REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202411261522
José Guilherme de Souza Neto1
Mariana de Siqueira2
RESUMO
A pesquisa aborda a (ir)retroatividade das disposições da Lei nº 14.230/2021 no contexto da improbidade administrativa, especificamente quanto à exigência de dolo para configuração de atos que impliquem prejuízo ao erário. A análise examina a evolução normativa e jurisprudencial da Lei nº 8.429/1992, destacando a alteração que excluiu a modalidade culposa da tipificação de improbidade. São discutidos os princípios do Direito Administrativo Sancionador, a segurança jurídica e a retroatividade benéfica, com destaque para os debates em torno da aplicação das normas mais favoráveis aos casos transitados em julgado. Conclui-se que a delimitação dos critérios de responsabilização representa um avanço, mas suscita questionamentos sobre a harmonia entre a proteção do patrimônio público e os direitos fundamentais.
Palavras-chave: improbidade administrativa, Lei nº 14.230/2021, dolo, retroatividade, Direito Administrativo Sancionador, segurança jurídica, coisa julgada.
ABSTRACT
The research addresses the (non-)retroactivity of the provisions of Law No. 14,230/2021 in the context of administrative misconduct, specifically regarding the requirement of intent (dolo) for acts causing damage to the public treasury. The analysis examines the normative and jurisprudential evolution of Law No. 8,429/1992, highlighting the amendment that excluded negligence (culpa) from the typification of misconduct. The study discusses the principles of Administrative Sanctioning Law, legal certainty, and beneficial retroactivity, emphasizing debates about the application of more favorable rules to cases with final judgments. It concludes that defining the criteria for accountability represents progress but raises questions about balancing the protection of public assets and fundamental rights.
Keywords: administrative misconduct, Law No. 14,230/2021, intent, retroactivity, Administrative Sanctioning Law, legal certainty, res judicata.
INTRODUÇÃO
A Administração Pública possui sua atuação norteada pelo Regime Jurídico Administrativo que estabelece direitos, obrigações e limites éticos e legais na conduta de seus agentes públicos. Nesse sentido, emerge na atuação estatal o dever funcional de probidade administrativa voltado à atuação honesta e comprometida com os valores éticos de gestão, com vistas à boa execução de políticas públicas e serviços que atendam às necessidades coletivas.
Neste contexto, a Constituição Federal buscou assegurar o combate à improbidade administrativa como uma salvaguarda indispensável para a proteção do patrimônio público e a promoção de uma Administração íntegra e responsável, uma vez que esta é uma conduta extremamente prejudicial que contraria os princípios fundamentais que norteiam a gestão pública, como legalidade, moralidade, impessoalidade, eficiência e publicidade.
Esta garantia constitucional ganhou regulamentação com a promulgação da Lei nº 8.429/1992, conhecida como Lei de Improbidade Administrativa (LIA), que passou desde então a ser um importante instrumento para a responsabilização de agentes públicos e particulares que, de forma direta ou indireta, lesassem os bens, valores e princípios que regem a Administração Pública. A lei estabeleceu condutas típicas de improbidade, como o enriquecimento ilícito, o prejuízo ao erário e os atos que atentam contra os princípios administrativos. Contudo, a redação original da LIA permitia a responsabilização por atos praticados culposamente na hipótese de prejuízo ao erário, suscitando debates sobre o rigor e a abrangência da norma.
Com a publicação da Lei nº 14.230/2021, o marco legal foi substancialmente alterado, consolidando entendimentos jurisprudenciais e introduzindo mudanças materiais e processuais. Entre as principais inovações, destaca-se a exigência do elemento subjetivo dolo para a caracterização de atos de improbidade administrativa, excluindo a modalidade culposa. Essa alteração, além de redefinir os critérios de responsabilização, trouxe à tona um debate jurídico acerca da possibilidade de aplicação retroativa dessa norma em processos ainda em curso e com trânsito em julgado.
Desse modo, o presente trabalho busca analisar a (ir)retroatividade das disposições da Lei nº 14.230/2021 no tocante à necessidade do dolo na configuração do ato de improbidade administrativa que implique prejuízo ao erário. Para tanto, examina-se a evolução normativa e jurisprudencial da improbidade administrativa, explorando as bases constitucionais da Administração Pública e as inovações trazidas pelo novo marco legal. Ademais, discute-se o impacto dessas mudanças à luz dos princípios do Direito Administrativo Sancionador, abordando os desafios de conciliar segurança jurídica, efetividade das normas e preservação dos direitos fundamentais no contexto da gestão pública.
Improbidade Administrativa – Bases constitucionais
Apesar das divergências doutrinárias, é possível afirmar sem grandes discordâncias que a Administração Pública pode ser definida de forma sintética como “todo aparelhamento do Estado preordenado à realização de serviços, visando à satisfação das necessidades coletivas” (MARINELA, 2021).
