REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8108898
Fernando Fernandes1
Resumo
Este estudo tem como objetivo explorar a perspectiva decolonial no contexto do ensino de Libras e analisar o Referencial Curricular Amapaense (RCA), em relação às políticas linguísticas para educação de surdos. Por meio de uma análise crítica, busca-se repensar as abordagens linguísticas e decoloniais, levando em consideração as demandas e necessidades específicas dos surdos. Além disso, pretende-se refletir sobre como o documento aborda essas questões, identificando possíveis lacunas ou pontos de melhoria nas políticas e práticas educacionais relacionadas ao ensino de Libras e à inclusão de surdos. Para alcançar esses objetivos, foram analisados os discursos presentes no RCA, identificando as concepções, diretrizes e abordagens presentes no documento. Estabeleci diálogos com autores que abordam a temática do ensino de línguas para surdos a partir de perspectivas decoloniais e dos Estudos Culturais. Partindo da perspectiva decolonial, hipotetiza-se que o referencial apresenta limitações na promoção de espaços inclusivos e adequados para a educação de surdos, não contemplando de forma abrangente as demandas linguísticas e educacionais da comunidade surda. O estudo visa problematizar a capacidade do RCA de proporcionar espaços de existência para a educação de surdos e seus processos, bem como refletir sobre as possibilidades de atendimento das demandas surdas no contexto do documento, considerando as necessidades educacionais e linguísticas dos indivíduos.
Palavras-chave: Ensino de Línguas, Decolonialidade, Libras, BNCC, RCA.
Introdução
A inclusão educacional é um desafio constante e crucial em sociedades que buscam promover igualdade e acesso equitativo à educação para todos os seus cidadãos. No contexto do ensino da Libras, essa busca por inclusão ganha uma dimensão ainda mais significativa, uma vez que a surdez é uma experiência sensorial e linguística que demanda abordagens educacionais específicas e sensíveis, tanto para o ensino de Libras como primeira língua para surdos, quanto segunda língua para ouvintes.
Este artigo propõe problematizar o RCA e seu potencial de proporcionar espaços de existência para a educação de surdos e seus processos. Através da análise do discurso presente nesse referencial, reflete sobre como as demandas e necessidades dos surdos podem ser atendidas dentro desse contexto, considerando também a relação do RCA com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
A importância desse tema reside na necessidade de promover uma educação acessível e de qualidade para os estudantes surdos, reconhecendo e valorizando a diversidade linguística e cultural dessa comunidade. A garantia do direito à educação para os surdos implica não apenas no acesso aos conteúdos curriculares, mas também no desenvolvimento da identidade surda, na valorização da Língua Brasileira de Sinais (Libras) e no fortalecimento das conexões com a comunidade surda.
Nesse sentido, é fundamental questionar os possíveis pontos de vista presentes no RCA em relação ao indivíduo surdo e suas necessidades educacionais e linguísticas. Estabeleço diálogos entre diferentes visões, tanto inclusivas, quanto culturais, sobre a surdez, considerando a perspectiva decolonial e as lutas históricas dos surdos por seus direitos.
Ao refletirmos sobre essas questões, buscamos contribuir para o aprimoramento das políticas linguísticas e práticas pedagógicas no Ensino da Libras (EL), visando a construção de um ambiente escolar mais inclusivo, acolhedor e que promova o pleno desenvolvimento dos estudantes surdos. Convidamos você, leitor, a adentrar nessa discussão e a refletir sobre as potencialidades e desafios presentes no EL, para de surdos e não surdos no contexto Amapaense, olhando para o seu Referencial Curricular.
1. JORNADA METODOLÓGICA
A pesquisa proposta aqui, adotou uma abordagem multidisciplinar que combina diferentes métodos e técnicas para realizar uma análise crítica do documento. A metodologia foi composta pelos seguintes passos bem como Barbosa (2019), realizou:
Inicialmente, uma extensa pesquisa bibliográfica para embasar teoricamente o estudo. Consultando livros, artigos científicos, teses, dissertações e outras fontes relevantes que abordem os temas da decolonialidade, ensino de Libras, análise dos documentos educacionais e políticas linguísticas para surdos. Essa pesquisa forneceu uma base para a compreensão das teorias e conceitos centrais.
