A MEMÓRIA DISCURSIVA (IN)VALIDA O SILENCIAMENTO

THE DISCURSIVE MEMORY (IN)VALIDATE THE SILENCING

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7678419


Fernanda Cristina Histher
Dantielli Assumpção Garcia


RESUMO: Este artigo tem como horizonte geral os conceitos da Análise de Discurso francesa de Pêcheux (1997), as contribuições de Orlandi (2007) e os pressupostos da Psicanálise Lacaniana (1985), que nos orientam ao pensar o silêncio no silenciamento de vozes femininas. O corpus de pesquisa é parte integrante da dissertação desenvolvida no mestrado em Letras na UNIOESTE, na qual estudamos a série exibida e produzida pela Netflix 8 Em Istambul  (2020) e nos dedicamos a observar atentamente a personagem principal Meryen, mulher muçulmana silenciada pela cultura patriarcal, mas não silenciosa no silêncio sem sentido. Selecionamos recortes da série, destacamos um panorama social, religioso e emocional que vai sendo construído no decorrer de toda narrativa. Meryen desnuda com muita sensibilidade o desejo feminino silenciado, ora presente em poucas palavras, ora presente em não palavras. Concluímos que a personagem traz à tona, a figura feminina silenciada em muitas Meryens, independente de sua condição social, cultural ou religiosa.

PALAVRAS-CHAVE: Silêncio. Silenciamento. Desejo. Análise de Discurso. Psicanálise. 

ABSTRACT: This article has as general horizon the concepts of French Discourse Analysis of Pêcheux (1997), the valuable contributions of Orlandi (2007) and the premises of the Lacanian Psychoanalysis (1985), thereby guide us to think the silence on the silencing of the feminine voices. The research corpus is part of the thesis developed in the Master’s Program in Language from UNIOESTE, which we studied the series “Ethos” (2020) produced and broadcast by Netflix and we focused on the main character Meryen, a Muslim woman silencied by the patriarchal culture, but not silent on the meaningless silence. We selected some scenes from de series, we highlight a social, religious ans emotional panorama that is being built throughout the narrative. Meryen sensitively strips away the silenced feminine desire, sometimes in few words, sometimes without any word. We conclude that the character brings out the feminine figure silenced in so many Meryens, regardless of their social, cultural or religious condition.

KEYWORDS: Silence. Silencing. Desire. Discourse Analysis. Psychoanalysis.

INTRODUÇÃO 

Pensar o silêncio como materialidade discursiva não é tarefa simples, pois, apesar do não dizer em palavras, existe um dizer do silêncio no sentido, esse sentido que se revela no silêncio diz respeito a um contexto, o qual atualiza a história do sujeito.

A Análise do Discurso, (doravante AD), revela a dimensão do contexto histórico, traduzindo o silêncio como manifestação do sujeito no sentido de submeter, ao revelar, do transgredir ou não um dizer. O silêncio, na maioria das vezes, assume o lugar da palavra coibida pelo indizível, mas que está latente nas entrelinhas do discurso, nos seus intervalos e pausas. Deste modo, trazer também a psicanálise para o campo epistemológico da AD, significa permitir outra concepção de sujeito, um sujeito assujeitado, submetido tanto ao seu próprio inconsciente, quanto às circunstâncias histórico-sociais que o envolvem. A psicanálise como método de análise e interpretação favorece a compreensão das relações humanas, assim como a AD, e ao focar o lugar do silêncio evidencia ser possível discutir que ele não possui um sentido próprio, mas aponta para os múltiplos sentidos. Lacan (1985), destacou que o silêncio toma todo o seu valor de silêncio, não é simplesmente negativo, mas vale como além da palavra” (LACAN, 1985, p. 322). O silêncio é um dizer que faz surgir um sentido, a saber, na pausa, nos intervalos, nas reticências. Assim sob à luz dos pressupostos teóricos da AD de linha francesa com base fundamentada em Pêcheux (1997); Orlandi (2007) e Lacan (1985), nos servem de preâmbulo à visibilidade do silêncio e suas manifestações presente na sociedade contemporânea, e neste artigo essencialmente, a censura da fala.

O artigo consiste em apontar quais são as formas e significações do silêncio em recortes delimitados da personagem principal Meryem, nas formulações da série 8 em Istambul (2020), e como se manifestam diante das formações religiosa, social e cultural favorecendo a produção de um silenciamento feminino. A escolha do tema em questão justifica-se pela sua importância social, por meio da perspectiva discursiva pretendemos apresentar o silêncio como constitutivo de sentido, possibilitando um olhar para além do sujeito inconsciente dito pela psicanálise, trazendo também o sujeito dito por seu discurso. 

