A LIVRE DISPOSIÇÃO DO CORPO E OS LIMITES IMPOSTOS PELO DIREITO DA PERSONALIDADE
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7990739
Andressa Lavínia Batista Rodrigues
Jordan Santos do Nascimento
Orientador: Prof. Me. Jhon Kennedy Texeira Lisbino
RESUMO
O presente trabalho fará uma abordagem acerca da linha tênue entre o corpo como bem tutelado pelo Direito da Personalidade e o Princípio da Autonomia da Vontade. A personalidade jurídica oferece ao indivíduo a titularidade de direitos e obrigações, tornando-se um atributo indispensável para caracterizar um sujeito de direitos. A autonomia da vontade é o principal fundamento para reger as relações entre particulares e consiste na ideia de que as pessoas podem gerar normas e obrigações com base em suas vontades individuais. Contudo, há casos que esse princípio excede os limites da preservação da dignidade humana e conflita com disposições legais. Dessa forma, será analisado, a partir da exposição de casos concretos, se o ato de disposição do corpo acarreta em alguma lesão permanente à integridade corporal, põe fim ou causa risco à vida da pessoa, se causa algum dano à sua saúde ou sensível redução da expectativa de vida do sujeito, observando as consequências do ato. O presente trabalho tem por objetivo analisar a tutela do corpo humano em paralelo ao direito da personalidade e a autonomia da vontade do sujeito em fazer o que bem entender com o seu corpo. A metodologia utilizada baseou-se em um estudo descritivo, desenvolvido por meio de pesquisa bibliográfica com base em artigos, casos concretos e trabalhos publicados na internet. O estudo teve como resultado a existência de limites entre esses direitos e, nos casos em que há conflito entre duas normas de mesma hierarquia, o ordenamento jurídico será guiado pela Técnica da Ponderação.
Palavras-Chave: Direito da Personalidade. Princípio da Autonomia da Vontade. Corpo. Limites
ABSTRACT
The present work will approach the fine line between the body as a good protected by the Personality Law and the Principle of Autonomy of the Will. The legal personality offers the individual the ownership of rights and obligations, becoming an indispensable attribute to characterize a subject of rights. The autonomy of the will is the main foundation for governing relations between individuals and consists of the idea that people can generate norms and obligations based on their individual wills. However, there are cases where this principle exceeds the limits of the preservation of human dignity and conflicts with legal provisions. In this way, it will be analyzed, from the exposition of concrete cases, if the act of disposing of the body leads to any permanent injury to the bodily integrity, puts an end or puts a risk to the person’s life, if it causes any damage to their health or a significant reduction of the subject’s life expectancy, observing the consequences of the act. The present work aims to analyze the protection of the human body in parallel with the right of personality and the autonomy of the subject’s will to do what he wants with his body. The methodology used was based on a descriptive study, developed through bibliographical research based on articles, concrete cases and works published on the internet. The study resulted in the existence of limits between these rights and, in cases where there is a conflict between two norms of the same hierarchy, the legal system will be guided by the Weighting Technique.
Keywords: Personality Right. Principle of Autonomy of Will. Body. Limits
INTRODUÇÃO
A contemporânea pesquisa científica versará sobre a linha tênue entre a divisa que se encontra o direito de cada indivíduo sobre o próprio corpo, uma vez que, existem direitos civis-constitucionais que tendem a limitar determinadas alterações na estrutura física do corpo.
Faz-se necessário, como via de início, buscar compreender que os direitos da personalidade são direitos essenciais à dignidade e integridade, protegendo tudo o que lhe é próprio, honra, vida, liberdade, privacidade, intimidade, entre outros. Dessa forma, é essencial, assim, a ponderação dentre esses direitos fundamentais no âmbito da vontade individual assumidos pelos indivíduos enquanto membros de uma sociedade e a tutela estatal.
Nessa perspectiva, a temática que se traz à reflexão diz respeito à questão dos reflexos do Princípio da Autonomia da Vontade e o uso/disposição do “próprio corpo” em face do Direito da Personalidade, uma vez que ambos são simultaneamente tutelados pelo ordenamento jurídico.
Dessa forma, será analisado o corpo como bem tutelado pelo direito da personalidade, regulados pelo poder público na Constituição Federal e no Código Civil brasileiro. E, em paralelo, será observada a autonomia da vontade do sujeito em fazer o que bem entender com o seu corpo.
Neste contexto, será objeto de estudo específico buscar compreender o corpo como direito fundamental em acareação com as limitações legais quanto a sua disposição. Além disso, a apresentação de casos concretos acerca dos conflitos e exposição de linhas de pensamentos doutrinários e jurisprudenciais que fundamentam as situações a serem elencadas também farão parte do trabalho científico em comento.
Diante disso, para apresentar os pontos em questão, no viés legislativo, analisar-se-á a Constituição Federal, mais precisamente no rol de direitos fundamentais (art. 5°), em conjunto com o Novo Código Civil Brasileiro, no que tange aos direitos da personalidade. Ademais, será observado doutrinas específicas e jurisprudências contemporâneas, alinhados com artigos científicos sobre o tema.
No desenrolar do trabalho serão abordadas, através de uma breve pesquisa bibliográfica, a evolução dos direitos da personalidade na ordem jurídica brasileira, no decorrer das promulgações Constitucionais e do Código Civil, bem como as considerações sobre o corpo humano na ótica dos direitos fundamentais. Em seguida, será analisado o princípio da autonomia da vontade em confronto com as limitações acerca da disposição do corpo. Por fim, também serão elencadas algumas situações e casos concretos acerca da temática, com a abordagem de doutrinas e jurisprudências.