Além disso, foi conduzida uma análise documental minuciosa dos documentos educacionais relevantes, como o Referencial, bem como outros documentos relacionados à educação de surdos e políticas linguísticas desse métier. A análise permitiu identificar os posicionamentos, diretrizes e abordagens presentes nesses documentos em relação ao ensino da Libras e às políticas de inclusão de surdos. Destacou-se possíveis lacunas, contradições ou aspectos que demandam atenção e reflexão crítica.
Para embasar a reflexão crítica e enriquecer a análise, realizo um diálogo com autores que discutem a decolonialidade, (MIGNOLO, 1995; QUIJANO, 1992; SANTOS, 2007) para o ensino de línguas a partir de uma perspectiva crítica. As obras abordam a relação entre linguagem, cultura, identidade e poder, que somadas a estudos que analisam as políticas e práticas educacionais no contexto dos surdos. Esses autores serão fundamentais para embasar a reflexão crítica sobre os documentos analisados e para fornecer diferentes perspectivas teóricas.
2. O QUE É O REFERENCIAL CURRICULAR AMAPAENSE?
O RCA é um documento de caráter legal e orientador que define um conjunto de conhecimentos adequados ao contexto orgânico e progressivo dos estudantes do Amapá. Ele instrui o currículo a ser trabalhado pelos professores e estudantes da Educação Básica, abrangendo as etapas da Educação Infantil e do Ensino Fundamental.
No site da Secretaria de Educação do Estado do Amapá (SEED/AP), é possível acessar os documentos disponíveis, incluindo os componentes curriculares do Ensino Médio, disponibilizados recentemente (disponivel em: https://nte.seed.ap.gov.br/rca/). No entanto, neste texto, o foco não será o estudo desses componentes curriculares ou do Ensino do Referencial do Médio.
Os documentos disponíveis no site incluem o RCA em E-book para a Educação Infantil e o Ensino Fundamental, bem como os componentes curriculares específicos, como Língua Portuguesa, Arte, Educação Física, Língua Inglesa, Matemática, Ciências, História, Geografia e Ensino Religioso. É importante observar que, embora o referencial tenha sido concebido para abranger as etapas da Educação Infantil e do Ensino Fundamental em sua totalidade, ainda não foi disponibilizado um componente curricular específico para o ensino da Libras. No entanto, é possível encontrar a Libras sendo abordada como um produto cultural no componente de Língua Portuguesa nos anos finais do Ensino Fundamental.
Figura 1: Documentos gerais e por componentes do Referencial
Fonte: https://nte.seed.ap.gov.br/rca/ acesso em 12 jun de 2023
O documento possui uma conversa intimamente ligada à Lei de Diretrizes de Base (LDB) e a Base Nacional Comum (BNC) e uma parte diversificada que vem buscar atender as necessidades locais e situacionais do Amapá e seus municípios.
(…) apresenta aqui à sociedade o referencial Curricular Amapaense, o qual foi elaborado através do regime de colaboração entre Estado e Municípios, e atenderá a todas as escolas públicas estaduais e municipais) e privadas, da Educação infantil e fundamental nos anos iniciais aos anos finais. Este documento não faz distinção entre as redes, mas apresenta um conjunto de saberes pedagógicos sustentados pela base nacional comum curricular (BNCC) que serão fundamentais na vida escolar de cada estudante, respeitando a autonomia das escolas. (RCA, 2019 p. 08)
De acordo com o documento em questão, são estabelecidos os conhecimentos, competências e habilidades que se espera que todos os estudantes desenvolvam ao longo da Educação Básica. Esse processo foi fundamentado em concepções éticas, estéticas e políticas, baseadas nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. A BNCC está alinhada com iniciativas que visam promover uma educação nacional voltada para a formação integral do indivíduo e para a construção de uma sociedade mais justa, democrática e inclusiva (BRASIL, 2017).