Trazemos à tona a reflexão sobre parte da trama da série 8 em Istambul, exibida no ano de 2020, pela plataforma da Netflix. Os episódios espelham o clima emocional decorrente da situação cultural que se passa numa Turquia polarizada culturalmente, marcada por uma dualidade entre a tradição religiosa conservadora e a contemporânea, a qual tenta trazer mudanças em diversos contextos, principalmente nas questões femininas. A série desliza por um drama lento e tocante que deve ser apreciado minuciosamente, sentindo as nuances femininas que surgem na narrativa de todas as cenas. A trama convoca a reflexão sobre a inscrição do desejo feminino, e o lugar de silenciamento instituído à mulher diante a cultura Islâmica, predominantemente patriarcal. É notório esclarecer aqui, que procuramos nos distanciar de qualquer conotação que suponha julgamento à cultura Islâmica, uma vez que compreendemos a cultura como uma construção histórica religiosa, assim como existente em qualquer outro país. Meryem, personagem principal da trama 8 em Istambul, compreende nosso corpus de pesquisa. É uma mulher silenciada na série, no entanto percebemos que há muitas “Meryens” (grifos meus) também silenciadas, quer seja em países ocidentais ou não. Na maioria das vezes, os personagens femininos ficam expostos à angustiante impossibilidade de se inscrever enquanto sujeito de desejo permeadas pelo não poder dizer, um calar-se constantemente diante do que se deseja, no entanto, fora da linguagem não é o mesmo que fora do sentido, com afirma Orlandi ( 2007. p. 12). 

O ESPAÇO FEMININO EMOLDURADO PELO SILENCIAMENTO DAS FORMAÇÕES SOCIAIS 

Istambul, capital da Turquia, é uma grande metrópole moderna que apresenta-se em constante movimento para com suas demandas culturais, acolhendo politicamente movimentos feministas que envolvem a liberdade das mulheres quanto ao direito de estudar, da prevenção de violência, discriminação por gênero, participação na política, dialogando sobre questões religiosas ao modo de se vestir, por exemplo, usar ou não o hijab, símbolo da defesa da fé, da integridade familiar e da identidade islâmica, assim como sobre certas crenças religiosas.

Há uma dualidade entre pertencer ao mundo contemporâneo e preservar a tradição muçulmana. Neste aspecto podemos apontar os trabalhos de Mahamood (2004), o qual ressalta a preocupação entre mulheres muçulmanas que lutam em manter a integridade de sua cultura, ao mesmo tempo que se mantêm receptivas a valores, ideias e instituições universais contemporâneas. O autor destaca que durante a maior parte do século XX, a questão da identidade islâmica dos países muçulmanos moldou o debate sobre o papel e o status das mulheres. Afirma também que “as mulheres muçulmanas enfrentaram o grande desafio de promover a “modernidade” e de “se tornar moderno”, sem, no entanto, perder a integridade de sua cultura”, servindo como verdadeiros celeiros de uma memória cultural (MAHAMOOD, 2004, p.195). Por muito tempo, elas lutaram para manter sua identidade de uma maneira moderna e ele considera que entre os “símbolos dessa identidade estão, principalmente, o ‘modo de vestir’ islâmico e uma alternativa ‘ordem social/moral islâmica” (MAHAMOOD, 2004, p.195).  

Ressaltamos que ao olharmos para Meryem, consideramos sua cultura e suas condições de produção, haja visto que nosso gesto interpretativo provém de uma cultura distinta, de uma cultura ocidental, bem como condição de produção diferente e não nos é coerente julgá-la por pertencimento a sua identidade muçulmana. Neste sentido, nos aproximamos do olhar de Said (2007) em seus estudos na obra Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, compreendendo as distintas questões culturais existentes na esfera Ocidental e Oriental. Segundo o autor, o termo nos remete a um “estilo de pensamento baseado numa distinção fundamental feita entre o Oriente e o Ocidente” (SAID, 2007, p. 29). O autor se dedicou a explicar o que significa o orientalismo, não só geograficamente, mas também culturalmente. Sua obra não estuda a relação entre o Orientalismo e o Oriente, mas as “visões que o ocidente tem do oriente”. (SAID, 2007, p.31). Assim sendo, compreender e explorar melhor tais concepções no decorrer de nossa pesquisa e análises, será de grande valia para evitar produzir um discurso permeado por estereótipos.

Em Corpos que se entregam: os sentidos de ser mulçumano, Ferreira (2007, p. 311) estuda os hábitos incorporados nessa cultura, os quais apontam que “os sentidos são a porta de entrada para o mundo”. Nessa leitura, a postura apontada pela posição corporal, distingue a cultura mulçumana das demais, tendo em vista a sensação do corpo, e como ele dentro do silêncio exala a sua real essência. 

O corpo islâmico apresenta peculiaridades que devem ser observadas, tais como os modos de rezar, comer e andar moldando o comportamento. Nesse sentido, o universo etnográfico nesta fase permite-me agora, fazer uma reflexão restrita ao corpo e aos sentidos, observando, ainda, que essas elaborações ou transformações modificam as performances. (FERREIRA, 2007, p. 316). 

Corroborando para esse fato, é possível salientar que, nas comunidades muçulmanas, existe uma fluente preponderância de movimento voltado para a submissão de gênero, que coloca a mulher em um cenário privativo da própria liberdade do seu corpo. 

