A MULHER NEGRA DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: realidade e perspectivas

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7982942


Maria Divina Sousa Gonçalves Moreira1
Profª Drª Rosângela Aparecida Ribeiro Carreira
Orientadora: Profª Drª Eliane Marquez da Fonseca Fernandes


Resumo

O presente artigo analisa o ethos da mulher negra que está matriculada em unidades escolares que ofertam a Educação de Jovens e Adultos. O objetivo da análise bibliográfica é verificar quais são os entraves que impulsionam uma parte considerável do grupo de mulheres negras brasileiras a uma condição de analfabetismo, perpassando pelas dificuldades desta em ser atingida por políticas públicas e práticas educacionais includentes. Para tanto, inicialmente, a análise de dados censitários será utilizada para poder mensurar o número de mulheres negras analfabetas no Brasil. Ao fazer isso, percebe-se que a relação entre gênero e etnia no Brasil é fator determinante para o analfabetismo. Em seguida, daremos voz a esta pessoa, ao associar o seu discurso com o de outras mulheres que passaram pela mesma situação em contexto nacional e internacional. Como fechamento, será apresentado uma proposta de intervenção pedagógica que consideramos adequada para atender especificamente a mulher negra matriculada em turmas de EJA.

Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos, mulher, prática pedagógica, etnia, negritude.

Abstract

This article analyzes the ethos of the black woman who is enrolled in school units that offer Youth and Adult Education. The objective of the bibliographic analysis is to verify what are the obstacles that drive a considerable part of the group of black Brazilian women to a condition of illiteracy, passing through the difficulties of being reached by public policies and inclusive educational practices. Therefore, initially, the analysis of census data will be used to measure the number of illiterate black women in Brazil. By doing this, it is clear that the relationship between gender and ethnicity in Brazil is a determining factor for illiteracy. Then, we will give voice to this person, by associating her speech with that of other women who have gone through the same situation in a national and international context. As a conclusion, a proposal for a pedagogical intervention will be presented that we consider appropriate to specifically serve the black woman enrolled in EJA classes.

Keywords: Youth and Adult Education, woman, pedagogical practice, ethnicity, blackness.

Introdução

A alfabetização/ escolarização de adultos no Brasil é marcada por políticas públicas que buscam, inicialmente, “compensar” o tempo perdido por estas pessoas que estiveram excluídas do contexto educacional durante toda a sua vida. De forma complementar, objetivam qualificar trabalhadores para o mercado de trabalho, cada vez mais competitivo e exigente. Todavia, pensar em educação de jovens e adultos vai além disso, é algo que permeia os direitos humanos. Toda pessoa no Brasil tem o direito, instituído por lei², ao acesso à educação de qualidade, que incorpore valores capazes de capacitá-la para o extremo exercício da cidadania.

Assim também, quando analisadas as práticas pedagógicas dos professores que atuam na educação de jovens e adultos, percebe-se que as metodologias de ensino ignoram esta parcela de educandos, uma vez que repetem as práticas aplicadas aos alunos matriculados em turmas regulares.  Ou, como também é perceptível, os conhecimentos adquiridos não respeitam o contexto social a que o aluno da EJA faz parte, ora sendo extremamente infantilizados, ora sem nenhum valor para a vida prática. Como guisa de exemplo, note o que foi relatado por Cavalcante (2013). Em uma determinada turma de EJA, o professor ao trabalhar o gênero discursivo e-mail, trouxe para a sala de aula um exemplo de e-mail impresso. Distribuiu as folhas para os alunos. Leu o texto em voz alta. Associo o e-mail a uma carta. Depois, explicou as particularidades do gênero e, para que os alunos exercitassem a escrita de e-mails, solicitou que estes o fizessem em uma folha previamente preparada para este fim.