É importante ressaltar que a implementação da BNCC é objeto de uma discussão ampla em nível nacional, que abrange diversas especificidades, inclusive aquelas relacionadas a diferentes sujeitos e grupos. Nesse contexto, surge a questão de como essas especificidades são abordadas no documento. Isso coloca ainda mais desafios no ensino da Libras, um tema já permeado por lutas e busca por direitos na área. Conforme argumenta Perlin (1998), é necessário refletir sobre essas questões e problematizá-las.
Dessa forma, o RCA propõe um conjunto de conteúdos a serem ensinados, o que influencia as relações de ensino e aprendizagem, construindo assim uma cultura pedagógica que pode diferir das demandas da comunidade surda em relação à educação de surdos. Esse documento irá definir não apenas a organização curricular, mas também todos os aspectos relacionados ao tema, modelando e regulando as práticas educacionais. Esse sistema tende a promover a homogeneização dos indivíduos em detrimento da exploração de suas subjetividades, reforçando a ideia de igualdade que suprime a afirmação das diferenças que constituem cada indivíduo. Em contraponto a essa ideia, Candau (2008, p. 47) afirma que “a questão da diferença assume importância especial e transforma-se em um direito, não apenas dos diferentes de serem iguais, mas o direito de afirmar essa diferença”, desta maneira não temos o surdo como o sujeito sendo o centro, o ponto de partida do ensino da Libras.
A seleção de conhecimentos passa pela problematização do que deve ou não ser priorizado, envolvendo a escolha de certos temas em detrimento de outros. Essas seleções de conhecimento, permeadas por relações de poder, Foucault, (2017) definem o que deve e pode ser ensinado, e isso pode se transformar em uma obrigação de ensino.
Será que o que é proposto pelo Referencial atende tanto às necessidades dos moradores da cidade quanto aos dos municípios? E, trazendo a questão mais próxima do tema tratado aqui, atende de forma equitativa os surdos? Será que o documento dá suporte para os professores no ensino de Libras?
Toda tentativa de estabelecer regras gerais de atuação, em qualquer âmbito, pressupõe uma “adequação” às propostas definidas pelos grupos relacionados a essas regras. Desde uma empresa e suas normas para os funcionários até os próprios estudantes dentro da escola e o modo como devem agir de acordo com as propostas curriculares e práticas educacionais oferecidas pelas instituições de ensino. Isso nos leva a uma ideia de grupo que se alinha a um determinado pensamento, a uma “disciplina”, e não a uma linha de conduta que leve em consideração e problematize a subjetividade dos indivíduos durante ativamente os processos dos quais participam. Essa relação disciplinar presente em todo o currículo compara, diferencia, hierarquiza, homogeneíza e exclui.
Temos aqui pensamentos labirínticos, que buscarei abrir caminhos de reflexão sobre uma ótica decolonial onde Quijano, (1992) explica que colonialidade se refere às formas de poder que foram impostas pelas potências colonizadoras e ou esquecidas. Vivemos no Brasil, país com uma comunidade surda significativa de 12 mil de pessoas surdas no Amapá, aproximadamente, (Fernandes, 2023, p.22 ):
O Brasil, segundo pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), possui mais de 200 milhões de pessoas, das quais cerca de 45.623.910 são pessoas com algum tipo de deficiência, afunilando a, mais ou menos, 10 milhões de pessoas surdas. Numerosa a quantidade de surdos no Brasil, numerosa também é a quantidade de sinalizantes da Língua Brasileira de Sinais, esta entendida. De acordo com Campos 2017, têm-se dados de que no Amapá são pelo menos 12 mil pessoas com alguma perda auditiva e surdos em média tinham- se 4 mil no Estado.
