e adequação, o Tribunal do Júri continua sendo um dos mais relevantes mecanismos de controle social e de promoção da justiça no Brasil (BEZERRA, 2024).
Segundo Rangel (2018), o papel dos jurados no Tribunal do Júri é fundamental para garantir que o julgamento seja imparcial e que a sociedade esteja representada nas decisões judiciais. Jurados são cidadãos comuns, escolhidos por sorteio, sem qualquer vínculo com a profissão jurídica, e têm a responsabilidade de decidir sobre a culpabilidade do réu. Em sua função, os jurados devem agir com base nas provas apresentadas durante o processo, sem se deixar influenciar por questões externas ou emocionais. Isso assegura que as decisões sejam tomadas de maneira justa e dentro do que preconizam as normas do direito penal, garantindo que o julgamento seja o mais imparcial possível. Para que o Tribunal do Júri funcione corretamente, é imprescindível que os jurados estejam atentos aos detalhes do processo, com uma compreensão clara dos fatos e da legislação, de forma a evitar decisões errôneas ou injustas.
Além disso, a imparcialidade dos jurados é uma questão que demanda cuidados especiais. O sistema judicial brasileiro tem normas e procedimentos rigorosos para assegurar que o julgamento seja feito de maneira justa, sem influências externas, como pressão pública ou questões pessoais. No processo de escolha dos jurados, são feitas verificações para evitar que qualquer pessoa que tenha vínculos com as partes envolvidas no processo ou qualquer forma de viés preconceituoso participe da composição do júri. Essa garantia de imparcialidade é fundamental, pois, para que o Tribunal do Júri cumpra seu papel na busca pela justiça, é necessário que os jurados decidam com base na prova dos autos, sem qualquer tipo de preconceito ou interferência externa. O próprio sistema de apuração das provas no Tribunal do Júri é desenhado para garantir que todos os elementos sejam apresentados de forma clara e sem manipulação, a fim de que os jurados possam tomar uma decisão consciente e justa (LOPES JR, 2022).
Mendes (2023) cita que, a legislação brasileira que rege o Tribunal do Júri está consolidada principalmente no artigo 5º, inciso XXXVIII, da Constituição Federal de 1988, e nos artigos 406 a 497 do Código de Processo Penal. Esses dispositivos garantem que os réus acusados de crimes dolosos contra a vida, como homicídios, sejam julgados por um júri composto por cidadãos comuns. A Constituição de 1988 reforçou a soberania do Tribunal do Júri, estabelecendo que as decisões proferidas pelo júri não podem ser revistas, salvo em casos excepcionais, como a nulidade do julgamento. O Código de Processo Penal, por sua vez, detalha o funcionamento do Tribunal do Júri, desde a formação do conselho de sentença até as possibilidades de apelação, assegurando a regularidade dos processos e a observância dos direitos fundamentais do réu. A legislação garante, ainda, que o acusado tenha direito à ampla defesa, com o auxílio de advogado, e que o julgamento seja feito de forma pública, salvo em casos excepcionais.
Ainda segundo Mendes (2023), a legislação brasileira assegura, portanto, um sistema que, embora envolva a participação popular, também respeita os direitos do acusado e garante que o julgamento se dê de maneira formal e fundamentada, dentro dos limites da lei. A Constituição e o Código de Processo Penal, ao estabelecerem um rito processual claro e objetivos de justiça, tornam o Tribunal do Júri um instrumento relevante para assegurar a transparência e o direito à defesa. Isso é especialmente importante em um país com a complexidade social do Brasil, onde questões como o justiçamento e as pressões externas podem influenciar decisões judiciais. Por fim, a legislação busca equilibrar a participação popular com a necessidade de garantir que o processo se mantenha justo, eficiente e em conformidade com os princípios constitucionais da legalidade e da ampla defesa.
3 O QUESITO GENÉRICO DE ABSOLVIÇÃO
De acordo com Jardim (2015), o quesito genérico de absolvição é uma das características mais marcantes do Tribunal do Júri, sendo utilizado como uma ferramenta essencial para a decisão do júri em relação à culpabilidade ou inocência do réu. Esse quesito, que consiste na pergunta ao júri sobre a absolvição do réu “pelos motivos de fato”, é uma forma de permitir que os jurados decidam se o réu deve ser absolvido com base nas evidências apresentadas, independentemente da classificação do crime. A aplicação do quesito genérico é prevista pelo Código de Processo Penal e se fundamenta na ideia de que os jurados devem decidir sobre a responsabilidade do réu de forma ampla, considerando as circunstâncias gerais do caso, sem a necessidade de detalhamento das questões específicas. Sua aplicação é obrigatória, mesmo que o réu tenha sido acusado de um crime de forma extremamente clara, e tem como intuito garantir que o tribunal do júri não limite a análise à culpa, mas também permita a consideração de aspectos como os motivos, a intenção e os contextos do ato criminoso.