Afinal, é notório, de forma inequívoca, que a sociedade vem vivenciando constantes transformações sociais, tecnológicas e habituais, ao passo que, de forma enérgica requer o livre exercício do seu direito a personalidade e dessa forma possam desenvolver sua individualidade de acordo com suas convicções.
Ante o exposto, percebe-se a grande importância deste estudo sobre esse tema, no intuito de surgir reflexos acerca da liberdade que o indivíduo tem sobre o seu “próprio corpo”, conforme o Estado exercendo o poder público regulador intervém e impõem limites a determinadas alterações no que diz respeito à fisiologia.
1 CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS DO DIREITO DA PERSONALIDADE E CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL NO BRASIL
O conceito de Direito Civil submeteu-se à grandes evoluções durante a história. Em período anterior à promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, enxergava-se esse direito como um aglomerado legislativo, de ordem privada, destinado à regência da vida dos cidadãos unicamente pelo viés patrimonial. O primeiro Código Cível, instituído pela Lei n° 3.071, de 1º de janeiro de 1916, também conhecido como Código Beviláqua, elaborada por Clóvis Beviláqua, entrou em vigor em janeiro de 1917 sendo resultado do direito liberal, em que se prestigiava o individualismo, o patrimonialismo, o positivismo.
A partir do século XX, após a Segunda Guerra Mundial, em decorrência dos horrores cometidos contra a humanidade naquele período entre 1939 a 1945, ocorre a valorização do “SER”, trazendo a dignidade humana como princípio norteador de várias constituições na América e Europa. A Declaração dos Direitos Humanos é um documento marco na história mundial que estabeleceu, pela primeira vez, normas comuns de proteção aos direitos da pessoa humana, a serem seguidas por todos os povos e todas as nações. Foi aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948 e de acordo com seu preâmbulo: “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.” (Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948).
Posteriormente, em 1969 o novo Código Civil começou a ser elaborado pelo governo militar, iniciando sua tramitação no Congresso Nacional em 1975. Seu texto final foi aprovado em 15 de agosto de 2001, quando começou o período de transição fixado em lei. Nesse ínterim, como o encerramento da ditadura militar no Brasil, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 foi promulgada em 5 de outubro de 1988, e ficou conhecida como “Constituição Cidadã”, por ter sido concebida no processo de redemocratização.
Com isso, a partir do final da década de 1980, em favor da consagração do Princípio da Dignidade Humana, sendo um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, nos termos do artigo 1º, inciso III da CRFB/1988 e das suas irradiações, o novo Código Civil brasileiro, promulgado em janeiro de 2002, com o intuito de superar o individualismo que norteava o antigo Código de 1916, passou a regulamentar os interesses do homem, como sujeito entregue ao convívio em sociedade, dando continuidade ao movimento de repersonalização do Direito Civil, suplantando-se a noção de patrimônio.
Nesse sentido, Alexandre Morais, jurista e atual ministro do Supremo Tribunal Federal, conceitua “dignidade” como: “Um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos e a busca ao Direito à Felicidade” (MORAIS, 2017, p. 345).
Corroborando com o entendimento, também leciona a doutrinadora Ana Paula de Barcellos: “A dignidade humana pode ser descrita como um fenômeno cuja existência é anterior e externa à ordem jurídica, havendo sido por ela incorporado. De forma bastante geral, trata-se da ideia que reconhece aos seres humanos um status diferenciado na natureza, um valor intrínseco e a titularidade de direitos independentemente de atribuição por qualquer ordem jurídica” (BARCELLOS, 2019, p. 108)
Deste modo, o processo de constitucionalização do Direito Civil, que teve início a partir da Constituição Federal de 1988 e culminou com o advento do Código Civil de 2002, constitui fenômeno que trouxe a personalidade humana como epicentro axiológico em face do caráter patrimonialista das relações privadas, inserindo assim o ser humano no centro do direito. Assim sendo, os direitos da personalidade sob influência constitucional passam a ser assegurado sobre todos os ramos do Direito.
Outrossim, é notório que há grande aproximação dos direitos da personalidade com os direitos fundamentais insculpidos no texto constitucional, de modo que o livre desenvolvimento da personalidade só ocorrerá com o efetivo respeito aos direitos fundamentais. Nesse sentido, tem-se o enunciado 274 da IV jornada de direito civil: “Os direitos da personalidade, regulados de maneira não-exaustiva pelo Código Civil, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º, inc. III, da Constituição (princípio da dignidade da pessoa humana).”
O enunciado representa muito bem a Escola do Direito Civil Constitucional que procura analisar o direito privado a partir da Constituição Federal e dos seus princípios fundamentais. Os três princípios fundamentais são a Eticidade, a Socialidade e a Operabilidade.
A Eticidade, aliada aos princípios da boa-fé objetiva e da lealdade, pretende que a conduta dos sujeitos de direito seja pautada por atitudes corretas (corretezza), leais e honestas, não se contentando apenas com a intenção dos agentes em praticar o ato segundo os ditames do Direito. Ademais, nas palavras do saudoso Ministro José Delgado, citado por Flávio Tartuce, “o tipo de Ética buscado pelo novo Código Civil é o defendido pela corrente kantiana: é o comportamento que confia no homem como um ser composto por valores que o elevam ao patamar de respeito pelo semelhante e de reflexo de um estado de confiança nas relações desenvolvidas, quer negociais, quer não negociais. É, na expressão kantiana, a certeza do dever cumprido, a tranquilidade da boa consciência” (TARTUCE, 2015, p. 80).