Esses dados numéricos destacam a expressiva quantidade de pessoas surdas e a presença significativa da Libras no Brasil, assim como no estado do Amapá. Essa informação serve como ponto de partida para a reflexão sobre a importância de abordar o ensino de Libras e a inclusão das pessoas surdas nas políticas educacionais, levando em consideração uma perspectiva decolonial que valorize suas identidades, línguas e culturas. A comunidade surda é presente em todo estado, lutando e se colocando sempre a disposição para dialogar com todos os órgãos públicos e privados do estado, através da associação de surdos e associação de Tradutores e Intérpretes da Libras-português.
3. O RCA, A BNCC E O ENSINO DE LIBRAS: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS DA LIBRAS
Na busca por trabalhos que abordassem a relação entre a BNCC e o processo de ensino de Libras e/ou educação de surdos nas plataformas do Google Acadêmico, Scielo, Capes e no repositório de trabalhos acadêmicos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), foram encontrados poucos recursos que tratavam de forma abrangente o assunto. Além disso, a maioria desses documentos eram de natureza regional, focando principalmente na relação entre o ensino de ouvintes e a educação de surdos. Os trabalhos relacionados, em sua minoria, abordavam em menor escala os diálogos sobre a BNCC e a educação de surdos, fazendo apenas algumas críticas à implementação da BNCC e à falta de processos estruturantes para garantir o acesso à educação para surdos.
Para apresentar um contexto sobre o RCA, vamos trazer para perto da discussão, um de seus documentos estruturantes, a BNCC, pois o Referencial foi construído por seus colaboradores, pensando no “guarda chuva” que é a BNCC, publicada em 2017, para que nortear os currículos dos subsistemas e redes de ensino da Unidades Federativas, assim como propostas e projetos pedagógicos de todas escolas públicas e privadas da Educação Infantil até o Ensino Médio, em todo território brasileiro este pretende.
Referência nacional para a formulação dos currículos dos sistemas e das redes escolares dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e das propostas pedagógicas das instituições escolares, a BNCC integra a política nacional da Educação Básica e vai contribuir para o alinhamento de outras políticas e ações, em âmbito federal, estadual e municipal, referentes à formação de professores, à avaliação, à elaboração de conteúdos educacionais e aos critérios para a oferta de infraestrutura adequada para o pleno desenvolvimento da educação. (BRASIL, 2017, p. 8)
Durante as buscas de referências sobre a BNCC, deparei-me com o trabalho de pós-graduação de em educação da Universidade Federal de Pelotas (BARBOSA, 2019 ), que trata “Educação de Surdos e BNCC: encontros e desencontros”, o presente texto acaba por apresentar um contexto semelhante, tratando da educação de surdos em específico e seu trabalho direcionado a partir da BNCC, como documento norteador nacional.
(…) O primeiro trabalho é uma dissertação de mestrado intitulada “Currículos praticados: um estudo na educação de surdos – INES” (FINI, 2017), a qual investiga a partir da prática de duas professoras dos anos iniciais questões relacionadas ao trabalho com o currículo dentro das políticas curriculares vigentes no Instituto Nacional de Educação de Surdos; este trabalho toca no assunto da BNCC dentro de seu corpo textual, de autoria de Danielle Aguiar Fini, com data de março de 2017. O segundo é o artigo “Desafios educacionais em contextos multilíngues de ensino: uma proposta curricular inclusiva com línguas de sinais e neurociências”, o qual questiona e reflete sobre o ensino tradicional de inglês e um novo formato que consideraria o cenário de Português-Inglês, Português-Língua brasileira de sinais (LIBRAS) e Inglês-Língua Americana de Sinais (ASL) dentro de uma abordagem neurocientífica na “gestão” do conhecimento, troca de experiências e “participação ativa” entre