REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10032232
Italo Wescley Gonçalves Sousa1
Tiago Palácio da Silva2
Rebeca Leite de Souza3
RESUMO
O reconhecimento de pessoas no processo penal é disciplinado pelo CPP, que aborda o reconhecimento presencial. O reconhecimento por fotografia é um instituto relativamente recente, que ocorre em razão do avanço da tecnologia e da quantidade de câmeras disponíveis para comprovar a materialidade do delito, porém, as inobservâncias dos preceitos legais culminam frequentemente em erros judiciais e encarceramento que não observam o princípio da presunção de inocência. O objetivo geral da pesquisa é demonstrar as formalidades legais dispostas no art. 226 do Código de Processo Penal para a validade do reconhecimento de pessoas no ordenamento jurídico brasileiro à luz do princípio da presunção de inocência. O referido artigo visa reduzir os erros no reconhecimento. Trata-se de uma pesquisa exploratória, descritiva em que o procedimento metodológico da revisão bibliográfica e documental foi utilizado. Os artigos científicos e dissertações utilizados para a construção do texto estão disponíveis em repositórios digitais como CAPES, Google Scholar e Scielo. Serão analisados documentos legislativos, mormente o Código de Processo Penal, e documentos jurisprudenciais de interesse da pesquisa. O artigo 226 do CPP visa reduzir os erros no reconhecimento. Portanto, o reconhecedor deve, antes de realizar o procedimento, descrever quem será reconhecido, ser realizado diante de testemunhas e o suspeito deve ser colocado entre outros indivíduos que possuam características físicas semelhantes. Ressalta-se que o texto legal não aborda especificamente o reconhecimento fotográfico, porém este é aceito pela jurisprudência, desde que observe os requisitos legais.
Palavras-Chave: Direito Processual Penal. Reconhecimento fotográfico. Presunção de inocência.
INTRODUÇÃO
O Brasil enfrenta uma série de problemas relacionados ao encarceramento, seja no que diz respeito ao sistema prisional, que apresenta mazelas e compromete a ressocialização do infrator, seja quanto ao procedimento que culmina na prisão. Neste estudo, porém, interessa a análise do reconhecimento fotográfico em sede policial, questão que vem levando à prisão um grande número de pessoas e comprometendo, em última análise, a presunção de inocência.
Por essa razão, questiona-se a falibilidade do reconhecimento fotográfico em sede policial, principalmente pelo viés discriminatório. Portanto, o estudo proposto, cujo título é “O reconhecimento de pessoa sem a observância das formalidades legais a teor do art. 226 do Código de Processo Penal e a afronta ao princípio da presunção de inocência” busca averiguar exatamente a problemática do reconhecimento de pessoas no ordenamento jurídico brasileiro.
Trata-se de meio de prova regulamentado no art. 226 do Código Penal, que traça os requisitos e formalidades indispensáveis para perfectibilizar a validade do ato. Logo, se observados os requisitos do referido artigo de lei, é meio de prova formal e a validade, repita-se, está condicionada ao que dispõe o referido artigo de lei.
Diante do exposto, o objetivo geral da pesquisa é demonstrar as formalidades legais dispostas no art. 226 do Código de Processo Penal para a validade do reconhecimento de pessoas no ordenamento jurídico brasileiro à luz do princípio da presunção de inocência. Como objetivos específicos, pretende-se: Contextualizar o princípio da presunção de inocência no ordenamento jurídico brasileiro e relacioná-lo ao reconhecimento fotográfico enquanto meio formal de prova; Discorrer sobre o reconhecimento de pessoas realizado através de fotografias nas delegacias de polícia; discutir a constitucionalidade do reconhecimento fotográfico à luz dos requisitos consagrados no art. 226 do Código de Processo Penal, que regulamenta ao reconhecimento de pessoas e coisas.
Trata-se de uma pesquisa exploratória, descritiva em que o procedimento metodológico da revisão bibliográfica e documental foi utilizado. Os artigos científicos e dissertações utilizados para a construção do texto estão disponíveis em repositórios digitais como CAPES, Google Scholar e Scielo. Serão analisados documentos legislativos, mormente o Código de Processo Penal, e documentos jurisprudenciais de interesse da pesquisa.
2. PRINCÍPIOS DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
De modo geral, o processo penal brasileiro é iniciado por ato do Ministério Público (MP), em que seu representante, da posse de indícios de atos criminosos, oferece a denúncia ao Poder Judiciário, para que o suspeito seja devidamente processado. O sistema processual penal possui uma fase preliminar, o inquérito policial, de caráter inquisitório, que é compreendida como parte do processo acusatório, por sua natureza inquisitorial que comprometem a posição de imparcialidade do juiz (KHALED JÚNIOR, 2010).
O inquérito reúne os indícios de crime e apresenta ao MP, que oferece a denúncia ao Judiciário. Em seguida, o acusado se apresenta para interrogatório diante do juiz e pode iniciar sua defesa. De acordo com Silva (2013), os princípios de maior relevância no Direito processual penal, são: presunção de inocência, inadmissibilidade de provas ilícitas, devido processo legal, contraditório e ampla defesa (princípio acusatório), princípio da identidade física do juiz, da publicidade e do juízo natural.