Contudo, Mazloum (2024) pontua que, a obrigatoriedade do quesito genérico de absolvição tem gerado debates no meio jurídico, especialmente quando se observa casos em que o réu se encontra em situação flagrante ou quando a culpa parece ser evidente. A discussão sobre a obrigatoriedade desse quesito é extensa, pois muitos juristas defendem que, em casos em que a culpabilidade é indiscutível, o quesito genérico de absolvição poderia ser desnecessário, prolongando o processo e criando um risco de erros no julgamento. No entanto, os defensores da obrigatoriedade do quesito argumentam que ele é fundamental para garantir a soberania do Tribunal do Júri e a ampla análise das provas pelos jurados. A obrigatoriedade do quesito genérico, portanto, visa assegurar que o júri tenha uma margem ampla para decidir, levando em conta o caso como um todo e evitando que detalhes técnicos de qualificação do crime possam influenciar a decisão de forma restritiva.
A obrigatoriedade do quesito genérico de absolvição também envolve uma série de implicações jurídicas que merecem atenção especial. A principal delas é a questão do impacto na celeridade dos processos, já que a inclusão do quesito pode resultar em uma análise mais detalhada e prolongada, mesmo em casos em que a culpabilidade é evidente. Além disso, a imposição desse quesito pode gerar insegurança jurídica, pois, em alguns casos, o júri pode optar pela absolvição sem levar em conta de maneira adequada os aspectos técnicos do direito penal, especialmente quando a acusação está bem fundamentada. Embora o quesito genérico tenha a intenção de ampliar a margem para o julgamento dos jurados, a aplicação obrigatória do quesito pode gerar situações nas quais a decisão do júri não se alinhe com o que seria esperado pelo direito penal, criando uma sensação de insegurança jurídica tanto para as vítimas quanto para a sociedade (FRANÇA, 2023).
Sob uma perspectiva crítica, o quesito genérico tem sido interpretado como um mecanismo que rompe com o princípio da legalidade estrita. Para Lenio Streck, a ampla margem concedida aos jurados, sem necessidade de fundamentação, compromete a racionalidade e a previsibilidade do processo penal, abrindo espaço para decisões orientadas por valores morais difusos ou preconceitos sociais. Isso fere frontalmente o que Norberto Bobbio chamaria de ‘segurança jurídica’, elemento basilar do Estado Democrático de Direito.
Além disso, Badaró observa que a irrecorribilidade do veredito absolutório, quando fundado exclusivamente em um quesito genérico, fragiliza a possibilidade de controle jurisdicional, uma vez que impede o exame da razoabilidade da decisão mesmo diante de provas contundentes de autoria e materialidade.
Inclusive, Moreira (2023) cita que, as implicações jurídicas da obrigatoriedade do quesito genérico de absolvição se refletem no processo de formação da decisão do júri, uma vez que ele pode, em algumas situações, entrar em conflito com o princípio da legalidade, que exige que a decisão judicial seja baseada em evidências claras e em uma interpretação técnica da lei. Em casos de flagrante delito ou quando as provas de culpa são incontestáveis, a presença de um quesito genérico de absolvição pode resultar em uma decisão que não respeita a intensidade da prova. A obrigatoriedade do quesito, portanto, provoca uma tensão entre a soberania do Tribunal do Júri e a necessidade de um julgamento eficiente, justo e tecnicamente alinhado às normas do direito penal, tornandose um ponto crítico nas discussões sobre o funcionamento e as reformas do sistema judiciário brasileiro.
4 JUSTIÇAMENTO: CONTEXTO E IMPLICAÇÕES
O justiçamento no Brasil é um fenômeno que ocorre quando a população, por meio de grupos ou indivíduos, toma para si a responsabilidade de aplicar a punição a alguém que consideram culpado de algum crime. Em muitos casos, isso acontece devido à falha do sistema de justiça, onde a impunidade, a morosidade dos processos judiciais e a falta de segurança pública fazem com que as pessoas percam a confiança nas instituições legais. Esse comportamento, que envolve, muitas vezes, linchamentos e execuções sumárias, é um reflexo direto da insatisfação com a aplicação da justiça formal e do sentimento de abandono por parte do Estado.