todos os componentes da sala de aula – estudantes, professores, intérpretes. É um artigo de autoria de Nayla Schenka Ribeiro e Alfred Sholl- Franco (RIBEIRO; FRANCO, 2018), integrante do IV COLBEDUCA e II CIEE2, ocorridos em 24 e 25 de janeiro de 2018, Braga e Paredes de Coura, Portugal. O terceiro trabalho encontrado é o artigo “Um olhar sobre o surdo na nova Base Nacional Comum Curricular no Brasil”, de Renata de Arruda Câmara Silva (SILVA, 2018), publicado pelo Centro Virtual de Cultura Surda na Revista Virtual de Cultura Surda Edição No 23 / maio de 2018, vinculada à editora Arara Azul. Ele se propõe, através de um “resgate histórico”, relacionar LDB, PNE e BNCC, e buscar constatar que a BASE não considera a lei 10.432/2002 e nem o decreto 5626/2005, e assim não dispor sobre a obrigatoriedade da Libras como disciplina obrigatória e muito menos ambientes que oferecem ao indivíduo surdo condições de desenvolver sua “comunicação”. Estes, então, foram os trabalhos mais recentes encontrados e que citam, de maneira direta ou indireta, a relação existente entre educação de surdos e BNCC. (BARBOSA, 2019, p. 05 – 06)
Em um universo amostral, onde a proposta é debater o RCA, que tem como base BNCC e outros documentos nacionais, quando estiver a falar de uma, logo estaremos a referendar o outro. Entretanto, o trabalho aqui não deseja realizar uma análise sobre a ótica educacional, visto que este já fora contemplado por Barbosa, (2019) e outros, contudo, o uso desses dados serão importantes para realizar um conversa que atravessa a educação de surdos, chegando ao ensino de línguas, mais especificamente o ensino de
Libras.
Em análises ainda de Barbosa, (2019) sobre o documento, percebo que a BNCC, não contempla as reivindicações da comunidade surda ou mesmo dos direitos já conquistados, pois em varredura realizada por termos alusivos ao tema, somente encontra-se o termo de maior relevância que é a palavra “Libras”. E esta é citada 4 (quatro) vezes em todo o documento. O mesmo trabalho de análise foi realizado com o RCA, e essa varredura bem como diálogos sobre o ensino de Libras terá suas considerações apresentadas ao decorrer da análise.
Logo vamos ter que encarar que ainda não temos no Brasil, uma legislação que trate de inserir a Libras, como componente curricular na Educação Básica, mesmo essa língua sendo a segunda língua oficial do Brasil, desde 2002, através da Lei 10436/02 e o Decreto 5626/05. E ainda a tão recente Lei nº 14.191, de 3 de agosto de 2021 que altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), para dispor sobre a modalidade de educação bilíngue de surdos.
Art. 2º A Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), passa a vigorar acrescida do seguinte Capítulo V-A: XIV – respeito à diversidade humana, linguística, cultural e identitária das pessoas surdas, surdo-cegas e com deficiência auditiva.” (NR)
Art. 60-A. Entende-se por educação bilíngue de surdos, para os efeitos desta
Lei, a modalidade de educação escolar oferecida em Língua Brasileira de Sinais (Libras), como primeira língua, e em português escrito, como segunda língua, em escolas bilíngues de surdos, classes bilíngues de surdos, escolas comuns ou em polos de educação bilíngue de surdos, para educandos surdos, surdo-cegos, com deficiência auditiva sinalizantes, surdos com altas habilidades ou superdotação ou com outras deficiências associadas, optantes pela modalidade de educação bilíngue de surdos. (BRASIL, 2021).
Dentro dos Art. 2˚, que trata da alteração da LDB, vamos para um caminho já muito debatido, ainda em contextos da educação inclusiva e esboço de Línguas em um processo decolonial, que é o respeito à diversidade humana, cultural e identitária das pessoas surdas, surdo-cegas e com deficiência auditiva. Ainda passo a refletir sobre o tempo entre os marcos legais de 2002 a 2021, que somam 19 anos, que nenhuma medida foi tomada para afirmação do ensino da Libras, em documentos norteadores, como este discutido.
