A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE DAS PESSOAS COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202411221213


Tathiane Azevedo Haiden1
Orientador: Prof. Antonio de Lucena Bittencourt Neto2


RESUMO

A judicialização do direito à saúde para pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) tem como objetivo a busca pelo Judiciário em garantir o acesso a tratamentos, medicamentos e suporte educacional adequado. O direito à saúde pode ser garantido pela Constituição Federal de 1988 e reforçado pela Lei nº 12.764/2012 (Lei Berenice Piana), que norteia a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, para estes serviços é necessário a acessibilidade do Sistema Único de Saúde (SUS) podendo ser também por planos de saúde privados. A legislação possibilita que haja um atendimento eficaz dentro terapias comportamentais para o desenvolvimento de pessoas com TEA dentre as áreas de fonoaudiologia e a psicopedagogia. A falta de infraestrutura e de políticas públicas adequadas fazem que pais e responsáveis recorram à justiça para obter esses tratamentos. A judicialização cria o suporte necessário para cumprir a lei, o tema inclui a necessidade de políticas de saúde pública mais eficazes e maior financiamento, o que poderia reduzir a dependência das ações judiciais para assegurar os direitos das pessoas com TEA e promover um atendimento mais inclusivo e eficiente.

Palavras-chave: Judicialização da saúde. TEA. Legislação.

ABSTRACT

The judicialization of the right to health for people with Autism Spectrum Disorder (ASD) aims to ensure the Judiciary seeks to guarantee access to treatments, medications and adequate educational support. The right to health can be guaranteed by the Federal Constitution of 1988 and reinforced by Law No. 12,764/2012 (Berenice Piana Law), which guides the National Policy for the Protection of the Rights of People with Autism Spectrum Disorder, for these services accessibility is necessary of the Unified Health System (SUS) and may also be through private health plans. The legislation allows for effective care within behavioral therapies for the development of people with ASD in the areas of speech therapy and psychopedagogy. The lack of infrastructure and adequate public policies means that parents and guardians have to go to court to obtain these treatments. Judicialization creates the necessary support to comply with the law, the theme includes the need for more effective public health policies and greater funding, which could reduce dependence on legal actions to ensure the rights of people with ASD and promote more inclusive care and efficient.

Keywords: Judicialization of health. ASD. Legislation.

1 INTRODUÇÃO

Por muitos anos, no Brasil, as pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) foram negligenciadas no cenário de políticas públicas. Suas necessidades fundamentais, como saúde, educação e dignidade, foram frequentemente ignoradas. Em 2012, a Lei nº 12.764 (conhecida como Lei Berenice Piana) foi sancionada para proteger e garantir os direitos das pessoas com TEA em todo o país. No entanto, mesmo com essa legislação, a efetivação desses direitos ainda enfrenta inúmeros desafios. Demonstrando-se, que a previsão legal não se faz suficiente para garantir que esses direitos sejam efetivados. Como exemplo disso, as pessoas com TEA ainda enfrentam grande dificuldade para obter o tratamento de saúde adequado, sendo este um direito tão sensível e essencial para a melhora de sua qualidade de vida. Isso fica claro ao observar a crescente judicialização do direito à saúde pública e suplementar, tendo como principal demanda a efetivação do direito ao tratamento.

De acordo com o que afirma Ingo Sarlet (2001, p. 2) a saúde possui fundamentalidade formal e material. Na Constituição brasileira, a fundamentalidade formal, relacionada à positivação do direito, é evidente em três aspectos: o direito à saúde está normatizado e, sendo previsto como direito fundamental, possui hierarquia superior; enquanto norma fundamental, o direito à saúde é cláusula pétrea, submetendo-se a critérios mais rígidos de reforma constitucional; o direito à saúde possui aplicabilidade imediata, na forma do artigo 5º, inciso III da Carta Magna. Quanto à fundamentalidade material, verifica-se a relevância da saúde como bem jurídico, visto que o acesso à saúde concretiza o direito à vida e à dignidade.