O Princípio da Socialidade procura superar o caráter individualista e egoísta que imperava na codificação anterior, valorizando a palavra nós, em detrimento da palavra “eu”. Ou seja, defende que os interesses da coletividade devem sobrepor aos individuais, manifesta-se como exigência da vida contemporânea nos grandes centros urbanos, onde várias pessoas dividem a mesma habitação, refletindo no todo a conduta de uma só.
Nessa nova realidade, “dúvidas não há de que o Direito Civil em nossos dias é também marcado pela socialidade, pela situação de suas regras no plano da vida comunitária. A relação entre a dimensão individual e a comunitária do ser humano constitui tema de debate que tem atravessado os séculos, desde, pelo menos, Aristóteles, constituindo, mais propriamente, um problema de filosofia política, por isso devendo ser apanhado pelo Direito posto conforme os valores da nossa – atual – experiência jurídica” (MARTINS-COSTA, 2002, p. 144).
Por fim, a operabilidade manifesta-se no cuidado da comissão em estabelecer, já na norma, soluções facilitadoras da sua interpretação e aplicação, notadamente quanto à precisão dos conceitos. Em outras palavras, o Direito deve ser eficaz para proporcionar uma mudança no plano social, produzindo efeitos. A título de exemplo, menciona-se a concretude, ou seja, aplicar a regra do Código de forma simples e efetiva, visando a solução do caso concreto. Insere-se, no ordenamento jurídico, cláusulas/normas gerais e conceitos indeterminados, vagos ou abstratos, a serem interpretados no caso concreto.
Diante disso, surgiu a teoria das janelas abertas idealizadas por Judith Martins Costa. Por essa teoria, na atual codificação material, é possível que se perceba um sistema aberto, um sistema de janelas abertas, que permitem uma constante incorporação e solução para novos problemas. Assim, é o magistrado, aplicador da lei, que tem a incumbência de preencher esses espaços abertos, de conceitos indeterminados, com o conceito social da época.
Destarte, os direitos da personalidade, apresentados de maneira exemplificativa pelo Código Civil de 2002, englobando o direito ao nome, à privacidade, à honra, à imagem e ao corpo, têm a finalidade de tutelar características inerentes à condição humana nas relações particulares, em que outrora, predominavam as questões patrimoniais, familiares e contratuais em detrimento do indivíduo.
A partir da centralização da pessoa humana nos ordenamentos jurídicos e da positivação dos direitos fundamentais sedimentam-se juridicamente os direitos da personalidade sendo tutelados na esfera privada nas relações entre indivíduos, uma vez que os direitos da personalidade são absolutos no sentido erga omnes, surtindo seus efeitos entre o indivíduo e outros indivíduos, a coletividade e o Estado.
Para o estudo dos direitos da personalidade é necessário compreendermos de onde esses direitos são originários, a teoria majoritária, para essa teoria os direitos da personalidade decorrem do jusnaturalismo, desse modo, o direito à vida não decorre de leis e trata-se de uma dádiva dada por Deus. Assim, são considerados direitos naturais.
Para Rubens Limongi França:
O fundamento próximo da sua sanção [dos direitos de personalidade] é realmente a estratificação no direito consuetudinário ou nas conclusões da ciência jurídica. Mas o seu fundamento primeiro são as imposições da natureza das coisas, noutras palavras, o direito natural. (FRANÇA, 1977, p.142)
O autor Carlos Alberto Bittar que capitania a teoria majoritária esclarece que:
São os direitos que transcendem, pois, o ordenamento jurídico positivo, porque ínsitos à própria natureza do homem, como ente dotado de personalidade. Intimamente ligados ao homem, para sua proteção jurídica, independentes de relação imediata com o mundo exterior ou outra pessoa, são intangíveis, de lege lata, pelo Estado, ou pelos particulares (BITTAR, 1999, p. 11).
Para os neo-positivistas os direitos da personalidade são uma construção positivista e inerentes ao ordenamento jurídico, para tal corrente esses direitos nada mais são que uma evolução cultural, uma vez que, cada sociedade ao longo da história possuía sua particularidade.
Pontes de Miranda defende que:
Os direitos de personalidade não são impostos por ordem sobrenatural, ou natural, aos sistemas jurídicos; são efeitos de fatos jurídicos, que se produziram nos sistemas jurídicos quando, a certo grau de evolução, a pressão política fez os sistemas jurídicos darem entrada a suportes fáticos que antes ficavam de fora, na dimensão moral ou na dimensão religiosa.(MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado: op. cit., p. 7.).
Desse confronto entre as correntes jus naturalista e jus positivista nasceram duas novas teorias: a teoria pluralista e a teoria monista.
Para a teoria pluralista, apresenta que dentro dos direitos da personalidade existem vários direitos como, por exemplo, o direito à vida, à honra, à integridade física, sendo justo que para cada direito existirá uma proteção diferente.
Os direitos da personalidade conforme a teoria monista aduz que existe apenas um direito no qual seria capaz de abranger várias situações. Essa teoria conclui que não existem direitos alheios uns aos outros e sim um único: o direito da personalidade.
No momento da criação de determinados direitos não é suficiente que eles sejam previstos no ordenamento jurídico, se torna de extrema importância que esses direitos possam ser protegidos a cada titular.
Nesse sentido Elimar Szaniawski afirma que:
Além da autodefesa da personalidade, que todos possuímos, o art. 12 do Código Civil tutela amplamente os direitos da personalidade, outorgando meios necessários para que qualquer pessoa, que esteja na iminência de sofrer um atentado a direito da personalidade, possa fazer cessar a ameaça ou a lesão e requerer perdas e danos (SZANIAWSK, 2005, p. 248).
