THE REQUIREMENT OF REASONABLE SUSPICION IN PERSONAL SEARCHES CONDUCTED BY LAW ENFORCEMENT AUTHORITIES
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch10202511061331
Mateus Gabriel Balsamão da Silva1
André de Paula Viana2
RESUMO
A presente pesquisa analisa, à luz do Código de Processo Penal brasileiro, as hipóteses legais de busca pessoal realizada por autoridades policiais, com ênfase na interpretação da expressão “fundadas suspeitas”. A pesquisa identifica a ineficácia dessa prática, pois apenas 1% das abordagens resultam na apreensão de objetos ilícitos, e a seletividade, que recai principalmente sobre pessoas negras e de baixa renda. Esse cenário tem levado ao aumento de Habeas Corpus nos tribunais, visando o reconhecimento da ilegalidade da medida e a consequente anulação das provas obtidas. Por meio de pesquisa bibliográfica, documental e análise jurisprudencial, conclui-se que a amplitude interpretativa do termo “fundadas suspeitas” pode gerar violações aos direitos fundamentais à intimidade e à privacidade, previstos no artigo 5º, X, da Constituição, comprometendo a validade processual e reforçando desigualdades estruturais.
Palavras-chave: Busca pessoal; Fundadas Suspeitas; Legalidade; Princípio da Dignidade da Pessoa Humana; Seletividade.
ABSTRACT
This research analyzes the legal hypotheses for personal searches conducted by police authorities in light of the Brazilian Code of Criminal Procedure, with an emphasis on interpreting the phrase “well-founded suspicions” (fundadas suspeitas). The study identifies the ineffectiveness of this practice, as only 1% of approaches result in the seizure of illicit objects, and its selectivity, which disproportionately affects Black and low-income individuals. This scenario has led to an increase in Habeas Corpus petitions in the courts, seeking recognition of the measure’s illegality and the subsequent annulment of evidence obtained. Through a bibliographic, documentary, and jurisprudential analysis, the research concludes that the broad interpretive scope of the term “well founded suspicions” can lead to violations of the fundamental rights to intimacy and privacy, as outlined in Article 5, X, of the Constitution, thereby compromising the procedural validity of the evidence and reinforcing structural inequalities.
Keywords: Personal search; Reasonable Suspicion; Legality; Principle of Human Dignity; Selectivity.
1 INTRODUÇÃO
A busca pessoal, prevista no Código de Processo Penal, constitui instrumento amplamente utilizado como meio de prova, sobretudo nos chamados crimes de colarinho azul. Entre esses, o tráfico de drogas se destaca, figurando como o delito mais recorrente entre as pessoas privadas de liberdade no Brasil, de acordo com dados penitenciários.
No Estado de São Paulo, a utilização da busca pessoal pela Polícia Militar tem sido alvo de crescentes questionamentos. A evolução jurisprudencial, em consonância com a ampliação da proteção aos direitos fundamentais, vem fortalecendo o direito à vida privada e impondo limites mais rigorosos à atuação estatal, exigindo que a interferência na esfera individual seja mínima e devidamente justificada.
Nesse contexto, observa-se que um número significativo de buscas pessoais é declarado ilegal pelos tribunais superiores. Isso ocorre quando as justificativas apresentadas para a sua realização não se mostram compatíveis com os direitos e garantias previstos na Constituição Federal. Além disso, dados revelam que, no Estado de São Paulo, apenas 1% (um por cento) das buscas pessoais resultam na apreensão de objetos ilícitos, o que significa que 99% (noventa e nove por cento) das pessoas abordadas têm sua liberdade de locomoção restringida sem que se encontre qualquer material ilegal. Entre os poucos casos em que há apreensão, especialmente no crime de tráfico de drogas, constata-se que a maioria dos flagranteados é composta por pessoas negras, evidenciando seletividade racial na aplicação da medida.
Importa salientar que o poder de polícia da Administração Pública não se confunde com a busca pessoal prevista no processo penal. Enquanto o primeiro não exige fundamentação formal, a segunda, por determinação legal, deve ser devidamente motivada.
O Código de Processo Penal, em vigor desde 1941, não sofreu alterações quanto ao dispositivo que regula a busca pessoal. No entanto, práticas adotadas pela Polícia Militar indicam a utilização de critérios incompatíveis com a ordem constitucional. Em resposta oficial a questionamentos sobre os fundamentos que ensejam a medida, a corporação indicou fatores como classe social, higiene e vestimenta, os quais carecem de legitimidade jurídica e moral.
Assim, mostra-se imprescindível o estabelecimento de critérios objetivos para a realização de buscas pessoais. Ainda que seja possível relacionar a medida à criminologia, ciência empírica e interdisciplinar voltada ao estudo do crime, do criminoso e da vítima, verifica-se que a Polícia Militar do Estado de São Paulo mantém estratégias semelhantes às adotadas na década de 1970, distantes das exigências contemporâneas de fundamentação e respeito às garantias individuais. A ausência de observância a esses critérios acarreta a nulidade das provas obtidas e, por conseguinte, o seu desentranhamento, podendo levar à absolvição de acusados. Essa situação gera, simultaneamente, a restrição indevida da liberdade de locomoção de grande parcela da população e a absolvição de indivíduos efetivamente culpados, em razão da atuação policial desconforme à lei.
A presente pesquisa adota os métodos hipotético-dedutivo e indutivo, valendo-se de pesquisa bibliográfica e documental, com enfoque na análise de decisões e jurisprudências.
2 BUSCA PESSOAL: ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES
A busca pessoal, utilizada como meio de prova no processo penal brasileiro, tem peculiaridades que estão relacionadas a violação de determinados direitos inerentes à pessoa humana.
A Constituição Federal de 1988 do Brasil assegura a todos os presentes em solo nacional, princípios inerentes à pessoa humana, os quais devem sobrepor-se a todos os atos de interesse coletivo, salvo quando houver expressa decisão judicial autorizando a sua violação.