Além disso, o fenômeno do justiçamento está intimamente relacionado à desigualdade social, à violência estrutural e à exclusão de parcelas significativas da população. Em áreas de maior vulnerabilidade social, especialmente em favelas e periferias, onde o Estado tem pouca presença, a população sente a necessidade de criar suas próprias formas de “justiça”, o que muitas vezes resulta em atos de violência física e até de morte. A falta de confiança nos órgãos públicos e o fracasso das políticas de segurança contribuem para o aumento dessa prática.
O justiçamento é um reflexo da perda da credibilidade nas instituições, mas também aponta para uma crise de valores dentro da sociedade brasileira. O Estado, ao não fornecer proteção adequada e uma resposta efetiva contra crimes, acaba por permitir que a população se envolva em atos de vingança, o que contribui para a perpetuação de um ciclo de violência. Dessa forma, o fenômeno do justiçamento não apenas afeta a vítima imediata, mas também compromete o tecido social, perpetuando a violência como uma forma de resolução de conflitos.
As causas sociais que impulsionam o justiçamento no Brasil estão diretamente relacionadas com a desigualdade, a falta de acesso à justiça e a histórica exclusão de grandes parcelas da população. Em regiões marginalizadas, onde a presença do Estado é escassa ou inexistente, a violência se torna uma resposta natural para aqueles que não conseguem visualizar alternativas para a resolução de conflitos. As pessoas que recorrem ao justiçamento frequentemente sentem que não há outro meio de alcançar justiça, já que o sistema judicial não oferece uma resposta eficaz ou rápida para as vítimas de crimes.
Psicologicamente, o justiçamento é alimentado por um forte desejo de vingança, que surge em resposta a uma sensação de impotência e frustração diante do sistema de justiça. A população, ao se deparar com a morosidade dos processos judiciais e a falta de ações efetivas por parte das autoridades, desenvolve uma crença de que a justiça precisa ser feita imediatamente e sem intermediários. Esse impulso emocional é muitas vezes reforçado pela dor e pela raiva, levando a uma sensação de que a violência contra o infrator é a única forma de restaurar a ordem.
A psicologia social também contribui para o fenômeno do justiçamento, pois, em muitas situações, os indivíduos envolvem-se em grupos que compartilham das mesmas crenças e emoções. Esse comportamento de “justiça coletiva” pode ser alimentado por um senso de pertencimento e por um desejo de apoio mútuo. Quando um membro de uma comunidade se sente legitimado a aplicar punições, isso pode gerar um efeito de contágio, levando outras pessoas a fazerem o mesmo. A psicologia do grupo e o comportamento coletivo, nesse contexto, ampliam o alcance do justiçamento, tornando-o ainda mais prevalente em determinados contextos sociais.
Casos emblemáticos de justiçamento no Brasil, como linchamentos e execuções sumárias, têm ganhado destaque nos últimos anos devido à sua violência extrema e à repercussão midiática. Um exemplo notório é o linchamento de pessoas acusadas de crimes como furtos, homicídios ou até mesmo crimes menores, como o roubo de celulares. Esses episódios chamam a atenção não apenas pela crueldade, mas também pela rapidez com que a população assume a responsabilidade de punir, muitas vezes de maneira fatal. A questão central aqui é como o sistema jurídico, incluindo o Tribunal do Júri, lida com essas práticas quando se tornam parte do contexto de julgamento.
A relação entre o Tribunal do Júri e o justiçamento é complexa, pois, em muitos casos, os jurados são chamados a julgar indivíduos que cometeram crimes motivados por um desejo de vingança ou por um senso distorcido de justiça. Em situações de justiçamento, o júri pode ser influenciado pela pressão social e pela emoção coletiva, o que coloca em risco a imparcialidade do julgamento. O Tribunal do Júri, como um mecanismo de justiça popular, é especialmente suscetível à manipulação das opiniões dos jurados, especialmente em casos de grande comoção pública, o que pode resultar em decisões que refletem mais a vontade popular do que os princípios legais.
A esse respeito, Pierre Bourdieu destaca que o campo jurídico possui autonomia relativa, mas é constantemente pressionado por outros campos, como o midiático e o político, interferindo nas decisões judiciais e no comportamento dos jurados.