Na mesma linha, leciona Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:
Para tanto, afirma o art. 12 do Diploma Substantivo que a tutela (proteção) jurídica dos direitos da personalidade, em sede civil (sem prejuízo da tutela penal), consubstanciar-se-á por meio de medidas repressivas – da chamada tutela clássica da personalidade – e, por igual, de medidas preventivas – a chamada tutela específica (que pode ser individual ou coletiva, reguladas, respectivamente, pelos arts. 497 do Código de Processo Civil e 84 do Código de Defesa do Consumidor). […] Vale dizer, além da tutela preventiva e da tutela ressarcitória dos direitos da personalidade, sobreleva a pontuar a possibilidade de tutela reintegratória, na forma específica, cujo objeto é reconstituir naturalmente a situação anterior ao ilícito já consumado, sem que o ofendido necessite se utilizar do mecanismo de reparação (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 212-214).
Luiz Guilherme Marinoni mostra que “tutela não é apenas a sentença, mas o conjunto de meios de que dispõe o direito processual para atender adequadamente às disposições do direito substancial, ou seja, “o conjunto de medidas adequadas à proteção do bem da vida buscado pelo jurisdicionado no processo” (MARINONI, 2015, p. 214-215).
No Brasil, existem três importantes tutelas para proteção desses direitos elencados, qual seja: (1) Tutela Ressarcitória, (2) Tutela Inibitória, (3) Tutela Restauratória.
A Tutela Ressarcitória objetiva que a vítima de dano causado aos seus direitos possa ser indenizada, uma vez que, é impossível o retorno ao status quo ante. O causador do dano é obrigado a repará-lo por meio do seu patrimônio, assim servindo como uma forma de punir e conscientizar o ofensor.
Importa salientar que os direitos da personalidade são extrapatrimoniais, ou seja, existe uma grade dificuldade em mensurar valores monetários, dessa maneira a Tutela Ressarcitória tem seu âmbito reduzido nesses direitos, uma vez constatada a difícil reparação.
Para os direitos da personalidade não é importante somente reparar os danos que já foram causados, mas também na prevenção de atos lesivos, a tutela inibitória procura imaginar situações futuras para que exista um determinismo legal de como proceder e quais os limites impostos.
Podemos encontrar prevista a tutela inibitória, incluindo a cessatória, no caput, do art. 12 do Código Civil e no parágrafo único do art. 497 do CPC, que são aplicáveis na proteção dos direitos da personalidade, objetivando-se evitar ou cessar ilícitos que lesem a integridade física, psíquica moral, espiritual e intelectual da pessoa humana.
Não obstante que a tutela cessatória seja integrada pela inibitória, a tutela cessatória é mais voltada para impedir a reiteração ou continuação da prática de ilícito ao direito material. Desse modo, a tutela cessatória compreende a uma série de medidas utilizadas para extinguir a continuação do dano que se perpetua no tempo.
Quando ocorre dano, existe a possibilidade de aquele bem jurídico possa ser restaurado, a tutela restauratória funciona para que essa reparação seja por meios não pecuniários e sim a restauração do status quo ante.
Na seara dos direitos da personalidade, o ato lesivo pode gerar lucro a quem efetuou o dano, nesse caso quando ocorre que o lucro foi superior ao dano, é possível que seja removido o lucro do patrimônio do ofensor que teve proveito econômico pela exploração indevida dos direitos da personalidade outro indivíduo.
Assim sendo, definimos os direitos da personalidade como direitos que versam sobre a própria pessoa e seus reflexos e que são reconhecidos à pessoa humana e atribuídos à pessoa jurídica.
3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A PROTEÇÃO DA PERSONALIDADE NO ÂMBITO DO PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE
A origem histórica do conceito de dignidade (dignitas) remete à Antiguidade, baseada em diversos fundamentos teológicos e filosóficos, todavia, somente após os impactos das duas grandes guerras, o tema dignidade humana ganhou proporções globalizadas e dimensão jurídica considerável (AGOSTINHO e HERRERA, 2011). Com o fim da Segunda Guerra Mundial, diante da barbárie cometida pelos nazistas e fascistas, houve maiores interesse em proteger os direitos humanos e fundamentais, tomando grandes proporções dentro do mundo jurídico, dando ensejo à criação de vários instrumentos de defesa, como os Pactos Internacionais, assim como a criação da ONU, a fim de resguardar o ser humano.
A definição jurídica do conceito de dignidade humana, apesar de considerar as diferenças culturais predominantes em certo tempo e lugar, contém elementos essenciais, quais sejam, o valor intrínseco da pessoa humana, a intersubjetividade e a autonomia (BARROSO, 2014). Destarte, tratar-se-á da autonomia, já que ela se constitui em elemento essencial da dignidade humana.
A Declaração Universal da Organização das Nações Unidas foi um dos primeiros documentos que, de forma concreta, nos forneça as ideias bases para a formulação do conceito de dignidade da pessoa humana em seu artigo 1º, no qual estabelece que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.” (NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL. Declaração dos Direitos Humanos)
O reconhecimento jurídico da dignidade humana pressupõe a proteção dos direitos da personalidade. O artigo. 11 do referido Código prevê que os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.” Neste sentido, a intransmissividade determina que os direitos da personalidade não podem ser transferidos a terceiros, uma vez que possuem natureza personalíssima, já a irrenunciabilidade, consiste na impossibilidade renunciar a estes direitos ainda que sua violação diga respeito tão somente ao indivíduo e seus impactos incidam exclusivamente sobre este. Tal característica tem a finalidade de garantir a tutela integral da dignidade humana.
