REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202502121439
Karina Coutinho da Fonseca1
RESUMO
A partir de meados do século XX, o Brasil vivenciou um período de intensa urbanização e industrialização, impulsionado por políticas governamentais de substituição de importações e incentivos à produção local. Essa mudança, marcada pela migração maciça de trabalhadores para centros urbanos, resultou em disparidades socioeconômicas que persistem até os dias atuais. A desigualdade na distribuição de recursos, com concentração de financiamento e talentos em determinadas regiões, agrava as disparidades existentes e dificulta a criação de um ecossistema científico mais equitativo. Para superar os desafios, agravados pela enorme extensão territorial do Brasil, o país tem implementado diversas estratégias que considerem os objetivos fundamentais da República; sendo uma delas, a repartição de receitas e os incentivos fiscais. Apesar disso, a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal, especialmente em casos emblemáticos como a ADI 5.929, julgada em fevereiro de 2020, sugere uma tendência à priorização da eficiência econômica sobre a equidade regional. Qual o papel do federalismo fiscal brasileiro na superação das assimetrias regionais e qual sua efetividade real são objetos de investigação deste artigo. Para tanto, adotou-se como método o hipotético-dedutivo e como técnica de pesquisa levantamento bibliográfico, análise documental e estudo de caso. Já no que diz respeito à metodologia proposta, o estudo se fundamentará na análise das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral, nos últimos 10 anos (período de 2014 a 2024), com foco específico nas questões relacionadas ao federalismo fiscal e mecanismos de repartição de receitas. O segundo momento metodológico consistirá na análise qualitativa aprofundada dos métodos interpretativos utilizados pelo STF. Esta etapa incluirá a identificação e categorização dos diferentes métodos hermenêuticos empregados pela Corte, como interpretação sistemática, teleológica, histórica e literal, bem como a análise de como estes métodos se relacionam com os resultados das decisões em termos de impacto no federalismo fiscal.
Palavras chave: Federalismo fiscal. Repartição de receitas. Interpretação constitucional.
ABSTRACT
From the mid-20th century onwards, Brazil experienced a period of intense urbanization and industrialization, driven by government policies to replace and encourage local production. This change, marked by the expansion of workers to urban centers, resulted in socioeconomic disparities that persist to this day. The inequality in the distribution of resources, with the concentration of funding and talent in certain regions, exacerbates existing disparities and hinders the creation of a more equitable scientific ecosystem. To overcome these challenges, aggravated by Brazil’s vast territorial extension, the country has implemented several strategies that consider the fundamental objectives of the Republic; one of them is revenue sharing and tax incentives. Despite this, the interpretation given by the Supreme Federal Court, especially in emblematic cases such as ADI 5.929, suggests a tendency to prioritize economic efficiency over regional assets. The role of Brazilian fiscal federalism in overcoming regional asymmetries and its real effectiveness are the subjects of investigation in this article. To this end, the hypothetical-deductive method was developed and the research technique was bibliographical survey, documentary analysis and case study. Regarding the proposed methodology, the study will be based on the analysis of decisions handed down by the Supreme Federal Court, in terms of general repercussion, in the last 10 years (period from 2014 to 2024), with a specific focus on issues related to fiscal federalism and revenue sharing mechanisms. The second methodological moment will consist of an in-depth qualitative analysis of the interpretative methods used by the STF, using the content analysis techniques proposed by Laurence Bardin, adapted to the legal context. This stage will include the identification and categorization of the different hermeneutic methods used by the Court, such as systematic, teleological, historical and literal interpretation, as well as the analysis of how these methods relate to the results of the decisions in terms of their impact on fiscal federalism.
1. INTRODUÇÃO
O federalismo fiscal no Brasil desempenha um papel crucial na promoção do desenvolvimento regional e na redução das desigualdades socioeconômicas entre as diferentes regiões do país. A questão apresenta complexidades que vão muito além da mera distribuição de recursos entre os entes federativos. É possível observar que, ao longo dos últimos anos, a interpretação constitucional desses mecanismos tem sido fortemente influenciada por uma perspectiva neoliberal, o que nos leva a questionar: até que ponto essa abordagem tem contribuído para a perpetuação das desigualdades regionais?
Quando analisamos os principais desafios na repartição de receitas no Brasil, nos deparamos com um cenário paradoxal. Por um lado, a Constituição Federal estabelece como objetivo fundamental a redução das desigualdades regionais. Por outro, a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal, sugere, por vezes, uma tendência à priorização da eficiência econômica sobre a equidade regional. É interessante notar como esse posicionamento dialoga com o que Celso Furtado já alertava sobre os riscos da subordinação do desenvolvimento regional à lógica do mercado.