Voltando ao RCA, vamos em uma busca por palavras-chave como surdez, libras.
Acabo por encontrar no (RCA, 2019, pág. 10) no item 1.3 “Competências Gerais para Educação Básica”
Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como Libras*, e escrita), corporal, visual, sonora e digital –, bem como conhecimentos das linguagens artística, matemática e científica, para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levam ao entendimento mútuo.
Esse mesmo texto é utilizado do texto de referência (BNCC, 2017, p. 09), e também citado em Barbosa (2019), como um dos trechos encontrados com o termo “Libras”, fazendo relação com a Lei de Libras de 2022. Dentro do quarto dos “Campos de Experiência: Escuta, Fala, Pensamento e Imaginação, para crianças pequenas (4 anos a 5 anos e 11 meses)”. Vamos visualizar no quadro 01:
Quadro 01: Campos de Experiência: Escuta, Fala, Pensamento e Imaginação, para crianças pequenas (4 anos a 5 anos e 11 meses).
Fonte: Elaborado pelo autor (RCA, 2019, p.64)
Busco Barbosa (2019), ainda para ressaltar que a BNCC e porventura o RCA descreve a Libras como uma, entre outras, alternativas de linguagens, e não efetivamente como uma língua. Ela não é apresentada como uma alternativa à língua Portuguesa – como uma outra língua, mas como uma entre outras linguagens.
As lutas sociais e políticas em prol dos direitos dos surdos estão intrinsecamente ligadas à comunicação entre os membros da comunidade surda e a sociedade em geral. Essa batalha também ocorre em um campo de tensão com a língua hegemônica já estabelecida, no caso, o Português. Nesse contexto, a oficialização da Libras como língua dos surdos pode servir como base para que todas as outras relações – consigo mesmos, com os outros e seu desenvolvimento geral – ocorram de forma natural. Em suma, a Libras pode se consolidar como um artefato de vital importância na luta surda, unindo a comunidade, possibilitando a expressão de ideias e marcando a identidade de um povo único que precisa interagir, ao longo do tempo, com uma sociedade que fala um “idioma” diferente.
Esses foram os dois únicos termos, trazendo em seu bojo a Libras como processo de ensino de língua em todo o referencial, entretanto Barbosa (2019), traz outras citações na Base, e como dito anteriormente como os documentos são contemporâneos e o RCA, consideram a BNCC, para estabelecer seus critérios de instrumentalização, quando “falamos de um, falamos dos dois” sem cair em generalidades.
Dentro do item 4, A Etapa do Ensino Fundamental, no subitem 4.1, “A Área de Linguagens”, temos a presença do termo “Libras” no primeiro parágrafo:
As atividades humanas realizam-se nas práticas sociais, mediadas por diferentes linguagens: verbal (oral ou visual-motora, como Libras*, e escrita), corporal, visual, sonora e, contemporaneamente, digital. Por meio dessas práticas, as pessoas interagem consigo mesmas e com os outros, constituindo-se como sujeitos sociais. Nessas interações, estão imbricados conhecimentos, atitudes e valores culturais, morais e éticos. (BNCC, 2017, p. 61)
Nas “Competências Específicas de Linguagens para o Ensino Fundamental” (BNCC, 2017, p. 3), encontramos o termo “Libras” integrando o seguinte fragmento, dentro do item 3 destas competências:
Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como Libras*, e escrita), corporal, visual, sonora e digital –, para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao diálogo, à resolução de conflitos e à cooperação.