Entretanto, os direitos da personalidade não são absolutos, podem ser relativizados atendendo determinados critérios no caso concreto, pois as autolimitações do exercício dos direitos da personalidade são possíveis tão somente quando atenderem exclusivamente aos interesses de seu titular, devendo ainda ser uma renúncia temporária e nunca definitiva e com a finalidade de ampliar a compreensão de dignidade humana e cumprir o propósito de realização dos direitos da personalidade do seu titular.
Neste viés, é evidente que, as características dos direitos da personalidade têm íntima relação com a dignidade, pois impedem que a vontade do titular legitime o desrespeito à condição humana do indivíduo. Isto não significa que para os direitos da personalidade o consentimento seja irrelevante, mas a limitação ao consentimento ocorre em favor da ordem pública, ou seja, não permite a supressão do bem maior, da vida. O consentimento é observado em alguns direitos da personalidade, por exemplo, consentimento de intervenções cirúrgicas ou de tratamentos médicos que ocorram risco de vida ou grande sofrimento (art. 15, do Código Civil), doação de órgãos e tecidos (Lei n. 10.211, de 2001).
Destaca-se que a observação das consequências jurídicas decorrentes dos direitos da personalidade deve ser feita à luz da dignidade humana, evitando que o indivíduo seja menosprezado pelo Estado, por outros poderes e por outras pessoas. O princípio da dignidade humana também se refere à condição mínima de recursos materiais, capaz de prover a subsistência, resultando, assim, em obrigação do Estado. Dessa forma, verifica-se que a base do Estado moderno é o princípio da dignidade humana. É o reconhecimento de que o homem é indivíduo e cidadão, sendo sujeito das relações jurídicas e, portanto, o fim maior do direito. A ideia de princípio fundamental indica que a dignidade é um dos pontos centrais da Constituição Federal, Lei Maior do Estado Democrático de Direito. Este princípio irradia seu conteúdo sobre as normas determinadas. A relação da dignidade humana com os direitos da personalidade é primordial para assegurar ao indivíduo o seu status de pessoa e não, de coisa.
A dignidade é a referência da representação do valor do ser humano. Sob este enfoque, a comunidade política organizada afirma solenemente a sua adesão à ideia de que cada ser humano constitui um valor, reconhece a igualdade deste princípio a todos os seres humanos e funda suas instituições sobre essa representação. (ALEXANDRINO, José de Melo, 2008, p. 507).
O princípio da dignidade aponta diretrizes nos direitos da personalidade quanto à impossibilidade de degradação do ser humano. Não é possível a redução do homem à condição de coisa, ou seja, mero objeto. O reconhecimento jurídico do princípio da dignidade humana pressupõe a salvaguarda dos direitos da personalidade, construindo um mínimo imprescindível a cada pessoa, que refletem em todos os aspectos da sua vida: saúde, integridade física, nome, imagem e reserva sobre a intimidade de sua vida privada. Destes direitos emanam outras questões que ainda não foram consolidadas pela legislação e que começam a figurar nas leis esparsas, como: questões relativas à vida em formação, reprodução humana e manipulação genética da pessoa.
Já o termo autonomia deriva do grego “auto” (de si mesmo) e “nomos” (lei), cujo significado está relacionado com independência, liberdade ou autossuficiência. Um conceito utilizado em diversas áreas de conhecimento, entre elas a educação, bioética, política e a filosofia. Filosoficamente, o conceito de autonomia confunde-se com o de liberdade, consistindo na qualidade de um indivíduo de tomar as suas próprias decisões com base na razão. No caso, o indivíduo não é condicionado a agir, mas sim impulsionado por uma autoexigência.
Para o filósofo Kant, não há dignidade sem autonomia, pois a autonomia é o fundamento o da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional (KANT, 2008, p. 79). Ou seja, na concepção kantiana, há uma ligação entre vontade e liberdade, não sendo capazes de sofrer influências heterônimas.
Para Barroso, a autonomia “corresponde à capacidade de alguém tomar decisões e de fazer escolhas pessoais ao longo da vida, baseadas na sua própria concepção de bem, sem influências externas indevidas” (BARROSO, 2014, p. 82). Trata-se da possibilidade que o indivíduo possui de decidir os caminhos de sua vida, conforme a sua vontade, sendo essa livre de pressões ou condicionantes, nas mais diversas searas, desde uma escolha política, como em quem votar nas eleições, até mesmo escolhas pessoais, relacionadas ao matrimônio, por exemplo.
Maria Helena Diniz, jurista brasileira, corrobora com esse entendimento trazendo o conceito de autonomia da vontade como “o poder de estipular livremente, como melhor lhes convier, mediante acordo de vontade, a disciplina de seus interesses, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica.” Curso de Direito Civil Brasileiro, 2011, (p. 40).
Surge a figura do dirigismo contratual que se caracteriza pela intervenção estatal onde começa a impor limites na autonomia, pois as relações privadas passam a ser cada vez mais ligadas ao interesse da coletividade. A autonomia é o conteúdo ético do princípio da dignidade humana. Ela é o fundamento que determina a liberdade de um indivíduo, permitindo-o fazer suas próprias escolhas, de modo a gerir a sua vida conforme seu livre arbítrio (BARROSO, 2014).
Na seara jurídica, especificamente no tocante dos Direitos da Personalidade, observa-se muitas vezes casos de difícil resolução vez que existem normas constitucionais conflitantes, para solução dessas situações é utilizada a técnica da ponderação, criada pelo jurista alemão Robert Alexy que consiste em um mecanismo de efetivação da constitucionalização do Direito.
O Código Cível no seu artigo 489, § 2º impõe que no caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão”.