De acordo com os dados³, houve um aumento sutil no número de matrículas no Brasil em 2021. Todavia, o aumento não atingiu a Educação de Jovens e Adultos, que teve uma queda de 1,8% em relação ao número de matrículas de 2020. Seria possível que as práticas pedagógicas favorecessem a exclusão dos alunos da EJA, forçando-os a, mais uma vez, desistirem da carreira estudantil?

Dentre os estudantes da EJA há um grupo que merece nosso olhar pormenorizado: a mulher negra. Aqui vemos refletidos três pilares de análise: a questão de gênero, a questão de etnia e a questão social refletidos em uma única personagem.

Quem é esta mulher? Por quais dificuldades precisa transpor para concluir a escolarização? Quais são as políticas públicas direcionadas a esta pessoa?

Com este artigo, sugere-se uma discussão acerca da mulher negra da EJA e todos os fatores sociais, econômicos, políticos e de identidade que se a envolvem, através da análise dos materiais produzidos por Capucho (2012), Silva (2010). Estes trazendo uma visão do aluno da Educação de Jovens e Adultos, com destaque especial à educação como fortalecimento da cidadania. Silva (2010) partirá de uma visão mais detalhada do aluno negro. O ethos da mulher negra da EJA será esboçado por Davis (1944), Vigano (2020) e Nascimento (2019, org.). Os dados estatísticos serão analisados de acordo com a pesquisa realizada por Engel (2020). Trata-se de uma análise dos dados estatísticos fazendo uma aplicabilidade destes dados às mulheres negras analfabetas no Brasil. Capucho (2012) propõe uma discussão sobre a fragilidade das práticas pedagógicas em turmas da EJA.

Assim, este artigo é um convite para aqueles que defendem uma educação de qualidade no Brasil para todas as pessoas, com atenção especial para as políticas afirmativas, e que, diante da realidade atual, estão constantemente se questionando sobre quais são os melhores caminhos para se atenuar ou, ouso sonhar, erradicar o analfabetismo no Brasil.

A educação de jovens e adultos como direito

            O histórico da oferta de atendimento escolar a adultos no Brasil é marcado por episódios sombrios de exclusão, como a catequização dos indígenas pelos jesuítas no período colonial ou a proibição legal de alfabetização de negros durante o regime escravocrata. Dessa forma fica claro que a luta por uma educação de qualidade e igualitária, excetuando as situações que exigem medidas afirmativas, tem que ser tratada no âmbito dos direitos humanos.

            O Plano Nacional de Educação de 1934 é pioneiro em admitir a vergonhosa situação educação do país em relação às pessoas maiores de 15 anos que não eram alfabetizados e estabelecer a educação de jovens e adultos como a mola mestre dentre as políticas públicas para reverter o problema. Segundo este documento, o número de analfabetos era enorme para a época: 16 milhões de pessoas. Ademais, o documento estabelece a relação entre o número de analfabetos e as causas prováveis, ao afirmar que “o analfabetismo está intimamente associado às taxas de escolarização e ao número de crianças fora da escola”. (PNE – 1934, p. 46). Assim, o Ministério da Educação confirma o que sabemos: o analfabetismo é crescente quando os direitos básicos das pessoas lhes é tirado, ou seja, os direitos associados ao tratamento igualitário em relação aos serviços prestados pelo Estado.

            Todavia, políticas públicas federais subsequentes persistiam em dar à EJA um caráter compensatório, ora se eximindo da responsabilidade em relação à modalidade, ora aplicando ações apenas a grupos ou regiões pobres do país. Por exemplo, no governo do presidente Fernando Collor houve a extinção da Fundação Educar, um órgão destinado a desenvolver políticas em relação à EJA. Já no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso houve a recusa de incluir a Educação de Jovens e Adultos como detentora de direitos junto ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério – FUNDEF.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, instituída em 1948, propositalmente em função do holocausto aos judeus durante a Segunda Guerra Mundial, estabelece a educação como direito de todos:

Artigo 26

1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.

2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do ser humano e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.