O artigo 5º da Lei Maior discorre sobre os direitos e garantias assegurados pelo Estado em prol do indivíduo que se encontra em solo brasileiro. Dentre os direitos e garantias elencados pela Constituição Federal para tratar da legalidade na busca pessoal, é necessário observar os princípios da inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem, inviolabilidade domiciliar, inviolabilidade de dados, direito adquirido, ato jurídico perfeito, coisa julgada, devido processo legal, bem como o princípio da presunção de inocência.
É necessário salientar que a busca pessoal se difere da abordagem policial, o segundo, está relacionado ao poder de polícia, poder este inerente ao Estado. O poder de polícia deve ser exercido de forma discricionária, e jamais arbitrário, sob pena de ilegalidade, haja vista que tal exercício é submetido ao princípio da legalidade, pois deve-se estar amparado na lei, bem como ao controle jurisdicional.
Como ensina Masagão (Júnior 1998, p.120, apud Roth, 2022, p. 39):
Pode a polícia preventiva fazer tudo quanto torne útil a sua missão, desde que com isso não viole direito de quem quer que seja, Os direitos que principalmente confinam a atividade da polícia administrativa são aqueles que, por sua excepcional importância, são declarados pela própria Constituição.
O poder de polícia está previsto no art. 78 do Código Tributário Nacional (CTN), e sua limitação está estabelecida no parágrafo único desse artigo. Com base no referido dispositivo, o poder de polícia é uma atividade da administração pública que limita direitos individuais em razão do interesse público, relacionado, por exemplo, à segurança, à higiene, à tranquilidade pública, ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.
Por outro lado, os limites dessa atividade administrativa estão especificados no parágrafo único do artigo, o qual dispõe que o poder de polícia será considerado regular quando exercido pela autoridade competente, nos limites da lei aplicável. O dispositivo também estabelece que o poder de polícia é discricionário, ou seja, seu exercício envolve a análise de oportunidade e conveniência, sem necessidade de fundamentação específica para a decisão tomada, ressalvados os casos de abuso ou desvio de poder.
Um exemplo que permite diferenciar a abordagem da busca pessoal, bem como delimitar seus limites, é a realização de uma operação voltada à fiscalização da condução de veículos automotores sob a influência de álcool ou drogas ilícitas. Nesse contexto hipotético, a abordagem pode ocorrer sem a necessidade de fundamentações mais robustas, por se tratar do exercício do poder de polícia voltado à segurança pública, com caráter preventivo. Por outro lado, esse mesmo contexto não autoriza, por si só, a realização de busca pessoal ou veicular no indivíduo, sendo necessário um maior grau de fundamentação. Exceção ocorre, por exemplo, nos casos de denúncia anônima que descreva, com riqueza de detalhes, as características do veículo ou do indivíduo, indicando a presença de objetos ilícitos.
Vejamos o que decidiu a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao tratar da denúncia anônima e da busca pessoal, no AgRg no RHC n. 193.038/MG, in verbis:
1. A jurisprudência desta Corte Superior firmou-se no sentido de que “não satisfazem a exigência legal, por si sós [para a realização de busca pessoal ou veicular], meras informações de fonte não identificada (e.g. denúncias anônimas) ou intuições e impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta, apoiadas, por exemplo, exclusivamente, no tirocínio policial. Ante a ausência de descrição concreta e precisa, pautada em elementos objetivos, a classificação subjetiva de determinada atitude ou aparência como suspeita, ou de certa reação ou expressão corporal como nervosa, não preenche o standard probatório de ‘fundada suspeita’ exigido pelo art. 244 do CPP” (RHC n. 158.580/BA, Relator Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Sexta Turma, julgado em 19/4/2022, DJe 25/4/2022). 2. Na hipótese, constata-se a legalidade das buscas pessoal e veicular realizadas, uma vez que decorreram de denúncia anônima especificada, que corresponde à verificação detalhada das características descritas do veículo do agravante (veículo Toyota/Corola, de cor bege). Dessa forma, as informações anônimas foram minimamente confirmadas, sendo que a diligência efetuada consistiu em exercício regular da atividade investigativa promovida pela autoridade policial, o que justificou a abordagem após a confirmação das informações relatadas na denúncia apócrifa. (AgRg no RHC n. 193.038/MG, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 27/2/2024, DJe de 1/3/2024.) (grifo nosso)
Observar-se-á que a busca pessoal não configura poder discricionário, o que a diferencia da abordagem policial. A distinção reside no fato de que a abordagem é o ato pelo qual a autoridade policial emite uma ordem de parada, que deve ser obedecida. Já a busca pessoal, que implica uma revista íntima, deve estar fundamentada em fundadas suspeitas de que o indivíduo abordado esteja portando objeto ilícito. Ou seja, a busca pessoal é a exceção, enquanto a abordagem policial é a regra no âmbito da polícia preventiva, não estando necessariamente a pessoa abordada sujeita à busca pessoal.
O Supremo Tribunal Federal já decidiu sobre a ilegalidade de provas obtidas a partir de revista íntima realizada em visitantes de estabelecimentos prisionais, por entender que há violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, bem como aos princípios da intimidade, honra e imagem. O tema foi reconhecido pelo STF sob o número 998, tendo o Ministro Relator Edson Fachin atribuído repercussão geral à matéria.
Em analogia ao tema 998, pode-se discorrer sobre diversas decisões em que a obtenção da prova se deu por meio da revista pessoal. Doutrinadores como Norberto Avena interpretam que a “fundada suspeita” prevista no artigo 244 do Código de Processo Penal é um evento repressivo e, caso a busca tenha como base a prevenção, é necessária ordem judicial (Avena, 2023).