Ao analisar casos de justiçamento sob a ótica do Tribunal do Júri, é possível observar a tensão entre a justiça formal e a justiça popular. O Tribunal do Júri, embora composto por cidadãos leigos, tem como função garantir a imparcialidade e a equidade na aplicação da lei. No entanto, quando os jurados estão expostos a um ambiente carregado de emoção e de pressões externas, como nos casos de justiçamento, surge o desafio de manter a objetividade. Nesse cenário, é fundamental que os jurados se pautem exclusivamente nas provas apresentadas e na legislação vigente, e não na ideia de justiça popular que busca punir pela emoção e não pela razão.
5 A TENSÃO ENTRE JUSTIÇA FORMAL E JUSTIÇA POPULAR
A legitimidade do sistema jurídico é um dos pilares fundamentais do Estado de Direito, sendo essencial para a manutenção da ordem e da justiça em uma sociedade. No entanto, a tensão entre a justiça formal, representada pelo sistema judicial tradicional, e a justiça popular, manifestada pelo Tribunal do Júri, levanta questões sobre até que ponto a aplicação da lei pode ser influenciada pela opinião pública. Em uma sociedade democrática, a participação popular no julgamento de crimes, especialmente os mais graves, é vista como uma forma de fortalecer o processo judicial e garantir que a comunidade tenha voz nas decisões. No entanto, essa legitimidade pode ser desafiada quando os sentimentos populares contrariam os princípios da lei, colocando em risco a imparcialidade e a equidade no julgamento (BOSE et al. 2015).
O Tribunal do Júri é um reflexo da democracia e da participação cidadã, pois permite que membros da sociedade civil atuem como juízes e decidam sobre a culpabilidade ou inocência de réus. Contudo, essa participação popular, embora valorosa, tem suas limitações. Segundo Araújo et al. (2021), em contextos de grande comoção social, como nos casos de crimes violentos e de grande repercussão, o julgamento pode ser influenciado por emoções e pressões externas, o que pode enfraquecer a legitimidade do processo judicial. O risco é que, ao ceder à pressão popular, o sistema jurídico perca a sua neutralidade, comprometendo a aplicação justa da lei e prejudicando a confiança nas instituições responsáveis pela administração da justiça.
Inclusive, a justiça popular pode ser vista como uma resposta ao sentimento de impunidade, especialmente em sociedades onde a criminalidade é alta e o sistema judicial parece ineficaz. Em tais circunstâncias, a população tende a exigir punições imediatas e severas, o que pode resultar em julgamentos apressados e fundamentados em preconceitos, ao invés de evidências concretas. Dessa forma, a justiça popular pode ser vista como uma forma de justiça popularizada, que busca restaurar o equilíbrio social à custa da imparcialidade jurídica, o que levanta dúvidas sobre a sua eficácia e sobre o verdadeiro significado de “justiça” quando aplicada de maneira influenciada pela emoção coletiva (CARVALHO, 2016).
Por outro lado, ainda de acordo com Carvalho (2016), a legitimidade da justiça formal se baseia no princípio da imparcialidade e na observância de normas e procedimentos legais. O juiz e os jurados têm a responsabilidade de analisar o caso à luz da lei, desconsiderando sentimentos e pressões externas. Portanto, para garantir a legitimidade do sistema jurídico, é necessário que haja uma clara distinção entre a justiça formal e a justiça popular, de modo a preservar o direito à ampla defesa e ao contraditório, evitando que a emoção do povo prevaleça sobre a razão. O desafio é encontrar um equilíbrio entre a participação popular e a imparcialidade judicial, preservando, assim, os fundamentos do Estado de Direito.
O impacto da sociedade e dos sentimentos populares no Tribunal do Júri é inegável, especialmente em casos de crimes que geram grande repercussão midiática e que tocam diretamente a sensibilidade da população. A pressão social pode influenciar os jurados, que, embora selecionados de forma aleatória, muitas vezes vêm de contextos semelhantes aos dos acusados e podem ser afetados pelos sentimentos populares em relação ao crime em julgamento. O fato de os jurados serem cidadãos comuns, sem formação jurídica, pode tornar o julgamento suscetível a influências externas, como campanhas midiáticas ou manifestações populares, o que pode comprometer a imparcialidade do processo (BEZERRA, 2024).
A sociedade, por sua vez, muitas vezes espera que a justiça seja rápida e severa, principalmente em casos de crimes que afetam a segurança pública ou que causam grande comoção, como assassinatos, feminicídios e crimes de corrupção. Em tais circunstâncias, a opinião pública exerce uma pressão considerável sobre o Tribunal do Júri, com a população exigindo punições exemplares para os réus. Esse fenômeno é amplificado pela mídia, que pode distorcer ou simplificar os fatos para atender aos interesses do público. Em vez de apresentar uma visão equilibrada do caso, a mídia tende a enfatizar aspectos emocionais, como a dor das vítimas e o clamor por justiça, o que acaba por moldar a percepção popular sobre a culpabilidade ou inocência do acusado (LOPES JR, 2022).