Conforme ensina José Santos de Carvalho Filho, a expressão Administração pública pode ser utilizada em duas acepções, quais sejam, o sentido orgânico ou subjetivo, ao vislumbrar o conjunto de órgãos instituídos para consecução dos objetivos do Estado, a estrutura estatal; e o sentido material ou objetivo que corresponde à atividade administrativa que é exercida pelo Estado.
Quanto à atividade administrativa, podemos afirmar que se trata de toda atividade desenvolvida pela Administração na gestão de bens e interesses que buscam a consecução dos interesses da coletividade.
Neste contexto, a atividade administrativa é guiada por um conjunto harmônico de normas (regras e princípios) que regem os órgãos, agentes e atividades públicas tendentes a realizar concreta, direta e imediatamente os fins desejados pelo Estado. Tal arranjo normativo é chamado de Regime Jurídico Administrativo e está presente em legislação esparsa, mas encontra seu alicerce na Constituição Federal, a qual trata de modo extensivo acerca da Administração Pública, reservando para a temática um capítulo que vai do art. 37 ao art. 41.
Já no art. 37, caput, do texto Constitucional, pode-se encontrar os princípios que regem todos os níveis da Administração Pública, orientando a ação do administrador na prática dos atos administrativos para a consecução do interesse público:
Art. 37. A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e, também, ao seguinte: redação original
Um destes princípios expressos é o da moralidade, a qual não se confunde com a moralidade comum. A moralidade administrativa é uma moralidade jurídica que consiste no conjunto de “regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração” (SILVA, 2001) relacionadas à obediência aos princípios éticos e à boa administração.
Deste princípio tão caro prescrito de forma expressa pelo Constituinte emerge o dever funcional de Probidade administrativa, que, conforme ensinado pelo jurista Marcello Caetano, consiste no dever do “funcionário servir a administração com honestidade, procedendo no exercício das suas funções, sem aproveitar os poderes ou facilidades delas decorrentes em proveito pessoal ou de outrem a quem queira favorecer” (CAETANO, 1970)
Desse modo, no contexto da Administração, o agente ímprobo é aquele que abusa do poder que lhe fora concedido em razão do exercício de uma função pública, ou seja, trata-se de uma desonestidade violadora das normas que norteiam o Regime Jurídico Administrativo. Tal conduta é tão reprovável à Administração pública que recebeu tratamento constitucional expresso, quando no seu art. 37, § 4º, dispôs:
§ 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
No referido dispositivo, a improbidade administrativa é tratada como sinônimo de corrupção administrativa e já prevê de antemão consequências para o agente ímprobo, as quais deverão ser melhor tratadas em lei infraconstitucional. Deste modo, constata-se que a proteção à probidade administrativa foi uma preocupação do Constituinte desde o princípio.
Advento da Lei nº 8.429/92
Conforme preceitua o Constitucionalista José Afonso da Silva, as normas constitucionais podem ser de eficácia Plena, Contida ou Limitada. As normas de eficácia Plena possuem aplicabilidade imediata e integral, produzindo todos os seus efeitos assim que entram em vigor, independentemente de norma integrativa infraconstitucional. Nas palavras de José Afonso da Silva são aquelas “que receberam do constituinte normatividade suficiente à sua incidência imediata. […] Não necessitam de providência normativa ulterior para sua aplicação. Criam situações subjetivas de vantagens ou de vínculo, desde logo exigíveis” (SILVA, 2001).
Já as normas de eficácia contida, possuem, assim como as de eficácia plena, aplicabilidade direta, imediata e integral, mas que podem ter seu alcance reduzido pela atividade do legislador infraconstitucional, constituindo, deste modo, uma aplicabilidade e eficácia restringíveis.
Por fim, têm-se as normas de eficácia limitada que não têm condão para, de imediato, produzir todos os seus efeitos, necessitando de norma regulamentadora infraconstitucional. Possuem, portanto, aplicabilidade indireta e mediata. Entretanto, vale ressaltar que estas normas possuem uma eficácia jurídica imediata, direta e vinculante no sentido de vincular o legislador ordinário aos seus vetores, impedindo que o legislador contrarie as diretrizes constitucionais.
Tendo em vista esta classificação, podemos observar a partir da leitura do texto constitucional que a previsão do art. 37 § 4º é de eficácia limitada, ou seja, necessita da edição da edição de lei para produzir todos seus efeitos, uma vez que ele delineia as sanções aplicáveis, mas incumbe à lei estabelecer a forma e a gradação.