2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO AUTISMO

O autismo, ou Transtorno do Espectro Autista (TEA), é uma condição do neurodesenvolvimento caracterizada por um padrão de comportamentos, interesses e atividades restritos e repetitivos, além de desafios na comunicação e na interação social. A compreensão do autismo se expandiu nas últimas décadas, reconhecendo-o como um espectro, onde as manifestações e intensidades variam amplamente entre os indivíduos. “Nomenclatura empregada pela primeira vez pelo psiquiatra Eugen Bleuer (1857- 1939) em 1911, ele relata a fuga da realidade e o retraimento de adultos esquizofrênicos para o mundo interior”. (Santos, 2019, p. 30). 

A terminologia “autismo” foi introduzida em 1943 pelo psiquiatra Leo Kanner, que descreveu um grupo de crianças com dificuldades significativas de interação social e comportamentos repetitivos. Desde então, o conceito evoluiu, e em 1980, o autismo passou a ser reconhecido como um transtorno separado no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). A inclusão do termo “espectro” reflete a diversidade de experiências vividas por pessoas com autismo, que podem apresentar desde habilidades excepcionais até déficits significativos. American Psychiatric Association (APA, 2014) aponta que “o comprometimento na criança autista, pode ocorrer em três níveis de gravidade. No nível um, o indivíduo exige apoio; no nível dois, exige apoio substancial; no nível três exige muito apoio substancial”.

Tabela 1 – Níveis de Autismo

2.1 Definição de autismo

Segundo a OMS, O transtorno do espectro autista (TEA) se refere a uma série de condições caracterizadas por algum grau de comprometimento no comportamento social, na comunicação e na linguagem, e por uma gama estreita de interesses e atividades que são únicas para o indivíduo e realizadas de forma repetitiva. (OPAS/OMS 2017, p.1). 

Nas palavras de Stelzer (2012), mesmo diante do aumento de crianças com diagnóstico de autismo, “ainda não está claro se isto reflete maior diagnóstico da patologia decorrente de modificações de critérios de diagnóstico ou se houve aumento real da patologia.” destaca uma questão central no debate sobre o aumento dos diagnósticos de autismo: se o crescimento observado nos últimos anos representa uma expansão real da incidência do transtorno ou se resulta, em parte, de mudanças nos critérios diagnósticos e na maior conscientização sobre o espectro.

Com a ampliação e a revisão dos critérios diagnósticos, como as modificações introduzidas no DSM-5, mais crianças que antes poderiam não ter sido identificadas como autistas agora recebem esse diagnóstico. Isso se deve a uma compreensão mais abrangente do espectro autista, que passou a incluir manifestações mais leves e características que, em outra época, talvez fossem atribuídas a outros transtornos ou variações comportamentais. Cola et. al (2017), afirma que “a hipersensibilidade se revela através dos sistemas olfativo, visual, auditivo, tátil, vestibular e gustativo”.

O TEA geralmente se manifesta na infância e tende a persistir na adolescência e na idade adulta. Os sinais costumam ser evidentes nos primeiros cinco anos de vida. É comum que pessoas com TEA também enfrentem outras condições concomitantes, como epilepsia, depressão, ansiedade e Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Além disso, o nível de funcionamento intelectual varia amplamente entre os indivíduos com TEA, abrangendo desde comprometimento profundo até habilidades superiores. Segundo Schulze et al (2015) “quando há negativa administrativa, o juiz geralmente julga procedente a ação e isso ocorre porque houve uma falha no sistema ou um problema de gestão, planejamento, entre outros”. 

Essas falhas podem ter diversas causas. Em alguns casos, as negativas administrativas ocorrem pela aplicação incorreta de normas ou pela interpretação equivocada de regulamentos, o que pode ser atribuído a uma gestão deficiente.

Outras vezes, o problema surge de um planejamento inadequado dos serviços públicos, resultando em decisões que não atendem plenamente aos direitos dos cidadãos. Além disso, a falta de recursos e de treinamento para servidores, somada a sistemas burocráticos complexos, contribui para erros no processamento dos pedidos.

Tabela

 Fonte: RODRIGUES, (2024).