Fernando Rezende, um dos principais pesquisadores contemporâneos sobre o tema, tem argumentado que o atual modelo de federalismo fiscal brasileiro pode estar criando um ciclo vicioso de dependência. Suas análises sugerem que, paradoxalmente, os mecanismos constitucionais de repartição de receitas, em vez de promoverem autonomia, podem estar reforçando padrões históricos de desigualdade. Esta perspectiva encontra eco nos estudos de Tânia Bacelar de Araújo, que tem demonstrado como as políticas de fomento empresarial, quando não adequadamente articuladas com objetivos sociais, podem ampliar disparidades existentes.
É particularmente interessante observar como o STF tem navegado essas águas turbulentas. Em casos como o da guerra fiscal, por exemplo, a Corte parece oscilar entre uma interpretação mais formalista do pacto federativo e o reconhecimento da necessidade de flexibilização em prol do desenvolvimento regional. Mas será que essa abordagem tem sido suficiente considerando as complexidades do problema?
José Roberto Afonso traz uma perspectiva provocativa ao sugerir que talvez estejamos olhando para o problema através das lentes erradas. Em vez de focar exclusivamente nos mecanismos de distribuição, ele propõe que deveríamos questionar a própria estrutura do sistema tributário brasileiro. Esta abordagem nos convida a refletir: será que uma reforma mais profunda não seria necessária?
Um caso particularmente ilustrativo é o julgamento da Lei Complementar 160/2017, que tratou da convalidação de incentivos fiscais. A decisão do STF neste caso pode indicar uma tendência à flexibilização do entendimento sobre guerra fiscal, mas também levanta questões importantes sobre os limites da autonomia federativa e sua relação com o desenvolvimento regional.
Quando observamos as experiências internacionais, como o caso alemão de equalização fiscal, é possível perceber que existem alternativas ao modelo brasileiro. No entanto, é crucial reconhecer que as soluções não podem ser simplesmente transplantadas, dadas as peculiaridades do nosso contexto histórico e social.
A influência do discurso neoliberal na interpretação constitucional desses mecanismos merece especial atenção. Há uma chance de que a predominância dessa perspectiva esteja limitando nossa capacidade de imaginar soluções mais criativas e efetivas para o problema das desigualdades regionais. Como sugere Gilberto Bercovici, talvez seja necessário repensar a própria forma como interpretamos o federalismo fiscal à luz dos objetivos fundamentais da República.
As políticas de fomento empresarial, quando analisadas sob a ótica do desenvolvimento regional, por exemplo, apresentam resultados ambíguos. É provável que sua efetividade esteja sendo comprometida pela falta de uma visão mais integrada e de longo prazo. Os estudos de Marcus Faro de Castro sobre direito e desenvolvimento podem oferecer insights valiosos para repensar essas políticas.
Marcus Faro de Castro, em seus estudos sobre direito e desenvolvimento, destaca que políticas públicas voltadas ao fomento empresarial devem ser planejadas com uma visão integrada e de longo prazo, articulando incentivos econômicos com objetivos sociais mais amplos. Segundo o autor, a ausência dessa articulação pode comprometer não apenas a efetividade das políticas, mas também aprofundar desigualdades regionais já existentes (Castro, 2011).
Em última análise, o que se observa é um campo de estudo em constante evolução, onde as certezas são poucas e os desafios são muitos. Talvez o caminho para uma compreensão mais profunda do problema passe por um diálogo mais intenso entre diferentes perspectivas teóricas e uma maior atenção às experiências concretas dos entes federativos.
Como podemos avançar na construção de um federalismo fiscal que seja verdadeiramente promotor do desenvolvimento regional? Esta é uma questão que continua a desafiar pesquisadores e gestores públicos, e cuja resposta talvez requeira uma disposição para questionar pressupostos estabelecidos e explorar novos caminhos interpretativos.
Diante desse cenário complexo, a escolha do recorte temporal delimitado neste artigo justifica-se pelas mudanças econômicas e políticas sérias ocorridas no Brasil nesse período, incluindo crises fiscais estaduais e debates sobre reforma tributária, que influenciaram diretamente a judicialização de questões relacionadas à repartição de receitas.
Para a análise qualitativa das decisões, foram empregadas as técnicas de análise de conteúdo propostas por Laurence Bardin, adaptadas ao contexto jurídico. Essa adaptação envolve a definição de categorias analíticas específicas para o estudo dos métodos interpretativos do STF, como interpretação sistemática, teleológica, histórica e literal. Cada decisão foi segmentada em unidades de registro (como votos dos ministros e fundamentos das decisões), permitindo a identificação das estratégias argumentativas predominantes e sua relação com os resultados práticos em termos de impacto no federalismo fiscal.
A coordenação das decisões um processo estruturado, no qual cada unidade foi abordada dentro das categorias previamente definidas. Posteriormente, as decisões foram comparadas para identificar padrões interpretativos recorrentes e tendências decisórias. Essa abordagem possibilitou não apenas uma análise crítica dos métodos hermenêuticos empregados pelo STF, mas também uma reflexão sobre como essas escolhas interpretativas influenciam o equilíbrio federativo e a redução das desigualdades regionais.