Neste contexto, foi publicada no dia 03 de junho de 1992 no Diário Oficial da União a lei nº 8.429/92, a lei de improbidade administrativa, com a missão de regulamentar a matéria, assegurando a probidade, resguardando a incolumidade do patrimônio público, respeito aos princípios da Administração pública, com o ressarcimento ao erário e a punição aos agentes ímprobos.
A lei nº 8.429/92 passou a trazer os elementos que compõem o ato de improbidade, quais sejam os sujeitos, as condutas tipificadas, as sanções e as regras processuais, os quais serão tratados a seguir. A priori, o artigo 1º da mencionada lei já trouxe os sujeitos do ato de improbidade. O sujeito ativo é o agente público que pratica alguma das condutas descritas no tipo legal, seja de forma direta ou indireta, omissiva ou comissiva. Este agente público é tido no sentido amplo e encontra-se definido no artigo subsequente:
Art. 2° Reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior.
Este conceito abarca todos aqueles que exercem qualquer mandato, cargo, emprego ou função pública, sejam estes, inclusive, os agentes de fato ou agentes políticos, excepcionando tão somente o Presidente da República, em função da expressa disposição constitucional que estabelece que os atos do Presidente que atentam contra a probidade administrativa são crimes de responsabilidade, entendimento já ratificado pelo Supremo no Pet 3240 AgR/DF.
Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
[…]
V – a probidade na administração;
Além disso, a lei nº 8.429/92 na sua redação original também previa condenação por improbidade administrativa a terceiros que não possuíssem vínculo com o Poder público, mas que tivessem induzido ou concorrido com a prática do ato ou ainda houvessem se beneficiado de forma direta ou indireta, conforme preceituava art. 3º.
Já o sujeito passivo é aquele que sofre o dano decorrente da conduta ímproba, podendo ser, de acordo com a escrita de 1992, a Administração pública direta, indireta, os territórios, empresas incorporadas ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita anual. A lei ainda previa a possibilidade de outras pessoas jurídicas integrarem o polo passivo da ação de improbidade, conforme antiga redação do parágrafo único:
Parágrafo único. Estão também sujeitos às penalidades desta lei os atos de improbidade praticados contra o patrimônio de entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público bem como daquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita anual, limitando-se, nestes casos, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos
A LIA ainda previa as condutas consideradas ímprobas, estando elas divididas em três modalidades, quais sejam, os atos que importem enriquecimento ilícito, que causem prejuízo ao erário ou ainda os que atentem contra os princípios da Administração Pública.
As condutas mais gravosas, previstas no artigo 9º da LIA, são os atos que importam enriquecimento ilícito, ou seja, atos com acréscimo patrimonial obtido de forma indevida em razão do vínculo com a Administração Pública, este artigo traz um rol exemplificativo destas condutas.
Já no artigo seguinte, estava previsto o rol, novamente meramente exemplificativo, de condutas omissivas e comissivas que, dolosa ou culposamente, ensejam perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades mencionadas pela lei como sujeito passivo do ato. Estes são os atos de improbidade que implicam em prejuízo ao erário.
Por fim, a redação original da lei nº 8.429/92, dispõe no artigo 11 acerca dos atos que atentam contra os princípios da Administração Pública, caracterizando-os como “qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições”. Estas condutas constituem as condutas menos gravosas e também estavam dispostas em um rol exemplificativo.
É importante destacar que nas hipóteses de uma determinada conduta ensejar mais de uma tipificação deve prevalecer a caracterização da modalidade mais gravosa, ou seja, se por exemplo houver uma ação que implique em enriquecimento ilícito e prejuízo ao erário, será afastada a pena de ressarcimento, pois não é possível em concurso entre as modalidades de improbidade administrativa, para cada ato de improbidade administrativa, deverá necessariamente ser indicado apenas um tipo dentre aqueles previstos na lei (Resp 1.412.214-PR).
Ademais, com relação às condutas tipificadas como atos de improbidade administrativa, é de suma importância destacar que a redação original da lei nº 8.429/92 impôs a necessidade de que a conduta que importa enriquecimento ilícito, prejuízo ao erário ou violação aos princípios seja qualificada pelo elemento subjetivo do sujeito ativo. Todas as modalidades de improbidade administrativa podem ser caracterizadas se estiverem acompanhadas do elemento dolo e, no caso de prejuízo ao erário, também é admitida a modalidade culposa, ou seja, por negligência, imprudência ou imperícia.
Conforme já dito, a Constituição deixou a cargo da legislação determinar a gradação das sanções aplicáveis aos atos de improbidade. A princípio, observa-se que o legislador ampliou o rol de penalidades que podem ser aplicadas ao agente ímprobo, acrescentando-se a possibilidade de aplicação de multa e proibição de contratar com o Poder público ou dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios por determinado tempo, às já previstas constitucionalmente, quais sejam, suspensão de direitos políticos, perda da função pública, indisponibilidade de bens e ressarcimento ao erário. Estas cominações variam de acordo com a gravidade e a natureza da conduta praticada, podendo ser aplicadas de forma isolada ou cumulativa.