A partir da análise do julgado de repercussão geral do tema 998 do STF e da constatação de que deve haver fundada suspeita, sob pena de nulidade das provas colhidas, a decisão mais recente e polêmica proferida nesses termos foi a do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no HC 173.021. Trata-se de uma abordagem realizada por uma guarnição municipal, fundamentada na demonstração de medo do suspeito ao avistar a viatura. Nesse julgamento, o STJ decidiu que “demonstrar medo ao ver uma viatura não configura suspeita”.
No entanto, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça já decidiu, no Agravo Regimental no Recurso de Habeas Corpus nº 174.454, que a demonstração de nervosismo e a aceleração do veículo, atos que precederam a busca pessoal, não impedem a revista. Percebe-se, assim, que há divergência jurisprudencial no próprio tribunal.
Vejamos as palavras do Ministro Relator Reynaldo Soares da Fonseca:
[…] A Corte local, soberana na delimitação do quadro fático-probatório, firmou que a busca pessoal realizada no recorrente sucedeu a sua tentativa de fuga, quando verificou a proximidade da equipe policial. Ademais, anotou se que a abordagem do suspeito se deu no âmbito de operação policial mais ampla que ocorria na localidade, a qual se voltava à repressão do tráfico de entorpecentes. A situação que precede a abordagem, de fato, autoriza a revista do recorrente, por suspeita fundada de que portava elementos de corpo de delito. (AgRg no RHC n. 174.454/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 13/6/2023, DJe de 16/6/2023.) (grifo nosso)
A prova obtida por meio ilícito ou ilegítimo, seja ela resultante de busca pessoal ou de qualquer outro procedimento, não poderá ser utilizada para processar nem condenar alguém, sendo essa inadmissibilidade assegurada pela Lei Maior e pelo Código de Processo Penal brasileiro (artigo 5º, LVI, da Constituição Federal e artigo 157 do Código de Processo Penal).
O tema que gera polêmica nos casos em discussão trata da utilização de meios de prova ilegítimos, obtidos com desrespeito ao direito processual e a algum direito inerente à pessoa humana.
Assim, Nucci (2014, p. 473) elucida sobre a abordagem policial na seguinte linha de raciocínio:
[…] suspeita é uma desconfiança ou suposição, algo intuitivo e frágil, por natureza, razão pela qual a norma exige fundada suspeita, que é mais concreto e seguro. Assim, quando um policial desconfiar de alguém, não poderá valer-se, unicamente, de sua experiência ou pressentimento, necessitando, ainda, de algo mais palpável, como a denúncia feita por terceiro de que a pessoa porta o instrumento usado para o cometimento do delito, bem como pode ele mesmo visualizar uma saliência sob a blusa do sujeito, dando nítida impressão de se tratar de um revólver. (grifo nosso)
Com isso, por meio da análise de jurisprudências e doutrina, foi possível verificar que há uma interpretação muito ampla do que pode ser considerado o termo “fundada suspeita”. Essa amplitude interpretativa pode gerar impactos na proteção de direitos coletivos, como Segurança Pública e Saúde Pública, especialmente quando se trata de crimes que os afetam, como porte ilegal de arma e tráfico de drogas.
No contexto do sistema penitenciário brasileiro, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (2018), o tráfico de drogas é o crime mais recorrente entre as pessoas privadas de liberdade, correspondendo a 24,74% dos casos.
Quanto à raça, cor e etnia da população carcerária no Brasil, os dados cadastrados no Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP 2.0) indicam que 54,96% das pessoas privadas de liberdade foram classificadas como pretas ou pardas (Conselho Nacional de Justiça, Brasília, agosto de 2018).
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2023) informou que houve um crescimento proporcional da população carcerária composta por pessoas negras, destacando que, no ano de 2022, 68,2% das pessoas presas eram negras, o maior percentual já registrado na história. A mesma pesquisa faz uma comparação com o ano de 2005, quando esse percentual era de 58,4%, evidenciando um crescimento significativo ao longo dos anos.
Dados de uma tabela do Atlas da Violência (2025) indicam que, no tráfico de drogas – um crime que autoriza busca pessoal em flagrante -, 69% dos presos em flagrante são negros. Esse achado destaca a significativa presença de pessoas negras entre os detidos, o que sugere uma seletividade nas buscas pessoais.
Tabela 1- Perfil racial dos réus acusados por tráfico de drogas.

Elaboração: Atlas da Violência.
É imprescindível observar que os crimes mais frequentemente decorrentes de abordagens policiais são os relacionados ao tráfico de drogas. Para evitar abordagens baseadas em critérios subjetivos, as recentes decisões dos tribunais superiores no Brasil têm se justificado.
Cabe salientar que os levantamentos do CNJ por meio do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP) servem como um norte para a compreensão dos eventos que antecedem as prisões.
Em relação à justificativa policial para abordagens fundamentadas na cor da pele do cidadão, o Ministro Relator Sebastião Reis considerou tal prática ilegítima:
Busca pessoal do paciente feita em razão de o mesmo ser negro conforme depoimento dos responsáveis pelo flagrante: “Que ao passar pela rua Santa Teresa, quadra 4, avistou ao longe um indivíduo de cor negra que estava em cena típica de tráfico de drogas.” (Habeas Corpus n° 660.930 – SP, min. rel. Sebastião Reis Júnior, julgamento em 14/9/2021). (grifo nosso)
Como mencionado anteriormente, o Brasil possui uma população composta por 56,1% de pessoas pretas ou pardas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Pesquisa por Amostra de Domicílios, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2012/2021).
3 DADOS DO ESTADO DE SÃO PAULO QUANTO À EFETIVIDADE DA BUSCA PESSOAL
Ainda na análise das atitudes policiais em buscas pessoais e da necessidade de cumprir a lei, abordando cidadãos apenas quando houver fundada suspeita de que portam objetos ilícitos, verifica-se que cerca de 99% das revistas pessoais realizadas pela Polícia Militar de São Paulo não resultaram na apreensão de materiais ilícitos.