2. FEDERALISMO FISCAL E SEUS MECANISMOS CONSTITUCIONAIS
O federalismo fiscal no Brasil é caracterizado por um complexo sistema de repartição de receitas entre a União, os estados e os municípios, com o objetivo de reduzir as desigualdades regionais e promover o desenvolvimento equilibrado. Os principais mecanismos constitucionais que sustentam esse sistema são o Fundo de Participação dos Estados (FPE), o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e os fundos constitucionais de desenvolvimento, como o FNO, FNE e FCO. Esses instrumentos foram criados para redistribuir parte da arrecadação federal, principalmente do Imposto sobre a Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), favorecendo as regiões menos desenvolvidas do país.
2.1 Critérios de Repartição do FPE e FPM
O Fundo de Participação dos Estados (FPE) foi instituído pela Emenda Constitucional nº 18/1965, com o objetivo de redistribuir receitas da União para os estados, priorizando aqueles com menor capacidade econômica. A Constituição Federal de 1988 manteve essa estrutura, determinando que 21,5% da arrecadação do IR e do IPI sejam destinados ao FPE. A Lei Complementar nº 62/1989 estabeleceu que 85% dos recursos sejam alocados às regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, enquanto os 15% restantes são distribuídos entre as regiões Sul e Sudeste (Rezende, 2020).
O critério principal para a distribuição dos recursos é a renda per capita estadual, visando reduzir as disparidades econômicas entre as regiões. No entanto, há críticas quanto à eficácia desse mecanismo em alcançar seus objetivos. Estudos recentes indicam que o FPE não tem sido suficiente para promover uma equalização fiscal efetiva entre os estados. Em muitos casos, as transferências perpetuam a dependência financeira dos estados em relação à União, sem promover um crescimento econômico sustentável (Afonso & Araújo, 2019).
O Fundo de Participação dos Municípios (FPM) segue uma lógica semelhante ao FPE, sendo composto por 22,5% da arrecadação do IR e do IPI. A distribuição dos recursos é baseada na população municipal e na renda per capita. Municípios menores e com menor capacidade econômica recebem uma parcela maior dos recursos. No entanto, assim como no caso do FPE, há críticas sobre a eficácia dessas transferências em promover o desenvolvimento local sustentável. Municípios maiores com maior capacidade de arrecadação própria muitas vezes não são beneficiados adequadamente pelo FPM (Araújo & Prado, 2021).
2.2 Fundos Constitucionais de Desenvolvimento
Os fundos constitucionais de desenvolvimento foram criados pela Constituição Federal de 1988 com o objetivo de fomentar o desenvolvimento econômico nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Os principais fundos são o Fundo Constitucional de Financiamento do Norte (FNO), o Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE) e o Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste (FCO). Esses fundos são financiados por 3% da arrecadação do IR e IPI: 0,6% vai para o FNO, 0,6% para o FCO e 1,8% para o FNE.
Esses fundos têm como objetivo financiar projetos produtivos nessas regiões menos desenvolvidas por meio de linhas de crédito oferecidas por instituições financeiras federais. Entre 2014 e 2024, houve um aumento significativo nos investimentos realizados pelos fundos constitucionais. Em 2023, mais de R$ 65 bilhões foram investidos em operações de crédito pelo FNE, FNO e FCO (Rezende & Prado, 2023). No entanto, a eficácia desses fundos na promoção do desenvolvimento regional ainda é debatida. Embora tenham contribuído para o crescimento econômico em algumas áreas específicas dessas regiões, há críticas quanto à concentração dos recursos em áreas mais desenvolvidas dentro das próprias regiões beneficiadas.
Um exemplo claro de crítica à concentração dos recursos dos Fundos Constitucionais de Desenvolvimento em áreas mais desenvolvidas dentro das próprias regiões beneficiadas pode ser observado no Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE), Fundo Constitucional de Financiamento do Norte (FNO) e Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste (FCO). Entre os anos agrícolas de 2013/14 e 2020/21, os 5% dos municípios que mais tomaram crédito rural desses fundos concentraram, em média, 41% dos recursos do FNE, 36% dos recursos do FNO e 24% dos recursos do FCO. Essas proporções são superiores à participação desses municípios no valor da produção agropecuária, indicando um maior acesso ao financiamento por parte dessas áreas mais desenvolvidas.
Essa concentração é facilitada por definições abrangentes de prioridades tanto em termos de porte de produtores quanto de municípios favorecidos. Por exemplo, até 2010, a prioridade era dada para produtores de pequeno porte com renda bruta anual até R$ 300.000. No entanto, a partir de 2011, foi criada uma nova classe prioritária denominada porte pequeno-médio, que incluiu beneficiários com renda bruta anual até R$ 16 milhões. Essa expansão das prioridades permitiu que produtores maiores e municípios mais desenvolvidos tivessem maior acesso aos recursos, o que contribuiu para a concentração dos financiamentos (Climate Policy Initiative, 2021).