A lei nº 8.429/92 previa na redação original do artigo 12, incisos I, II e III as sanções que podem ser aplicadas aos agentes ímprobos enquadrados em cada uma das modalidades acima descritas, quais sejam:
Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas, previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações:
I – na hipótese do art. 9°, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, quando houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de oito a dez anos, pagamento de multa civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos;
II – na hipótese do art. 10, ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos;
III – na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.
Vale destacar ainda, que o parágrafo único do mesmo artigo, dá uma diretriz ao julgador, destacando que na fixação das penas ele levará em conta a extensão do dano causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente.
Além de tudo isso, a Lei nº 8.429/92, em sua versão original, trazia detalhes de como a Ação de Improbidade Administrativa deveria ocorrer, tanto no âmbito administrativo, quanto na esfera judicial, apresentando detalhes do procedimento como a legitimidade para a representação (art. 14 c/c art. 22), medidas cautelares e a prescrição de 05 (cinco) anos.
Alterações trazidas pela lei 14.230/2021 (Mudança substancial!)
Acontece que em 25 de outubro de 2021, foi publicada a Lei nº 14.230, que alterou de forma substancial a Lei nº 8429, de 02 de junho de 1992 (LIA), positivando e solidificando entendimentos jurisprudenciais e trazendo inovações tanto materiais quanto processuais no combate à improbidade administrativa.
Dentre as principais mudanças que a “nova” Lei de Improbidade Administrativa trouxe, podem-se destacar, por exemplo, as alterações relativas à prescrição, com o aumento do prazo prescricional na apuração de atos de improbidade e a modificação nos marcos temporais para o início de sua contagem, a mudança nas penalidades aplicáveis a cada modalidade de Improbidade e a nova caracterização do ato de improbidade como a conduta funcional dolosa do agente público devidamente tipificada em lei, revestida de fins ilícitos e que tenha o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade (vide artigos 1º, §§1º, 2º e 3º, e 11, §§1º e 2º), da qual passaremos a tratar.
Dolo e culpa na Nova Lei de improbidade Administrativa
Como dito anteriormente, a “nova” Lei de Improbidade Administrativa passou a trazer de maneira expressa a necessidade do elemento subjetivo dolo para a responsabilização por improbidade administrativa, definindo-o inclusive em seu art. 1º §2º como “a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente”
Importante destacar que este dolo tratado no novo dispositivo legal não é um dolo genérico (lato sensu), como era anteriormente entendido pela Jurisprudência (AgInt no AREsp 1184699/RJ e AgInt no REsp 1784729/SP), mas se trata de um dolo específico com finalidade de vontade de praticar uma conduta tipificada na lei.
Ou seja, a nova lei passou a não configurar mais os danos causados por imprudência, imperícia ou negligência como atos de improbidade. Como se sabe, anteriormente a esta alteração legislativa, a atuação culposa também poderia ensejar punição nas hipóteses de atos de improbidade que importassem dano ao erário (art. 10), o que não é mais possível diante do novo marco legal que modificou a redação deste dispositivo que incluía a culpa como elemento subjetivo deste tipo da improbidade, excluindo a possibilidade de condenação culposa e deixando apenas a ação ou omissão dolosa.
A nova lei deixa bem claro que não basta a voluntariedade ou o mero exercício da função para que seja configurado o ato de improbidade, explicitando, ainda, que não pode ser punida como improbidade a ação ou omissão decorrente de divergência na interpretação da lei. Deste modo, fica claro que apenas os atos que derivam da vontade livre e consciente do agente público em causar prejuízo ao erário, ferir os princípios da Administração Pública ou enriquecer ilicitamente podem ser enquadrados como improbidade administrativa
Entretanto, ainda que os atos praticados por agentes públicos de forma culposa que causem prejuízo ao erário não possam mais ser enquadrados como improbidade administrativa, é importante ressaltar que isto não exime os agentes da responsabilidade civil e administrativa pelo ato ilícito.
Retroatividade da lei 14.230/2021 em relação à necessidade da presença de dolo para a configuração do ato de improbidade administrativa que configure prejuízo ao erário
Tendo em vista essa mudança em relação à necessidade da presença do elemento dolo para configuração do ato de improbidade que importe em prejuízo ao erário e o fato de a Lei nº 14.230/2021 não trazer previsões acerca de um regime de transição, surgiu um grande debate na jurisprudência voltado à aplicação desta inovação legislativa aos atos praticados anteriormente à vigência da lei, tanto nos processos em curso quanto nos que ainda não haviam sido iniciados.