É importante destacar que o TEA é um espectro, o que significa que os sintomas e a gravidade podem variar significativamente de pessoa para pessoa. Algumas pessoas com TEA conseguem viver de forma independente, enquanto outras têm graves incapacidades e necessitam de cuidados e apoio ao longo da vida. Além disso, intervenções psicossociais baseadas em evidências, como o tratamento comportamental e os programas de treinamento de habilidades para os pais, podem reduzir as dificuldades de comunicação e comportamento social, impactando positivamente o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas com TEA e seus cuidadores. Figueiredo et al (2013). “também observaram que 66.6% dos medicamentos requeridos não estavam inclusos nas listas oficiais; seus achados podem estar relacionados à pressão da indústria em prescritores de medicamentos, resultando em uma não adesão aos medicamentos previstos”. No entanto, é fundamental que essas intervenções sejam acompanhadas por ações mais amplas, tornando ambientes físicos, sociais e atitudinais mais acessíveis, inclusivos e de apoio. influência da indústria sobre prescritores é um tema amplamente debatido, especialmente no que diz respeito ao impacto que essa pressão pode ter na escolha de medicamentos. O marketing da indústria farmacêutica, que inclui incentivos e propaganda voltada aos profissionais de saúde, pode resultar em uma tendência à prescrição de medicamentos de marcas específicas ou mais caras, que muitas vezes não estão incluídos nas listas de medicamentos essenciais e, portanto, não são financiados pelos sistemas públicos de saúde. Essa prática de não adesão aos medicamentos previstos coloca em risco o acesso igualitário à saúde, uma vez que os pacientes podem ser forçados a buscar tratamentos que, além de mais caros, não são padronizados pelo sistema de saúde.

FIG. 1 – Índice de Estados em que participantes conhecem pelo menos uma pessoa com Autismo.

Gráfico

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte: FAMIVITA, (2023).

De acordo com Oliveira et al. (2017, p. 711), a compreensão do transtorno do espectro autista enquanto deficiência gerou novos debates sobre as ações e serviços disponíveis para seu tratamento no âmbito do SUS, o que resultou na elaboração pelo Ministério da Saúde de dois documentos importantes para essa discussão: um deles foi as Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (TEA), o outro a “Linha de Cuidado para a Atenção às Pessoas com Transtornos do Espectro do Autismo e suas Famílias na Rede de Atenção Psicossocial do Sistema Único de Saúde; Em todo o mundo, as pessoas com TEA frequentemente enfrentam estigmatização, porém no Brasil a discriminação e violações de direitos humanos é frequente, o acesso aos serviços e apoio para essas pessoas ainda é inadequado e insuficiente. “A sanção de uma Lei que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos das Pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo significa o compromisso do país na execução de um conjunto de ações”. (Cruz, 2020, p. 1). aponta para o compromisso do Estado brasileiro ao estabelecer uma política nacional voltada à proteção e promoção dos direitos das pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA). Instituir uma política desse tipo não se resume à criação de leis, mas reflete uma responsabilidade ampla, que abrange a execução de ações específicas e contínuas para assegurar o bem-estar e a inclusão social das pessoas com TEA.

Ao sancionar tal legislação, o país não apenas reconhece formalmente os direitos dessa população, mas também assume a responsabilidade de implementar iniciativas em diversas áreas, como saúde, educação, assistência social e trabalho. Cada um desses campos precisa ser adaptado para atender às necessidades específicas das pessoas no espectro, garantindo acesso adequado a serviços e apoio especializado, e buscando combater preconceitos e barreiras sociais. Delfos (2016), “apesar do autismo ter como uma das características a dificuldade na linguagem, na comunicação e na demonstração de sentimentos e desejos, isto não significa a impossibilidade de expressão do indivíduo com TEA”.

Um desses desafios é o acesso ao tratamento de saúde adequado. Embora a lei assegure esse direito, muitas pessoas com TEA ainda encontram dificuldades para obter os cuidados necessários. A judicialização do direito à saúde pública e suplementar é um exemplo claro disso, com muitos casos buscando a cobertura do tratamento necessário, adequado e devido por parte do poder público e também das empresas de saúde suplementar no Brasil. “todos esses fatores externos não têm comprovação científica estabelecida; portanto, a genética ainda é a causa mais provável do funcionamento mental autístico.” (Silva, 2012). reflete a compreensão prevalente na época sobre as causas do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), destacando a genética como o fator principal no desenvolvimento dessa condição. A afirmação sugere que, embora muitos fatores externos e ambientais tenham sido apontados ao longo dos anos como possíveis influências no autismo, nenhum deles apresentou, até então, evidências científicas suficientemente robustas para serem considerados causas determinantes. Dessa forma, a genética continua a ser vista como a explicação mais provável para o funcionamento mental característico do espectro autista.