Com base em dados extraídos da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, referentes às buscas pessoais e prisões anuais no período de 2017 a 2022, observa-se o seguinte panorama:
Em 2017, foram abordadas 17.007.121 (dezessete milhões, sete mil, cento e vinte e uma) pessoas, resultando em 175.957 (cento e setenta e cinco mil, novecentas e cinquenta e sete) prisões, sendo frutífera apenas 1% das buscas pessoais.
Em 2018, 15.171.354 (quinze milhões, cento e setenta e um mil, trezentas e cinquenta e quatro) pessoas foram abordadas, com 177.344 (cento e setenta e sete mil, trezentas e quarenta e quatro) prisões.
Em 2019, 15.100.187 (quinze milhões, cem mil, cento e oitenta e sete) abordagens resultaram em 184.270 (cento e oitenta e quatro mil, duzentas e setenta) prisões. Em 2020, apesar da redução no número de abordagens, o percentual de efetividade permaneceu praticamente inalterado, mantendo a média de 1%. Foram abordadas 11.961.706 (onze milhões, novecentas e sessenta e uma mil, setecentas e seis) pessoas, com 137.555 (cento e trinta e sete mil, quinhentas e cinquenta e cinco) prisões.
Em 2021, a Polícia do Estado de São Paulo realizou 10.623.112 (dez milhões, seiscentas e vinte e três mil, cento e doze) abordagens, com 142.864 (cento e quarenta e dois mil, oitocentas e sessenta e quatro) prisões.
Em 2022, comparado a 2017, houve uma queda expressiva no número de abordagens e um leve aumento na efetividade das buscas pessoais, que chegaram a 1,5%.
Em 2023, a Polícia Militar do Estado de São Paulo realizou 9.248.045 (nove milhões, duzentos e quarenta e oito mil e quarenta e cinco) revistas pessoais, resultando em 162.796 (cento e sessenta e dois mil, setecentos e noventa e seis) prisões. Isso representa uma taxa de efetividade de 1,76%.
Em 2024, a Polícia Militar do Estado de São Paulo intensificou suas operações, realizando um total de 11.131.109 (onze milhões, cento e trinta e um mil, cento e nove) revistas pessoais. Essas ações resultaram em 166.718 (cento e sessenta e seis mil, setecentos e dezoito) prisões, o que corresponde a uma taxa de efetividade de aproximadamente 1,50% do total de revistas realizadas.
Os dados da SSP/SP (Secretaria de Segurança Pública de São Paulo) demonstram de forma clara que grande parte da população paulista tem seus direitos fundamentais constitucionalmente garantidos violados para que se obtenha um pequeno percentual de eficiência na segurança pública.
É notório que esses dados contestam fortemente as estratégias da Polícia Militar em suas abordagens, que, na maioria das vezes, colocam o cidadão em situação de constrangimento e vexame. A instituição ainda opera da mesma forma há pelo menos 50 anos, sem sucesso significativo no combate à criminalidade.
Nas palavras do Ministro Alexandre de Moraes, no julgamento do RE 635659 “De 1971 para cá, se fosse feito um ranking de quem ganhou a guerra às drogas, certamente não foram as autoridades públicas.”
A citação do Ministro é pertinente, considerando que o tráfico de drogas é um dos crimes de colarinho-azul (sujeitos à busca pessoal) e a principal tipificação pela qual responde a maior parte da população carcerária.
O Ministro Relator Rogério Schietti Cruz em Agravo Regimental no Habeas Corpus n. 621.586/SP, firmou o seguinte entendimento quanto as buscas pessoais, vejamos:
[…] a revista pessoal em caso de fundada suspeita decorre de desconfiança devidamente justificada pelas circunstâncias do caso concreto de que o indivíduo esteja na posse de armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência. É necessário, pois, que ela (a suspeita) seja fundada em algum dado concreto que justifique, objetivamente, a invasão na privacidade ou na intimidade do indivíduo. (AgRg no HC n. 621.586/SP, Relator Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Sexta Turma, julgado em 21/9/2021, DJe de 29/9/2021). (grifo nosso)
Observa-se que caso a busca pessoal seja fundada em critérios subjetivos, há necessidade de ser reconhecida a nulidade da prova e as dessas derivadas, salvo se tratar de prova derivada da ilícita que puder ser obtida por uma fonte independente, nos termos do art. 157, §1º, do CPP.
A seguir, apresenta-se um gráfico com informações extraídas dos documentos publicados pela Secretaria de Segurança Pública:
Gráfico 1- Busca pessoal e prisões pela PMSP.

Fonte: Secretaria de Segurança Pública.
Inerente a qualquer abordagem policial, sempre haverá uma restrição, ainda que momentânea, à liberdade de locomoção, colocando o cidadão em circunstâncias constrangedoras e vexatórias. Assim, a revista pessoal torna-se cada vez mais ineficaz quando realizada sem a observância do procedimento previsto no artigo 244 do Código de Processo Penal. Dessa forma, a necessidade de plausibilidade não deve se fundamentar em meios que violem a dignidade da pessoa humana, sob pena de reconhecimento da ilegalidade de qualquer prova colhida dessa maneira.
A Constituição Federal, no artigo 5º, inciso LVI, assegura que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. Configura-se como tal qualquer prova obtida em violação ao direito processual – como abordagens sem fundada suspeita de que o agente esteja na posse de ilícitos – ou ao direito material, como nos casos de tortura.
Conforme citado por Ronaldo João Roth, Oficial da Polícia Militar do Estado de São Paulo de 1980, Capitão em 1994, Juiz de Direito na Justiça Militar e professor da Academia de Polícia Militar Barro Branco, em seu Livro Policia Preventiva no Brasil (2022, p. 48 e 49), um trecho de um do Ofício nº PM1-031/02/95, no processo administrativo GS.052/95, sobre as abordagens policiais e os seus critérios, em resposta ao Secretário da Segurança do Estado de São Paulo, à época, a Polícia Militar do Estado de São Paulo, em 1995, por meio de seu Comandante-Geral, Coronel PM Claudionor Lisboa, afirmou que:
Entende-se indivíduo suspeito, para justificar sua abordagem, aquela pessoa que infunde dúvidas acerca de seu comportamento que não inspire confiança, trazendo, em relação ao lugar onde se encontre, o horário e outras circunstâncias, justo receio às condições que nela se apresentam.