Neste aspecto podemos apontar os trabalhos de Mahamood (2004) quando explica:

Nas duas últimas décadas, a tensão entre os regimes políticos e a identidade islâmica tem se intensificado. Na base dessa tensão está o debate sobre o papel e o status das mulheres, que vêm não apenas para fazer exigências, mas também para representar as vastas mudanças sociais que transpiram no mundo muçulmano. Cada vez mais, o lugar das mulheres na sociedade e na família tem sido o foco principal de potencial mudança nas sociedades muçulmanas. Muito do progresso alcançado pelas mulheres tem ocorrido nos âmbitos legal e político, embora o status individual no direito de família ainda resiste à mudança. Isto se dá porque a família continua a ocupar um lugar central nas sociedades muçulmanas, tanto cultural como historicamente. A forma de reconciliar a família com o direito das mulheres de agirem contra seus maridos – especialmente em casos de herança, casamento, divórcio, sustento de filhos e direito à reprodução – permanece como uma questão aberta. (MAHAMOOD, 2004, p.190).  

Essa orientação pauta-se principalmente na religiosidade que estigmatiza a autonomia das mulheres, apresentando uma cultura que polemiza o costume do uso da burca, que impõe a vestimenta como algo puro e adequado moralmente. Para Mahamood (2004, p. 185), a compreensão desse processo implica na liberdade e “empoderamento” de mulheres, que, ainda presas ao costume do mundo islâmico, se deparam com a impossibilidade política e religiosa de ser livre, bem como com a notoriedade da submissão atribuída ao silêncio. 

Em Corpos em protesto: análise discursiva do movimento FEMEN, Pereira (2017, p. 97) específica também que “a crença de que as mulheres são fracas e precisam ser ensinadas pelos homens é o que circula na sociedade”. Nesse intuito, a representação discursiva da mulher muçulmana também é silenciada pela predominância do pensamento patriarcal no país. Assim, a generalização da cultura muçulmana aderente ao silêncio como algo comum representa um caráter ilimitado às suas escolhas, desejos, direitos civis e políticos que simplesmente são considerados apenas para os homens. Daí, tem-se um futuro de incertezas, de aprisionamento da autonomia da liberdade do gênero feminino, em que a mulher é nula para exercer direitos básicos. Algumas regiões, comunidades e famílias se mantêm mais interligadas à religiosidade e às tradições muçulmanas, o que impede a mulher de se colocar de um modo mais autônomo diante da existência do patriarcado. Assim, elas aprendem desde cedo a lidar com o silêncio, entendendo que a cultura do seu país deve prevalecer em todos os sentidos para que ela não seja considerada como impura. 

Partindo desse pressuposto, é preciso revelar ao longo de nosso estudo as diferenças interculturais, e de que maneira a mulher muçulmana discursiva estando em silêncio. Movimentos do silêncio exercido por elas podem ser observados na análise da série 8 em Istambul quando, em diversa narrativas, é possível descrever correlativamente o entendimento de Orlandi (2007) e a comparação da cultura muçulmana, que determina a mulher como um ser limitado às ações do outro. 

Importante ressaltar os estudos de Said (2007) quando ele se dedica a explicar que o conceito de Orientalismo surgiu quando se tenta mostrar que a “cultura europeia ganhou força e identidade ao se contrapor com o Oriente,  já que as limitações a que se propõe investigar valorizavam as diferenças em detrimentos da semelhanças entre ocidentais e orientais” (Said, 2007). O autor complementa:

Tanto o Oriente como o Ocidente são criações humanas; são entidades geográficas, mas, sobretudo histórico-culturais. Neste sentido, tanto quanto o próprio Ocidente, o Oriente é uma ideia que tem uma história e uma tradição de pensamento, um imaginário e um vocabulário que lhes deram realidade e presença no e para o Ocidente. Com isso desnaturaliza tanto a ideia de Oriente como também a de Ocidente, apontando-as como construções forjadas socialmente. As representações do Orientalismo na cultura europeia importam no que posso chamar uma consistência discursiva, que não tem apenas história, mas uma presença material (institucional) para mostrar por si mesma. (SAID, 2007, p. 30).

Em suma, Said (2007) explica que há uma ideia Ocidental sobre sistema que opera como as representações em geral fazem para determinado fim, segundo uma tendência, num específico cenário histórico, intelectual e até econômico. Para o autor, essas representações tem propósitos, são efetivas a maior parte do tempo, realizam uma ou muitas tarefas, ou seja, as representações são formações ou, como Roland Barths disse que todas as operações de linguagem, são deformações (SAID, 2007, p. 365). Ressaltamos que muitas vezes, quer seja em documentos oficiais ou pesquisas científicas, quer seja em posicionamentos pessoais ou comentários no dia a dia de fatos ocorridos em todo o Oriente, nós ocidentais podemos ser envolvidos nesses posicionamentos deformados e promover má interpretação, ou ainda corroborar posições distorcidas da real situação da mulher muçulmana e de seu posicionamento religioso, familiar e social, desrespeitando-a em sua cultura, de modo geral.  

Observamos que os desmaios de Meryem, podem desvelar uma insatisfação quanto ao seu estado civil, bem como o desejo de encontrar um amor correspondido e legitimar o papel de mulher casada com um marido provedor que lhe assegure proteção. Proteção esta que sua cultura atribui às mulheres casadas, porque enquanto solteiras elas não correspondem ao papel primordial que lhes é reservado: cuidar da família e procriar filhos.