A rede pública não consegue abranger todos os indivíduos que necessitam de cuidados e as operadoras de planos de saúde frequentemente resistem em custear os tratamentos recomendados pelos médicos, prejudicando o direito fundamental à saúde e os deveres contratuais. O entendimento das justificativas por trás dessa resistência é essencial para melhorar a efetividade do tratamento para pessoas com TEA. 

3 A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E O AUTISMO

Em 1943, o psiquiatra alemão Leo Kenner publicou o artigo Distúrbios Autísticos do Contato Afetivo, que, segundo Liberalesso (2021), é considerando um dos mais importantes estudos sobre o transtorno do espectro autista. A judicialização da saúde é uma ferramenta da justiça que os cidadãos podem utilizar para conseguir medicamentos, consultas, terapias, procedimentos ou até mesmo um leito hospitalar do qual tenha necessidade, seja através do SUS ou pela saúde suplementar. GAIATO et al (2018), “dentre os motivos do aumento da prevalência do autismo nos últimos 50 anos, estão a alteração de critérios diagnósticos que, até 1980, seguiam o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais, o DSM III, que só abrangia casos extremamente graves”. Essa é a última alternativa para garantir a efetivação do Direito à Saúde, que é uma garantia constitucional conforme o art. 196 da Constituição Federal. A judicialização do direito à saúde no Brasil se configura como um fenômeno complexo e multifacetado, marcado por debates acalorados sobre seus impactos na efetivação desse direito fundamental e na organização do Sistema Único de Saúde (SUS), esta questão da judicialização envolve não somente o serviço público como também o privado por meio dos planos de saúde suplementar.

Luís Roberto Barroso (2011, p. 360-361) oferece uma definição clara da judicialização: trata-se do processo pelo qual questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral são decididas, em última instância, pelo Poder Judiciário. Essa transferência de poder das instâncias políticas para as instituições judiciais representa uma mudança significativa na forma como o direito é concebido e aplicado no mundo jurídico romano-germânico. Esse fenômeno é global e afeta até mesmo países que tradicionalmente seguiam o modelo inglês, como a chamada democracia ao estilo de Westminster, caracterizada pela soberania parlamentar e ausência de controle de constitucionalidade.

A judicialização da saúde é um tema amplo e diversificado, abrangendo questões relacionadas a insumos, instalações, medicamentos e assistência à saúde. O princípio do direito à saúde é fundamental para proteger esses interesses (Diniz, Medeiros e Schwartz 2014). A judicialização se caracteriza pela crescente busca por tutela jurisdicional para garantir o acesso a medicamentos, exames, cirurgias e outros serviços de saúde, quando estes não são fornecidos pelo Estado através dos canais administrativos regulares. Em 27 de dezembro de 2012 foi sancionada a Lei n° 12.764 Lei Berenice Piana instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista

Diversos fatores contribuem para a judicialização da saúde, dentre eles: Falhas no Sistema Único de Saúde (SUS): Incapacidade do SUS em atender plenamente as demandas da população, com longas filas de espera, escassez de medicamentos e insumos, infraestrutura precária e falta de profissionais qualificados. Desigualdade Social: A população de baixa renda e grupos marginalizados são os mais afetados pelas falhas do SUS, recorrendo à Justiça como forma de garantir seus direitos. Ativismo Judicial: Crescente atuação do Poder Judiciário na defesa dos direitos sociais, inclusive da saúde, reconhecendo a omissão do Estado e determinando o fornecimento de serviços e medicamentos. Segundo Cruz (2020) “A sanção de uma Lei que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos das Pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo significa o compromisso do país na execução de um conjunto de ações”.

4 IMPACTOS JURÍDICOS CAUSADOS PELA JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

A judicialização da saúde é um auxílio ao qual os cidadãos recorrem ao Poder Judiciário para garantir o acesso a tratamentos e serviços de saúde. Embora deva ser a última alternativa, dados processuais indicam que o volume de processos relacionados à saúde está aumentando, gerando preocupações tanto no sistema de saúde quanto no judiciário. A Constituição Federal em seu Art. 6º declara que, “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” A necessidade de acesso à saúde é superior à capacidade do Estado de implementar efetivamente os direitos sociais. Assim, a judicialização é um movimento garantido em Lei pela busca na efetivação das prerrogativas constitucionais “a judicialização da saúde é uma questão ampla e diversa de reclame de bens e direitos nas cortes: são insumos, instalações, medicamentos, assistência em saúde, entre outras demandas a serem protegidas pelo princípio do direito à saúde” (DINIZ, 2014).