Tal imbróglio perdurou até que o Supremo Tribunal Federal fixasse tese no julgamento do Tema 1.199 da Repercussão Geral de Relatoria do Ministro Alexandre de Moraes publicado em 12 de dezembro de 2022, que tratava da (ir)retroatividade das previsões trazidas pela Lei Federal nº 14.230/2021.
1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se – nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA – a presença do elemento subjetivo – DOLO; 2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; 4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei.
Neste julgamento, um dos temas tratados foi a aplicação dos novos prazos prescricionais trazidos pela nova Lei de Improbidade. Em respeito ao ato jurídico perfeito e ao princípio da segurança jurídica, os novos prazos prescricionais foram declarados irretroativos, garantindo, deste modo, a eficácia plena dos atos validamente praticados antes da publicação da Lei nº 14.230/2021. Tal decisão fundamenta-se na natureza da prescrição, instituto que se dá pela inércia do titular de um direito, resultando na extinção da pretensão pelo decurso do tempo (art. 189 do Código Civil). Considerando isto, não se poderia caracterizar inércia retroativamente em razão de uma lei que reduz os prazos prescricionais, pois isso exigiria o impossível – que o poder público, que agiu diligentemente e dentro dos prazos vigentes à época, cumprisse uma exigência inexistente até então.
Por outro lado, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 897 de repercussão geral, é importante destacar que as ações de ressarcimento ao erário decorrentes da prática dolosa de atos tipificados na Lei de Improbidade Administrativa permanecem imprescritíveis.
Além disso, com relação ao elemento subjetivo necessário para configuração dos atos de improbidade administrativa, a tese reconheceu que, com o advento da Lei nº 14.230/21, publicada em 26 de outubro de 2021 e em vigor desde então, deixou de existir, no ordenamento jurídico brasileiro, a tipificação para atos culposos de improbidade administrativa, sendo necessária a presença do dolo, como já abordado ao longo do presente trabalho.
A tese reconhece que esta mudança legislativa é irretroativa, por força do artigo 5º, XXXVI, da CRFB/1988, que dispõe que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Deste modo, a necessidade da presença do elemento dolo para configuração do ato de improbidade que importe prejuízo ao erário não alcança as decisões que transitaram em julgado, ainda que estejam em processo de execução das penas, e seus incidentes.
Entretanto, é importante destacar que os efeitos da Lei nº 14.230/21 incidem em relação aos atos de improbidade culposos que foram praticados na vigência da antiga redação da Lei nº 8.429/1992, desde que não haja coisa julgada, ou seja, uma sentença condenatória transitada em julgado. Nesta hipótese, todos os atos processuais praticados no processo até então são válidos, devendo o juízo competente examinar a existência de dolo por parte do réu, não prosseguindo com as ações de improbidade baseadas apenas em condutas culposas não mais tipificadas. Vale destacar ainda que nestes casos, as ações poderão ser usadas com a finalidade de ressarcimento ao erário que independe da existência de dolo.
Neste sentido, a decisão do STF afastou a aplicação do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpida no artigo 5º, XL da Constituição Federal, aos atos de improbidade administrativa, devido ao fato do texto constitucional prever expressamente que tal retroatividade se deve à “lei penal”, não havendo assim, de acordo com o STF, previsão para aplicação do princípio a leis de outra natureza, e que, ainda, seria um desrespeito às rígidas regras constitucionais que tratam da Administração pública, prejudicando a responsabilização dos agentes ímprobos.
A natureza jurídica da Ação de improbidade
Diante de tudo até então exposto, torna-se imperioso refletir acerca da natureza jurídica da ação de improbidade administrativa. A ação de improbidade administrativa, em que pese toda a controvérsia doutrinária e jurisprudencial existente desde 1992, com o advento da Lei nº 8.429/92, ganhou contornos mais claros com o advento da “Nova” Lei de Improbidade de 2021.
A princípio, observa-se que no artigo 17-D o legislador deixou claro que a ação de improbidade não é uma ação civil, constituindo-se um instrumento repressivo e de caráter sancionatório, conforme segue abaixo:
Art. 17-D. A ação por improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal previstas nesta Lei, e não constitui ação civil, vedado seu ajuizamento para o controle de legalidade de políticas públicas e para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)
Ademais, apesar de ser uma ação repressiva e possuir similitude com as ações de natureza penal, a ação de improbidade administrativa não se confunde com as ações criminais, inexistindo inclusive prejudicialidade entre a propositura da ação que vise responsabilizar o sujeito ativo do ato ímprobo e eventual ação penal cabível, como preceituado na constituição federal artigo 37, §4º:
Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
Por conta disto, a ação de improbidade possui características distintas das ações de natureza penal como a não cominação de sanções criminais (reclusão, detenção…) e a ausência do princípio da intranscendência da pena presente no direito penal que dispõe que nenhuma pena passará da pessoa do condenado, enquanto na aplicação da Lei de Improbidade Administrativa, tem-se que a obrigação de reparar o dano, uma das sanções impostas ao réu, pode atingir o sucessor quanto a esses aspectos patrimoniais, pelo que passará a responder, na falta do réu, até o limite do valor da herança.
