A LIBERDADE RELIGIOSA E A TRANSFUSÃO DE SANGUE NAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202505180139


Kayo César Gomes dos Santos
Vitor Zidane Mundim Barros
Leonardo Antunes Ferreira da Silva


RESUMO 

Este artigo analisa o conflito entre dois direitos fundamentais: a liberdade religiosa e o direito à vida, no contexto das Testemunhas de Jeová e sua recusa à transfusão de sangue por motivos religiosos. A investigação propõe compreender como o Judiciário brasileiro tem atuado em casos que envolvem menores de idade, em que a recusa ao tratamento médico pode colocar a vida em risco. Para isso, o estudo adota abordagem qualitativa, exploratória e descritiva, com base em revisão bibliográfica, documental e jurisprudencial. O artigo discute o equilíbrio entre a autonomia individual e a intervenção estatal, destacando o princípio da proporcionalidade como norteador das decisões judiciais. A partir da análise de decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), concluiu-se que, diante de risco iminente de morte, o Judiciário tende a priorizar o direito à vida, ainda que isso implique contrariar a vontade dos pais ou responsáveis legais, amparados por suas crenças. Ao final, o trabalho sugere a necessidade de políticas públicas e alternativas médicas que conciliam o respeito à liberdade de crença com a preservação da vida, especialmente em um país plural como o Brasil. 

Palavras chaves: Liberdade religiosa; Testemunhas de Jeová; Transfusão de sangue; Direito à vida; Poder Judiciário. 

ABSTRACT 

This article analyzes the conflict between two fundamental rights: religious freedom and the right to life, in the context of Jehovah’s Witnesses and their refusal to accept blood transfusions due to religious beliefs. The research aims to understand how the Brazilian Judiciary has acted in cases involving minors where refusal of medical treatment could endanger life. The study uses a qualitative, exploratory, and descriptive approach, based on bibliographic, documentary, and jurisprudential review. It discusses the balance between individual autonomy and state intervention, emphasizing the principle of proportionality as a guiding factor in court decisions. Based on the analysis of decisions from the Superior Court of Justice (STJ), the article concludes that, in cases of imminent risk of death, the Judiciary tends to prioritize the right to life, even when this overrides the will of parents or guardians based on their faith. The study suggests the development of public policies and medical alternatives that reconcile respect for religious beliefs with life preservation, especially in a religiously diverse country like Brazil. 

Keywords: Religious freedom; Jehovah’s Witnesses; Blood transfusion; Right to life; Judiciary. 

1. INTRODUÇÃO 

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 assegura, em seu artigo 5º, incisos VI e caput, dois pilares fundamentais dos direitos humanos: a liberdade religiosa e o direito à vida. Quando esses direitos colidem, especialmente em contextos envolvendo menores de idade, surgem dilemas éticos, jurídicos e sociais complexos. É nesse cenário que se insere a presente pesquisa, que busca analisar o posicionamento do Judiciário brasileiro diante da recusa de transfusão de sangue por membros das Testemunhas de Jeová, em especial quando tal recusa parte de pais ou responsáveis em nome de seus filhos. 

As Testemunhas de Jeová, com base em interpretação bíblica, rejeitam transfusões de sangue, considerando-as violação dos princípios espirituais que professam. Essa postura traz implicações diretas à área da saúde, desafiando médicos, juristas e instituições a respeitarem a liberdade religiosa sem comprometer o dever constitucional de proteger a vida.

O problema central da pesquisa é: como o Judiciário brasileiro decide casos envolvendo menores Testemunhas de Jeová, equilibrando o direito à liberdade religiosa com o direito à vida? 

A relevância do estudo reside na necessidade de compreender como o Estado, por meio do Judiciário, harmoniza direitos fundamentais em conflito, fornecendo subsídios teóricos e práticos para decisões mais justas e eficazes. Além disso, a discussão contribui para o aprimoramento das políticas públicas de saúde, promovendo alternativas viáveis ao uso de transfusões de sangue. 

A estrutura deste artigo contempla a introdução ao tema e sua problemática, os métodos utilizados na pesquisa, a apresentação dos resultados obtidos, uma discussão aprofundada baseada na literatura e na jurisprudência, e, por fim, as considerações finais com as principais conclusões do estudo. 