Observa-se que o documento no trecho acima trouxe como um dos fundamentos utilizados pela Polícia Militar do Estado de São Paulo é o lugar em que se encontre o sujeito. Por óbvio, não estão falando de lugares nobres, fazendo-nos compreender que a abordagem está relacionada ao local de moradia ou convívio social.
Ademais, no mesmo livro, o professor Roth (2022, p. 49-50) traz outra parte do ofício que exemplifica alguns casos de atitude suspeita:
O policial tem alguém por suspeito para abordagem na rua quando dentre inúmeros exemplos que podem ser citados, ocorrem os seguintes: alguém que usa casaco (blusão, jaqueta), quando a temperatura ambiente está elevada; quando alguém corre ao avistar o policial se aproximando; indivíduo de má aparência pessoal e carente de higiene, ocupando veículo de alto valor; alguém que entra ou sai de qualquer lugar por onde não é habitual (pula um muro ou janela); indivíduos que correspondam à descrição de meliantes em fuga; etc. O que faz o policial suspeitar da atitude de alguém, ante a falta de norma jurídica particular enumerando todos os casos possíveis e imagináveis é a reação de medo por parte da pessoa, o que leva a desconfiar que ela ou já fez ou iria fazer algo de errado. O policial norteia-se pelas regras de experiência subministrada pela observação constante do que ordinariamente acontece e ainda pelas regras técnicas adquiridas nos Cursos da Corporação. (grifo nosso)
Dentre as fundamentações descritas no ofício da Polícia Militar, os pontos destacados já foram analisados pelo Superior Tribunal de Justiça, e todos foram desconsiderados. Entre os julgados, destacam-se o RHC 158.580, no qual o Ministro Rogério Schietti afirmou que a impressão subjetiva dos policiais sobre a aparência ou a atitude suspeita do indivíduo não constitui motivação idônea para justificar a busca pessoal; e o REsp n. 1.961.459/SP, Rel. Laurita Vaz, que estabeleceu em sua decisão que “À falta de dados concretos indicativos de fundada suspeita, deve ser considerada nula a busca pessoal amparada na impressão de nervosismo do acusado por parte dos agentes públicos.” (grifo nosso).
Outrossim, é necessário pontuar que o documento em análise foi elaborado em 1995, e ainda se encontram presentes as mesmas justificativas para as buscas pessoais. Tais justificativas, especialmente as exemplificadas, são nitidamente exemplos que visam abordagens subjetivas, como vestimentas, higiene e o veículo que a pessoa está dirigindo, direcionando-se apenas a uma classe para ser abordada: a classe economicamente vulnerável, refletindo-se nos negros que foram marginalizados em razão da marginalização, conforme explicado em tópico posterior.
4 ABORDAGEM POLICIAL DEVE TER FUNDAMENTOS PLAUSÍVEIS?
Como já exposto, o Brasil adotou o entendimento de que é necessária a fundamentação da abordagem, sob pena de ser considerada ilegítima qualquer prova adquirida por meio de abordagem sem fundamento plausível ou sem mandado. Assim, visando coibir o autoritarismo, os Tribunais Superiores vêm progressivamente sedimentando a interpretação da norma em conformidade com a atual Constituição Federal.
No momento da outorga do Código de Processo Penal, o país vivenciava a Era Getúlio Vargas (Estado Novo), um dos períodos mais autoritários da história brasileira, no qual as “fundadas suspeitas” eram interpretadas de maneira excessivamente ampla.
Com as transformações ocorridas até o século XXI, o Brasil ratificou o Pacto de San José da Costa Rica, promulgou a Constituição Federal de 1988 e, com isso, garantiu ao cidadão, direitos inerentes à pessoa humana. Esses direitos fundamentaram as decisões analisadas nesta pesquisa, que reconheceram a nulidade de provas obtidas por meios ilícitos.
O entendimento que exige uma plausibilidade na suspeita de que o agente esteja portando objeto ilícito fundamenta-se em direitos adquiridos após a Era Getúlio Vargas, como o princípio da dignidade da pessoa humana, expresso na Constituição Federal de 1988, e o direito à imagem, em determinados casos.
Dito isso, a interpretação das normas pode ser alterada conforme as transformações da sociedade o exigirem. No entanto, a inadmissibilidade de provas ilícitas no ordenamento jurídico brasileiro tem sido uma regra constante desde a vigência do Código de Processo Penal.
O que se questiona na sociedade é a preparação da Polícia Militar no país e os métodos adotados no exercício de suas funções. A falta de treinamento adequado e a ausência de evolução nos métodos de abordagem resultam na ineficiência das intervenções policiais. Como apontado na introdução, a maioria das abordagens se mostra infrutífera e, quando eficazes, muitas vezes ocorrem de forma ilegítima, ferindo frontalmente a codificação processual penal.