Reconhecendo estas características da ação de improbidade, deve-se atentar para a previsão expressa do artigo 1º, parágrafo 4º, da LIA que determina na aplicação do sistema de improbidade os preceitos do Direito Administrativo Sancionador.
§ 4º Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)
O Direito Administrativo Sancionador a que se refere a lei é uma disciplina do Direito Administrativo, que visa tutelar o interesse coletivo e a moralidade administrativa, por meio de uma punição imposta ao administrado ou jurisdicionado, de acordo com as regras e princípios do Direito Administrativo, como consequência da prática de um ilícito administrativo praticado de forma omissiva ou comissiva. Esta sanção pode ocorrer tanto no âmbito de um processo administrativo ou judicial, com o objetivo de reprimir condutas ilegais, constituindo uma resposta jurídica a comportamentos proibidos. (OSÓRIO, 2020, n.p.)
Deste modo, dizer que a ação de improbidade se guia pelo Direito Administrativo Sancionador implica que, como ensinado por Hugo Nigro Mazzili (2022):
[…] a Ação de improbidade administrativa, de que cuida a lei n. 8.429/92 com suas mais recentes alterações, não é uma ação meramente indenizatória ou reparatória de ilícito civil, e sim, por importar objeto específico e conter consequências punitivas de especial gravidade (como a perda da função pública e a restrição de direitos políticos) supõe a observância dos princípios constitucionais que são reservados ao processo administrativo sancionador.
Não aplicação do reformatio in mellius à “Nova” Lei de Improbidade
Conforme já visto, o STF decidiu pela não retroação sumária e imediata da nova lei de improbidade para os atos ímprobos culposos já transitados em julgado, devendo a lei nº 14.230/21 alcançar apenas os casos em que ainda não houve sentença irrecorrível.
Diante dessa decisão, podemos notar que o Supremo buscou combinar a retroatividade in mellius com a eficácia da coisa julgada, afastando o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, por entender que o fundamento deste princípio constitucional deve ser interpretado de forma restritiva, pois está relacionado ao direito à liberdade do criminoso (favor libertatis). Conforme o entendimento do STF, por esta ser uma particularidade apenas da lei penal, tal princípio não deve se estender a outras jurisdições, inclusive no que diz respeito à lei de improbidade que, por sua vez deve prestigiar o princípio tempus regit actum, no qual prevalece a regra geral da irretroatividade da lei e a preservação dos atos jurídicos perfeitos.
Para debater essa questão, deve-se de antemão entender o princípio da retroatividade mais benéfica e as disposições legais a respeito dele no nosso ordenamento jurídico. Além da disposição constitucional já citada ao longo do texto (artigo 5º, inciso XL), nosso ordenamento conta com o Pacto de São José da Costa Rica sobre direitos humanos, assinado em 22 de novembro de 1969 e ratificado em setembro de 1992, que, no artigo 9º, dispõe da seguinte maneira: “(…) Se, depois de perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o delinquente deverá dela beneficiar-se”. Além disso, o Código Penal Brasileiro também tratou da retroatividade no parágrafo único do artigo 2º, afirmando que “a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”.
Todos estes dispositivos tratam da incidência deste princípio em matéria penal. Entretanto, apesar de não serem mencionadas ações judiciais de outras naturezas, é importante destacar que a razão de ser do princípio da retroatividade da lei mais benéfica não se limita apenas ao favor libertatis, mas está relacionado à promoção de um tratamento isonômico e equitativo das pessoas, impedindo que alguém seja sancionado de forma mais gravosa apenas em razão do tempo em que o fato foi praticado, uma vez que aquela conduta já sofreu ajuste na sua valoração ético-social com mudança da sanção. Devido a isto, é perceptível que a retroatividade da lei mais benéfica é uma questão humanitária de justiça, não se justificando a manutenção da lei mais severa se esta não se mostra mais relevante do ponto de vista do direito sancionador, seja ele penal ou não.
Uma vez reconhecido que as garantias constitucionais que visam assegurar estabilidade e segurança jurídica aos particulares diante do Jus puniendi do Estado, observa-se que a retroatividade da lei mais benéfica é um direito fundamental que deve estar presente tanto na seara penal quanto na administrativa sancionatória, uma vez que ambos possuem este ponto de interseção.