            E diferentemente do que se postulava antigamente no Brasil, onde se via possuidor de direitos apenas a pessoa do sexo masculino, branco, livre e bem posicionado socioeconomicamente, esta declaração estabelece como detentor de direitos todo ser humano “sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição” (Declaração Universal dos Direitos Humanos, Art.2, 1948).

A Constituição Federal de 1988 também estabelece a educação como direito, esclarecendo que para que qualquer pessoa possa exercer satisfatoriamente a sua posição social enquanto cidadã é necessário usufruir do direito à educação:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Se a educação é um direito instituído por lei, é presumível dizer que todas as pessoas no Brasil deveriam ter acesso a este direito. Todavia, um número considerável de brasileiros está sendo desnudado do direito à educação. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra em Domicílio – Pnad, 8,7% dos brasileiros são analfabetos (dados de 2012). Diante desta realidade, e com o objetivo de atenuar esta situação, destacam Capucho e Engel:

Jovens, adultos(as), idosos(as) precisam ser reconhecidos(as) como sujeitos de direito, pois, em virtude das situações de desigualdade presentes na sociedade brasileira, e ausência do Estado na garantia dos direitos, lhes foi negado o direito à educação no passado, e lhes é dificultado no presente. O que valida a reivindicação de caráter afirmativo às políticas destinadas a essa população, com vistas a universalizar a educação em nosso país, ou seja, as políticas públicas precisam focar medidas especiais e emergenciais com o objetivo de eliminar desigualdades historicamente acumuladas. (Capucho, 2012, p.23).

Mais do que promover acesso igualitário à educação, a proposta da Plataforma de Pequim sugere que a educação é um instrumento  privilegiado  de  composição  de uma  sociedade  ideologicamente  mais  igualitária.  Isso quer dizer que a  prática   educativa  não  deve  ser  discriminatória,  mas  também  que  a  educação  é  um  veículo importante  de  mudança  social.  Além disso,  o  pouco  acesso  à  educação  dificulta  a obtenção de outros direitos, sendo a educação transversal para os direitos humanos. (Engel, 2020, p. 3,4)                          

            Mesmo diante de estudos nacionais e internacionais que apontam a modalidade de educação de jovens e adultos como favorecedora da qualidade de vida das pessoas atendidas no tocante à empregabilidade, acesso a outros direitos e vantagens, a realidade das políticas públicas brasileiras em relação à EJA ainda merece posicionamento mais efetivo, pois as condições de acesso e permanência de jovens e adultos em turmas de EJA ainda é precário.

            As taxas de escolarização no Brasil diferem em relação ao gênero e raça. De acordo com os dados censitários, e de maneira geral, as meninas/mulheres brancas são as que mais tem acesso à escola. Isoladamente, em relação ao gênero, as meninas/mulheres são as mais atendidas pelos sistemas educacionais. Em relação à raça, as pessoas brancas são as mais privilegiadas.

Gráfico 1: Cobertura escolar de crianças e jovens, segundo sexo e cor/raça – Brasil, 2015.

            Engel (2020) aponta, em sua pesquisa patrocinada pelo Pnad – Mec, que são inúmeros os fatores que dificultam o acesso e a permanência de meninas/mulheres negras à escolarização. Segundo ela, mesmo diante de políticas públicas que visam democratizar a educação, principalmente nas últimas décadas da história do Brasil, ainda é visível um quadro desfavorável em relação às minorias étnicas e aos mais desassistidos socioeconomicamente. Desse grupo, as meninas/mulheres negras estão em maior vulnerabilidade devido às

diversas  discriminações  perpetradas  dentro  e  fora  da  escola,  o  assédio  sexual,  a  falta  de  instalações  adequadas,  o  acúmulo  com  tarefas  domésticas  e,  no  caso  das  adolescentes,  a  gravidez  precoce  e  o  decorrente  cuidado  com  os filhos  e  a  falta  de  estrutura de apoio para mães que estudam. (Engel, 2020, p. 4)

            Estudos sugerem que a herança histórica devido ao regime escravocrata no Brasil, como o que aconteceu em outras partes do mundo, possa ser um fator que, se não determina, pelo menos contribui para que atualmente pessoas negras tenham menor acesso à escolarização no tempo apropriado. Davis (2016) afirma que, enquanto eram submetidos à condição de escravos nos Estados Unidos, tanto homens negros quanto mulheres negras eram passíveis do mesmo tratamento desumano e ultrajante. Qual é o alcance, para as futuras gerações, dessa constante violação dos direitos humanos?