Nessa perspectiva, a fundamentação, que se dá por meio da exposição dos motivos que justificam a decisão, “deverá ser apresentada de forma coerente, completa e clara, capaz de permitir a identificação da imparcialidade do julgador, o controle da sua legalidade, assim como aferir se a garantia de defesa foi exercida” (MAZZEI, 2015, p. 215)
A técnica da ponderação pode ser dividida em três etapas. Na primeira delas, o intérprete identifica as normas que podem ser aplicadas àquele caso específico e os eventuais conflitos entre elas.
A segunda etapa consiste em examinar as particularidades do caso concreto, bem como sua interação com os elementos normativos. Por fim, na terceira e última etapa, tudo o que foi coletado na primeira e na segunda etapa será analisado conjuntamente, ou seja, serão examinadas conjuntamente as regras aplicáveis ao caso concreto e as particularidades do caso concreto. Dessa forma, será analisado o peso que deve ser dado a cada elemento do caso, bem como quais regras devem ser consideradas. Também será analisada a intensidade com que determinada regra deve prevalecer sobre a outra, para que a solução encontrada seja a mais adequada possível para aquele caso em particular. Todas as etapas desta técnica devem ser baseadas na proporcionalidade e razoabilidade.
Ana Paula de Barcellos expõe que:
“A ponderação é a técnica jurídica de solução de conflitos normativos que envolvem valores ou opções políticas em tensão, insuperáveis pelas formas hermenêuticas tradicionais” (Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisdicional.Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 23).
Barroso também afirma que:
A ponderação consiste em atribuir pesos aos princípios em conflito, de acordo com as circunstâncias fáticas e jurídicas, realizando concessões recíprocas, preservando ao máximo os valores conflitantes, embora, um dos princípios conflitantes deva prevalecer (BARROSO, 2005, p. 83-84).
Conforme o julgamento da ADI 815/DF, o STF tomou como entendimento que inexiste qualquer relação de hierarquia entre as normas constitucionais, desse modo, quando normas principiológicas se mostrarem colidentes deve-se optar por uma delas.
A transfusão sanguínea é um método utilizado por profissionais da área da saúde para tratar pacientes que sofreram grandes perdas de sangue. Ocorre que muitos indivíduos pertencentes a religião testemunha de Jeová se negam a permitir o aludido procedimento.
Observa-se que nessas situações existem dois princípios constitucionais que estão em conflito, o direito à liberdade de crença e o direito à vida. Aos profissionais de saúde que optarem ou não por esse método podem gerar consequências nas esferas penal, civil e administrativo.
Com base no artigo 15 do Código Civil, ninguém pode ser obrigado a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. Assim sendo, é assegurado ao paciente o princípio da autonomia da vontade (consentimento informado), impondo aos profissionais de saúde que não atuem sem anterior autorização do próprio interessado.
De acordo com o caput do artigo 5° da Constituição Federal de 1988 o Direito à vida é garantido a todos os brasileiros e aos estrangeiros residentes no País. No mesmo artigo, nos incisos VI e VIII, a liberdade de crença religiosa é assegurada.
Em março de 2023 entrou em vigor a Lei 14.443/2022 que reduziu para 21 anos a idade mínima de homens e mulheres para a esterilização voluntária e acabou com a exigência do consentimento do conjunge para realização da laqueadura e vasectomia. Antes os procedimentos só poderiam ser feitos aos 25 anos.
A laqueadura é uma cirurgia que dura aproximadamente 40 minutos, bastante buscado por mulheres para esterilização. Nesse procedimento, as tubas uterinas são cortadas e suas extremidades são amarradas, impedindo assim o processo de fecundação. Algumas das vantagens desse método é que a mulher não precisará se atentar ao uso de contraceptivos, nem na alteração do seu ciclo menstrual, no aumento e perda de apetite.
Já a vasectomia é uma pequena cirurgia feita com anestesia local que impede o transporte do espermatozoide. O procedimento leva de 15 a 20 minutos e não há necessidade de internação. Após a cirurgia, é necessário utilizar outro método contraceptivo durante, pelo menos, 90 dias.
A Distanásia trata-se de um prolongamento exagerado da morte da pessoa. Muitas vezes existem pacientes que ensejam se recuperar de uma doença a todo custo e assim em vez de permitir uma morte natural, prolonga o seu sofrimento.
Conforme Maria Helena Diniz,
“Trata-se do prolongamento exagerado da morte de um paciente terminal ou tratamento inútil. Não visa prolongar a vida, mas sim o processo de morte” (DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001)
Na situação da ortotanásia o paciente encontra-se em uma fase terminal, ou seja, no processo natural de morte e de forma autorizada o médico contribui para que este estado siga o seu curso natural. Etimologicamente, a palavra “ortotanásia” significa “morte correta”, onde orto = certo e thanatos = morte.
Barroso e Martel tem o entendimento de que tal posicionamento
Valoriza o indivíduo, sua liberdade e direitos fundamentais […] a prevalência da noção de dignidade como autonomia admite, como escolhas possíveis, em tese, por parte do paciente, a ortotanásia, a eutanásia e o suicídio assistido (BARROSO E MARTEL, 2010, p. 212).
No corrente ano de 2006, foi publicada pelo Conselho Federal da Medicina a Resolução n° 1.805 que objetivava que o médico pudesse limitar ou até mesmos suspender procedimentos que prolongassem a vida do paciente em estado terminal.
Acerca da eutanásia, para melhor compreensão é necessário fazer a distinção entre eutanásia ativa e a eutanásia passiva. A ativa é quando o paciente solicita ao médico para que o mesmo faça administração intravenosa de substância letal, já a passiva é um ato de omissão, ou seja, quando o médico suspende os tratamentos ainda disponíveis que poderiam beneficiar o paciente.