Os Tribunais Superiores têm afirmado que abordagens policiais fundamentadas exclusivamente na aparência dos indivíduos são ilegítimas, buscando, assim, coibir o racismo estrutural presente nas instituições de segurança pública. Contudo, na prática, essa diretriz ainda não tem produzido os efeitos esperados, visto que, segundo dados apresentados anteriormente, 99% das abordagens são infrutíferas, conforme levantamento das Secretarias de Segurança Pública, conforme pode se observar no seguinte julgado da Suprema Corte de relatoria do Ministro Edson Fachin:
1. a busca pessoal independente de mandado judicial deve estar fundada em elementos concretos e objetivos, como a posse de arma proibida ou de objetos ou de papéis que constituam o corpo de delito, não sendo lícita a realização de medida com base na raça, cor da pele ou aparência física; 2. a busca pessoal sem mandado judicial reclama urgência para a qual não se pode aguardar uma ordem judicial; e 3. os requisitos para a busca pessoal devem estar presentes anteriormente à realização do ato e devem ser devidamente justificados pelo executor da medida para ulterior controle pelo Poder Judiciário. (STF, HC 208.240/SP, Rel. Min. Edson Fachin, j. 11.04.2024, publ. 28.06.2024). (grifo nosso)
Apesar de o racismo estrutural ser tema de amplos questionamentos no âmbito social, é inegável a marginalização das pessoas negras logo após o fim da escravidão. Historicamente, diversas leis foram elaboradas no Brasil, as quais impactaram diretamente os recém-libertos e seus descendentes. Um exemplo é a Lei de Terras (Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850), que dificultava o acesso dos negros à propriedade da terra, proibindo até mesmo a possibilidade de usucapião e estabelecendo que a aquisição só poderia ocorrer por compra, venda ou doação do Estado, mesmo após a promulgação da Lei Eusébio de Queirós (Lei nº 581, de 4 de setembro de 1850), que extinguiu o tráfico negreiro.
Além disso, a Lei Saraiva (1881) restringia a participação dos negros no processo eleitoral ao estabelecer critérios censitários e de alfabetização, o que os excluía quase totalmente do direito ao voto. Outro exemplo é a Lei da Educação (Lei nº 1, de 14 de janeiro de 1837), que proibia o acesso de pessoas negras às escolas, evidenciando a institucionalização do racismo e a perpetuação da exclusão social.
Desse modo, ao se reconhecer que, no passado, houve atitudes que impactaram diretamente a vida dos descendentes de pessoas negras, observa-se que isso resultou em sua marginalização. Como consequência, os locais onde vivem são, em sua maioria, ocupados por pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Essa realidade se deve, em grande parte, aos reflexos da falta de acesso à educação e da baixa representatividade política na defesa de seus interesses. No Brasil, esses locais são majoritariamente comunidades (favelas) ou bairros periféricos.
Portanto, é acertada a posição do STJ na referida decisão, ao obstar a realização de busca pessoal com base em características pessoais. Embora a abordagem policial seja, de fato, amparada pela discricionariedade decorrente do poder de polícia, a busca pessoal deve ser devidamente justificada. Caso a abordagem policial seja contrária à lei — como ocorre no presente caso —, deve ser submetida ao controle judicial, uma vez que a abordagem racista viola a própria Constituição.
A ausência de evolução constante da Polícia Militar em relação ao ordenamento jurídico, às necessidades sociais e aos métodos eficientes de obtenção de resultados acarreta ilegalidades que resultam no relaxamento de prisões. Consequentemente, isso sobrecarrega o sistema judiciário sem, de fato, combater o crime organizado, que, por sua vez, atua fortemente nos chamados crimes de colarinho branco, muitas vezes financiados pelos frutos dos crimes de colarinho azul.
No que se refere à definição de crimes de colarinho azul e de colarinho branco, os primeiros correspondem aos chamados “crimes de rua”, enquanto os segundos se referem aos crimes cometidos no âmbito corporativo. Sobre essa diferenciação, Gonzaga (2023) faz a seguinte crítica aos legisladores:
Dentro desse viés, percebe-se claramente que o legislador penal tem uma preocupação primária com os crimes de colarinho-azul, enquanto com os de colarinho-branco há inúmeros diplomas legais que o tratam de forma benéfica, até mesmo descriminalizando certas condutas, mediante alguns requisitos, como pagamento do tributo ou repatriação de valores. A ideia que se tem é que os crimes de colarinho-azul são os que realmente atacam bens jurídicos relevantes, como a vida, patrimônio e integridade física, enquanto os crimes de colarinho-branco não são sentidos os seus efeitos, de forma direta, pela maioria da sociedade. A ausência de um hospital ou de uma escola somente se torna relevante depois que a pessoa vai buscar a saúde e educação e percebe que esses bens básicos não existem. O desvio de verba pública feito lá atrás não é sentido num primeiro momento. (grifo nosso)
Na visão do professor Nestor Penteado Filho, existem dois tipos de criminalidade organizada, ambos presentes no Brasil. O segundo tipo pode ser conceituado como “crimes de escritório”, caracterizados pela dificuldade de constatação e prevenção, mesmo com a existência de sofisticadas estruturas de inteligência e organização por parte do Estado. Além disso, quando punidos, esses crimes frequentemente recebem flexibilizações na aplicação da pena, uma vez que não geram a mesma comoção social que os crimes de colarinho azul (crimes de rua). A seguir, apresenta-se a visão do professor Nestor (2012):
Criminalidade organizada do tipo mafiosa (Cosa Nostra, Camorra, Ndrangheta e Stida, na Itália; Yakuza, no Japão; Tríade, na China; e Cartel de Cali, na Colômbia), cuja atividade delituosa se baseia no uso da violência e da intimidação, com estrutura hierarquizada, distribuição de tarefas e planejamento de lucros, contando com clientela e impondo a lei do silêncio. Seus integrantes vão desde agentes do Estado até os executores dos delitos; as vítimas são difusas, e o controle social encontra sério óbice na corrupção governamental; A criminalidade organizada do tipo empresarial não possui apadrinhados nem rituais de iniciação; tem uma estrutura empresarial que visa apenas o lucro econômico de seus sócios. Trata-se de uma empresa voltada para a atividade delitiva. Busca o anonimato e não lança mão da intimidação ou violência. Seus criminosos são empresários, comerciantes, políticos, hackers etc. As vítimas também são difusas, mas, quando individualizadas, muitas vezes nem sequer sabem que sofreram os efeitos de um crime. (grifo nosso)
Tendo em vista as dificuldades do Estado em investigar e punir a criminalidade organizada de natureza empresarial, a atuação ostensiva concentra-se na prevenção dos crimes de colarinho azul. No entanto, essa abordagem ignora que a existência dos crimes de colarinho branco impacta diretamente os comportamentos sociais, especialmente devido à precariedade na oferta de direitos fundamentais, como educação de qualidade. Dessa forma, um tipo de crime está intrinsecamente ligado ao outro.