As exigências dessa exploração levavam os proprietários da mão de obra escrava a deixar de lado suas atitudes sexistas ortodoxas, exceto quando seu objetivo era a repressão. Assim como as mulheres negras dificilmente eram “mulheres” no sentido corrente do termo, o sistema escravista desencorajava a supremacia masculina dos homens negros. Uma vez que maridos e esposas, pais e filhas eram igualmente submetidos à autoridade absoluta dos feitores, o fortalecimento da supremacia masculina entre a população escrava poderia levar a uma perigosa ruptura na cadeia de comando. Além disso, uma vez que as mulheres negras, enquanto trabalhadoras, não podiam ser tratadas como o “sexo frágil” ou “donas de casa”, os homens negros não podiam aspirar à função de “chefes de família”, muito menos à de “provedores da família”. Afinal, homens, mulheres e crianças eram igualmente “provedores” para a classe proprietária de mão de obra escrava.  (Davis, 2016, p. 26)

            A pandemia do Covid -19 intensificou as dificuldades que as mulheres negras e podres tinham para se manter em turmas de EJA. Muitas, para se manterem em seus empregos de domésticas, babás e cuidadoras de idosos etc., tiveram que ampliar a sua jornada de trabalho. Era isso ou ficar desempregadas. Somando-se a isso, com o período de isolamento social, que elas não puderam usufruir, pois suas funções laborais não poderiam ser desempenhadas em casa, tiveram que cumprir com novas responsabilidades familiares, como cuidar de filhos menores que não estavam frequentando a escola, idosos e pessoas com deficiência. Segundo a pesquisa “Sem Parar – o Trabalho e a Vida das mulheres”, 52% das mulheres negras entrevistadas afirmam ter assumido a responsabilidade de cuidar de alguém durante a pandemia, contra 46% das mulheres brancas e 50% das mulheres indígenas ou amarelas. (Bianconi, Leão e Ferraria, 2020, p.11).

Ethos: mulher, negra e pobre – condições para o analfabetismo

            Na década de 1960, surge na França uma corrente linguística que propunha sobrepor o estruturalismo e a Gramática Gerativista através de uma leitura de texto pautada na materialidade do discurso, denominada Análise do Discurso (AD). Segundo essa vertente, o discurso está envolto em questões sociais e de ideologia. O nascimento da AD é marcado pela publicação da obra Análise Automática do Discurso (1969), de autoria do filósofo e linguista Michel Pêcheux. Para Pêcheux, todo ato de fala ou discurso materializado deve ser analisado partindo da análise da posição ideológica do discursante, pois

o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não existe “em si mesmo” (isto é, em uma relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas). (Pêcheux, 1995).

            Sendo assim, ao lidar com questões tão complexas como gênero e negritude, precisamos visualizar de maneira mais acentuada a posição que autores dos discursos relacionados a estes temas ocupam no contexto social. Os analistas do discurso concordam em unanimidade que a legitimidade do discurso é firmada por um sujeito detentor do direito de fala. Contrariando esta vertente, a sociedade atual se acostumou a dar voz indevida a qualquer pessoa que postule sobre qualquer assunto. Com isso, temos uma enormidade de discursos sem qualquer valor pragmático.