Abu-Lughod (2012) nos traz um ponto de vista interessante sobre questões feministas muçulmanas, divergente da visão preconizada pelos não muçulmanos. Ela traça algumas questões com discernimento e enfatiza que:

Quando eu falo em aceitar a diferença, eu não estou supondo que deveríamos nos resignar a ser relativistas culturais que respeitam o que quer que aconteça em outros lugares como sendo “apenas a cultura deles”. Eu já discuti os perigos das explicações “culturais”; as culturas “deles” fazem tanto parte da história e de um mundo interconectado quanto a nossa faz. O que advogo é o trabalho duro envolvido em reconhecer e respeitar as diferenças – precisamente como produtos de diferentes histórias, como expressões de diferentes circunstâncias e como manifestações de desejos diferentemente estruturados. Nós podemos querer a justiça para as mulheres, mas podemos aceitar que pode haver ideias diferentes sobre a justiça e que mulheres diferentes podem querer, ou escolher, futuros diferentes daqueles que vislumbramos como sendo melhores? Nós precisamos considerar que eles possam ser trazidos para a individualidade, por assim dizer, em uma linguagem diferente.  (ABU-LUGHOD, 2012, p. 460).

Concomitante a essa ideia, direcionamos nossas análises sobre o silenciamento de Meryem na série 8 em Istambul. Esse recorte de diálogo ocorre entre a psicóloga Dra. Peri e Meryem. Como podemos evidenciar a Dra. Peri continua insistindo em promover uma conversa e tentar traçar o diagnóstico inicial da paciente. A causa pela qual Meryem procurou ajuda, decorreu do desconforto de ter passado por alguns desmaios, com causa aparentemente desconhecida. Considerando os resultados satisfatórios de exames fisiológicos, a médica da Policlínica, local em que ela foi atendida inicialmente, sugeriu que Meryem procurasse atendimento psicológico para melhor investigação de seu estado de saúde. 

A proposição para descrever esse diálogo está pautada em formações sociais e formações discursivas apresentadas por Pêcheux e Fuchs (1975), bem como a apropriação do espaço feminino, discutida por Beauvoir (1970). Ao considerarmos o contexto social e histórico da cultura muçulmana, percebemos que Meryem sentia-se sufocada por questões emocionais relacionadas às questões matrimoniais. Mulher solteira, e de acordo com a cultura patriarcal muçulmana, o casamento é condição primordial para as mulheres, ou seja, ela precisava arrumar um marido e se integrar nas normas estabelecidas.

Vejamos:

Dra. Peri – Porque procurou a senhora Nuray na Policlínica? Qual é o problema?

Meryem – Por causa desses desmaios.

Dra. Peri – Pode me falar um pouco mais sobre isso?

Meryem – Bom, eu desmaiei.

Dra. Peri – Quando?

Meryem – Fomos a Erzincan com os filhos do meu irmão mais velho para o casamento da minha prima. Essa foi a primeira vez que eu desmaiei

Dra. Peri – E quando foi isso?

Meryem – Depois do Ramadã

Dra. Peri – Neste ano?

Meryem – Aconteceu outra vez esse ano, na festa de noivado do nosso   vizinho E, uma vez, desmaiei em casa enquanto via TV.

Dra Peri – Lembra o que estava assistindo?

Meryem – Estava assistindo Esra Erol

Dra. Peri – O programa sobre casamentos

Pêcheux (1997) afirma, ao longo de seus estudos, que o discurso é determinado historicamente, a partir do que chamou de condições de produção e são determinadas pelos lugares ocupados pelos sujeitos nas diversas formações sociais. Isso quer dizer que, conforme proposto pelo autor as condições de produção se constituem como relações de força, isto é, o discurso adquire determinado valor conforme o lugar que o sujeito ocupa. Meryem assume a posição de mulher muçulmana, ou seja, a família ocupa um lugar central nas sociedades muçulmanas, tanto cultural como historicamente. A mulher, na grande maioria, assume seu papel simbólico de mãe, reprodutora física da nação e transmissora da cultura, assim culturalmente, tem papel previsível numa determinada formação discursiva. Raramente lhe é concedido espaço para falar e quando lhe é permitido não se sente confortável, como um “não sabe como fazer/falar” (grifos meus). Ela ocupa um lugar social estabelecido na cultura muçulmana. Veladamente, sabe que há uma espécie de hierarquia do discurso, no sentido de que um determinado discurso “vale mais” ou “vale menos” (grifos meus) de acordo com o lugar que o sujeito discursa. A Dra. Peri ocupa um lugar estabelecido social e historicamente, a qual conquistou espaço para falar e ouvir, enfim se posicionar numa conjuntura social, também patriarcal. Ela deixa transparecer que é feminista, estudou na Europa, viajou e conhece muitos países e culturas diferentes da sua. 