A principal consequência da judicialização é o aumento expressivo das demandas judiciais na área da saúde. Tribunais de todo o país têm enfrentado um número crescente de ações, muitas vezes relacionadas a tratamentos de alto custo, medicamentos não fornecidos pelo SUS ou procedimentos fora da cobertura dos planos de saúde. Art.5º XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. O aumento das demandas judiciais pode afetar a celeridade processual, prejudicando especialmente aqueles que necessitam de uma prestação jurisdicional urgente. Além disso, a análise técnica e científica dos julgadores é fundamental, pois decisões individuais podem impactar a justiça coletiva. Segundo Asensi (2010), “tornar a saúde um direito universal traz avanços e, paralelamente, novos desafios para sua implementação e efetivação”. Mais precisamente, na medida em que a saúde é um direito de todos”.

A Constituição Federal estabelece a saúde como um direito social de todos, e o Estado tem o dever de garantir esse direito. Quando o Estado não cumpre essa obrigação, os indivíduos têm o direito de recorrer ao Judiciário para efetivar seus direitos. No entanto, é importante equilibrar a necessidade de acesso à saúde com os custos para o Estado e a sociedade. Em resumo, a judicialização da saúde deve ser vista como uma ferramenta legítima para garantir direitos, mas é essencial buscar soluções que não sobrecarreguem o sistema e prejudiquem a coletividade. “O desenvolvimento da importância e do protagonismo judicial em matéria de saúde trouxe a real necessidade de se estabelecer uma ação mais coordenada e estratégica” (ASENSI,2010). judicialização tem sobrecarregado o Judiciário, que, em muitos casos, se vê obrigado a decidir sobre questões técnicas e administrativas, desbordando seu papel tradicional de aplicação da lei. Isso cria um cenário de insegurança jurídica, pois a tendência é que o Judiciário intervenha sem a devida expertise em questões de saúde pública, o que pode resultar em decisões conflitantes e sem uma visão sistêmica da política pública.

De acordo com Machado & Dain, (2012) “Recorrer ao Judiciário para se buscar algum bem de saúde, como medicamentos, tratamentos médicos, cirurgia dentre outros, têm sido uma prática intensa com forte repercussão para o Sistema Único de Saúde (SUS)”. A judicialização da saúde, fenômeno que ocorre quando cidadãos recorrem ao Judiciário para garantir direitos de saúde, traz consequências significativas para a gestão pública do Sistema Único de Saúde (SUS). Paula, Silva e Bittar (2017) evidenciam que essa intervenção judicial frequentemente compromete o planejamento orçamentário do SUS, redirecionando recursos para despesas não previstas. Além disso, o Judiciário apresenta limitações estruturais, como morosidade e carência de apoio técnico especializado, que dificultam a tomada de decisões bem fundamentadas na área da saúde. O resultado é uma interferência indireta nas políticas públicas de saúde, mesmo sem que os magistrados possuam capacitação específica para tal. A intervenção judicial, por vezes, se estende para além de sua função essencial, desorganizando a estrutura do sistema de saúde e afetando o planejamento de políticas sanitárias.

A responsabilidade solidária dos entes federativos no fornecimento de bens de saúde, especialmente quando judicialmente imposta, tem gerado uma sobrecarga significativa para os municípios, que costumam ter menos recursos financeiros comparados aos estados e à União. Essa sobrecarga cria um desequilíbrio no financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS), levando muitos municípios a redirecionarem verbas que poderiam ser aplicadas em serviços básicos para atender decisões judiciais específicas. Além disso, o uso da via judicial por grandes empresas, como a indústria farmacêutica, expõe a vulnerabilidade do sistema, permitindo que produtos farmacêuticos sejam introduzidos com facilidade no mercado, mesmo que isso implique em custos elevados e muitas vezes insustentáveis para o orçamento público. Com frequência, o Judiciário, ao focar em atender demandas individuais, desconsidera as limitações econômicas e orçamentárias do Estado, criando um conflito entre as necessidades de saúde da população e a real capacidade de financiamento das políticas públicas.