O princípio da presunção de inocência, que está mais extensamente debatido posteriormente é amparado pelo art. 5º, LVII da Constituição Federal e determina que todos os indivíduos são inocentes e a culpabilidade penal é a exceção da regra de inocência, portanto é necessário que haja o devido processo penal para considerar alguém culpado. O princípio da inadmissibilidade de provas ilícitas determina que a ilicitude está na obtenção da prova quando não respeitadas regras do direito material, violam os direitos da personalidade do acusado, lhe arranca confissão por meio de violência, entre outros (SILVA, 2013). Contudo, Mendonça (2014) afirma que qualquer violação ao devido processo legal, em qualquer fase, conduz à ilicitude da prova.
De acordo com Dotti (1993) o devido processo legal, um dos princípios de maior relevância, também positivado na CF/88 (art. 5º, LIV), pois determina que o processo legal é justo e observam as normas do Direito processual, sem o qual, ninguém pode ser privado de liberdade ou de seus bens, que possuem tutela judicial, legal e constitucional. São fundamentos do devido processo legal: presunção de legitimidade dos conteúdos probatórios, observância às formalidades processuais, tipicidade dos atos processuais e princípio da reserva legal, que assegura as garantias e direitos fundamentais do acusado (MENDONÇA, 2014).
O princípio acusatório determina o sistema de partes do devido processo legal, e determina que o acusado só o seja mediante defesa, mesmo que foragido ou ausente. Silva (2010) afirma que um defensor público é designado para os acusados que não dispõem de recursos para financiar defesa particular, porém a defesa ofertada pelo Estado não é meramente formal, mas defesa efetiva e fundamentada.
A identidade física do juiz determina que o juiz que presidiu a instrução deverá ser responsável por proferir a sentença (BRASIL, 1941, art. 399, § 2º). O princípio da publicidade determina que todo processo penal deve ser público, salvo quando o juiz determinar que o sigilo interesse ao interesse social ou proteja a intimidade das partes. Nos casos em que o juiz decidir pelo segredo de justiça, deverá o fazer de forma fundamentada. Por fim, o princípio do juízo natural determina que a regra de competência deve existir antes da prática do crime, ou seja, o tribunal competente deve existir no momento da prática do crime, vedando-se o tribunal de exceção (CALIXTO, 2016).
2.1 Presunção da Inocência
O professor Miguel Reale Júnior (2001) explica que os princípios do Direito são juízos basilares que conferem fundamentos e garantias ao conjunto de juízos do ordenamento, ou seja, são preposições que ainda que não sejam evidentes, compõem o fundamento da validade do sistema jurídico dos países de tradição civil law.
O princípio da presunção da inocência ou da não culpabilidade é descrito pelo professor Alexandre Luiz Alves de Oliveira (2020) como sendo um dos princípios básicos, ao lado da dignidade da pessoa humana, que fomentam o estado de condição humana. O princípio da presunção de inocência visa garantir que o processo penal seja totalmente imparcial e não apresenta viés negativo ou positivo a uma das partes.
O crescimento da importância do princípio da presunção da inocência se deu concomitantemente ao crescimento da importância dada aos direitos humanos e fundamentais pela sociedade. Isso significa afirmar que em diversos períodos históricos, não havia tal garantia no processo, e a confirmação da culpa do imputado derivada da comoção popular acerca do crime, de decisões monocráticas, ou em culturas pagãs, de acordo com as instruções divinas (SILVA, 2017).
O jurista Guilherme de Souza Nucci (2016) afirma que o princípio da presunção da inocência determina que as pessoas nascem inocentes, sendo este seu estado natural, e, portanto, para macular seu estado natural, o Estado-acusação deve fornecer provas suficientes para o Estado-juiz, determinar a culpa do réu.
Este princípio teve origem na Revolução Francesa, sendo descrito inicialmente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que em seu art. 9º determina que “todo acusado se presume inocente até ser declarado culpado […] (FRANÇA, 1789, art. 9º). Posteriormente foi descrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948:
Toda a pessoa acusada de um ato delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas (ONU, 1948, art. 11).
Outros diversos dispositivos nacionais e internacionais possuem o mesmo teor, tornando-se uma premissa básica do processo judicial e do convívio social dentro de um Estado em que os indivíduos possuem liberdade. A CF/88 também consagra o princípio da presunção de inocência: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (BRASIL, 1988, art. 5º; LVII).
Pedrosa (2016) afirma que este princípio é derivado do princípio da jurisdicionalidade, de forma que se a prestação jurisdicional é necessária para a comprovação do delito cometido por alguém, por meio de um processo regular, a culpabilidade apenas pode ser decretada após a finalização do processo.
O autor afirma que ainda que a culpabilidade do indivíduo preso em flagrante delito seja clara aos olhos do leigo, havendo fortes indícios para tal, é fundamental que a presunção da inocência seja preservada, pois ainda que a culpa seja clara, a inobservância a este princípio, e às demais garantias processuais, gera-se insegurança jurídica, caos e o totalitarismo estatal.
O princípio da presunção da inocência está ligado ao ônus da prova, de forma que não cabe ao acusado provar sua inocência, pois ela é presumida. Cabe a quem acusa, demonstrar os materiais minimamente probatórios que indiquem a culpabilidade do agente. Dessa forma, protege-se o acusado, parte mais frágil do processo, por vezes incapaz de produzir conteúdo probatório suficiente para comprovar sua inocência, e transfere essa responsabilidade ao Estado, que deve provar a autoria da materialidade do delito (BATISTA FILHO, 2020).