Nesse aspecto, as condições de produção também podem ser entendidas como o contexto em que o discurso é produzido, uma vez que as posições ocupadas por ambas são determinadas historicamente. As mulheres feministas são diferentes em suas posições, dada a sua cultura X ou Y. Abu-Lughod (2012) considera que ao pensarmos nas “feministas” (grifos meus) é prudente considerar que “uma das coisas ao pensar nas feministas do Terceiro Mundo e no feminismo em diferentes partes do mundo muçulmano é não cair em polarizações que colocam o feminismo do lado do Ocidente”. (ABU-LUGHOD, 2012, p. 463).

Pêcheux e Fuchs (1975) definem formação social, como o modo que a sociedade se organiza e como produz em determinada época. A formação social está diretamente ligada às formações ideológicas e discursivas, assim: 

As relações de produção são operadas a partir de como os indivíduos são interpelados em sujeitos em uma determinada formação social, haja vista que é nela que vão se materializar as relações de poder, bem como é nela que estão abrigadas as diferentes formações ideológicas. O conflito de forças dentro de uma formação social, em determinado momento, constitui a formação ideológica, que é um “conjunto complexo de atitudes e representações que não são nem individuais, nem universais, mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas com as outras”, ou seja, é um conjunto de ideias, materializadas pela linguagem, que uma classe apresenta sobre o mundo. (PÊCHEUX; FUCHS, 1975, p. 166).

Ressaltamos que a mulher muçulmana, mesmo em tempos contemporâneos, em que já ocorreram transformações sociais, históricas, políticas e econômicas, ainda há muito espaços a conquistar. O acesso ao mercado de trabalho, às universidades, a apropriação de seu corpo e da sua sexualidade ainda são questões polêmicas e, muitas vezes, pouco discutidas em ambientes familiares e religiosos. O feminino e suas novas figurações circulam com intensidade nas produções culturais desta época, nas obras literárias, no cinema, no campo das artes plásticas, traduzindo todo um movimento que está longe de seu estado final. Beauvoir (1970), em seu livro O segundo sexo, traz a mulher como uma construção de si, não devendo ser pré-determinada pela biologia, pela economia, religião ou outras formas de dominação. Segundo a autora:

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. (BEAUVOIR, 1970, p. 9). 

Em sua obra, Beauvoir (1970) analisa fatos sobre a mulher a partir de diversas perspectivas teóricas, como a biológica, a psicanalítica e a histórica, demonstrando como estas áreas, mesmo que não possam definir o que é a mulher, contribuíram para o discurso desta como ser inferior, o negativo do masculino, o outro nas relações. Assim, a mulher foi submetida pelo patriarcado, e pela dominação masculina, limitando-a em suas vivências, reduzindo-a à posição de servir ao homem, como mãe e esposa exemplar. E é justamente nesse ponto que o movimento feminista intervém, no sentido de abrir à mulher outras posições na sociedade, aquelas que ela quiser ocupar. Meryem é solteira e ocupa a posição a qual lhe é atribuída culturalmente pela sociedade muçulmana. Aparentemente, na série 8 em Istambul ela apresenta certo desconforto emocional manifestado pelos desmaios, o que pode sugerir que sua posição na estrutura patriarcal está dissonante de seus desejos enquanto mulher. 

Reconhecemos que a cultura muçulmana preserva o corpo da mulher, o qual não pode ser exposto, suas roupas são basicamente saias longas, casacos longos cobrindo o corpo, e o hijab cobrindo o pescoço e os cabelos, ou seja, o corpo e a sensualidade feminina são resguardados para preservar a respeitabilidade da mulher. A mulher muçulmana adota essas vestimentas como forma corporal de cultivar a virtude e assegurar sua proteção na esfera pública do assédio de homens estranhos. Meryem procura encontrar espaço para romper esse aprisionamento emocional, o qual está provocando seu adoecimento, a considerar que os desmaios estão relacionados a causas afetivas, ou melhor dizendo, sentimentais.

Ao relatar para a Dra. Peri, as situações em que os desmaios ocorreram, observa-se que eles estão relacionados a ocasiões que envolveram relacionamento afetivo, ou seja, noivado, casamento e programa televisivo sobre casamentos. Assim, estabelecemos algumas referências para tentar reconstruir os sentidos possíveis desse cenário.

Segundo Pêcheux (1997), a Formação Discursiva (doravante FD) indica tudo aquilo que pode e deve ser dito de acordo com o lugar e a posição social, histórica e ideológica ocupada pelo sujeito. As FDs estão em constante diálogo umas com as outras, visto que podem ser aliadas para fortalecer determinados posicionamentos ou contestar o que é defendido por outras. Um mesmo enunciado pode fazer parte de mais de uma FD, mas os sentidos não são necessariamente os mesmos, justamente por depender dos fatores já citados. As palavras “noivado” e “casamento” para Meryem podem ecoar como cobrança de um status social “solteira” e “casada” (grifos meus), no entanto, para Dra. Peri é indício de desequilíbrio emocional, mediante os relatos de sua paciente. Neste sentido, o autor destaca que:

Se uma mesma palavra, uma mesma expressão e uma mesma proposição podem receber sentidos diferentes – todos igualmente ‘evidentes’ – conforme se refiram a esta ou aquela formação discursiva, é porque – vamos repetir – uma palavra, uma expressão ou uma proposição não tem um sentido que lhe seria “próprio”, vinculado a sua literalidade. Ao contrário, seu sentido se constitui em cada formação discursiva, nas relações que tais palavras, expressões ou proposições mantêm com outras palavras, expressões ou proposições da mesma formação discursiva. De modo correlato, se se admite que as mesmas palavras, expressões e proposições mudam de sentido ao passar de uma formação discursiva a uma outra, é necessário também admitir que palavras, expressões e proposições literalmente diferentes podem, no interior de uma formação discursiva dada, ‘ter o mesmo sentido’. (PÊCHEUX, 1997, p. 161).