É fundamental, portanto, que o Tribunal do Júri preserve sua imparcialidade e se baseie exclusivamente nas provas apresentadas durante o julgamento, sem ceder às pressões da sociedade. A justiça não pode ser uma simples resposta aos sentimentos populares, mas deve ser uma aplicação da lei, fundamentada em evidências e no respeito aos direitos constitucionais dos réus. O desafio é garantir que os jurados, apesar de suas emoções e pressões sociais, se lembrem de sua responsabilidade de aplicar a lei com justiça, considerando todas as circunstâncias do caso. Isso exige um treinamento adequado, uma seleção criteriosa e um ambiente de julgamento que minimize a influência de fatores externos (BEZERRA, 2024).
É preciso destacar ainda que, a sociedade também desempenha um papel importante na formação da opinião pública, e suas reações podem afetar a forma como os jurados se comportam durante o julgamento. No entanto, é importante que o sistema de justiça mantenha sua independência e neutralidade, evitando que o julgamento de um caso seja distorcido por fatores externos. Para que o Tribunal do Júri funcione de maneira eficaz, é necessário que se criem espaços de reflexão e discussão sobre o papel da justiça na sociedade, com o objetivo de reduzir a pressão emocional e as influências externas sobre os jurados. Dessa forma, será possível garantir que as decisões sejam tomadas com base em uma análise racional e legal, em vez de respostas impulsivas e emocionais (LOPES JR, 2022).
A atuação popular no Tribunal do Júri tem uma grande influência sobre a decisão final, principalmente quando os jurados são fortemente impactados pelos sentimentos populares ou pela emoção coletiva em relação ao caso em julgamento. Embora o Tribunal do Júri deva ser um mecanismo imparcial de julgamento, a realidade é que os jurados muitas vezes não conseguem se desvincular da pressão social e da percepção pública sobre a culpabilidade do réu. Em casos de grande repercussão, como homicídios de figuras públicas ou crimes que envolvem grande comoção, os jurados podem se sentir pressionados a decidir de acordo com o desejo popular de punição severa, em detrimento de uma análise rigorosa das provas (BEZERRA, 2024).
O impacto da atuação popular também é perceptível na forma como os jurados se relacionam com a mídia e com as manifestações públicas. As opiniões e sentimentos do público podem influenciar a visão dos jurados, principalmente quando esses se sentem compelidos a agir em conformidade com a expectativa da sociedade. Essa influência externa pode prejudicar a imparcialidade do julgamento, já que os jurados devem ser capazes de avaliar o caso de forma objetiva e baseada em evidências, e não em pressões externas. Dessa forma, é necessário que o Tribunal do Júri tome medidas para proteger os jurados de influências externas, garantindo que eles se concentrem apenas nas provas e nos argumentos apresentados no julgamento (MENDES E BRANCO, 2023).
Finalmente, a atuação popular no julgamento também pode resultar em uma escolha mais emotiva do que racional. Quando a emoção da sociedade sobrepõe a razão, os jurados podem sentir que sua decisão será julgada pelo público e, por isso, se sentem obrigados a condenar o réu. Esse fenômeno pode afetar a imparcialidade do Tribunal do Júri, prejudicando o direito do acusado a um julgamento justo. Portanto, é essencial que haja mecanismos de proteção para os jurados, de modo que possam tomar decisões fundamentadas nas provas e na legislação, sem se deixar influenciar por pressões externas e sentimentos populares (BEZERRA, 2024).
6 A APLICAÇÃO DO QUESITO GENÉRICO EM CASOS DE JUSTIÇAMENTO
Segundo Moreira (2015), o quesito genérico de absolvição é uma peça essencial do Tribunal do Júri, permitindo que os jurados decidam se o réu deve ser absolvido ou condenado com base na análise do caso. Sua aplicação, no entanto, assume contornos ainda mais complexos em casos de justiçamento, onde o réu é frequentemente acusado de um crime de grande repercussão social, como homicídios em que há uma legítima indignação popular. Nesse cenário, o quesito genérico de absolvição é utilizado para garantir que os jurados, apesar das pressões sociais e emocionais, avaliem o caso à luz da legislação e das provas apresentadas, sem deixar que sentimentos como vingança ou punição exemplares prevaleçam. Embora sua presença seja fundamental para preservar a imparcialidade, a aplicação desse quesito em casos de justiçamento pode ser desafiadora, uma vez que os jurados podem se ver inclinados a uma decisão mais condizente com o desejo popular de punição, mesmo diante da ausência de provas suficientes para a condenação.