            Ademais, os discursos tendem a se modificar constantemente, uma vez que a posição de fala dos sujeitos, o interdiscurso e co-enunciação são alterados de acordo os contextos. Sobre isso, explica Nascimento:

Ademais, na atualidade, a rapidez com que evoluem os meios de comunicação social, além da comunicação na mídia, e a necessidade de o homem se comunicar mais eficazmente, impulsiona Maingueneau a recorrer à noção de ethos, para a validação do dizer do sujeito na enunciação, reconfigurando, por conseguinte, uma estratégia discursiva de articulação garantidora da adesão do co-enunciador. Esta decisão, com efeito, parte da constatação de que a sociedade contemporânea tende a alterar constantemente suas práticas discursivas, fazendo com que o sujeito, antes passivo, se projete e invista em si mesmo, com base na ressignificação do conceito de interação, que lhe permite construir nova concepção de si e de mundo. (Nascimento, 2019, p. 47).

            Então, quem é a mulher negra analfabeta em nosso país? Ela, por ela mesmo? Quais são os entraves que a impossibilitam de ter acesso à escolarização no tempo apropriado? Por que a sua permanência em turmas de educação de jovens e adultos é dificultada? Por que as práticas pedagógicas não a atingem? A verdade é que seria impossível congregar todas as mulheres negras analfabetas da EJA no Brasil – um país de extensão territorial tamanha, com inúmeras particularidades regionais e locais – em um único grupo homogêneo. Isto seria simplista demais. Sobre a dificuldade de homogeneizar conceitos, Carrera reflete:

Não há uma resposta pontual, ou factual, para essa questão, porque a construção da identidade é simbólica e social. Simbólica porque apresenta característica relacional de sistemas que a representem, como, por exemplo, após a Lei do Ventre Livre, quando a identidade do negro nascido livre se diferenciava do grupo de escravos, mas, ainda assim, a característica étnica mantinha uma característica relacional, de sorte que é preciso associar diferentes elementos sociais para criar características que gerem uma identidade. Social porque é a exclusão, ou a inclusão num grupo social, ou em características de dado momento histórico, que permitirá identificar diferenças ou semelhanças que unam um grupo em torno de dada identidade. (Carrera, p.213).

Todavia, se não ouso homogeneizar o grupo de mulheres negras da EJA, proponho o estabelecimento de parâmetros que facilitem a análise do corpus em questão.

Inicialmente, partindo da posição socioeconômica em que se situam os alunos da EJA, conclui-se que são pessoas que, e principalmente em função de situações precárias de sobrevivência, tiveram que se abster ou afastar da escola para manter o seu sustento em ocupações laborais informais. Ou seja, são pessoas pobres, com pouco acesso aos direitos instituídos por lei.

            Em relação ao gênero, e aqui trato de gênero apenas na questão biológica, a maioria dos educandos da EJA são mulheres. A elas, além da necessidade de ingresso prematuro no mercado de trabalho, associa-se outros fatores, como gravidez precoce.

            Em relação à raça, e mais uma vez trato apenas do conceito relacionado a fatores biológicos, segundo dados do Pnad – 2010, a taxa de analfabetismo entre as pessoas com mais de 60 anos no Brasil difere absurdamente. Entre a população branca, a taxa de analfabetismo é de 10,3% e entre a população negra ou parda, a taxa atinge 27,5%.

            Sobre a relação entre gênero e raça, Vigano escreve:

Ao juntar essas duas características nas alunas da EJA – ser negra e ser mulher, ocorre, consequentemente, a interseccionalidade, ou seja, uma junção de fatores que geram agentes discriminatórios. Essa intersecção de fatores origina-se da sobreposição de ações relacionadas à opressão ou discriminação, vinculadas a diferentes categorias biológicas, sociais ou culturais. A interseccionalidade compreende que as opressões e discriminações não agem independentes, elas se conectam, criando um sistema cada vez mais excludente. (Vigano, 2020, p.111).