Como exemplo das organizações criminosas envolvidas em crimes de natureza econômica, o Estado enfrenta desafios decorrentes da prática de delitos financeiros, sendo a lavagem de capitais um dos mais recorrentes.
Para ilustrar essa relação, pode-se citar o início da “Operação Lava Jato”, que surgiu a partir de investigações conduzidas pelo Ministério Público Federal com o objetivo inicial de desmantelar esquemas envolvendo doleiros, dentre eles Carlos Habib Chater, em Brasília. No município de Araraquara, por meio de interceptação telefônica, foram obtidas informações sobre tráfico de drogas, o que resultou em prisão em flagrante. Ao longo das investigações, os desdobramentos levaram à identificação de crimes financeiros que atingiram figuras do alto escalão político, incluindo o então presidente da República à época.
Portanto, se não fosse a abordagem da Polícia Rodoviária a um veículo transportando 698 kg de cocaína, o desenrolar da operação poderia ter sido diferente, uma vez que os crimes de colarinho branco são de difícil averiguação. Inclusive, segundo dados extraídos do site do Ministério Público Federal, a primeira sentença proferida no âmbito da Operação Lava Jato foi relacionada ao tráfico de drogas em concurso com o crime de lavagem de capitais.
Essa realidade reforça a crítica do ilustre Cristiano Gonzaga, pois, ao longo da operação, observou-se a concessão de benefícios processuais aos envolvidos em crimes de colarinho branco, com destaque para o uso recorrente do instituto da delação premiada.
A exigência de fundadas suspeitas com critérios objetivos na realização de abordagens policiais não apenas fortalece a segurança pública e resguarda direitos individuais assegurados pela Constituição Cidadã, mas também contribui para a descoberta de crimes financeiros, os chamados “crimes de cifras douradas” (colarinho branco).
O Supremo Tribunal Federal entende que é lícita a abordagem policial fundamentada em reações típicas já reconhecidas pela ciência aplicada à atividade policial, conforme se observa na decisão do RHC 229.514:
Se um agente do Estado não puder realizar abordagem em via pública a partir de comportamentos suspeitos do alvo, tais como fuga, gesticulações e demais reações típicas, já conhecidas pela ciência aplicada à atividade policial, haverá sério comprometimento do exercício da segurança pública. O policiamento preventivo e ostensivo, próprio das Polícias Militares, a fim de salvaguardar a segurança pública, é um dever constitucional. Os suspeitos têm direito a um sistema penal democrático e a um processo penal justo, ao tempo em que a sociedade tem direito a viver em tranquilidade nas vias públicas. (STF, Ag. Reg. RHC 229.514, Rel. Ministro Gilmar Mendes, 2ª Turma, decisão unânime, p. 23/10/2023) (grifo nosso)
Destarte, a 2ª Turma do STF entende que o comportamento suspeito constitui justa causa para a abordagem. No entanto, não se deve considerar estudos ultrapassados da criminologia, aplicada à atividade policial, que atribuem ao delinquente, características exclusivamente subjetivas, sob pena de nulidade das provas ou elementos informativos obtidos com esse fundamento.
5 RELACIONAMENTO ENTRE A CRIMINOLOGIA E BUSCA PESSOAL
A criminologia é um estudo científico, empírico e interdisciplinar que investiga o crime. Diferentemente do Direito Penal, que se concentra na norma jurídica, a criminologia analisa o crime, o criminoso e a vítima, considerando também as circunstâncias sociais, além de fatores físicos e psicológicos que motivam o agente a cometer o delito.
Definida a criminologia, passamos a aprofundar sua aplicabilidade na fundamentação das buscas pessoais realizadas por agentes policiais em serviço nos estados-membros, com a finalidade de manter a ordem pública.
Sabemos que as abordagens devem se basear em critérios objetivos e que as buscas pessoais visam coibir crimes de colarinho azul. Além disso, a criminologia estuda o crime, o criminoso e a vítima, levando em conta os fatores sociais, físicos e psicológicos que levam o agente à delinquência.
No presente estudo, focaremos na abordagem policial, analisando o crime, o criminoso e as motivações da delinquência à luz das escolas criminológicas.
As principais correntes são a Escola Clássica e a Escola Positiva, que estudaremos separadamente.
A Escola Clássica tem como principal característica a ideia de que o direito tem origem transcendente, sendo pré-existente ao homem e de origem divina. Para essa escola, o delinquente é um pecador que utilizou seu livre-arbítrio para praticar o mal, embora devesse respeitar a lei. O cidadão, portanto, deve aderir às regras sociais para viver em sociedade.
Já a Escola Positiva é dividida em três fases. A primeira sistematizou uma série de conhecimentos dispersos, reunindo-os de forma articulada para traçar o conceito do criminoso nato. Seguindo a teoria de Lombroso, essa fase estabeleceu características físicas e parâmetros para identificar criminosos natos, como fronte fugidia, crânio assimétrico, rosto largo e chato, lábios finos, canhotismo, barba rala, olhar errante e duro, entre outros.
A segunda fase é a Sociológica. Para Ferri, a prevenção geral do crime é mais eficaz que a repressão. Nessa vertente, são estudados cinco tipos de criminosos: Louco: Esse comete o crime motivado por atrofia moral; Nato: Classificado conforme teoria de Lombroso (hereditário); Habitual: Nasce em um ambiente urbano totalmente deformado moralmente, cometeria pequenos crimes como a mendicância, vadiagem e pequenos furtos, até que iniciava sua escalada para o crime; Ocasional: Sofre influência do ambiente, há necessidades pessoais ou familiares, facilidade na execução de pequenos delitos e; Passional: Motivado pela paixão.