O uso do quesito genérico de absolvição em situações de justiçamento pode ser um instrumento de proteção aos direitos do réu, mas também traz à tona questões de legitimidade e aplicação prática. Cambraia e Wandeck (2022) citam que, em muitos casos, a presença de uma forte comoção social pode levar os jurados a subestimar a importância do quesito genérico e a se focarem em uma resposta emocional à gravidade do crime. Isso ocorre porque o quesito genérico, embora proponha uma análise impessoal, ainda pode ser interpretado pelos jurados como uma oportunidade de manifestar um desejo coletivo de justiça, mesmo que essa justiça não seja respaldada por um julgamento técnico e jurídico. Em situações em que a violência popular se mistura com o desejo de justiça, o quesito genérico se torna uma ferramenta de equilíbrio, mas sua aplicação exige cautela para garantir que a decisão não seja afetada pela pressão da sociedade.
Inclusive, a aplicação do quesito genérico de absolvição em casos de justiçamento demanda uma análise cuidadosa do contexto em que o crime ocorreu. Conforme pontua Moreira (2015), muitas vezes, o réu é visto como um “inimigo público”, independentemente das evidências que possam existir em sua defesa. Nesse contexto, o quesito genérico oferece uma espécie de “âncora jurídica”, garantindo que o julgamento não se baseie unicamente na percepção popular, mas na aplicação da lei. Contudo, em casos de flagrante, em que a sociedade frequentemente vê o réu como culpado, a aplicação do quesito genérico pode ser uma barreira para a racionalidade jurídica e para a devida ponderação das circunstâncias do crime. A solução para essa questão está em proporcionar uma formação mais sólida para os jurados e assegurar que a justiça seja feita com base em elementos objetivos e não apenas na pressão do contexto social.
A obrigatoriedade do quesito genérico de absolvição, especialmente em casos de flagrante, traz consigo uma série de desafios. O principal deles é a dificuldade de garantir que o júri se concentre exclusivamente nas provas e nos argumentos apresentados durante o julgamento, sem se deixar influenciar pela convicção pública de que o réu é culpado. Em situações de flagrante, onde o réu é preso em flagrante delito e a sociedade acredita firmemente na sua culpabilidade, a aplicação do quesito genérico de absolvição pode se tornar um entrave ao desejo coletivo de punição. Isso gera um conflito entre o que é desejado pela sociedade e o que a legislação determina, uma vez que, no Tribunal do Júri, a decisão deve ser baseada nas provas e não em sentimentos populares (PINTO, 2016).
Outro desafio importante está relacionado à formação dos jurados de acordo com Cambraia e Wandeck (2022). Mesmo com o quesito genérico de absolvição em vigor, a falta de preparo técnico para lidar com questões jurídicas e a pressão da opinião pública podem distorcer o julgamento. Os jurados, sendo cidadãos comuns, podem não ter a formação necessária para entender de forma plena a diferença entre uma absolvição técnica, que se dá pela falta de provas, e uma absolvição emocional, que ocorre devido à pressão da sociedade. Esse descompasso pode levar a decisões que não refletem a verdadeira justiça, pois os jurados podem se sentir pressionados a decidir em favor da condenação, mesmo quando as evidências não são suficientes. O quesito genérico, portanto, muitas vezes não consegue neutralizar a tensão entre a justiça formal e as emoções populares, comprometendo a imparcialidade do julgamento.
Destaca-se ainda que, a aplicação do quesito genérico em casos de flagrante pode gerar uma sensação de impunidade na sociedade. Quando os jurados, diante de um crime flagrante, decidem pela absolvição do réu com base no quesito genérico, isso pode ser interpretado pela população como uma falha do sistema de justiça em punir de maneira eficaz aqueles que cometem crimes. Esse sentimento de impunidade pode aumentar a desconfiança da população no Tribunal do Júri e nas instituições jurídicas em geral, o que gera um ciclo de insatisfação e deslegitimação do sistema de justiça. Assim, é fundamental que a aplicação do quesito genérico seja acompanhada de um processo educativo e de conscientização tanto para os jurados quanto para a sociedade, para que a decisão tomada no tribunal seja entendida dentro dos limites da lei e da justiça (PINTO, 2016).