Meryem inserida em uma determinada FD, compreende que alguns sentimentos estão vazios em relação aos eventos sobre noivado e casamento, que ocorreram recentemente em sua vida pessoal. Dizendo de outro modo, não só a situação imediata e recente dos eventos, mas também dos discursos sócio-históricos preservados na cultura patriarcal muçulmana sobre o papel da mulher: encontrar um marido e assumir os compromissos idealizados para o matrimônio, cumprindo assim uma posição preservada pela cultura muçulmana.

Destacamos outra cena de diálogo:

Dra Peri – É… Ainda tem meia hora até o final da sua sessão. Se você quiser, podemos conversar.

Meryem – Sobre o quê?

Dra Peri – Sobre o que quiser, qualquer coisa que lhe venha à cabeça que queira me contar.

Meryem – A senhora Nuray lá da emergência lá da Policlínica me examinou, ela é médica. Ela disse que os meus exames estavam muito bons, mas que queria que eu viesse aqui, sabe? Ela me mandou aqui para falar com a senhora, por isso eu vim.

Dra Peri – Ok. Fico feliz que tenha vindo.

Meryem? – É um prazer estar aqui. 

Dra Peri – Meryem… É um belo nome.

Meryem – É a mãe de Jesus, da Virgem Maria. Significa “verdadeira crente”.

Dra Peri – É um nome muito bonito.

Meryem – É claro. Se o 24 não passar, posso pegar o micro-ônibus na rua de baixo.

( // )

[Silêncio] 

Observa-se nesse recorte de diálogo o resultado do assujeitamento que Meryem vive, ela não se sente autorizada a falar, mesmo quando convidada a expressar sentimentos, ela muda de assunto e quer encerrar o diálogo.

O discurso também é determinado historicamente, segundo Pêcheux (1997), a partir do que chamou de condições de produção. A noção de condições de produção, conforme Gadet et al. (2014), foi emprestada da teoria de Althusser que, por sua vez, a importou do âmbito dos estudos sobre economia. As condições de produção são determinadas pelos lugares ocupados pelos sujeitos nas diversas formações sociais. 

Isso quer dizer que, conforme o proposto por Pêcheux (1997) às condições de produção se constituem como relações de força, isto é, o discurso adquire determinado valor conforme o lugar que o sujeito ocupa. Meryem assume sua posição de dependência numa determinada formação discursiva e imaginária. A voz raramente lhe é concedida e quando lhe é permitido falar não se sente confortável. Intimamente ela considera que há espécie de hierarquia do discurso, no sentido de que um determinado discurso “vale mais” ou “vale menos”, de acordo com o lugar de onde o sujeito o enuncia. A Dra. Peri ocupa um lugar estabelecido social e cultural, o qual lhe autoriza falar e ouvir. Nesse aspecto, as condições de produção também podem ser entendidas como o contexto em que o discurso é produzido, uma vez que as posições ocupadas por ambas foram determinadas historicamente.

 O contexto cultural reservado ao espaço feminino que Meryem vive, pode ser considerado resultado das formações sociais advindas de muitas outras formações: família, religião, ideologia e todas essas formações convergem para um ponto central: apropriar a voz e o corpo para silenciá-los e manter a integridade da mulher muçulmana em consonância com a cultura de seu país. O silêncio não emoldura silêncios outros, ele é a própria obra prima a ser valorizada e interpretada.

O SILÊNCIO COMO INTERVALO PARA A SIGNIFICAÇÃO

Althusser (1980, p. 43), em sua obra Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado, explica que a classe dominante gera mecanismos de reprodução e perpetuação de condições ideológicas. O autor afirma que os discursos são associados a um grande edifício que garante a distribuição dos sujeitos que falam em diferentes formações discursivas os quais se apropriam delas e se sujeitam aos procedimentos desse discurso. O autor apresenta-nos, ainda, uma forma mais superficial que se constitui pelo ritual, e o mesmo seria o agente definidor da qualificação dos indivíduos que falam, seus gestos, seus comportamentos e as circunstâncias que acompanham o discurso. Nesse contexto é interessante trazer as considerações de Orlandi (2007) ao afirmar que o discurso é histórico, é ideológico, e produzido socialmente e culturalmente. Por isso, o discurso tem uma memória, já que nasce de outro discurso pelo processo de repetição ou de modificação. 