Essa crítica revela que, embora os fundos constitucionais tenham como objetivo promover o desenvolvimento das regiões menos favorecidas, a forma como os critérios de distribuição são aplicados pode acabar beneficiando desproporcionalmente áreas já relativamente mais desenvolvidas dentro dessas regiões.
2.3 Guerra Fiscal e Autonomia Federativa
A guerra fiscal é um fenômeno que se intensificou no Brasil nas últimas décadas devido à competição entre os estados pela atração de investimentos privados por meio da concessão de incentivos fiscais. Os incentivos fiscais concedidos pelos estados geralmente envolvem reduções ou isenções no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), visando atrair empresas para gerar empregos locais.
Embora essa prática possa beneficiar estados individualmente no curto prazo ao atrair investimentos privados específicos, seus efeitos negativos sobre a federação como um todo são amplamente reconhecidos. A guerra fiscal fragmenta o sistema tributário nacional ao criar distorções econômicas entre as regiões. Estados mais ricos tendem a oferecer incentivos fiscais mais vantajosos devido à sua maior capacidade financeira, enquanto estados mais pobres sacrificam receitas futuras sem garantir um retorno proporcional em termos de desenvolvimento econômico (Araújo & Prado, 2021).
Como adiante se verá, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem desempenhado um papel importante na tentativa de regular essa prática. No entanto, apesar de suas decisões muitas vezes serem contrárias à guerra fiscal desregulada, muitos estados continuam utilizando esse mecanismo como estratégia competitiva.
3. FEDERALISMO FISCAL E INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
O federalismo fiscal brasileiro, enquanto mecanismo de repartição de receitas, enfrenta desafios complexos no equilíbrio entre a autonomia dos entes federativos e a promoção da justiça fiscal. Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal (STF) desempenha um papel central ao interpretar normas constitucionais, moldando a dinâmica entre eficiência econômica e equidade regional em suas decisões.
3.1 Evolução Histórica da Jurisprudência do STF (2014-2024)
Entre 2014 a 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) consolidou uma jurisprudência significativa em matéria de federalismo fiscal, com foco na repartição de receitas entre a União, estados e municípios. Durante esse período, a Corte buscou equilibrar a autonomia dos entes federativos com a necessidade de promover a justiça fiscal e o desenvolvimento regional. Esse esforço se refletiu em decisões que tentaram mitigar os efeitos da guerra fiscal e garantir uma distribuição mais equitativa dos recursos públicos.
Um dos julgamentos mais emblemáticos desse período foi a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.929, que tratou da concessão unilateral de incentivos fiscais pelos estados sem a aprovação do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ). O STF declarou inconstitucionais essas práticas, reafirmando que elas violam o pacto federativo ao comprometerem a arrecadação compartilhada com os municípios. Essa decisão teve um impacto significativo ao reforçar a necessidade de coordenação entre os entes federados para evitar distorções fiscais entre as regiões (Afonso & Araújo, 2020).
Outro caso relevante foi o julgamento dos Temas de Repercussão Geral 42, 653 e 1130, que lidaram com a repartição das receitas tributárias entre estados e municípios.
No Tema 42, o STF ampliou a interpretação da expressão “produto da arrecadação”, garantindo que os municípios tivessem direito à totalidade das receitas tributárias, independentemente da concessão de benefícios fiscais pelos estados. Esse entendimento consolidou a posição do STF em favor da preservação das receitas municipais, mesmo quando os incentivos fiscais estaduais impactassem diretamente na base de cálculo dos tributos compartilhados (Rezende & Prado, 2023).
Ao longo dessa década, o STF demonstrou uma evolução jurisprudencial que buscava mitigar os efeitos negativos da guerra fiscal e garantir uma distribuição mais justa das receitas entre os entes federativos. No entanto, essa evolução também revelou tensões entre a autonomia estadual e as necessidades de controle centralizado para evitar desequilíbrios fiscais.
3.2 Análise dos Métodos Interpretativos Predominantes (2014-2024)
O Supremo Tribunal Federal (STF), ao longo dos últimos dez anos, utilizou diferentes métodos interpretativos para decidir questões relacionadas ao federalismo fiscal, cada um com implicações específicas para a promoção da justiça fiscal e do desenvolvimento regional. A interpretação sistemática, por exemplo, buscou integrar os dispositivos constitucionais em um todo coerente, considerando princípios fundamentais como o pacto federativo e a igualdade entre os entes federados. Em decisões como a ADI 5.929, esse método foi essencial para alinhar as normas de repartição de receitas aos objetivos constitucionais mais amplos.
A interpretação teleológica destacou-se por priorizar os fins pretendidos pelas normas constitucionais, especialmente no que tange à redução das desigualdades regionais. Esse método foi frequentemente utilizado pelo STF para justificar decisões que visavam garantir recursos suficientes aos entes subnacionais, como observado no julgamento do Tema 42 da Repercussão Geral. Nesse contexto, o Tribunal interpretou as normas de repartição de receitas com base em sua finalidade última, ou seja, a promoção do desenvolvimento regional e o fortalecimento da autonomia municipal.