Silva (2017) afirma que a presunção da inocência é o princípio que sustenta todo o processo penal liberal, permitindo que haja demais garantias frente à sanha punitiva do Estado, bem como é um postulado que molda o tratamento do Estado com o imputado, de forma que, visto que presume-se que o imputado não é culpado do crime cometido, deve-se minimizar a restrições de direito durante o processo.
A autora afirma que a presunção da inocência é analisada pela doutrina penalista como uma garantia política do estado de inocência do indivíduo, como regra em caso de dúvida (in dubio pro reo) e como regra de tratamento do acusado no decorrer do processo. Batista Filho (2020) relembra que no Direito Brasileiro, a presunção de inocência apenas foi formalmente positivada com o advento da CF/88, visto que antes de sua promulgação, havia resquícios da presença e influência deste princípio de forma implícita, porém não havia determinação legal.
Neste mesmo diapasão, Sanches Cunha (2015) afirma que do princípio da presunção de inocência, extrai-se três consequências: a) a restrição à liberdade do investigado apenas poderá ocorrer após a condenação ou de forma cautelar, em caráter excepcional e imprescindível para o interesse público; b) cumpre à acusação o dever de demonstrar a responsabilidade do réu e c) a condenação deve advir da plena convicção do julgador na responsabilidade do agente, pois, havendo dúvida, deve-se interpretar em favor do réu.
A correta terminologia e etiologia do tempo é discutida na filosofia e doutrina:
Alguns doutrinadores e estudiosos do direito entendiam que a melhor forma de o nominar seria como Princípio da não culpabilidade, por acreditarem que “Princípio da presunção de inocência” não seria adequado, posto que não se pode, de início, presumir culpa do acusado. Do mesmo modo, não seria possível presumir a inocência. Assim, atualmente considera-se a existência de consenso, inclusive por parte do Supremo Tribunal Federal, quanto à adequação de ambas as denominações consideradas sinônimas (BATISTA FILHO, 2020, p. 7).
Parte da doutrina entende que como não se pode imputar culpabilidade ao indivíduo, também não se pode imputar inocência, logo, a terminologia adequada para o princípio seria de “não culpabilidade” que está relacionado ao fato de embora não se presume a inocência, não se pode declarar a culpabilidade do agente. Batista Filho (2020) entende que a interpretação literal do princípio significaria que ninguém poderia ser considerado culpado.
Dessa forma, a presunção da inocência relaciona-se a diversos outros princípios, como vedação à provas ilícitas, ampla defesa e contraditório, direito de imunidade a auto acusação, entre outros. Por fim, considera-se que o princípio da não culpabilidade, ou presunção de inocência é um princípio reitor do processo penal que deve ser maximizado em todos os momentos do processo penal e em todas as suas matizes, mormente em relação à carga probatória e vedação à abusividade da prisão cautelar, que será discutida na seção seguinte.
Nucci (2016) afirma que a presunção da inocência do imputado deve reforçar o princípio da intervenção mínima do Estado na vida do cidadão, de forma que a reprovação penal deverá ocorrer apenas quando indispensável. Portanto, este princípio confirma a natureza excepcional das medidas cautelares de prisão, visto que o agente imputado, considerado presumidamente inocente, apenas deverá ser preso de forma cautelar, quando houver verdadeira utilidade à ordem pública:
A partir disso, deve-se evitar a vulgarização das prisões provisórias, pois muitas delas terminam por representar uma nítida – e indevida – antecipação de pena, lesando a presunção de inocência. No mesmo prisma, evidencia que outras medidas constritivas aos direitos individuais devem ser excepcionais e indispensáveis, como ocorre com a quebra dos sigilos fiscal, bancário e telefônico (direito constitucional de proteção à intimidade), bem como com a violação de domicílio em virtude de mandado de busca (direito constitucional à inviolabilidade de domicílio) (NUCCI, 2016, p. 77).
Ressalta-se que no Brasil, há duas formas de prisão restritiva de liberdade. A primeira é para fins de cumprimento de pena, que ocorre apenas após o trânsito em julgado do processo penal, e a prisão provisória, que pode ser preventiva, temporária ou em flagrante (VIEIRA, 2015). A literatura descreve fartamente que há, atualmente, um abuso no requerimento das medidas cautelares, de forma que na prática, a investigação e o processo penal, em muitos casos, presume a culpabilidade do agente (VIEIRA, 2015; SOUZA, 2006).
Souza (2006) afirma que não há regulamentação do processo cautelar para que este possua autonomia e goze de mecanismos ou protocolos que assegurem a eficácia prática de providências, portanto, o provimento cautelar torna-se um campo fértil para abusos e arbitrariedades das partes.
De acordo com dados divulgados pelo CNJ na pesquisa “O sistema prisional brasileiro fora da Constituição – 5 anos depois da ADPF 347” divulgado em 2021, em 2010 33% dos presos eram presos provisórios no Brasil. Em 2015 o índice subiu para 37,47% dos detentos, e em 2020, 30,15% dos indivíduos cumprindo pena em estabelecimentos prisionais não foram condenados, ou seja, estão presos em caráter provisório, e tais dados não são condizentes com a natureza que deveria ser excepcional da prisão temporária.