O recorte de diálogo a seguir ocorre entre Hodja e Meryem, ainda no episódio I, quando ela o procura para lhe contar que já está indo a uma clínica e conversando com uma psicóloga. É relevante contextualizar nesse artigo que Nasrudin Hodja é uma figura mítica da tradição sufi e muito popular no Médio Oriente. Hodja, como é conhecido popularmente na Turquia, surgiu de uma lenda do folclore, mas ainda hoje tem sua significação como mestre, aquele que tem “sabedoria”, tem o “conhecimento” (grifos meus). É considerado um sábio porque aponta as coisas de um ponto de vista diferente do que a maioria das pessoas consegue observar, e o título demonstra a ideia de um homem com quem as pessoas sempre tinham algo novo a aprender. No decorrer da série, principalmente nos episódios iniciais, ele assume um papel enigmático e de fundamental importância em toda trama, pela influência que exerce com palavras ao orientar decisões de Meryem e seu irmão Yasin, os quais são personagens de referência para nosso estudo.

[som de pássaros]

Hodja – Segure isso aqui com a sua outra mão, Meryem. Agora, pode cheirar.

Meryem – [inspiração] É muito cheirosa, Hodja!

Hodja – Arranque uma pétala.

Meryem – É muito cheirosa, Hodja.

Hodja – Não, não, não, não. Veja se consegue arrancar uma pétala.

Meryem – Ah. [som da pétala sendo arrancada]

(…)

Hodja – E este é o mundo que Alá criou na Terra. Apodrece, vira adubo e retorna à terra. É muito cheiroso, mas tem espinhos também. É frágil, não tem como consertar. Envelhece, apodrece. Depois que você corta o galho, fica bravo com você. Se você tenta fazer carinho, quebra. Esta flor somos nós, igual a nós. Como você ou eu, seu irmão e a esposa dele. Viemos da terra e para ela voltaremos. Quem aceitar isso… viverá como esta flor abençoada. Saberá ser humilde, vai murchar, vai definhar. Mas os que são enganados pela outra, pensando que criaram um Paraíso na Terra, irão para o Inferno, na outra vida. (…)

Meryem – Louvado seja Alá mil vezes pela sua ajuda, Hodja, que Alá sempre esteja ao nosso lado.

Hodja – É…

Meryem – Amém. Eu tenho que ir, Hodja, está tarde. (…) Tenha uma boa noite, Hodja.

Hodja – Igualmente, minha filha, Meryem!

Meryem – Sim, Hodja.

Hodja – Você ia ver uma psicóloga. Como é que foi?

Meryem – Ainda não fui, Hodja. Mas assim que for, Inshallah, venho falar com o senhor.

Hodja – Inshallah.

Observarmos o discurso de Hodja, ao dizer a Meryem “É muito cheiroso, mas tem espinhos também” ele recorre ao recurso da metáfora (discutiremos com maior propriedade este tema no decorrer de nossa pesquisa) para dizer que há situações na vida que nos parecem ser prazerosas e nos trazem um bem-estar momentâneo. Hodja mobiliza sua ideologia por meio da memória discursiva quando diz “Viemos da terra e para ela voltaremos. Quem aceitar isso, viverá como esta flor abençoada”, ou seja, o quão perigoso é desviar-se do caminho proposto por Alá e àqueles que se distanciam de seus ensinamentos não alcançarão o Paraíso. Hodja invoca figurativamente o céu e o inferno para defender a eficácia de suas palavras e manter seus seguidores fidedignos. Se apropria de um discurso que acredita ser seu, ao enfatizar a valoração das crenças e a coerção para as infrações. Hodja não constrói esse discurso ao acaso, ele já está inscrito em outros discursos religiosos, quer seja no Alcorão ou em outros livros sagrados da religião Islâmica.

Diante do exposto, Pêcheux (2010) afirma que a memória discursiva possibilita retomar os discursos já ditos em outro momento, em uma dada circunstância social, história e cultural, e em uma situação discursiva atualizada. afirma que:

A memória discursiva funciona como uma espécie de retomada de discursos já utilizados em outros acontecimentos anteriores. A memória serve como uma forma de sustentação das forças ideológicas que apresentam como propósito a retomada dos pré-construídos. (PÊCHEUX, 2010, p. 53). 

Assim, vemos que Hodja faz uma retomada da fala de um outro discurso, uma vez que a voz que enuncia está intrinsecamente ligada à voz da religião Islâmica, do Alcorão. Outra fala também nos encaminha para a memória enunciativa, quando ele diz “E este é o mundo que Alá criou na Terra” subtende-se que não há outro mundo fora desta criação, o qual não seja o de Alá. O mundo que convida aos desvios das escrituras sagradas, é o mundo de pecados, dos erros e, consequentemente, de punições, constituídos de erros. Hodja procura poetizar seu discurso também quando diz: “Esta flor somos nós, igual a nós”. E nessa perspectiva também visualizamos o discurso sendo deslocado, retomado através da memória discursiva, um discurso feminino que é o do conhecimento coletivo, quando associamos uma mulher a uma flor. De alguma forma, percebemos na estrutura discursiva de Hodja, discursos outros que se relacionam a posições pré-determinadas do conceito de que a mulher é delicada, frágil e dependente de cuidados. Cuidados estes que nos remetem nesta discussão, primeiramente, divinos, e, posteriormente, aos cuidados do homem, cuja cultura o institui provedor e protetor de sua família. Assim, Hodja, se sente representante de Alá e o faz com a legitimidade que lhe é conferida pela tradição muçulmana, para intervir, ou mesmo reforçar em seus fiéis, especificamente Meryem, o modelo ideal de vida, de acordo com a memória discursiva que lhe autoriza a fazê-lo.