No Brasil, não existem legislação que assegure a eutanásia e assim TAVARES (2008, p. 50) entende que a punição do instituto tem base legal, partindo-se de uma ponderação de princípios onde a inviolabilidade do direito à vida deve preponderar sobre a dignidade: “Assim, de um lado, não se pode validamente exigir, do Estado ou de terceiros, a provocação da morte para atenuar sofrimentos. De outra parte, igualmente não se admite a cessação do prolongamento artificial (por aparelhos) da vida de alguém, que dele dependa. Em uma palavra, a eutanásia é considerada homicídio. Há, aqui, uma prevalência do direito à vida, em detrimento da dignidade.
4 O “CORPO OBJETO” NA ARTE
A Body Art (arte do corpo) é uma forma de expressão corporal que consiste na utilização do corpo como trabalho artístico. Desse modo, o corpo do artista passar a ser o objeto da manifestação, sendo usada para arte como protesto. Essa tendência surgiu nos Estados Unidos e Europa, na década de 60.
Cumpre memorar que os adeptos do body art, não se limitavam apenas em pintar o corpo, os artistas transformavam o corpo em uma verdadeira escultura viva, provocando mutilações, queimaduras e tatuagens para gerar uma mensagem que pudesse impactar o público, ao passo que promovem uma ruptura em preceitos sociais.
Embora ser datado da década de 60, o Body Art sempre esteve presente em civilizações e culturas ao logo da história, a exemplo do homem neandertal, que antes de aprender a usar as paredes da caverna como tela, utilizava-se do seu corpo para fazer pinturas com significados para celebrações.
Essa forma de manifestação corporal se estende a sociedade, de modo que é crescente a busca por estúdios de tatuagem para serem feitas artes no corpo. Uma forma de expressão que se torna cada vez mais comum no Brasil é a técnica conhecida como “Eyeball Tattoo” que consiste em tatuar os olhos, mesmo que isso possa causar algo prejudicial aos olhos.
O artista austríaco Rudolf Schwarzkogler, tinha uma forma bastante peculiar em retratar a sua arte, sua técnica consistia em obras sadomasoquistas, tendo em vista que o mesmo cometia automutilação para produzir fotografias em ambientes horrendos. Outras formas de expressão eram utilizadas pelo perfomista, que seriam ingerir urina e até mesmo fezes, tais performasses geram um impacto ao público oque era exatamente o desejo do artista, gerar medo e angústia.
Outra adepta a essa prática é Marina Abramovic, nascida em Belgrado, na Sérvia, antiga Iugoslávia, em 1946, sendo considerada uma das principais artistas performáticas contemporâneas que usa seu próprio corpo como sujeito, objeto e meio de seu trabalho no início dos anos 1970, explorando as relações entre o artista e a plateia, os limites do corpo e as possibilidades da mente. Para Marina, o corpo é visto como espaço de exploração artística, mesmo que sua saúde possa ser comprometida por causa disso. Suas performances costumam ser de longa duração e muitas vezes submetem a artista a condições extremas de dor e perigo.
Analisando sua performance mais famosa de nome “Rhythm 0”, em 1974, Marina se pôs à mercê do público da Galleria Arte Contemporânea Napoli Campania durante seis horas e disponibilizou 72 objetos para serem utilizados pelo público da maneira que eles bem entendessem no seu corpo. Entre os objetos selecionados pela artista haviam flores, penas e óleos, perfume, comida, vinhos, entretanto ela também ofereceu ao público facas, tesouras, lâminas e até mesmo uma arma carregada. A artista se colocou como um objeto a ser usado e manipulado, sem qualquer chance de reação e assumiu a responsabilidade sobre qualquer coisa que pudesse acontecer. As instruções eram as seguintes: “Há 72 objetos na mesa que se pode usar em mim como quiser. Performance: Eu sou o objeto. Durante esse período eu me responsabilizado totalmente.”
A priori, o público brincou com a rosa, beijou, mexeu seus braços como uma boneca, enquanto a artista permanecia imóvel. Em seguida, as pessoas começaram a ficar mais violentas. Fizeram cortes em sua pele, chuparam sangue de seu pescoço, até que a arma carregada foi colocada em sua mão, com seu próprio dedo no gatilho. E Marina continuava imóvel, tentando descobrir até que ponto o público, que já havia se tornado parte da obra, iria. Houve uma briga entre os presentes. Parte deles se opunha aos que brincavam com a arma. O galerista interviu e jogou a arma pela janela. Em seguida, os participantes continuaram de maneira violenta: suas roupas foram cortadas, espinhos espetados em sua barriga. Os relatos da época é que um homem chegou a colocar a arma na mão de Marina e a fez apontar para o próprio pescoço, fora os cortes e abusos sexuais que a artista sofreu durante a performance.
“Eu me senti realmente violada: eles cortaram minhas roupas, enfiaram espinhos de rosa no meu estômago, uma pessoa apontou a arma na minha cabeça”, contou Marina, relembrando as últimas duas horas de sua obra.
Entre outras performances, a chamada “Imponderabilia” (1977) também consistia na exposição exacerbada do próprio corpo. Nessa série de obras, Marina, juntamente com seu ex parceiro de vida, Ulay, ambos ficaram um de frente para o outro, nus, na porta da galeria Galleria Communale d’Arte Moderna, em Bolonha na Itália, invariavelmente para que as pessoas tivessem acesso ao prédio teriam que passar por eles e tocar em seus corpos, como uma porta viva. A reação do público foi diversa: alguns passaram; alguns hesitaram bastante; alguns, no entanto, passaram por várias vezes. “Enfrentar a dor, o sangue, os limites mentais e físicos do corpo, são elementos constantes das atuações de Abramović durante esses anos3” (Demaria, 2004: 297).