Por outro lado, a interpretação literal também teve espaço em algumas decisões do STF, especialmente em casos onde a clareza textual das normas constitucionais era suficiente para resolver o conflito jurídico. No julgamento do Tema 653 da Repercussão Geral, por exemplo, o Tribunal aplicou esse método ao determinar que os municípios têm direito à parcela “do produto da arrecadação” dos impostos estaduais, independentemente de benefícios fiscais concedidos pelos estados.
A análise desses métodos interpretativos pode ser enriquecida pela perspectiva teórica apresentada na obra “Tratado da Argumentação” de Perelman e Olbrechts-Tyteca. Os autores destacam que a argumentação jurídica é construída com base na adaptação do discurso ao auditório específico.
No caso do STF, os ministros frequentemente moldam seus argumentos para persuadir diferentes públicos — desde seus pares na Corte até a sociedade em geral. Além disso, os argumentos utilizados pelo Tribunal frequentemente combinam elementos quase-lógicos e baseados na estrutura do real, como relações causais entre incentivos fiscais e desenvolvimento regional.
A escolha entre esses métodos interpretativos reflete não apenas a complexidade das questões enfrentadas pelo STF, mas também seu papel como mediador das tensões entre eficiência econômica e equidade regional. Essa diversidade metodológica demonstra que as decisões da Corte não são apenas técnicas ou neutras; elas são também profundamente influenciadas por valores subjacentes e pela necessidade de construir consensos em um contexto jurídico e político altamente dinâmico.
3.3 Influência do Discurso Neoliberal nas Decisões
Nos últimos anos, observou-se uma crescente influência do discurso neoliberal nas decisões do STF sobre federalismo fiscal. Essa perspectiva tem moldado a interpretação constitucional dos mecanismos de repartição de receitas ao priorizar princípios como eficiência econômica e competitividade entre os estados.
A análise econômica do Direito (AED), amplamente discutida por autores como Richard Posner, oferece uma abordagem pragmática ao Direito ao enfatizar as consequências econômicas das decisões judiciais (Wykrota et al., 2018). A guerra fiscal é um exemplo claro dessa influência.
Embora o STF tenha tentado regular essa prática por meio de decisões como na ADI 5.929, há indícios de que algumas decisões refletem uma aceitação tácita da lógica neoliberal subjacente à competição fiscal entre os estados (Gico Jr., 2007). Ao permitir certa flexibilização na concessão de incentivos fiscais em prol da atração de investimentos privados, o STF parece ter adotado uma postura que favorece a eficiência econômica sobre a equidade regional, pois considera, lado outro, que os incentivos fiscais são ferramentas válidas para promover o desenvolvimento econômico dos estados.
Essa priorização da eficiência econômica pode ser vista também no julgamento do Tema 1130, onde o STF decidiu que os estados têm liberdade para instituir benefícios fiscais desde que respeitem as regras estabelecidas pelo CONFAZ. Embora essa decisão tenha reforçado a necessidade de coordenação entre os entes federados, ela também reflete uma aceitação da lógica competitiva inerente ao discurso neoliberal.
As consequências dessa tendência neoliberal são significativas para o federalismo brasileiro. Ao favorecer práticas competitivas entre os estados em detrimento da equidade regional, há um risco crescente de perpetuação das desigualdades socioeconômicas já existentes no país. Além disso, essa abordagem pode comprometer a capacidade dos estados mais pobres de competir por investimentos privados sem sacrificar suas receitas futuras.
4. ANÁLISE CRÍTICA DOS CASOS PARADIGMÁTICOS E EMBLEMÁTICOS
A análise dos casos paradigmáticos julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em matéria de federalismo fiscal permite compreender como a Corte tem equilibrado os princípios de autonomia federativa, justiça fiscal e desenvolvimento regional. Decisões emblemáticas, como a ADI 5.929 e os Temas de Repercussão Geral 653 e 1130, ADI 5835/DF e o RE 1.2.288.634/SP refletem o esforço entre eficiência econômica e equidade na repartição de receitas.
Na ADI 5.929, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra dispositivos da Lei Complementar nº 160/2017, a PGR argumentou que a prática de concessão unilateral de incentivos fiscais pelos Estados violaria o pacto federativo ao permitir que a adoção de políticas tributárias descoordenadas, comprometendo a arrecadação dos municípios e favorecendo estados com maior capacidade econômica. Sob a relatoria do ministro Edson Fachin, o STF declarou inconstitucionais as concessões unilaterais, mas validou os incentivos já concedidos, desde que fossem regularizados por convênios no âmbito do CONFAZ, no futuro.
Fachin destacou que a guerra fiscal desestabiliza o equilíbrio federativo, enquanto ministros como Gilmar Mendes enfatizaram a necessidade de preservar a autonomia estadual dentro dos limites constitucionais para evitar prejuízos à cooperação federativa (STF, ADI 5.929; Rezende & Prado, 2023).