Logo, como bem observado, se aplicado tais estratégias para que há o combate ao crime, jamais, haveria busca pessoal, em bairros nobres, com fundadas suspeitas subjetivas, salvo, se estiver o criminoso, em ambiente com vestes ou características pessoais que não condizem com o ambiente nobre.
Destarte, ainda que o estudo da criminologia, busca uma etiquetação aos delinquentes, como por exemplo, na Teoria de Lombroso, onde nasce o sujeito delinquente, não seria suficiente ao nosso ordenamento jurídico vigente, a abordagem policial com fundamentos subjetivos, pois, violaria claramente a Constituição Federal nos seus direitos e garantias individuais positivadas.
A busca pessoal, como podemos observar nas decisões jurisprudenciais, estão ligadas a estereótipos da criminologia, com fim jus puniendi do estado, ocorre, que a ineficiência, conforme dados extraídos das Secretarias de Segurança Pública do Estado de São Paulo, não condizem com a expectativa do Estado, em punir corretamente e efetivar a segurança pública. Sobre essa questão, o ilustre professor de Direito Processual Penal, Lopes (2023), faz a seguinte crítica ao Estado e ao tema em debate:
Não raras vezes, os próprios juízes legitimam as buscas de “arrastão” e sem qualquer critério legítimo, sob o argumento de que são “meros dissabores, justificados pelos altos índices de violência urbana” (claro, até porque eles estão imunes a tais dissabores…). Outros ainda, com precários subterfúgios discursivos, recorrem à lógica de que os fins justificam a (ilegalidade) dos meios. (grifo nosso)
O Brasil, ainda atua com as mesmas estratégias de 1970, para o combate ao crime, dessa forma, verificou-se a criminologia, que a falha está no controle social, na qual não executam da forma que produz efetividade no mundo real.
Nesse sentido, Gonzaga (2023) destaca:
Do paradigma etiológico ao paradigma do controle. Atualmente, mudou-se o enfoque de estudo do problema da delinquência. No ano de 1970, predominou o pensamento do paradigma etiológico, atribuindo-se o crime a fatores sociais de desigualdade, exclusão social e falta de oportunidades, o que sugeriria a necessidade de políticas sociais e assistenciais de prevenção como estratégia fundamental para abordar esse problema comunitário da criminalidade. Entre a década de setenta e anos noventa do século passado, a Criminologia crítica deu um salto qualitativo e passou a atribuir o problema da criminalidade ao próprio controle social e às instituições sociais chamadas a realizar trabalhos de integração e coesão social. Na década de noventa até os dias atuais houve a opção por programas de controle social, os quais entendem que a existência do crime se dá pela falta, mau funcionamento ou falhas no referido controle social. Destarte, a forma de intervenção mais eficaz no fenômeno delitivo não seria a atenuação da marginalização ou exclusão social, mas sim o incremento mais duro e rígido do controle social. (grifo nosso)
Solidifica-se o argumento de que a atuação ostensiva, além de não produzir resultados úteis para o processo e para a sociedade, ainda se baseia em estratégias de mais de 50 anos atrás, associando a criminalidade a paradigmas etiológicos e atribuindo ao crime fatores sociais de desigualdade. Como descreve Christiano Gonzaga, os tratamentos em áreas periféricas diferem dos tratamentos em bairros nobres. Dessa forma, os agentes policiais acabam conduzindo buscas pessoais de maneira desigual, jamais suspeitando que uma pessoa em um bairro nobre, com uma pasta em mãos, poderia estar carregando provas robustas de crimes relacionados à corrupção de algum político, mas sim presumindo tratar-se de um executivo atrasado para uma reunião.
6 CONCLUSÃO
A busca pessoal prevista no Código de Processo Penal, quando realizada pela Polícia Mi litar do Estado de São Paulo, revela um modelo de atuação que se aproxima de uma pesca proba tória, caracterizada por seletividade e baixa efetividade, já que apenas 1% (um por cento) das abor dagens resultam efetivamente na apreensão de objetos ilícitos.
A conjugação da seletividade, da baixa efetividade, de documentos internos da corporação que estabelecem critérios para a abordagem de cidadãos e da interpretação conferida pelos tribunais ao art. 244 do Código de Processo Penal, à luz da Constituição Federal, demonstra que a maioria das abordagens é ilícita e fundamentada em parâmetros genéricos e subjetivos, o que afronta diretamente o Estado Democrático de Direito e o princípio da igualdade.
A análise realizada ao longo desta pesquisa evidencia que, sob uma perspectiva legalista e garantista, as buscas pessoais fundamentadas em critérios subjetivos são incompatíveis com a ordem jurídica vigente. Constatou-se, ainda, que as pessoas mais atingidas por tais práticas perten cem, em sua maioria, às classes sociais mais baixas, o que se traduz, em termos concretos, em abordagens majoritariamente voltadas a pessoas negras e pobres. Esse cenário reflete desigualda des históricas e culturais que dificultam o acesso dessas populações a oportunidades de educação, moradia e desenvolvimento econômico.
Nesse contexto, conclui-se que há necessidade urgente de revisão dos critérios adotados pela Polícia Militar paulista para a realização de buscas pessoais, bem como de aplicação mais rigorosa e estrita da lei, afastando-se como fundamento principal o chamado “tirocínio” do agente. A utilização desse critério, além de ineficiente, compromete a validade da prova, prejudica a instrução processual e inviabiliza a responsabilização penal de indivíduos efetivamente culpados, ge rando prejuízos significativos ao Estado.
REFERÊNCIAS
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1Acadêmico do Curso de Direito do Centro Universitário de Jales (UNIJALES), Jales – SP, E-mail: mateusbalsamao00@gmail.com;
2Mestre em Ciências Ambientais, orientador e professor do Curso de Direito do Centro Universitário de Jales (UNIJALES), Jales – SP