Podemos observar ao final do diálogo, Meryem muda de opinião e não conta a Hodja que já tinha ido conversar com a psicóloga. E ele a indaga assertivamente, pois tem autonomia para saber de tudo e de todos ao seu redor e ao se despedirem: “Você ia ver uma psicóloga. Como é que foi?”. Ela silencia e ele responde: “Ainda não fui, Hodja. Mas assim que for, Inshallah, venho falar com o senhor”. Entendemos que Meryem não disse o que poderia dizer a Hodja, ou deveria dizer. De acordo com a memória discursiva, Hodja é o mentor religioso, aquele que orienta seus discípulos, sobre suas atitudes e seus pensamentos. Importante retomar o diálogo anterior (p. 102 anexos) e destacar que a Dra. Peri pede a Meryem que não comente com Hodja sobre a conversa que tiveram naquela sessão, ou seja, que ela silencie. E ela o faz. Nesse sentido, Orlandi (2007) afirma que o silêncio é parte da significação de um discurso, visto que aquilo que um discurso silencia também significa. Ou seja, Meryem rompe pela primeira vez, na série 8 em Istambul, com a previsibilidade das atitudes de uma mulher fidedigna aos padrões culturais e religiosos. Ao silenciar, ela percebe que pode desenvolver sua autonomia, e ao mesmo tempo, desvelar outros sentidos, a liberdade por exemplo. Para a autora, “o não-um (os muitos sentidos), o efeito do um (o sentido literal) e o (in)definir-se na relação das muitas formações discursivas têm no silêncio o seu ponto de sustentação” (Orlandi, 2007, p. 15). Assim sendo, a memória discursiva tenta validar o silenciamento, no entanto ao fazê-lo pode provocar uma erupção de sentimentos, questionamentos e tomada de atitudes que se desprendem dos já ditos e deslocam para um novo dizer e um novo olhar para si próprio. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao tecermos as considerações finais, sintetizamos nossas observações ao pensarmos o silêncio e o silenciamento de vozes femininas em diferentes contextos sociais. Neste artigo, nos dedicamos a olhar especificamente a personagem Meryem, da série 8 em Istambul (2020), na plataforma Netflix. Seu silêncio, na maioria das vezes, assume o lugar da palavra coibida pelo indizível, mas que está latente nas entrelinhas do discurso, nos seus intervalos e pausas. A trama que utilizamos como corpus de nossa pesquisa, convoca a reflexão sobre a inscrição do desejo feminino, e o lugar de silenciamento instituído a mulher diante a posições predominantemente patriarcais. Na ficção assim como na vida cotidiana, na maioria das vezes, os personagens femininos ficam expostos à angustiante impossibilidade de se inscrever enquanto sujeito de desejo, permeadas pelo não poder dizer, um calar-se constantemente diante do que se deseja, assim )  “a máxima que fora da linguagem não é o mesmo que fora do sentido” como bem afirma (ORLANDI, 2007. p. 12). 

Articular a Análise de Discurso e a Psicanálise no intuito de ouvir o que o silêncio tem a dizer, trouxe toda a complexidade do sujeito do discurso, inserido na cultura, no entanto, assujeitado a sua singularidade psíquica, condição fundamental da linguagem humana. Pensar o silêncio como um dizer, dentro de um sentido, traz toda a dimensão que a linguagem utiliza para se manifestar, latente, trazendo infinitas possibilidades de um dizer. Parece-nos inevitável também, abordar a dimensão do silêncio que se move para o campo da impossibilidade de um dizer todo, pleno, nos remetendo a estrutura da incompletude da linguagem. 

O silêncio é marcante, de tal maneira que Meryem não revela seus sentidos e adoece por silenciá-los, seu corpo fala através de seus desmaios. A discussão lançada até aqui, na trajetória que a personagem Meryem vai trilhando, é importante sobretudo no que se refere ao trabalho clínico de escuta a que a personagem se submete, trazendo a dimensão de seu sintoma e as possibilidades de uma mudança subjetiva de seu discurso através de sua escuta. No entanto, ela percebe que pode desenvolver sua autonomia, e ao mesmo tempo, desvelar outros sentidos, a liberdade por exemplo de conhecer outros modos de não silenciamento. Concluímos que a personagem Meryem traz à tona a figura feminina silenciada em muitas Meryens, independente de sua condição social, cultural ou religiosa. Nesse artigo, ao desenvolver as questões propostas buscamos provocar novos olhares em estudiosos no universo acadêmico ou pesquisadores de outras instâncias clínicas, uma vez que este tema é amplo e não se encerra brevemente em apenas um estudo.

REFERÊNCIAS 

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