            Vigano (2020), em seu artigo intitulado “Sentidos e significados de ser mulher, negra, pobre e analfabeta”, registra o relato de várias alunas negras matriculadas em turmas de EJA, etapa I. Transcrevo agora alguns destes:

Eu nunca fui para a escola. Tinha 10 irmãos, só eu de mulher, e não pude estudar. Meu pai sempre dizia que estudar não era coisa para mulher direita, que as mulheres tinham que saber fazer os afazeres domésticos, era isso que importava (A. 68 anos, baiana).

Fui para escola muito pouco. Lembro que morava longe e era difícil. Tinha que dar conta dos trabalhos na roça e em casa. Vivia cansada e sem vontade. Apanhava muito dos meus irmãos e do meu pai (M. 60 anos, pernambucana).

Nunca fui à escola, quanta tristeza que sinto ao pensar que toda vez que falava em ir à escola, eu apanhava. Assim que pude, sumi de casa e nunca mais voltei, não tive notícias de ninguém mais da família. Logo me casei, e meu marido, também nunca me deixou estudar. Agora que sou viúva, vou aprender a ler. Tenho vergonha de pedir para verem o ônibus para mim (N. 72 anos, paraibana).

Passei muita fome na vida, e nunca pensei que fosse estudar alguma vez. Na nossa casa, a prioridade era a comida, a escola era longe e o caminho era perigoso para as meninas irem. Meus irmãos estudaram, eu e minhas irmãs nunca fomos para a escola (N. 72 anos, paraibana). (Vigano, 20202, p. 113, 114).

Os relatos retratam as angústias de mulheres que, em função de conceitos arbitrários e discriminatórios em relação ao gênero, não puderam frequentar a escola enquanto crianças, como, por exemplo em “meus irmãos estudaram, eu e minhas irmãs nunca fomos para a escola”. Foram limitadas em seus direitos pelo único fato de serem mulheres.

Nota-se que as pessoas que as subjugavam eram familiares muitos próximos. Esses familiares, imbuídos de valores culturais retrógrados, validavam as suas ações como socialmente aceitáveis para a época. Isso é visto na fala “meu pai sempre dizia que estudar não era coisa para mulher direita”.

Nos relatos seguintes, percebe-se uma ruptura nos paradigmas por parte das mulheres afetadas. O que corrobora com o que defende Vieira e Moura sobre o ethos discursivo, ao dizer que “o enunciador, em seu discurso, atribui a si uma posição institucional marcando sua relação a um saber e se deixa apreender como detentor de uma voz e um corpo”. (Vieira e Moura, 2016, p. 120).

Fiz todas as minhas filhas estudarem, não vou fazer igual aos meus pais que só deixaram os meninos estudar. Elas estão até na faculdade, vou ser mãe de doutora (A. 68 anos, baiana).

Parei de estudar para cuidar dos meus irmãos, eles todos estudaram, somente eu que não pude. Mulher não tem inteligência para ficar perdendo tempo na escola. Não tinha inteligência para estudar, mas podia ficar o dia todo na roça ou na cozinha. Quando casei foi a mesma coisa. Agora que as minhas filhas obrigaram o pai a me deixar vir para a escola. Ele fica resmungando, mas obedece a elas (L. 73 anos, paranaense).  (Vigano, 2020, p. 114).

A Análise do Discurso (AD) e as práticas pedagógicas na EJA

O estudo da Análise do Discurso se torna necessária e, porque não dizer, fundamental para compreender o espaço em sala de aula e todos os atores que o compõem. Tanto o professor que atua na Educação de Jovens e Adultos quanto os seus alunos estão envoltos em discursos historicamente imbuídos a eles. Então, para avançar nas discussões a respeito do ensino e aprendizagem na EJA, faz-se necessário analisar os discursos de professores e alunos.

Segundo Viana, Menezes e Mendes (2012), “uma das características principais na análise do discurso é a interdisciplinaridade O primeiro “embaraço” da modalidade de educação de jovens e adultos está no fato desta atender, de uma única vez, jovens e adultos. É certo dizer, por questões óbvias, que jovens e adultos tendem a se posicionar de acordo com a sua faixa etária.  As vivências, as expectativas, a relação com o outro e a visão de mundo diferem de um grupo para outro. A cada grupo, sugere-se uma abordagem particular por parte da ação docente.