2. MATERIAL E MÉTODO 

A metodologia adotada neste trabalho é qualitativa, de natureza aplicada, com abordagem exploratória e descritiva. A escolha do método dedutivo justifica-se pela análise de princípios constitucionais amplamente estabelecidos — como o direito à vida e a liberdade religiosa — aplicados a casos concretos julgados pelo Judiciário brasileiro. 

Para a coleta de dados, foram utilizadas fontes bibliográficas e documentais. A pesquisa se baseou em doutrinas jurídicas, artigos acadêmicos, legislações nacionais e internacionais, bem como em decisões judiciais, com destaque para o Recurso Especial nº 1.196.539/SP, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que trata da recusa de transfusão de sangue por Testemunha de Jeová em contexto hospitalar. 

A análise dos dados foi feita por meio de revisão bibliográfica e jurisprudencial, com foco na interpretação e cotejamento das decisões judiciais à luz dos princípios constitucionais. Foram consultadas bases como o Portal de Periódicos da CAPES, SciELO, JusBrasil e repositórios oficiais dos tribunais superiores.

A população da pesquisa consistiu em decisões judiciais brasileiras que envolvem Testemunhas de Jeová e a recusa de transfusões. A amostragem foi intencional, priorizando acórdãos com relevância jurídica, profundidade argumentativa e impacto na jurisprudência nacional. 

3. RESULTADOS 

A análise jurisprudencial revelou que, diante de risco iminente à vida, os tribunais brasileiros têm majoritariamente decidido pela realização da transfusão de sangue, mesmo contra a vontade dos responsáveis legais e em desrespeito às crenças religiosas envolvidas. A justificativa recorrente é a prevalência do direito à vida, considerado absoluto frente a outros direitos, especialmente no caso de menores de idade. 

O Recurso Especial nº 1.196.539/SP, relatado pelo Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, consolidou esse entendimento ao afirmar que a intervenção estatal é legítima em situações de risco de morte, autorizando a transfusão para preservar a vida da criança, mesmo diante da oposição dos pais com base em sua religião. 

Observou-se também que o Judiciário busca fundamentar suas decisões com base no princípio do melhor interesse do menor, consagrado no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), e no princípio da dignidade da pessoa humana. 

Além disso, a pesquisa identificou decisões que reconhecem a legitimidade da recusa por parte de adultos capazes, desde que informados dos riscos, demonstrando o respeito à autonomia individual. Contudo, em casos de menores ou pessoas incapazes, a tendência é de intervenção estatal para garantir a vida. 

4. DISCUSSÃO 

A seguir, será apresentada a discussão dos dados coletados à luz da doutrina, legislação e jurisprudência, observando como o Poder Judiciário tem lidado com a colisão entre o direito à vida e a liberdade religiosa. Serão utilizadas análises teóricas e decisões judiciais para embasar a reflexão crítica e propor alternativas 

4.1 A Liberdade Religiosa e seus Limites Constitucionais 

A Constituição Federal de 1988 consagra a liberdade religiosa como direito fundamental, nos termos do artigo 5º, inciso VI. Este direito inclui o livre exercício de crenças e práticas religiosas, sem intervenção do Estado. Contudo, tal liberdade não é absoluta e pode encontrar limitações quando colide com outros direitos igualmente fundamentais, como o direito à vida. 

Autores como Bittar (2015) reforçam que, embora seja direito constitucionalmente garantido, a liberdade religiosa pode ser restringida em casos de ameaça à vida, sobretudo quando envolvem crianças e adolescentes. A doutrina é pacífica quanto à aplicação do princípio da proporcionalidade, que determina a ponderação entre os direitos em conflito, sempre buscando a preservação do bem maior. 

O artigo 15 do Código Civil é outro dispositivo essencial, pois estabelece que ninguém pode ser compelido a tratamento médico sem consentimento, salvo em caso de risco iminente de vida — o que fundamenta a atuação do Estado em casos envolvendo menores de Testemunhas de Jeová. 

4.2 O Direito à Vida e o Melhor Interesse do Menor 

Quando a recusa à transfusão envolve crianças ou adolescentes, a atuação estatal é orientada pelo princípio do melhor interesse da criança, previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), especialmente em seu artigo 7º, que assegura o direito à vida e à saúde. 