Para França (2023), a obrigatoriedade do quesito genérico de absolvição em casos de justiçamento tem um impacto significativo na percepção pública sobre a justiça. Para a sociedade, a decisão do Tribunal do Júri de absolver um réu acusado de um crime de grande repercussão pode ser vista como uma falha do sistema judicial, especialmente quando o réu foi flagrado no crime ou quando a sociedade acredita que ele merece punição imediata. Isso gera uma percepção de que a justiça não está funcionando de acordo com os anseios da população, o que pode diminuir a confiança no sistema judicial e aumentar a sensação de que a justiça é lenta, ineficaz e desconectada da realidade. Esse impacto pode ser amplificado por veículos de comunicação que enfatizam a angústia das vítimas e o desejo popular de vingança, o que coloca o Tribunal do Júri em uma posição delicada entre a aplicação da lei e a manutenção da ordem pública.
Por outro lado, ainda de acordo com França (2023), a aplicação do quesito genérico de absolvição também pode ser vista como uma forma de garantir que o sistema de justiça não ceda às pressões populares e continue a funcionar de maneira imparcial. Ao assegurar que o júri tenha a obrigação de avaliar a culpabilidade do réu sem se deixar influenciar pela opinião pública, o quesito genérico busca preservar os direitos constitucionais do acusado e evitar que a justiça seja feita com base em sentimentos momentâneos. No entanto, essa obrigação pode ser mal interpretada pela sociedade, que muitas vezes vê a aplicação da lei como um obstáculo ao desejo de punição, principalmente em casos onde há uma sensação generalizada de injustiça.
A percepção pública sobre a justiça, portanto, está diretamente relacionada à forma como o quesito genérico é aplicado. Se, por um lado, ele é uma garantia de que o julgamento será realizado dentro dos parâmetros legais e constitucionais, por outro lado, ele pode gerar frustração e a sensação de que a justiça está sendo “morna” ou indecisa. Em um contexto de justiçamento, onde as emoções e a pressão popular têm um papel relevante, a aplicação do quesito genérico pode ser vista como uma forma de deslegitimar o desejo coletivo por justiça imediata. Para que a sociedade compreenda a necessidade desse quesito, é essencial que haja um trabalho de esclarecimento e educação sobre a função do Tribunal do Júri e a importância da imparcialidade no processo judicial. Isso ajudaria a reduzir a desconfiança popular e a reforçar a legitimidade das decisões do Tribunal do Júri (JARDIM, 2016).
A dificuldade de balancear a justiça legal com a justiça social é um dos maiores desafios enfrentados pelo sistema jurídico brasileiro, especialmente em casos de justiçamento, conforme cita Andrade (2021). A justiça legal, pautada na objetividade e nos princípios do direito, exige que o julgamento seja realizado de acordo com as normas e evidências estabelecidas, enquanto a justiça social é moldada pelas expectativas da sociedade, que muitas vezes exige uma resposta mais imediata e contundente diante de crimes de grande repercussão. Esse descompasso entre a aplicação da lei e os anseios populares cria uma tensão constante, principalmente quando o réu é acusado de cometer um crime que choca a sociedade, como homicídios praticados de forma cruel ou em contextos de violência social. Essa distensão entre o que é exigido pela lei e o que é esperado pela população resulta em decisões judiciais que, muitas vezes, não conseguem agradar plenamente a ambos os lados, deixando o sistema jurídico vulnerável a críticas sobre sua efetividade e imparcialidade.
A sociedade, muitas vezes, vê a aplicação do quesito genérico em crimes de justiçamento com uma certa desconfiança, especialmente quando o réu é flagrado cometendo o crime ou quando a comoção popular pela gravidade do ato é muito grande. A percepção popular tende a priorizar a punição imediata e exemplar, considerando que a absolvição, mesmo quando amparada por princípios legais, pode ser interpretada como uma falha do sistema judicial em atender à demanda de justiça social. Isso ocorre porque, em casos de justiçamento, o desejo de vingança coletiva se sobrepõe ao processo judicial formal, e a absolvição pode ser vista como um símbolo de impunidade. Assim, embora o quesito genérico de absolvição tenha o intuito de garantir um julgamento imparcial, ele acaba sendo frequentemente interpretado pela população como um obstáculo ao anseio por justiça rápida e eficiente, o que agrava a desconfiança nas instituições jurídicas (SANCHES, 2021).