Ademais, outro ponto problemático na decisão da Corte Constitucional está na argumentação de que a retroação das normas mais benéficas aos casos já transitados em julgado violaria os direitos fundamentais da coisa julgada e do ato jurídico perfeito (artigo 5º, XXXVI, da Constituição). Tal interpretação, entretanto, é um contrassenso, pois os direitos fundamentais são garantias dos indivíduos contra o Estado e, neste caso, foram usados justamente pelo Estado contra o indivíduo. Neste sentido, vale destacar ainda que, como já observado, a aplicação da lei mais benéfica em matéria sancionatória é uma garantia fundamental voltada à proteção dos indivíduos em face do poder punitivo do Estado, que nesta decisão foi preterida às “regras rígidas de regência da Administração Pública e [à] responsabilização dos agentes públicos corruptos com flagrante desrespeito e enfraquecimento do direito administrativo sancionador”.
Neste sentido, também é importante destacar que o STJ já havia se debruçado sobre o assunto, exarando entendimento por meio do Recurso Especial 1.153.083/MT, de relatoria do Min. Sérgio Kukina, julgado em 2014 e que versava sobre a possibilidade de aplicação retroativa da Lei n. 8.881 de 1994:
“[…] A retroação da lei mais benéfica é um princípio geral do Direito Sancionatório, e não apenas do Direito Penal. Quando uma lei é alterada, significa que o Direito está aperfeiçoando-se, evoluindo, em busca de soluções mais próximas do pensamento e anseios da sociedade. Desse modo, se a lei superveniente deixa de considerar como infração um fato anteriormente assim considerado, ou minimiza uma sanção aplicada a uma conduta infracional já prevista, entendo que tal norma deva retroagir para beneficiar o infrator. Constato, portanto, ser possível extrair do artigo 5º, XL, da Constituição da República princípio implícito do Direito Sancionatório, qual seja: a lei mais benéfica retroage. Isso porque, se até no caso de sanção penal, que é a mais grave das punições, a Lei Maior determina a retroação da lei mais benéfica, com razão é cabível a retroatividade da lei no caso de sanções menos graves, como a administrativa. Por outro lado, concordo com o Senhor Ministro Sérgio Kukina em não adotar a fundamentação apresentada na sentença e no acórdão do Tribunal de origem. Entendo deva aplicar a lei mais benéfica, não com base na aplicação analógica do art. 106 do Código Tributário Nacional, mas com fundamento no princípio implícito da retroatividade da lei mais benéfica, extraído do artigo 5º, XL, da Constituição da República, pertinente ao Direito Sancionatório”.
Como observado, o entendimento de que acerca da retroatividade da lei penal mais benéfica é um princípio extensível a todo Direito Sancionatório já estava presente na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça antes da decisão em análise do STF. Não obstante, em situação semelhante já posterior ao Tema 1.199 da Repercussão Geral, o Tribunal da cidadania reforçou este entendimento no julgamento do AgInt no REsp n. 2.024.133/ES, de relatoria da Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, julgado em 13/3/2023, DJe de 16/3/2023. Neste caso, é tratada da possibilidade de aplicação retroativa da Resolução 5.847/19 da ANTT – Agência Nacional de Transportes Terrestres, a uma transportadora. Tal norma reduziu a multa aplicável às infrações decorrentes do excesso de peso na estrada, sendo mais benéfica em comparação à Resolução vigente durante o cometimento da irregularidade, a ANTT 4.799/15. Neste sentido, decidiu o Tribunal que:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. APLICABILIDADE. RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA. POSSIBILIDADE. ART. 5º, XL, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. PRINCÍPIO DO DIREITO SANCIONATÓRIO. ARGUMENTOS INSUFICIENTES PARA DESCONSTITUIR A DECISÃO ATACADA. APLICAÇÃO DE MULTA. ART. 1.021, § 4º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. DESCABIMENTO.
I – Consoante o decidido pelo Plenário desta Corte na sessão realizada em 09.03.2016, o regime recursal será determinado pela data da publicação do provimento jurisdicional impugnado. In casu, aplica-se o Código de Processo Civil de 2015.
II – O art. 5º, XL, da Constituição da República prevê a possibilidade de retroatividade da lei penal, sendo cabível extrair-se do dispositivo constitucional princípio implícito do Direito Sancionatório, segundo o qual a lei mais benéfica retroage no caso de sanções menos graves, como a administrativa. Precedentes.
III – A Agravante não apresenta, no agravo, argumentos suficientes para desconstituir a decisão recorrida.