Nesse contexto, o Judiciário tem se posicionado no sentido de proteger a vida da criança, ainda que para isso precise contrariar os pais ou responsáveis. A jurisprudência do STJ no REsp nº 1.196.539/SP é emblemática ao decidir que, em situações de iminente risco de morte, a liberdade religiosa dos pais deve ceder espaço à proteção da vida dos filhos menores. 

A aplicação desse entendimento busca proteger a dignidade da pessoa humana, fundamento da República (art. 1º, III, CF/88), e prevenir omissões estatais que possam resultar em morte por negligência médica ou familiar. 

4.3 Autonomia, Intervenção Estatal e Bioética 

A recusa à transfusão de sangue levanta importantes questões bioéticas. Para Sousa Santos (2006), a autonomia individual deve ser respeitada, mas admite se a intervenção estatal em casos extremos, sobretudo quando o paciente é incapaz de decidir — como no caso de crianças. 

Autores como Farias e Rosenvald (2012) argumentam que o Estado deve atuar de forma proporcional, promovendo o mínimo de interferência possível, mas garantindo a máxima eficácia dos direitos fundamentais. A atuação judicial, portanto, deve equilibrar o respeito à autonomia dos pais com a proteção da vida e a dignidade do menor. 

Além disso, a literatura mais recente propõe alternativas médicas às transfusões tradicionais, como tratamentos com hemoderivados e técnicas cirúrgicas de conservação de sangue, o que poderia reduzir os conflitos entre médicos e pacientes de crenças específicas. França e Santos (2018) defendem que a implementação de protocolos médicos alternativos é medida eficaz para conciliar fé e ciência. 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

A análise realizada ao longo deste artigo evidenciou a complexidade dos conflitos entre o direito à vida e a liberdade religiosa no ordenamento jurídico brasileiro, particularmente nos casos em que pais Testemunhas de Jeová recusam transfusões de sangue em nome de seus filhos menores. A jurisprudência nacional, especialmente a do Superior Tribunal de Justiça, tem sinalizado de forma clara que, diante de situações de risco à vida, o Estado pode e deve intervir, priorizando a sobrevivência do menor. 

A partir de uma abordagem qualitativa, descritiva e exploratória, observou-se que o princípio da proporcionalidade tem servido como instrumento de equilíbrio entre os direitos fundamentais em colisão, permitindo decisões mais sensíveis ao contexto religioso, mas firmes na defesa da vida. 

A pesquisa também revelou a necessidade de políticas públicas que incorporem alternativas médicas às transfusões de sangue, a fim de respeitar crenças religiosas sem colocar em risco a saúde dos pacientes. O avanço de tecnologias médicas e o preparo ético e jurídico dos profissionais da saúde são componentes essenciais para lidar com tais dilemas de forma humanizada. 

Portanto, a atuação do Poder Judiciário deve continuar atenta à pluralidade religiosa brasileira, mas jamais permitir que a liberdade de crença sirva como escudo para práticas que ameacem vidas, especialmente de indivíduos em situação de vulnerabilidade. O respeito à vida, à dignidade e à infância deve prevalecer, garantindo que a fé não seja negada, mas que a vida também não seja sacrificada. 

REFERÊNCIAS 

BITTAR, Carlos Alberto. Liberdade Religiosa e Direitos Humanos: Uma Abordagem Jurídica e Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2015. 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. 

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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.196.539/SP. Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 12 de abril de 2013. Disponível em: https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/18833. Acesso em: 10 abr. 2025.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. 

FRANÇA, Felipe de Souza; SANTOS, José de Ribamar dos. Transfusão de Sangue: recusa pela religião das Testemunhas de Jeová e o direito à vida. Revista da Faculdade de Direito de Campo Limpo Paulista, 2018. 

SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo: Para uma Nova Cultura Política. São Paulo: Cortez, 2006. 

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REGO, Eduardo de Carvalho. Liberdade Religiosa e Recusa de Transfusão de Sangue por Testemunhas de Jeová. Consultor Jurídico, 2024. 

TAVARES, Lúcia Léa Guimarães. Legitimidade da Recusa de Transfusão de Sangue por Testemunhas de Jeová. Revista da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, 2008. 

OLIVEIRA, João Marcos de. Transfusão de Sangue e Liberdade Religiosa: uma análise da objeção de consciência das Testemunhas de Jeová. Revista Jus Navigandi, 2022.