Para Barbosa, (2019) a Libras é inserida no campo das diferentes linguagens e comunicação. Em especificamente, destacando como linguagem verbal visual – motora. Onde uma das reivindicações históricas da comunidade surda é o seu reconhecimento como língua oficial do povo surdo brasileiro. Ainda no mesmo afirmo que esse processo carece de aprofundamento, detalhando sobre uma língua rica e com pesquisas suficientes e tempo neste solo para ter materialidade no documento. E a última menção a Libras, ou a comunidade surda na BNCC temos:
No Brasil com a Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002, oficializou-se também a Língua Brasileira de Sinais (Libras*), tornando possível, em âmbito nacional, realizar discussões relacionadas à necessidade do respeito às particularidades linguísticas da comunidade surda e do uso dessa língua nos ambientes escolares. (BNCC, 2017, p. 68)
Esse se mostra dentro do componente de Língua Portuguesa, considerando sobre as relações com outras formas de linguagem, citando questões de multiletramento e diversidade cultural. Nesse trecho há um destaque a comunidade surda e sua luta por respeito a suas particularidades linguísticas, abrindo possibilidade de que questões relacionadas aos surdos e sua educação se doem de acordo com o que a comunidade anseia durante muito tempo, aproximando a pessoa surda do seu contexto social
Barbosa, (2019). Entretanto, essa abertura não se supõe ou se assemelha à discussão dentro do Referencial Amapaense, fazendo com que o EL deve se pautar pela interculturalidade, valorizando a diversidade linguística e cultural do mundo. Mignolo, (1995), propõe uma perspectiva epistêmica que busca valorizar os saberes locais e promover o diálogo entre diferentes formas de conhecimento, que não é permitida nesse contexto do norte amazônico.
Apesar de reconhecerem a Libras como a língua da comunidade surda, com status oficial e respeitando suas características linguísticas específicas, a Base Nacional e o Referencial Amapaense não abordam de forma aprofundada a educação de surdos. Sob essa perspectiva, dou um exemplo sobre a falta de uma abordagem específica nos documentos em relação ao acesso primário e precoce à Libras, principalmente na Educação Infantil. Além disso, não tratam diretamente do bilinguismo, que está intimamente relacionado às questões biculturais. Essa falta de abordagem pode estar relacionada ao fato de que a Libras é entendida mais como uma entre outras linguagens, e não como uma língua efetiva.
Para Silva (2018), analisando a BNCC, referenda-se o direito da aprendizagem e desenvolvimento elencado para a Educação Infantil: conviver, brincar, participar, explorar, conhecer-se, serão desenvolvidos sem a Libras para crianças surdas. A BNCC estrutura-se em cinco campos de experiência na Educação Infantil, no âmbito dos quais são definidos como objetivos de aprendizagem e desenvolvimento.
Acaba-se por tentar encontrar a pessoa surda, pois os direitos acabam por não pensar em contextos universais que podem atender a todas as demandas ou necessidades específicas. Para espaços onde a oralidade e os sons são evidenciados, infelizmente não abrangem as necessidades visuais da comunidade surda, sendo que a necessidade de sinalizar é inata, para esses indivíduos, luta de muitos anos até um contexto bilíngue atual.
No contexto do ambiente escolar, é importante considerar que o fazer educacional não pode ser dissociado dos demais elementos que permeiam a vida dos indivíduos, como a família e a comunidade. Esses atores também enfrentam desafios para ter acesso fácil à Libras e desempenham um papel fundamental no processo de aprendizagem dos estudantes, mesmo que não estejam diretamente ligados ao ambiente escolar. E, portanto, como podemos desenvolver integralmente o indivíduo? Como formar um cidadão crítico e consciente da realidade em que vive, se não levar em conta o contexto diário e cultural, seu conhecimento prévio?
O processo de “conscientização”, a atribuição de significado à informação e a produção do conhecimento também ocorrem fora da sala de aula, muitas vezes após a mediação escolar, e estão intrinsecamente relacionados à linguagem e à comunicação. Como trazer a rotina do surdo para a sala de aula e levar as percepções do aprendizado escolar para a vida, quando essa vida é permeada pela presença estrangeira do português no cotidiano, estabelecendo uma “ruptura” nesse processo? Pois para Santos (2007) a importância de reconhecer a diversidade cultural e promover o diálogo entre diferentes culturas como forma de construir uma sociedade mais justa e igualitária. Isso pode ser feito por meio de projetos colaborativos que incentivem o uso das línguas em situações reais de comunicação, possibilitando a construção de pontes culturais e a valorização das diferenças.