Para melhorar a harmonia entre os princípios legais e as expectativas populares, é fundamental implementar estratégias de educação e esclarecimento tanto para os jurados quanto para a sociedade em geral. O processo judicial deve ser compreendido como um mecanismo que garante os direitos fundamentais de todos os indivíduos, independentemente da opinião pública ou da gravidade do crime cometido. Além disso, seria importante promover uma maior transparência nos julgamentos, com a explicação clara do papel do quesito genérico e das razões pelas quais a absolvição, em certos casos, é necessária para preservar os direitos do réu. Investir em programas de conscientização e em uma comunicação mais eficaz entre as instituições jurídicas e a sociedade pode contribuir para que as pessoas compreendam melhor o funcionamento do Tribunal do Júri e o equilíbrio necessário entre a justiça legal e as expectativas sociais, tornando o sistema mais legítimo e aceito pela população (OLIVEIRA JUNIOR E DIAS, 2020).
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise da obrigatoriedade do quesito genérico de absolvição nos julgamentos realizados pelo Tribunal do Júri, especialmente em casos de flagrante, revela a complexa interseção entre a legislação, a ética e as expectativas da sociedade. O quesito genérico, embora necessário para garantir um julgamento imparcial e fundamentado nas provas, muitas vezes entra em conflito com o desejo popular por respostas rápidas e exemplares em casos de justiçamento. O impacto dessa obrigatoriedade não pode ser ignorado, uma vez que ela influencia diretamente a percepção pública sobre a eficácia do sistema judicial e a legitimidade das suas decisões, especialmente quando se trata de crimes que geram forte comoção social.
É imprescindível reconhecer que a manutenção do quesito genérico, tal como previsto atualmente, cria um paradoxo entre soberania popular e controle judicial. Sua obrigatoriedade impede a responsabilização quando o júri absolve com base em razões não explicitadas, o que permite que decisões pautadas em vieses ideológicos ou discriminações escapem de qualquer revisão crítica. Isso contradiz não apenas princípios constitucionais, como também contribui para a insegurança jurídica.
O Tribunal do Júri, ao garantir a participação popular nas decisões, mantém o princípio democrático do sistema jurídico brasileiro, permitindo que a sociedade tenha voz nos julgamentos mais graves. No entanto, isso também acarreta uma tensão entre o direito formal e a justiça popular, que muitas vezes busca punições mais severas e imediatas para aqueles acusados de crimes em flagrante, como os de justiçamento. A aplicação do quesito genérico de absolvição é, portanto, uma ferramenta de equilíbrio que busca preservar os direitos constitucionais do réu, mas que, ao mesmo tempo, gera um cenário de desconforto tanto para os jurados quanto para a população, que não compreende a distinção entre o que é desejado pela justiça e o que é esperado pela sociedade.
Em termos de implicações jurídicas, a obrigatoriedade do quesito genérico de absolvição reforça a necessidade de que os jurados se baseiem apenas nas provas apresentadas durante o julgamento, e não em fatores externos como a pressão social ou emocional. No entanto, essa obrigatoriedade também expõe as fragilidades do sistema jurídico brasileiro, especialmente em contextos de flagrante de justiçamento, onde as emoções e os sentimentos de vingança podem ser mais intensos. Essa dinâmica pode resultar em julgamentos que não refletem o verdadeiro conceito de justiça, mas sim uma forma de satisfação pública, muitas vezes em detrimento dos princípios constitucionais e dos direitos humanos.
Por fim, o estudo sobre a aplicação do quesito genérico de absolvição em casos de justiçamento destaca a urgência de um equilíbrio entre as necessidades da justiça legal e as expectativas sociais. A mudança dessa dinâmica pode ser alcançada por meio de um maior esclarecimento sobre o funcionamento do Tribunal do Júri, o papel dos jurados e a importância do quesito genérico. Além disso, é fundamental que a sociedade seja educada sobre a importância de respeitar os direitos fundamentais, mesmo em situações de grande comoção. Somente com o fortalecimento das instituições jurídicas e o entendimento adequado sobre as práticas do sistema, será possível mitigar os efeitos do justiçamento e garantir que a justiça seja realizada de forma equânime e imparcial.
Recomenda-se ainda a implementação de programas de formação continuada para jurados e campanhas de esclarecimento à sociedade civil, com o objetivo de fortalecer a confiança nas decisões do Tribunal do Júri e consolidar sua legitimidade democrática.
REFERÊNCIAS
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1Especialista em processo penal. Promotor de justiça do ministerio publico do Amazonas
2Advogada, Professora universitaria, Mestre em Direitos Humanos, Especialista em Direito Constitucional, Psicologia Jurídica e Ciencias Criminais. Pesquisadora no grupo de Pesquisas em Direitos Humanos Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.