O Tema de Repercussão Geral 653, julgado em 16 de novembro de 2016, por sua vez, envolveu um recurso extraordinário interposto pela União contra municípios que questionavam o impacto da concessão de benefícios fiscais sobre o cálculo das receitas destinadas ao Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Os municípios alegaram que as isenções fiscais concedidas unilateralmente pela União sobre impostos como o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e o Imposto de Renda (IR) reduziriam indevidamente os valores repassados ao FPM, comprometendo sua capacidade financeira.
O STF, também sob a relatoria do ministro Edson Fachin, decidiu que as regras constitucionais de repartição não impedem a União dê benefícios fiscais, mas determinou que esses benefícios não podem reduzir os valores destinados aos municípios.
A decisão adotou uma abordagem sistemática e teleológica, priorizando a preservação da autonomia financeira dos municípios e sua capacidade de implementação de políticas públicas essenciais (STF, Tema 653; UNIFACS, 2023).
No Tema de Repercussão Geral 1130, julgado em 11 de outubro de 2021, o STF analisou um recurso extraordinário interposto por municípios contra estados em disputa pela titularidade das receitas arrecadadas a título de imposto de renda retido na fonte (IRRF) em operações realizadas no âmbito municipal. Os municípios argumentaram que, conforme o artigo 158 da Constituição Federal, essas receitas deveriam ser integralmente destinadas às administrações municipais para garantir sua autonomia financeira e promover o desenvolvimento local.
Sob a relatoria do ministro Luís Roberto Barroso , o STF reafirmou que as normas constitucionais sobre repartição de receitas devem ser interpretadas à luz do princípio do desenvolvimento regional.
Barroso destacou que fortalecer a capacidade financeira dos municípios é essencial para reduzir as desigualdades regionais e garantir uma implementação eficaz das políticas públicas locais. Ministros como Rosa Weber acompanharam essa visão, enquanto outros, como Nunes Marques , expressaram preocupações sobre os impactos econômicos dessa decisão para os estados.
A ADI 5835/DF, julgada em 05 de junho de 2023, ajuizada pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro (CONSIF) em conjunto com a Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (CNSeg), questionou a constitucionalidade dos dispositivos da Lei Complementar nº 157/2016 e da Lei Complementar nº 175/2020. Essas normas alteram as regras de incidência do Imposto Sobre Serviços (ISS), deslocando o local de arrecadação do imposto para o município do tomador dos serviços em setores como planos de saúde, administração de fundos de investimento, consórcios e cartões de crédito ou débito.
O principal argumento das confederações foi que as alterações promovidas pelas leis complementares geraram insegurança jurídica ao não definir claramente o conceito de “tomador do serviço”, criando conflitos entre municípios sobre quem teria direito à arrecadação do ISS.
Além disso, alegaram que a mudança violava o princípio da segurança jurídica e prejudicava a previsibilidade tributária, especialmente em setores que operam em escala nacional. O Supremo Tribunal Federal (STF), sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, declarou inconstitucionais os dispositivos legais questionados. Por ampla maioria, o Plenário entendeu que as normas não apresentam critérios claros para determinar o local de incidência do ISS, resultando em conflitos federativos e dificuldades práticas para os contribuintes.
O Tribunal reafirmou que a arrecadação deve permanecer no município onde está sediado o prestador do serviço, mantendo o modelo anterior. Ministros como Edson Fachin e Rosa Weber acompanharam o voto do relator, destacando que a ausência de definição clara sobre o tomador do serviço compromete a eficiência administrativa e financeira dos entes municipais.
Por outro lado, ministros como Nunes Marques e Gilmar Mendes divergiram parcialmente, argumentando que a descentralização da arrecadação poderia ser benéfica para municípios menores e menos desenvolvidos. No entanto, a maioria dos ministros concluiu que as alterações promovidas pelas leis complementares geram mais problemas do que soluções, reforçando a importância da segurança jurídica no sistema tributário brasileiro.
A decisão na ADI 5835/DF reflete uma preocupação contínua do STF com a previsibilidade tributária e a cooperação federativa. Embora tenha invalidado as mudanças legislativas propostas para descentralizar a arrecadação do ISS, o Tribunal reconheceu implicitamente a necessidade de uma reforma tributária mais ampla e coordenada para resolver os desequilíbrios regionais no Brasil.
Por fim, o RE 1.288.634, julgado em 16 de dezembro de 2022, envolvendo o Estado de Goiás e o Município de julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sob a sistemática da repercussão geral (Tema 1.172), abordou a constitucionalidade dos programas de incentivo fiscal FOMENTAR e PRODUZIR, instituídos pelo Estado de Goiás, e suas implicações para a repartição de receitas tributárias entre estados e municípios. A polêmica girou em torno do diferimento do pagamento do ICMS promovido por esses programas, que posterga o recolhimento do tributo, e se essa prática violaria o artigo 158, inciso IV, da Constituição Federal, que regula o repasse das cotas do ICMS aos municípios.