Portanto, ao discutir um documento que visa orientar os conhecimentos a serem trabalhados com os estudantes, é necessário considerar os detalhes que permeiam a vida particular dos indivíduos, seu contexto social, os grupos aos quais pertencem, suas trajetórias e contextos históricos.
Refletindo de forma crítica sobre a sociedade em que vivemos, percebemos alguns pontos que podem ser considerados e problematizados, como o caso dos grupos que historicamente foram marginalizados e que fazem parte da nossa sociedade, como as mulheres, os negros e também os surdos Candau (2018). Esses grupos são frequentemente deixados à margem das discussões socioeconômicas e políticas, uma vez que são considerados “minorias” pelos padrões da normatividade, que são baseados no ideal do homem branco, heterossexual, europeu, católico e de classe média/alta. No entanto, essas categorias, que muitas vezes são deixadas de lado na tomada de decisões, têm se organizado, lutado e buscado cada vez mais espaço para que suas vozes sejam ouvidas.
Defendendo seus interesses como grupos e comunidades organizadas, essas coletividades têm se tornado protagonistas em questões políticas e sociais, buscando garantir os direitos específicos de cada uma delas e ganhando cada vez mais atenção e visibilidade. Da mesma forma, em relação a questões identitárias, esses grupos estão produzindo sujeitos atuantes nesse processo, que se tornam protagonistas de suas próprias reivindicações.
(IN) CONCLUSÕES
Esses escritos buscam ampliar o campo de problematizações, levando em consideração as questões relacionadas ao ensino de Libras no contexto da implantação do RCA no Amapá. Com o intuito de garantir o respeito aos direitos culturais e linguísticos da comunidade surda, é necessário dialogar em um pensamento decolonial, buscando estabelecer um ensino de línguas adequado para aqueles que necessitam e estão sendo esquecidos no processo de normalização dos documentos orientadores do fazer pedagógico.
Problematizar a capacidade do Referencial de proporcionar espaços de existência para a educação de surdos e seus processos, sob uma perspectiva cultural, a fim de auxiliar futuras discussões de políticas linguísticas em nosso contexto norte amazônico. Isso envolve considerar o movimento e a subjetividade do indivíduo no processo de aprendizado e desenvolvimento.
Embora ainda haja um número reduzido de publicações diretas sobre as relações entre a educação de surdos e a BNCC e ainda menor no que congrega o ensino da Libras, é possível identificar alguns pontos em comum. Por exemplo, é importante considerar questões mais subjetivas do que aquelas abordadas por uma base curricular comum e o RCA. Além disso, uma abordagem performativa da educação, focada apenas em resultados e metas, pode ser limitante para o desenvolvimento dos indivíduos, tanto surdos quanto ouvintes. É necessário ir além de um manual geral e acolher constantemente e abraçar as diferenças culturais e subjetivas desses sujeitos, reconhecendo e valorizando sua alteridade.
Nesse contexto, entende-se que o RCA se tornará mais um espaço de luta por significação e respeito à diferença para a comunidade surda, especialmente no que se refere ao processo de ensino e aprendizagem da Libras. A análise sob a perspectiva decolonial no ensino de línguas, mais especificamente a Libras, se faz necessária para desafiar as visões normativas e hegemônicas e valorizar a cultura surda, suas especificidades linguísticas e suas formas de conhecimento. Isso implica em reconhecer a importância da alteridade e da inclusão, superando a marginalização histórica das culturas surdas e promovendo uma educação verdadeiramente inclusiva e respeitosa.
Referências
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1Doutor em Linguística (UÉvora), Licenciado em Letras Libras (UNICA) e Licenciado em Pedagogia (UEAP). Professor substituto da Universidade do Estado do Amapá (UEAP) E-mail: nandofernandesffs@gmail.com/ fernando.silva@ueap.edu.com.br