IV – Em regra, descabe a imposição da multa prevista no art. 1.021, § 4º, do Código de Processo Civil de 2015 em razão do mero desprovimento do Agravo Interno em votação unânime, sendo necessária a configuração da manifesta inadmissibilidade ou improcedência do recurso a autorizar sua aplicação, o que não ocorreu no caso.
V – Agravo Interno improvido.
(AgInt no REsp n. 2.024.133/ES, relatora Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, julgado em 13/3/2023, DJe de 16/3/2023.)
Como observado, o STJ concluiu “ser possível extrair do art. 5º, XL, da Constituição da República princípio implícito do Direito Sancionatório, qual seja: a lei mais benéfica retroage”, o que reforça a compreensão trazida ao longo do presente trabalho, de que a retroação mais benéfica deve ser entendida como uma garantia ao cidadão diante de qualquer esfera sancionadora do poder público, seja ela penal ou não. Deste modo, fica demonstrado o claro equívoco do Tema 1.199 da Repercussão Geral do STF, ao não aplicar de forma imediata tal princípio, por entender de forma equivocada que esta é uma particularidade apenas da lei penal, que não deveria se estender a outras jurisdições.
CONCLUSÃO
Desse modo, o presente estudo realizado acerca da (ir)retroatividade da Lei nº 14.230/2021, no que tange à exigência do elemento subjetivo dolo para a configuração do ato de improbidade administrativa que implique prejuízo ao erário, revela avanços significativos ao delimitar a responsabilização dos agentes públicos, restringindo-a à prática de atos dolosos, mas levanta, simultaneamente, questionamentos sobre os princípios constitucionais da segurança jurídica, da coisa julgada e da retroatividade benéfica.
Inicialmente, observa-se que a exigência do dolo específico, ao excluir a possibilidade de punição por condutas culposas, representa um esforço para alinhar o Regime Jurídico Administrativo aos princípios do Direito Administrativo Sancionador, que enfatiza a proporcionalidade e a culpabilidade no exercício do poder sancionatório estatal. Essa mudança reflete uma visão mais rigorosa na caracterização das condutas ímprobas, reforçando a necessidade de vontade livre e consciente de alcançar um resultado ilícito, como delineado pela nova norma. Tal posicionamento busca mitigar eventuais arbitrariedades e assegurar que a responsabilização de agentes públicos seja pautada por critérios objetivos e justos.
Por outro lado, a ausência de disposições expressas na Lei nº 14.230/2021 sobre um regime de transição gerou intensa controvérsia jurídica, especialmente em relação à aplicação retroativa das normas mais benéficas. O Supremo Tribunal Federal, ao fixar a tese no julgamento do Tema 1.199 da Repercussão Geral, reconheceu a irretroatividade das inovações trazidas pela nova LIA em face de decisões já transitadas em julgado, justificando tal entendimento com base nos princípios constitucionais da coisa julgada e do ato jurídico perfeito. No entanto, tal decisão limitou a aplicação da retroatividade benéfica aos casos em que não houve trânsito em julgado, permitindo a revisão judicial para analisar a presença do dolo nos atos anteriormente enquadrados como culposos.
Essa interpretação que afasta o princípio da retroatividade da norma mais benéfica, tradicionalmente aplicado em matéria penal e sancionatória, suscita debates sobre a extensão das garantias fundamentais no contexto do Direito Administrativo Sancionador, uma vez que conforme amplo entendimento o princípio da retroatividade da norma mais favorável, insculpido no artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal, deveria ser aplicado de forma ampla, alcançando todas as esferas sancionatórias, incluindo a improbidade administrativa. Tal compreensão encontra respaldo na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que reiteradamente reconhece a retroatividade benéfica como um princípio geral do Direito Sancionador, destinado a promover a justiça e a equidade nas relações entre o Estado e os indivíduos.
Nesse sentido, a decisão do STF ao não aplicar retroativamente as alterações da LIA a casos transitados em julgado pode ser interpretada como uma espécie de desvalorização dos direitos fundamentais frente à busca por efetividade na responsabilização dos agentes públicos. Ao priorizar a estabilidade das decisões judiciais, a Corte deixou de considerar que as mudanças legislativas refletem uma evolução ética e jurídica no tratamento das condutas ímprobas, o que demandaria uma reavaliação dos casos já decididos sob a égide da norma anterior.
Sendo assim, é possível observar que a decisão do STF, ao tratar da retroatividade da exigência do dolo para configuração de improbidade administrativa, não foi a mais adequada, pois ao buscar o efetivo combate à improbidade administrativa, não se deve prescindir do dever de respeitar os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos em face do ius puniendi do Estado e do dever de se submeter aos princípios gerais do Direito Sancionador, tal qual o da retroatividade da norma mais benéfica.
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