No caso concreto, o Município de Goiatuba ajuizou ação ordinária buscando a restituição de valores referentes às cotas do ICMS que considerava retidas indevidamente pelo Estado de Goiás em razão dos programas mencionados. O pedido foi julgado procedente em primeira instância e suspenso pelo Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO), com base no entendimento firmado pelo STF no Tema 42 da Repercussão Geral (RE 572.762). No entanto, o Estado de Goiás recorreu ao STF, alegando que os valores diferidos não ingressaram nos cofres públicos estaduais e, portanto, não configurariam receita pública passível de repartição.
Sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, o STF decidiu que os programas FOMENTAR e PRODUZIR não violaram a Constituição no tocante à repartição de receitas tributárias aos municípios.
O Tribunal entendeu que os valores diferidos pelo Estado de Goiás não ingressam nos cofres públicos antes do recolhimento efetivo do tributo, não podendo ser considerados como receita pública para fins de repartição. Essa interpretação prejudica o conceito técnico de “arrecadação” firmado no Tema 653 da Repercussão Geral (RE 705.423), que trata da impossibilidade de inclusão na base de cálculo do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) de valores relativos a benefícios fiscais concedidos pela União.
A decisão também modulou os efeitos para preservar a segurança jurídica e evitar prejuízos aos municípios que já obtiveram valores por força de decisões judiciais transitadas em julgadas. Ficou estabelecido que os valores já repassados aos municípios até os dados da publicação da ata do julgamento foram preservados e que os municípios continuariam aceitando os valores decorrentes de decisões judiciais transitadas em julgadas até esses mesmos dados.
O STF enfatizou que, embora os programas estaduais sejam constitucionais, o repasse das cotas municipais deverá ocorrer quando os valores entrarem efetivamente nos cofres estaduais. Essa abordagem buscou equilibrar a autonomia federativa dos estados para implementar políticas fiscais com a necessidade de proteger as receitas municipais.
Ministros como Edson Fachin e Rosa Weber acompanharam o voto do relator, destacando que a decisão reforça a previsibilidade na arrecadação tributária e promove maior segurança jurídica nas relações entre estados e municípios. Por outro lado, ministros como Nunes Marques expressaram preocupações sobre os impactos econômicos dessa decisão para os estados em questões fiscais já fragilizadas.
A decisão no RE 1.288.634 representa um marco na legislação sobre federalismo fiscal no Brasil ao consolidar critérios técnicos para diferenciar benefícios fiscais legítimos daqueles que poderiam comprometer o pacto federativo. Além disso, ao modular os efeitos da decisão, o STF declarou sensibilidade às implicações práticas para as finanças públicas municipais e estaduais.
Esses casos demonstram uma evolução na revisão do STF em matéria de federalismo fiscal ao longo da última década. Enquanto na ADI 5.929 houve um foco maior na regulamentação da guerra fiscal e preservação do pacto federativo, nos Temas 653, 1.172 e 1130 o Tribunal declarou uma preocupação crescente com os impactos das decisões sobre o desenvolvimento regional e a autonomia financeira dos entes subnacionais.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS, PERSPECTIVAS E DESAFIOS
A análise da investigação do STF em matéria de federalismo fiscal entre 2014 e 2024 permite extrair informações importantes sobre o papel da Corte na promoção da justiça fiscal e do desenvolvimento regional no Brasil.
As decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) em matéria de federalismo fiscal, comentadas ao longo deste artigo, revelam um esforço contínuo do Tribunal para equilibrar os princípios de autonomia federativa, justiça fiscal e desenvolvimento regional. Casos paradigmáticos como a ADI 5.929 , os Temas de Repercussão Geral 653 e 1130 , a ADI 5835 e o RE 1.288.634 demonstram como a Corte tem buscado interpretar os mecanismos constitucionais de repartição de receitas em um contexto marcado por desigualdades regionais e específicas entre estados e municípios.
Um dos principais impactos das decisões do STF no desenvolvimento regional brasileiro é uma tentativa de mitigar os efeitos negativos da guerra fiscal e garantir maior previsibilidade na arrecadação tributária. No julgamento do RE 1.288.634, por exemplo, o Tribunal julgou a constitucionalidade dos programas FOMENTAR e PRODUZIR, mas deixou claro que os valores diferidos só podem ser considerados receita pública após seu ingresso efetivo nos cofres estaduais. Essa abordagem técnica reforça a segurança jurídica no sistema tributário, mas também evidencia as limitações do modelo atual para lidar com as disparidades regionais.
As tendências decisórias indicadas sugerem que o STF tem conceitos técnicos priorizados como “arrecadação efetiva” para resolver disputas sobre repartição de receitas. No entanto, esta abordagem pode impactar níveis de autonomia financeira dos entes federativos, especialmente em estados que dependem de incentivos fiscais para atrair investimentos.