Mas o que se percebe em salas de EJA no Brasil inteiro são jovens, adultos e idosos reunidos em um mesmo espaço de ensino e recebendo as mesmas intervenções pedagógicas. A prática e a relação entre professor e aluno não diferem. Claro que a homogeneidade em sala de aula não é uma realidade a ser almejada, antes, deve ser desestimulada, pois evita que os alunos possam interagir com outras realidades sociais e culturais. Todavia, tantos alunos jovens quanto adultos/idosos sentem-se prejudicados por esta situação. Em pesquisa realizada em uma escola de Belo Horizonte, Silva colhe o seguinte depoimento de uma aluna da EJA:

Os meninos que ficam brincando não vêm para estudar vêm para brincar, para zoar. Ou então eles devem ter escolhido aqui por causa desse ensino de suplência para passar mais rápido, mas não estão interessados em estudar, alguns matam as aulas e o resto, quando estão dentro de sala não estudam e tem uns que não abre nem caderno, não fazem nada acho que eles estão aqui, só para ter o diploma, para completar o ensino médio, porque para estudar falar assim ”eu vou estudar para mim lá na frente ter um futuro” acho que na cabeça deles não pensam isso não (Carolina, jovem aluna da EJA). (Silva, 2010, p.37).

            Quando diz “uns nem abrem o caderno” fica claro que a heterogeneidade das turmas nem sempre atua como sustentáculo para o estabelecimento de um ambiente propício para a aprendizagem. Mesmo assim, o espaço eclético das turmas de EJA deveria ser estrenuamente estimulado, devido ser um lugar onde “entrecruzam-se diferentes dimensões, a saber: intergeracional, socioeconômicas, étnico-raciais, orientações sexuais, a inclusão de pessoas com deficiência e das experiências e expectativas de vida”. (Silva, 2010, p.62).

            O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (MEC, 2007) propõe ações diretamente relacionadas com a prática docente. Aplicando isto ao trabalho na EJA, perpetua a ideia de que a ação pedagógica é fator que, com a mesma força, possa facilitar a permanência dos alunos na EJA ou afastá-los.

            A prática de qualquer professor deve estar intimamente ligada à sua formação técnica. Em relação à educação, essa premissa torna-se ainda mais verdadeira. Bons professores são aqueles que tem a sua prática pautada em um conhecimento técnico forte, condensado. Então, é de pressupor que os professores da EJA, que atendem alunos com uma complexidade diversa, tenha passado por uma formação específica. Todavia, não é o que acontece. Dificilmente encontraremos cursos de graduação que oferecem uma formação específica em EJA. Silva destaca que, diante desta realidade

A problematização da formação de professores(as) para atuarem na Educação de Jovens e Adultos tem revelado não terem os(as) profissionais dessa modalidade, em sua maioria, habilitação específica para tal, trazendo em sua prática as marcas da precarização e, embora a despeito da sua criatividade e compromisso, têm sua docência constituída na improvisação e no aligeiramento. (Silva, 2010, p. 65).

Se a formação do professor é fator fortemente influenciador de um resultado de aprendizagem satisfatório em relação aos alunos da EJA, espera-se que este tema seja uma constante em material de pesquisa produzido nos cursos de pós-graduação. Mas isso não é uma verdade. Machado (2002) realizou um levantamento das produções científicas produzidas em cursos de pós-graduação e “verificou que de 226 dissertações e teses defendidas sobre a EJA no período compreendido entre os anos de 1986 e 1998, apenas 32 abordavam assuntos de alguma forma relacionados ao professor.” (Ventura, 2012, p. 73).