Conforme indica Vieira (2015) em diversos casos, o indivíduo permanece preso temporariamente por anos, até mesmo mais tempo do que a pena máxima prevista para o crime que lhe é imputado. Compreende-se haver justas razões para a demora ou atraso do processo, como demandas complexas que envolvam múltiplos réus, manobras abusivas da defesa para protelar o processo, entre outras, mas tal morosidade do judiciário auxilia no agravamento da crise penitenciária brasileira, gerando superlotação, reincidência e outros efeitos colaterais.
3. VALORAÇÃO PROBATÓRIA NO PROCESSO PENAL
Primariamente, cumpre-se citar que o processo penal ocorre com a verificação das acusações a partir da reconstrução de um fato ocorrido, compreende-se que o processo penal ocorre necessariamente em torno de uma dúvida sobre a veracidade dos fatos e do valor dos elementos probatórios. Em razão disso, Fernandes (2019) afirma que pelo fato de a cognição humana ser limitada e falível, existem duas correntes que buscam explicar o conceito da verdade: o ceticismo, que defende que nada é verdadeiro e o relativismo, que assevera que tudo pode ser verdadeiro.
Em razão do exposto, é necessário que o Direito adote um conceito de verdade provisória, ou elenque uma série de parâmetros e elementos que confirmem a veracidade dos fatos para conduzir ao veredito, que seja lastrado na falibilidade da cognição humana, mas sem permitir que esse fato tende a relativizar o processo para o alargamento do conceito da verdade. Ainda de acordo com Fernandes (2012) o conceito do falibilismo do judiciário assume que há uma verdade possível, não várias, e mesmo que a percepção da verdade esteja equivocada, serve como norteador da discussão.
Baltazar Júnior (2007) afirma que a doutrina distingue duas concepções do conceito de prova: a concepção moderna e a clássica, sendo a moderna fruto das ideias iluministas e racionalistas, tendendo a um sentido objetivista e absoluto da verdade, visa alcançar a verdade por meio da demonstração do acerto da prova dos fatos. Já a concepção clássica é o objeto da perspectiva argumentativa e problemática, que assume a falibilidade humana, rechaça a possibilidade de busca pela verdade inquestionável, se abre para a possibilidade da persuasão, que pretende a verdade provável.
Nesse contexto inserem-se as provas, que Gonçalves (2018) conceitua como os elementos que o juiz utiliza para obtenção dos fatores necessários para julgar. Apesar da prova e sua valoração constituírem elemento fundamental do processo penal, são normalmente estudados com pouco empenho no Brasil, em que há aparente aceitação ao conceito de que o magistrado possui capacidades suficientes e “quase místicas para julgar”. Já para Taruffo (2014) a prova é o fenômeno de múltiplas facetas, que a definição e natureza são influenciados por fatores históricos, culturais e jurídicos, portanto em diferentes eras, países e culturas, os elementos compreendidos como “prova” foram radicalmente distintos.
Taruffo afirma que independente da forma adotada para o esclarecimento dos fatos, trata-se de um processo complexo: “O problema epistêmico sobre «que tipo de verdade» pode ser obtido nos contextos judiciais é muito complexo: portanto, encontrar uma definição confiável da função da prova é também uma tarefa difícil” (TARUFFO, 2014, p. 29). Isso ocorre, pois, encontrar a verdade absoluta é impossível em um processo judicial, portanto, os ordenamentos jurídicos dos países decidem os princípios dos sistemas de obtenção da verdade, sendo essa sempre parcial ou relativa, sendo a maior “probabilidade”, mas não a verdade absoluta.
Segundo Massena (2021) no Brasil e em países de tradição jurídica romano-germânica, o princípio da livre valoração da prova é o elemento fundamental do sistema de justiça criminal. Ainda que atualmente esse princípio não tenha a mesma força, quando comparado com o período pós-revolução francesa (1789-1799), em que o princípio surgiu, ainda exerce ampla influência normativa, de forma que causam desconfiança dos magistrados as tentativas de regrar o processo de valoração da prova. O autor cita possíveis fatores para a desconfiança do magistrado à essas tentativas, porém independente das razões, verifica-se pouco esforço para a definição de critérios legais de suficiência probatória.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988, dispositivo supremo da legislação brasileira, adota o sistema acusatório, em que determina as posições de acusação, defesa e julgamento. O sistema probatório adotado pelo Brasil possui as seguintes fases: admissão ou exclusão do processo, produção e valoração probatória (PALMA, 2016). O Código de Processo Penal prevê o momento em que será realizada a valoração judicial:
Art.155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas (BRASIL, 1941)
A redação supracitada foi incluída ao Código de Processo Penal pela lei nº 11.690/08 e superou a redação anterior que previa o “livre convencimento”, introduzindo a noção de “livre apreciação da prova”, o que causava a confusão de que o juiz poderia apreciar os elementos de convicção independente do momento que foram produzidos e se foram submetidos ao contraditório ou não. Na nova regulamentação, fica determinado que a valoração da prova, apesar de seguir livre, é realizada em momento oportuno. Já nos países e commom law, a valoração da prova é regida pelos stantards, cujo a presente seção não se aprofundará, pois foge do objeto da pesquisa.