Em paralelo a isso, um caso muito peculiar para o estudo da autonomia privada sob o próprio corpo aconteceu em 1991, na França, na cidade de Morsangsur-Orge. Um cidadão que tinha nanismo chamado Manuel Wackenheim que era funcionário de um bar passou a deixar que os consumidores do estabelecimento realizassem uma competição de quem o lançava em uma distância maior, desde que o pagassem determinado valor em dinheiro. Logo após tomar conhecimento desta prática, o prefeito da cidade com base no artigo 3º da Convenção Europeia para a proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais passou a proibir qualquer competição desta natureza.
O indivíduo, no entanto, acreditava que estava apenas exercendo o seu trabalho e assim o Estado não poderia intervir no seu direito laborativo, assim sendo, o cidadão mostrou o desejo de abdicar de qualquer tutela estatal.
Noutro momento, o Tribunal Francês decidiu que a dignidade da pessoa humana é um elemento fundamental para manutenção da ordem pública e seguindo assim, visa garantir a proteção da dignidade humana contra qualquer escravização ou ato atentatório aos direitos humanos.
É de extrema valia relembrar que a decisão do Tribunal Francês “é considerada um marco na proteção dos direitos fundamentais, porque ela afirma que o respeito à dignidade da pessoa humana é parte da ordem pública que o poder de polícia tem a finalidade de assegurar”. (TABORDA, 2008, p. 187).
Mais uma vez o Sr. Wackenheim não compreendeu dessa forma e recorreu novamente, mas desta vez a Comissão de Direitos Humanos da ONU, reforçando sua tese de que a proibição desta pratica violava seu direito ao trabalho.
A Comissão julgou o recurso apelado pelo Sr. Wackenheim e manteve a decisão do Tribunal Francês, de que o titular não teria sofrido qualquer violação no seu direito.
Mesmo diante dos argumentos apresentados pelo Sr. Wackenheim, tanto o próprio Conselho de Estado francês como o Comitê de Direitos Humanos da ONU, reconheceram que o lançamento de anão ofende a dignidade humana, a despeito de sua autonomia privada, ou seja, de sua liberdade em consentir com aquela “profissão”. (MADEIRA, 2011, p. 26).
O Estado tem o dever de proteção e garantia de direitos essenciais ao indivíduo, portanto é imprescindível que em determinadas situações, onde mesmo que o titular enseja sua vontade, exista a compreensão de que esse desejo possa ser atentatório a ele mesmo e assim ferindo o princípio da dignidade humana.
Diante disso, com essas alterações corporais, o corpo vira, portanto, um instrumento
a ser modificado e manipulado, apto a satisfazer e expressar seus anseios pessoais, relevado a exaltação da personalidade, nas quais são expressos os seus desejos e convicções pessoais. Portanto, faz-se necessário verificar a legitimidade dos atos de disposição sobre o próprio corpo, tendo em vista o conflito entre a liberdade e os demais princípios formadores da dignidade humana, tais como a integridade, solidariedade e igualdade.
5 CONCLUSÃO
A presente pesquisa resultou na ratificação a respeito do reconhecimento da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito, previsto no art. 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988, expressamente assegurado também no Novo Código Civil de 2002, inserindo limites entre o Direito da Personalidade e o Princípio da Autonomia da Vontade, sendo ambos tutelados pelo ordenamento jurídico.
Assim sendo, mesmo com a imersão da Dignidade da pessoa humana como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito, a autonomia continuou a ser fator essencial de existência dos atos jurídicos, assumindo a função de integrar as liberdades coexistentes, de acordo com os limites postos no ordenamento jurídico. Nesse novo prisma, desencadeou-se a constitucionalização do Direito Privado e fez com que todos os princípios básicos do Direito Civil emigrassem do Código Civil para a Constituição, passando a ocupar posição central no ordenamento jurídico, onde se vinculam a uma interpretação baseada nos princípios fundamentais da Carta Magna.
Dessa forma, o exercício da autonomia passou a ser limitado pela ordem jurídica contemporânea, tendo como objetivo evitar o abuso de direito, devendo seguir e respeitar uma espécie de escala de intensidade que varia de acordo com cada situação, procedendo-se à ponderação entre os princípios constitucionais e os direitos fundamentais discutidos no caso concreto. Isso porque somente por meio da ponderação é possível constatar se a interferência dos direitos fundamentais na autonomia privada ocorreu de forma legítima, ou vice-versa.
Ademais, a pesquisa também corroborou com o entendimento de que, considerando que os direitos fundamentais, assim como a própria autonomia privada, representam facetas de concretização do princípio da dignidade humana, devem ter seu núcleo essencial respeitado, de modo que, se o núcleo essencial de determinado direito fundamental mostrar-se prejudicado no caso concreto, o indivíduo não terá condições de exercer plenamente sua vontade, razão pela qual deverá ter restringido o exercício da autonomia privada até que se restabeleçam, integralmente, os direitos fundamentais mais urgentes e necessários (BARROSO, 2013)
Assim sendo, é de suma importância ponderar, em caso de conflitos, os direitos que estão em litigo com outros valores existentes no ordenamento jurídico, a exemplo do que ocorre com os limites decorrentes da proteção à dignidade humana, da proteção aos direitos da personalidade e da proteção aos direitos fundamentais, prevalecendo, acima de todos, o direito à vida, sendo o maior bem jurídico tutelado, e, dessa forma, por ser essencial ao ser humano condiciona os demais direitos.
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