            Machado (2002) apresenta o que chama de “descompasso” entre o que se ensina nos cursos de graduação e a realidade das turmas de EJA:

como lidar com alunos que chegam cansados, a ponto de dormir durante quase toda aula? Como auxiliar os alunos no seu processo de aprendizagem, com atendimento extra ou atividades complementares, se uma grande parte deles trabalha mais de oito horas diárias, inclusive no final de semana? Como atender as diferenças de interesse geracional, tendo na mesma sala adolescentes e idosos? Como administrar, no processo ensino-aprendizagem, as constantes ausências, em sua maioria justificadas por questões de trabalho, família e doença? Por outro lado, como o professor deve proceder para reconhecer e validar os conhecimentos prévios que os alunos da EJA já trazem? Como trabalhar de forma interdisciplinar se as disciplinas continuam sendo “gavetas” isoladas e com tempo mínimo para algumas áreas de conhecimento? Como o professor, a coordenação da escola e os representantes das secretarias podem ousar na proposição de atendimento diferenciado, que modifique a dinâmica da escola, seja com alternativas de matrícula aberta, avanços progressivos, organização curricular de base paritária, tempo presencial e atividades complementares? (Machado, 2008, p. 165,166).

Outrossim, não se deve direcionar todas as atenções apenas para a formação inicial dos professores. Subsidiar a ampliação da temática em cursos de graduação faz-se necessário para a formação de futuros professores que atuarão na EJA. Mas os professores que atuam atualmente já passaram por uma formação inicial. O que fazer, então? Como socorrer esse professor que heroicamente enfrenta os desafios de atuar em turmas de EJA sem qualificação específica? As políticas públicas devem se voltar para a formação continuada dos professores. Os cursos de formação continuada devem ter a temática da EJA, sejam eles cursos de aperfeiçoamento, ou cursos de pós-graduação lato sensu e stricto sensu.

Considerações Finais

            O objetivo deste artigo foi analisar o discurso da mulher negra da EJA e os entraves para o ingresso e permanência desta em turmas de Educação de Jovens e Adultos.

            Inicialmente, parti da análise da modalidade enquanto garantia dos direitos instituídos por leis federais e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, por acreditar que as alunas negras e pobres da EJA foram violadas em seus direitos à educação em algum momento em sua vida podem, também, estarem sendo segregadas por de práticas pedagógicas excludentes. A análise concluiu que, embora as políticas públicas direcionadas à modalidade esteja avançando continuamente, ainda há um considerável percurso a se percorrer até o ideal de educação que almejamos em nosso país.

            Paralelamente, lemos o depoimento de diversas mulheres que enfrentaram grandes dificuldades para ingressar na escola ou para permanecer nela. Embora fossem poucos os depoimentos registrados, sabe-se que muitas mulheres negras da EJA partilham das mesmas angústias apresentadas. Os estudos do Pnad demonstram isso.

            Por fim, analisamos a prática pedagógica como fator de exclusão de jovens, adultos e idosos. Embora a análise tenha girado em torno de todos os alunos da EJA, não especificando grupamentos específicos, esta serviu para verificar a eficácia da formação inicial como garantia de que uma prática pedagógica embasada em conhecimento técnico facilita o trabalho docente e, por consequência, contribui para uma educação realmente inclusiva. Ademais, a formação continuada de professores também oferece os mesmos parâmetros.

            Em suma, para que os avanços em relação à Educação de Jovens e Adultos continue a evoluir, faz-se urgente que o tema seja revisto e discutido incessantemente dentro dos órgãos estatais ou não de proteção à educação e em cursos de graduação e pós-graduação afins.

2. Constituição Federal de 1988, Art.205 / ‎Lei nº 12.796 de 4 de abril de 2013 / ‎Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 / ‎LEI Nº 13.415, 16 de fevereiro de 2017.

3. Fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/educacao/audio/2021-12/numero-de-estudantes-matriculados-na-rede-publica-registra-leve-as (acessado em 16/06/2021).

Referências

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1Mestranda em Letras e Linguística pelo PPGLL da UFG. E-mail: mariadivinagonzaga@gmail.com