3.1 A presunção da inocência e o reconhecimento fotográfico nas delegacias
O reconhecimento fotográfico é um meio de prova em que uma testemunha ocular ou vítima identifica alguém ou algo como alguém ou algo que já tenha visto ou conhecia em um ato processual praticado diante de autoridade judicial ou policial (MATIDA; CECCONCELLO, 2021).
De acordo, apoiado em parte da doutrina penalista, Pereira (2022) afirma que o reconhecimento é o ato em que o indivíduo é levado a reconhecer outro como, relembrando sua experiência anterior, compara se a pessoa analisada é a mesma que praticou o delito vivenciado ou testemunhado.
Dias (2022) afirma que o reconhecimento fotográfico não encontra fundamentação legal, mas é largamente admitida pela doutrina e jurisprudência como válido, entrando no rol de provas inominadas. O reconhecimento da prova possui falibilidade questionável, de forma que deve ser corroborado com outros elementos de prova.
Afirma-se que o reconhecimento fotográfico não encontra fundamentação legal expressa, pois o Código de Processo Penal refere-se ao reconhecimento presencial, porém em circunstâncias especiais, o reconhecimento presencial é inviável, então utiliza-se o reconhecimento por fotografia. Salomão Filho (2022) suscita o debate do obsoletismo do referido artigo do CPP, visto que foi promulgado na época que não havia o mesmo nível de desenvolvimento da sociedade, novas práticas criminosas e a mesma tecnologia.
É um procedimento comumente utilizado em delegacias de polícia para a identificação de suspeitos de processos criminais. São comuns os álbuns de pessoas que já cometeram crimes e são apresentadas à vítima ou testemunha de forma sequencial ou simultânea, por computador e álbuns de fotos.
Pick (2017) afirma que a doutrina separa o reconhecimento fotográfico da identificação fotográfica, de forma que o reconhecimento fotográfico é o procedimento em que há a comparação de fotos os pessoas que possuam características semelhantes para a identificação do suspeito, enquanto a identificação fotográfica trata-se da prática policial que ocorre no âmbito da investigação, em que são colocadas fotografias em frente a testemunha, vítima ou coautor, para verificar se o indivíduo apresentado na fotografia corresponde ao indivíduo visto no dia dos fatos.
Pereira (2022) afirma que a doutrina majoritária rechaça o reconhecimento fotográfico em razão da ausência de fundamentação legal e por ser suscetível a reconhecimentos falhos e enganosos, porém em razão do princípio da liberdade de produção probatória, a jurisprudência e parte da doutrina aceitam esta prática, porém deve-se conferi-la menor valor probatório, sendo mormente aceita quando houver outros materiais probatórios que a confirmem.
A falibilidade do reconhecimento fotográfico é verificado na ementa do Habeas Corpus nº 598.886/SC:
O reconhecimento de pessoa por meio fotográfico é ainda mais problemático, máxime quando se realiza por simples exibição ao reconhecedor de fotos do conjecturado suspeito extraídas de álbuns policiais ou de redes sociais, previamente selecionadas pela autoridade policial. E, mesmo quando se procura seguir, com adaptações, o procedimento indicado no Código de Processo Penal para o reconhecimento presencial, não há como ignorar que o caráter estático, a qualidade da foto, a ausência de expressões e trejeitos corporais e a quase sempre visualização apenas do busto do suspeito podem comprometer a idoneidade e a confiabilidade do ato (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC nº 598.886/SC. Rel.: Min. Rogério Schietti Cruz. Brasília: STJ, 27/10/2020, ementa).
Alves; Santos (2021) citando o entendimento de Tourino Filho afirma que parte da doutrina rechaça o reconhecimento como fonte de prova, independente de presencial ou fotográfico, por ser precário, e influenciável pela ação do tempo, disfarce, condições desfavoráveis de observação do indivíduo, erros por semelhança, entre outros fatores que prejudicam a confiabilidade deste meio de prova.
Apesar de não haver expressa previsão legal acerca do reconhecimento fotográfico, os procedimentos utilizados para essa prova são os mesmos do reconhecimento de pessoa:
Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma: I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida; Il – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la; III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela; IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais (BRASIL, 1941, art. 226).
O art. 228 do CPP, prevê que caso várias pessoas sejam chamadas para reconhecer o indivíduo ou coisa, cada um dos indivíduos deverá realizar a prova em momento separado, evitando a comunicação entre elas (BRASIL, 1941, art. 228). Matida; Cecconcello (2021) afirmam que o reconhecimento fotográfico é comumente referido como um procedimento informal, que deve anteceder o reconhecimento presencial do réu.
O reconhecimento de pessoas é um dos meios probatórios mais utilizados no processo penal, mormente em crimes patrimoniais e é objeto de amplos debates acerca de seu valor probatório e aplicação (SALOMÃO JÚNIOR, 2022).
Matida; Cecconcello (2021) relatam diversos casos de reconhecimento fotográfico errôneo, que causou a prisão de diversos indivíduos, e em alguns casos a morosidade do Judiciário mantêm estes indivíduos presos à espera de revisão criminal:
Nem a diferença de estatura de 15cm entre Tiago e a descrição que a vítima ofereceu do real perpetrador da conduta foi bastante para que fosse descartado como suspeito; nem a localização em outra cidade de Bárbara na data do fato, corroborada por fotos e testemunhas de defesa, foi suficiente para derrotar seu reconhecimento pela vítima, que se aferram ao “cabelo parecido” de Bárbara e a real culpada (MATIDA; CECCONCELLO, 2021, p. 416).
A literatura aborda a alta falibilidade do procedimento do reconhecimento fotográfico em razão de vários fatores, dentre eles os múltiplos ângulos e distorções fotográficas que podem dificultar o reconhecimento, e às falsas memórias, que podem ocorrer nas duas formas de reconhecimento, porém parecem se exacerbar na modalidade fotográfica.
Nascimento (2018) afirma que a memória pode ser manipulada com o passar do tempo, com os sentimentos que a pessoa possui sobre o indivíduo que componha essa memória, entre outros fatores. Entretanto, para crianças, que tendem a acreditar na veracidade das afirmações vindas de seus pais, e não se recordam da maior parte de sua infância, por não estar completamente desenvolvida cognitivamente, a criação de falsas memórias é substancialmente mais simples, que em adultos. Pick (2017) afirma que o reconhecimento fotográfico apresenta níveis de convicção do reconhecedor:
Durante a realização do reconhecimento, o nível de convicção do reconhecedor pode variar entre a nula e a plena certeza sobre a indicação efetuada, assim como ele pode não identificar nenhuma das fotografias como correspondente a quem se busca reconhecer – o que constitui uma grande dificuldade, porque sua memória pode ser facilmente manipulada (PICK, 2017, p. 51).
Neste diapasão, a autora afirma que a expectativa do reconhecedor também pode influenciar no processo, de forma que, querendo fornecer identificação positiva de alguém e auxiliar a condenar o suposto culpado, o reconhecedor “vê ou ouve o que quer ver ou ouvir” (PICK, 2017, p. 52), e então reconhecem indivíduos com características culturalmente associadas à criminalidade, como certos tipos de roupas e cortes de cabelo, presença de tatuagens, entre outros.
Pereira (2022) afirma que o reconhecimento realizado nas delegacias é frequentemente realizado sem a devida observância aos requisitos legais apresentados pelo art. 226 do CPP, o que o deveria o tornar inválido judicialmente. Por fim, a literatura aborda amplamente os possíveis erros e problemas que envolvem o processo de reconhecimento fotográfico quando não observados os requisitos legais previstos no CPP.
A pesquisa de Matida; Cecconello (2021) cita pesquisas realizadas em diversos outros países em que o reconhecimento fotográfico é questionável, tendo como exemplo uma pesquisa conduzida na Inglaterra em que foram realizadas entrevistas com 406 pessoas, que 82% afirmaram que caso fossem convocados a participar de júri, veriam o reconhecimento presencial como mais confiável do que o reconhecimento fotográfico.
4. ANÁLISE JURISPRUDENCIAL
Até o final do Século XX, o STJ – Superior Tribunal de Justiça, possuía o entendimento de que o reconhecimento fotográfico não estaria, necessariamente, ligado aos requisitos presentes no art. 226 do CPP, o entendendo como mera recomendação. O autor cita o REsp nº 1.955/RJ. Rel.: Min. José Cândido de Carvalho Filho. 6ª Turma, STJ 18/12/1990, em que o relator afirma que o reconhecimento pode ser válido caso o suspeito chegar à delegacia em que a vítima já esteja, e o reconheça prontamente, em frente à diversos policiais, desde que integre o conjunto de demais provas que incriminam o indivíduo imputado pelo crime.
Atualmente, o entendimento adotado pelos tribunais superiores é de que o reconhecimento deve estar vinculado aos requisitos do CPP, porém, dada a fragilidade da prova e da possibilidade de erro, o entendimento de que deve manter-se integrado a outros elementos probatórios, persiste. O entendimento da vinculação do reconhecimento aos requisitos do CPP que visam reduzir a margem de erro é visualizado no Habeas Corpus nº 598.886/SC, de relatoria do Min. Rogério Schietti Cruz, divulgado em 27/10/2020 pelo plenário do STJ. No caso em análise, um dos condenados foi reconhecido por foto, em procedimento extrajudicial e tal reconhecimento não fora corroborado por outros elementos, sendo, portanto, único elemento probatório da materialidade do delito, o que é contrário a jurisprudência hodierna da corte:
O reconhecimento de pessoa, presencialmente ou por fotografia, realizado na fase do inquérito policial, apenas é apto, para identificar o réu e fixar a autoria delitiva, quando observadas as formalidades previstas no art. 226 do Código de Processo Penal e quando corroborado por outras provas colhidas na fase judicial, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC nº 598.886/SC. Rel.: Min. Rogério Schietti Cruz. Brasília: STJ, 27/10/2020, ementa).
Ressalta que trata-se de um roubo (art. 157 CP) de um restaurante, em que dois criminosos estavam de bermuda, chinelo, agasalho de moletom, um deles estava de capuz e outro de lenço no rosto que permitia que se visse apenas os olhos dos indivíduos. Não apresentaram armas, mas os depoentes e vítimas afirmaram que faziam menção a estarem armados. Foram acolhidos diversos depoimentos, e os indivíduos foram reconhecidos pelas imagens das câmeras do estabelecimento que mostram os dois réus do processo no restaurante horas antes do ocorrido, com roupas parecidas (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC nº 598.886/SC. Rel.: Min. Rogério Schietti Cruz. Brasília: STJ, 27/10/2020).
Em todos os depoimentos colhidos, verifica-se que nenhuma das vítimas viu os rostos dos indivíduos, e uma delas reconheceu o indivíduo por ter estado próximo a ele durante o ocorrido, e descreveu categoricamente características como tamanho do nariz, estilo de barba, cabelo e altura, porém afirmou que não o poderia reconhecê-lo novamente em processo judicial em razão do lapso temporal. Segue trecho dos depoimentos em que se verifica que a maior parte das vítimas afirmam não ter certeza das características físicas do indivíduo:
[…] que um dos indivíduos estava com um capuz (que tapava a boca e o nariz) e o outro com um capuz e um lenço tapando a boca e o nariz; […]. que estavam encapuzados, somente com os olhos descobertos […]. que realizou o reconhecimento na delegacia mas não tem certeza porque estavam encapuzados […]. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC nº 598.886/SC. Rel.: Min. Rogério Schietti Cruz. Brasília: STJ, 27/10/2020, p. 8-10).
Sobre o fato de a vítima afirmar não poder reconhecer o indivíduo novamente em razão do lapso temporal, o relator afirma que o exame de controvérsia não aduz o reexame da prova, mas sua validade. Por fim, concluiu-se que o reconhecimento deve observar, forçosamente, os requisitos descritos no art. 226 do CPP., visto que constituem garantias mínimas para o acusado e reduzem a possibilidade de erro ou engano e que o reconhecimento extrajudicial ou inobservante ao disposto no CPP, pode gerar anulação do reconhecimento. Em vista do exposto, o condenado que fora reconhecido apenas por procedimento fotográfico extrajudicial durante a investigação policial, foi absolvido (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC nº 598.886/SC. Rel.: Min. Rogério Schietti Cruz. Brasília: STJ, 27/10/2020).
Para exemplificar as posições jurisprudenciais em consolidação atual, Centro Apoio Operacional das Promotorias Criminais, do Júri e de Execuções Penais do MPPR elaborou uma tabela que auxilia no entendimento da validade do reconhecimento fotográfico conforme entende a jurisprudência hodierna:
Tabela 1: posicionamento jurisprudencial
Reconhecimento realizado no Departamento de Política Legislativa (DEPOL) que observe o art. 226 CPP | Corroborado no processo judicial | É aceito para fins probatórios |
Realizado no DEPOL sem observância do art. 226 CPP | Mesmo que tenha sido confirmado em juízo | Não é aceito para fins probatórios |
Realizado no DEPOL e não observa do art. 226 CPP | Não confirmado no âmbito do processo judicial | Não é aceito para fins probatórios |
Procedimento não realizado no DEPOL | Realizado em juízo, observando o art. 226 CP | É aceito para fins probatórios |
Fonte: Apoio Operacional das Promotorias Criminais, do Júri e de Execuções Penais (2022, p. 5).
Todavia, admite-se a possibilidade de em circunstâncias especiais, que inviabilizam a observância do disposto no art. 226 do CPP, desde que haja justificativa idônea para o descumprimento do rito processual. Caso não haja justificativa idônea e comprovada da impossibilidade, ainda que se confirme em juízo, o reconhecimento não será considerado apto para fins probatórios, conforme demonstra o acordão do REsp nº 1.964.391-PR (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.964.391-PR. Rel.: Min. Olindo Menezes. Sexta Turma. Brasília: STJ, 10/05/2022).
O próximo julgado a ser analisado na presente seção é o HC nº 652.284/SC, julgado pela Quinta Turma do STJ, de relatoria do Min. Reynaldo Soares da Fonseca julgado em 27/04/2021. O caso concreto tratou de um roubo (art. 157 CPP), em que o suspeito segurou a vítima, dona de estabelecimento comercial pelo braço, que conseguiu se desvencilhar deste e se trancar em uma sala. Aproveitando a ação da vítima, o indivíduo subtraiu itens de valor da loja (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça HC nº 652.284/SC. 5ª Turma. Rel.: do Min. Reynaldo Soares da Fonseca. Brasília: STJ, 27/04/2021).
O reconhecimento fotográfico realizado pela vítima foi realizado de forma extrajudicial, sem a devida observância aos requisitos legais:
[…] Que no dia do crime o marido da declarante conversou com pessoas que cuidam de moradores de rua e descobriu um rapaz com as mesmas características relatadas pela declarante. Que lhe foi apresentada uma foto de um indivíduo e a declarante achou muito semelhante ao criminoso. Que todavia era uma foto mais antiga. Que depois de um tempo, talvez no ano seguinte, a declarante fez o reconhecimento pessoal. Que na data do reconhecimento pessoal, já pelo jeito de andar, o mesmo de quando entrou na loja, a declarante já reconheceu o suspeito (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça HC nº 652.284/SC. 5ª Turma. Rel.: do Min. Reynaldo Soares da Fonseca. Brasília: STJ, 27/04/2021, online).
No ato do reconhecimento, apenas o réu estava na delegacia em descumprimento do requisito legal (CPP, art. 226; II), e a declarante afirmou que o indivíduo estava diferente da foto, estando mais gordo e “destruído”. Não houve menção à altura, características, peso, detalhes do corpo e face, entre outros, apenas afirmação de que seus olhos eram esbugalhados e pele morena, bem como suas roupas. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça HC nº 652.284/SC. 5ª Turma. Rel.: do Min. Reynaldo Soares da Fonseca. Brasília: STJ, 27/04/2021).
Tanto o reconhecimento fotográfico, com o presencial realizados em sede policial foram realizados sem cumprir os procedimentos descritos em lei, além do fato de após um ano, lapso temporal entre o reconhecimento fotográfico e o reconhecimento presencial, a declarante utilizou características genéricas, como roupas, jeito de andar e olhos esbugalhados como elementos de reconhecimento, ficando clara a inobservância ao art. 226 do CPP. Ressalta-se que o reconhecedor, antes do ato do reconhecimento deve ser indagado sobre algumas características fundamentais dos reconhecidos, como:
O número de agressores; as características e vestimentas do agressor; as condições de luminosidade do local e de visualização do agressor, incluindo o tempo de exposição à sua pessoa e de eventual distância entre ambos; eventual problema de visão que possua, bem como de anterior consumo de álcool ou de substâncias análogas (CENTRO DE APOIO OPERACIONAL DAS PROMOTORIAS CRIMINAIS, DO JÚRI E DE EXECUÇÕES PENAIS, 2022, p. 6).
Em razão das características do caso concreto, a decisão primeira foi revertida pelo STJ, que concedeu o habeas corpus e absolvição do indivíduo. Por fim, será abordada o Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 206.846/SP, em que fica compreendido que o reconhecimento fotográfico não deve ser utilizado em todas as circunstâncias, apenas em casos em que haja indícios juízo de verossimilhança e autoria do fato investigado, visando evitar que haja medidas de investigação arbitrárias que potencializam os erros de reconhecimento (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RHC nº 206.846/SP. 2ª Turma. Rel.: Min. Gilmar Mendes. Brasília: STF, 22/02/2022).
No caso em análise houve contradições nos depoimentos das vítimas acerca da materialidade do crime:
[…] “o acusado não estava armado, apenas estava recolhendo os objetos”, mas depois “em sede policial reconheceu o acusado Regivan como coautor do crime de roubo, esclarecendo que tal pessoa era o indivíduo que estava mais adiante, ao lado do Parque Pantanal”. Já os demais ofendidos, apontaram que teria “o acusado permanecido ao lado do Parque Pantanal, com a arma de fogo em punho e apontada para as vítimas” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RHC nº 206.846/SP. 2ª Turma. Rel.: Min. Gilmar Mendes. Brasília: STF, 22/02/2022, p. 25).
A autoria do delito foi imputada ao réu por meio do reconhecimento fotográfico, de foto do whatsApp, de um indivíduo correndo no parque uma hora após o ocorrido, que não carrega consigo nenhum dos objetos roubados. Portanto, assim como nos demais casos, a sentença foi revertida, dada a nulidade do reconhecimento e da ausência de demais provas de autoria do delito (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RHC nº 206.846/SP. 2ª Turma. Rel.: Min. Gilmar Mendes. Brasília: STF, 22/02/2022).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho buscou revisar à luz do princípio da presunção de inocência, a validade do reconhecimento fotográfico sem a observância dos requisitos legais determinados pelo Código de Processo Penal. O referido artigo visa reduzir os erros no reconhecimento. Portanto, o reconhecedor deve, antes de realizar o procedimento, descrever quem será reconhecido, ser realizado diante de testemunhas e o suspeito deve ser colocado entre outros indivíduos que possuam características físicas semelhantes. Ressalta-se que o texto legal não aborda especificamente o reconhecimento fotográfico, porém este é aceito pela jurisprudência, desde que observe os requisitos legais.
A inobservância dos requisitos do CPP resulta na nulidade da prova. Caso os requisitos sejam observados, o reconhecimento fotográfico deverá ser apto para fins probatórios, caso seja corroborado por outros elementos.
A presunção da inocência é um princípio constitucional entendido como base do processo penal, sem o qual não há nenhuma das demais garantias, como o ônus da prova, entre outros. Este princípio pressupõe que o homem nasce em um estado de inocência, e para que este estado seja alterado, deve-se comprovar a materialidade do delito por meio de um processo legal.
As garantias existentes no processo penal são fundamentais para controlar a legalidade da investigação criminal, por salvaguardar os direitos fundamentais dos indivíduos, bem como para garantir que a verdade seja alcançada no processo, ou ao menos uma verdade aproximada. O modelo inquisitório, em que o inquisidor era responsável por acusar e julgar, conduzindo o processo e as decisões com base na verdade absoluta de Deus, os réus eram sempre punidos em um processo desumano.
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1Graduando do Curso de Direito da Unisapiens – Porto Velho-RO, italowgoncalves@gmail.com;
2Graduando do Curso de Direito da Unisapiens – Porto Velho-RO, tiagopalacio@gmail.com;
3Professora orientadora do Curso de Direito da Faculdade de Unisapiens – Porto Velho-RO, Julho de 2023.2, rebeca.souza@gruposapiens.com