O fenômeno da judicialização da saúde traz à tona um complexo entrelaçamento de responsabilidades e desafios para instituições e profissionais com diferentes papéis e propósitos. A tensão entre os Poderes Executivo e Judiciário, que se reflete nas decisões que impactam diretamente o orçamento e o planejamento em saúde, evidencia a dificuldade de equilibrar a prestação do direito à saúde e a viabilidade financeira e administrativa desse direito. Embora a atuação judicial seja muitas vezes fundamental para garantir acesso a tratamentos específicos, ela frequentemente ignora as realidades financeiras e logísticas enfrentadas pelos gestores públicos. Estes, já sobrecarregados pela necessidade de gerenciar um orçamento limitado, encontram-se ainda mais pressionados ao terem de cumprir ordens judiciais que muitas vezes não consideram o planejamento estratégico do sistema de saúde.

Adicionalmente, o envolvimento de profissionais de saúde, advogados, juízes e membros do Ministério Público ressalta as divergências de formação e foco entre esses agentes. Profissionais da saúde têm o dever de atender às necessidades médicas da população, enquanto juízes e advogados tratam o direito à saúde sob uma ótica mais jurídica do que prática, o que nem sempre é compatível com a realidade do SUS. Esse distanciamento de áreas e saberes compromete a efetividade e sustentabilidade das decisões e expõe um dilema entre o direito individual e o bem-estar coletivo. Nesse contexto, embora a judicialização possa ser um recurso valioso, a sua aplicação sem uma compreensão integrada entre os agentes envolvidos e uma adaptação às capacidades institucionais do SUS pode trazer mais desafios do que soluções.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A judicialização do direito à saúde das pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) destaca a necessidade urgente de políticas públicas que garantam o acesso adequado a tratamentos especializados. Esse movimento judicial surge frequentemente como resposta a lacunas nos serviços oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e na saúde suplementar, evidenciando falhas na inclusão das necessidades do público autista. Embora o Judiciário tenha assumido um papel relevante na defesa desses direitos, o crescimento das demandas judiciais revela a insuficiência das ações do Executivo em assegurar o direito constitucional à saúde.

A falta de cobertura para terapias, como as de análise comportamental aplicada (ABA) e outros tratamentos, gera desigualdades e coloca famílias em situações de extrema vulnerabilidade. O alto custo de intervenções específicas faz com que muitas vezes a única alternativa seja a busca judicial, o que contribui para sobrecarregar o Judiciário e o sistema de saúde. Dessa forma, a judicialização se torna uma solução temporária, mas insuficiente, para um problema que requer ações estruturais.

Para reduzir a necessidade de intervenção judicial, é essencial o fortalecimento das políticas públicas voltadas ao TEA, a fim de incluir tratamentos adequados no escopo do SUS e das operadoras de planos de saúde. Além disso, a aplicação eficaz da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com TEA e a supervisão do Ministério Público são cruciais. Em conclusão, a garantia de um sistema de saúde inclusivo e eficiente depende do compromisso do Estado em promover o direito à saúde de forma sustentável e digna, diminuindo assim a dependência das famílias de ações judiciais para garantir cuidados essenciais.

A judicialização do direito à saúde das pessoas com transtorno do espectro autista (TEA) revela-se um mecanismo vital para garantir o acesso a tratamentos e serviços essenciais, evidenciando a fragilidade do sistema público de saúde e a necessidade de uma abordagem mais inclusiva e eficaz. Embora a intervenção judicial possa proporcionar soluções imediatas, ela também expõe as lacunas nas políticas públicas e na implementação de direitos garantidos por lei. Assim, é imperativo que a sociedade, os profissionais de saúde e os gestores públicos trabalhem juntos para construir um sistema de saúde mais justo e eficiente, que não apenas respeite, mas promova os direitos das pessoas com TEA, assegurando que o acesso a cuidados adequados ocorra de forma universal e equitativa, minimizando a dependência de decisões judiciais.

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1Graduanda do Curso de Direito do Centro Universitário Fametro. E-mail: tathianehayden@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0009-0005-6848-9660
2Professor e orientador