A modulação dos efeitos das decisões, conforme observado no RE 1.288.634, reflete uma tentativa de mitigar esses impactos, mas também levanta questões sobre os limites da atuação judicial em um contexto de desigualdades regionais marcantes.
Para aumentar a previsibilidade das decisões do STF em casos futuros, é essencial estabelecer critérios mais claros para a análise de disputas envolvendo o federalismo fiscal. Esses critérios podem incluir uma definição mais precisa de conceitos como “produto de arrecadação” e “receita pública”, além da adoção de parâmetros uniformes para avaliar os impactos econômicos e sociais das políticas fiscais estaduais.
A experiência internacional, como o modelo alemão de equalização fiscal, oferece lições valiosas sobre como estruturar um sistema eficiente e equitativo de repartição de receitas, embora sua aplicação ao Brasil exija adaptações às históricas e sociais do país.
Conquanto o modelo alemão de equalização fiscal seja frequentemente citado como referência internacional, sua aplicação ao Brasil enfrenta desafios significativos devido às diferenças estruturais entre os dois países. Na Alemanha, o sistema é baseado em transferências verticais e horizontais, com critérios claros que levam em conta a capacidade financeira dos estados e as necessidades específicas de gasto. No Brasil, por outro lado, os mecanismos como o FPE e o FPM são mais rígidos e não consideram integralmente as disparidades nos custos de prestação de serviços públicos entre as regiões (Rezende & Prado, 2023).
Além disso, o federalismo alemão se caracteriza por uma tradição de cooperação intergovernamental, enquanto o Brasil enfrenta uma fragmentação histórica política e econômica entre seus entes federativos. Essa diferença cultural e institucional dificulta a implementação de um sistema semelhante ao alemão, que exige um alto grau de coordenação entre os estados para garantir uma redistribuição eficiente de recursos. No Brasil, a guerra fiscal é um exemplo claro dessa falta de cooperação, com estados competindo entre si por investimentos em detrimento do equilíbrio federativo.
Por fim, é importante destacar que as soluções adotadas na Alemanha foram elaboradas em um contexto histórico específico, marcado pelas famílias econômicas no pós-guerra e pela reunificação do país. No Brasil, as desigualdades regionais têm raízes profundas na colonização e na concentração histórica de recursos no Sul e Sudeste. Assim, qualquer tentativa de adaptar o modelo alemão ao contexto brasileiro deve considerar essas características históricas e sociais para evitar a reprodução das desigualdades existentes.
As propostas de aperfeiçoamento do sistema brasileiro podem incluir a criação de um órgão nacional independente para mediar disputas entre estados e municípios sobre repartição tributária, inspirada no modelo alemão. Além disso, é necessário revisar os critérios de distribuição dos fundos constitucionais para garantir que os recursos cheguem efetivamente às regiões mais necessitadas. A reforma tributária também deve ser considerada como uma solução estrutural para reduzir as desigualdades regionais e fortalecer a capacidade financeira dos entes subnacionais.
Equilibrar segurança jurídica com flexibilidade é outro desafio central no federalismo fiscal brasileiro. Embora seja crucial garantir a estabilidade nas relações intergovernamentais, o sistema deve ser adaptável às mudanças econômicas e sociais. Nesse sentido, o STF pode desempenhar um papel importante ao adotar uma abordagem interpretativa que considere tanto os princípios constitucionais quanto as realidades práticas enfrentadas pelos estados e municípios.
A análise da investigação do STF entre 2014 e 2024 permite extrair informações importantes sobre o papel da Corte na promoção da justiça fiscal e do desenvolvimento regional no Brasil. As decisões analisadas demonstram uma evolução na interpretação constitucional dos mecanismos de repartição de receitas, com destaque para a tentativa do STF de equilibrar a autonomia federativa e a cooperação intergovernamental.
Apesar desses avanços, permanecem algumas lacunas na análise do federalismo fiscal brasileiro que merecem ser exploradas em pesquisas futuras. Entre elas estão os impactos econômicos das decisões judiciais sobre incentivos fiscais estaduais e os desafios associados à implementação da prática das reformas tributárias propostas. Essas questões são fundamentais para compreender como o federalismo fiscal pode ser aprimorado para atender melhor aos objetivos constitucionais de redução das desigualdades regionais e promoção do desenvolvimento equilibrado.
Em suma, o estudo da jurisdição do STF em matéria de federalismo fiscal evidencia um campo em constante evolução, onde as decisões judiciais desempenham um papel crucial na construção de um sistema tributário mais justo e eficiente. No entanto, alcançar um equilíbrio sustentável entre autonomia federativa e solidariedade intergovernamental continuará sendo um desafio central para o futuro do federalismo brasileiro.
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1Servidora pública, Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Mestranda em Direito Constitucional e Econômico pela Universidade Alves de Faria. Especialista em Direito Público com ênfase em Direito Constitucional pela Verbo Jurídico. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás.