A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO PODER JUDICIÁRIO: PRINCÍPIOS ÉTICOS, NORMAS, E A RESOLUÇÃO 332/2020

ARTIFICIAL INTELLIGENCE IN JUDICIAL POWER: ETHICAL PRINCIPLES, STANDARDS AND RESOLUTION 332/2020

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10059569


Bruno Chemin Borsoi1


Resumo: A presente labor possui como principal objetivo a análise dos preceitos éticos e normativos no âmbito de aplicação da Inteligência Artificial no Poder Judiciário. Buscou-se os padrões de experiência europeus, bem como destacar os benefícios e desafios para o Brasil, especialmente na segurança de dados e auxílio dos operadores do direito em geral, que careciam ao menos de uma regulamentação nacional. A Resolução n.º 332, de 21 de agosto de 2020, do Conselho Nacional de Justiça, buscou suprir esta lacuna existente no direito pátrio, através de conceitos e definições, tutela de direitos, publicidade e transparência, segurança da informação, e por fim, responsabilidade civil e prestação de contas.

Palavras-chave: Inteligência Artificial. Ética. Segurança. Publicidade. Responsabilidade.

Abstract: The present work has as main objective the analysis of the ethical and normative precepts in the scope of application of Artificial Intelligence in the Judiciary. European experience standards were sought, as well as highlighting the benefits and challenges for Brazil, especially in data security and assistance from legal operators in general, which lacked at least national regulation. Resolution N. 332, of August 21, 2020, of the National Council of Justice, sought to fill this gap in Brazilian law, through concepts and definitions, protection of rights, publicity and transparency, information security, and finally , civil liability and accountability.

Keywords: Artificial intelligence. Ethic. Safety. Publicity. Responsibility.

1 INTRODUÇÃO

A inteligência artificial, atualmente, é um tema cada vez mais discutido nos bancos das universidades e, sobretudo, nos computadores, o que intensificou-se sobremaneira com o atual estado pandêmico enfrentado pelo planeta.

Pode ser definida como a capacidade de adquirir e utilizar variáveis do desenvolvimento e da ciência para equacionar problemas, com o escopo de resolução de demandas, com o uso do entendimento e raciocínio para dirimir questões.

No que tange ao Brasil, embora anteriormente tenha havido o desenvolvimento embrionário desta forma não-humana de inteligência, os estudiosos têm se debruçado de maneira mais verticalizada acerca da aplicabilidade da IA no âmbito do Poder Judiciário.

É o que tem ocorrido com o desenvolvimento da inteligência artificial em softwares roboticamente configurados que auxiliam os advogados, servidores, magistrados e demais operadores do direito em geral – além da administração da justiça –, e têm como principal característica a celeridade e a padronização de dados e pesquisas.

Contudo, a inteligência artificial e seus tipos de aprendizagem, sistematicamente chamado de machine learning, podem, em determinados casos até não previstos pelo homem, deixarem de contribuir para o modo pelo qual foram programadas, e irradiar efeitos para outras searas não previstas inicialmente. São as chamadas machine bias. 

Este viés de conduta tipicamente humana desenvolvido pela máquina traz consigo forte carga de preconceito e de estereótipos sociais, haja vista que podem haver limitações na configuração da IA e, além disso, não representar uma parcela demográfica dos locais em que não foi desenvolvida.

A partir desta concepção em análise, o principal intento deste labor repousa na profícua análise dos aspectos éticos e de responsabilização dos desenvolvedores nas hipóteses em que o uso da máquina se distancia dos padrões de conduta considerados normais na sociedade hodierna.

Com a colossal velocidade dos dados computadorizados e a dificuldade de identificação dos executores de um sistema de IA, deve-se observar o respeito aos princípios mais sensíveis e afetos ao ser humano, igualmente positivados no Texto Constitucional, e presentes em regulamentações alienígenas que serão melhormente analisadas, sem se engessar o macro sistema em franca expansão, um dos caracteres da sociedade 4.0, mas que deve, necessariamente, conter princípios éticos e regulatórios, além de rígidas normas de fiscalização. 

Eis um dos desafios pelos quais a maciça implantação da inteligência artificial neste século irá enfrentar: a ponderação entre marcos normativos e axiomas de condutas aos usuários, e o seu livre desenvolvimento.

A partir deste ponto, a Resolução nº 332, de 21 de agosto de 2020, do Conselho Nacional de Justiça, pode ser considerada o marco normativo inicial para a evolução da Inteligência Artificial no Poder Judiciário. A mesma será objeto de minuciosa análise, críticas e elogios para seu melhor aperfeiçoamento e efetividade.

2 A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E GOVERNANÇA

A governança digital, no âmbito específico de intersecção com a inteligência artificial, é conceituada como o estabelecimento e a implementação de políticas, através de métodos e parâmetros para que ocorra a evolução, bem com o uso e controle dos dados no ambiente digital.

Daí por que deve haver uma análise vertical acerca do sistema regulatório, observando-se o enquadramento daquele determinado tipo específico de IA no Direito, e assim verificar as benesses e obstáculos à sua aplicabilidade prática no cotidiano.

2.1 Princípios éticos e vetores 

Nesse prisma, há uma série de critérios que podem ser considerados para que a Inteligência Artificial seja eficaz e se desenvolva de maneira equilibrada, e que podem ser assim enumerados, conforme Carta da Comissão Europeia de Ética na Ciência e Novas Tecnologias2: a) dignidade da pessoa humana; b) autonomia; c) responsabilidade; d) justiça, igualdade e solidariedade; e) democracia; f) Estado de Direito e prestação de contas; g) proteção de dados e privacidade; e i) sustentabilidade.    

Todavia, para a correta obediência dos vetores norteadores alhures expostos, a governança digital perpassa, necessariamente, por preceitos e diretrizes – normativas ou éticas – que surtam os efeitos deles esperados, sob pena de se fulminar seu correto e, em último respiro, da segurança cibernética de uma maneira geral.

Nessa toada, na dinâmica entre a Inteligência Artificial e a ética, se carece de um conceito uníssono acerca da aplicabilidade da segunda na primeira, o que, atualmente, trata-se de um enorme desafio a este campo. 

A doutrina do professor Fabiano Hartmann Peixoto3, referência sobre o tema no país, com a fonte no direito estrangeiro, enumera quatro parâmetros que serão necessários para serem a bússola dos aspectos éticos dentro da IA, que podem ser assim reduzidos: i) verificação: análise do sistema no atendimento a pressupostos endógenos e exógenos de segurança; ii) validação: o desenvolvimento dos sistemas que seja apropriado e se coaduna com os preceitos éticos gerais; iii) segurança: em uma orientação com o condão de furtar-se do uso com fins divergentes da programação preliminar da máquina, com garantia e intervenção acerca dos defeitos, e a contínua supressão dos equívocos; iv) controle: o prognóstico de estágios em que o labor do humano é imprescindível, máxime em uma vistoria na linha tênue entre autonomia da máquina e o homem.

2.2 Planos de ação e regulamentação: o exemplo europeu

De início, portanto, torna-se imperioso um parâmetro de regulação internacional, se não idêntico, ao menos muito semelhante de um país para o outro, com o fito de se evitar que a transformação digital se torne um cartel de gigantescas empresas tais como, por exemplo, Facebook, Google, Apple, Microsoft e Amazon, as quais, por si sós, são responsáveis pela quase totalidade do controle e domínio indireto do sistema de IA mundial.

A chancela estatal para uma efetiva normatização é imprescindível, vez que permite o balanço dos direitos e garantias nos dois lados da relação indivíduos versus empresas – ainda que sensivelmente desequilibrada – o que já se verifica com maior intensidade na união europeia e países de primeiro mundo.

A Alemanha, nesse sentido, tem precedente jurisdicional do Tribunal Constitucional Federal, a suprema corte daquela nação, oriundo do início da década de oitenta, em que já se alertava acerca da necessária proteção dos direitos personalíssimos de determinação informacional, o que foi posteriormente alargado em uma interpretação moderna para contemplar, inclusive, o segredo e a proteção de dados através dos sistemas de tecnologia de informação.

Assim, como se percebe do exemplo alemão, os Tribunais de cada país, mantida sua soberania, devem se posicionar no sentido de proteção e avanço da IA, sem se descuidar, entretanto, da análise de questões latentes relacionadas aos sistemas de informação, mormente na tutela dos dados e segurança do ciberespaço, o que, igualmente, demanda estudos e aprofundamentos da estrutura do Judiciário.

Em seguida, ao ensejo da premente necessidade pela regulamentação normativa, a proteção dos sistemas deve abranger a liquidez contra ataques infundados do próprio Estado (à margem de suas próprias diretrizes), bem como de terceiros – estes considerados os mais potencialmente danosos.

A esse respeito, eis o escólio de Hoffmann-Riem4:

Ela se refere principalmente à garantia de uma democracia funcional, ao cumprimento de normas do Estado de Direito, à implementação da proteção fundamentada no Estado Social, à prevenção contra riscos previsíveis ou ainda não previsíveis (neste caso, por exemplo, do ulterior desenvolvimento e emprego da IA), mas também à funcionalidade de instituições importantes (por exemplo, do mercado).

Dessa forma, as ações e esforços individuais devem unir-se à implementação de normas de ordem pública pela mão do Estado Social, e o seu agir deve-se pautar na qualidade da segurança.

A proteção sistêmica, por sua vez, se alimenta do próprio aparato tecnológico à disposição da máquina para garantia de proteção de todos, o que incluiria, in casu, o uso de machine learning.

O sigilo dos dados, em contrapartida, sob o viés da autoproteção da IA, encontra-se normatizado no ambiente europeu, mais especificamente no artigo 255, do Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia, que prescreve, basicamente, a respeito das técnicas e organizacionais adequadas, a fim de que haja a aplicação dos princípios de proteção de dados, dentre aqueles a chamada minimização.

Além disso, deve haver o correto planejamento das ações dos agentes públicos e privados, com estratégias claras para se tornar efetivo o apoio na Inteligência Artificial.

 A propósito, urge mencionar que vieses discriminatórios não devem existir, e a seguridade dos dados com o uso de smart systems têm o condão de garantir a transparência e macro proteção cibernética para, a partir daí, possibilitar atribuição de responsabilidade e prestação de contas aos executores.

Ademais, é convinhável trazer à baila que há variadas perspectivas com o escopo de regular um campo tão abstrato e de difícil linguagem para significativa parcela populacional, inclusive os operadores do direito.

Destaca-se que os órgãos estatais, que necessitarão de qualificado corpo técnico, terão que avaliar, de um modo disruptivo, a repercussão da IA em curto, médio e longo prazo. Isso também poderá ocorrer através de premiações e benefícios para as empresas que se adequem aos patamares pré-estabelecidos.

Acrescente-se ainda que algo indissociável é a fiscalização regular na chamada infosfera, com o condão de exalar confiança e nitidez ao sistema, o que também permitirá, em maior escala, a eficácia da atribuição de responsabilidade aos usuários potencialmente danosos, que logram êxito na invasão e uso indevido de dados.

2.3 Óbices e dificuldades para a IA 

Inobstante, apesar do horizonte promissor no campo de estruturação dos limites e conceitos éticos da Inteligência Artificial, especialmente dentro do direito, há entraves que acabam por dificultar sobremodo a irradiação dos seus efeitos.

Primeiro, o direito e, por via de consequência, a regulação normativa da IA são incapazes de acompanhar a celeridade e gigantesco avanço da programação cibernética e progresso dos sistemas, de maneira que a solução mais salutar, dentro da linha de raciocínio ora exposta, deve permitir a entrada e ajuste de novos fatos que devem ser contemplados pela lei, sem, todavia, imiscuir-se de uma proteção mais rígida dentro do núcleo duro do sistema: a segurança e a ética.

A seguir, a imposição de marcos e limites em termos de estrutura, principalmente em âmbitos regionais e nacionais é de bom alvitre, com o intuito de se frear, ou ao menos buscar este objetivo, das grandes corporações mundiais que dominam significativa parcela do mercado digital.

Para a possibilidade de se averiguar o responsável civil pela máquina, e assim obrigá-lo ou não à prestação de contas, é fundamental que o sistema, como um corpo uno, seja íntegro e coeso, a fim de possibilitar a correta análise de pontos específicos de maneira clarividente, o que também tem por objetivo o aumento da credibilidade dos sistemas de IA aos usuários em geral e ao Poder Judiciário.

Por fim, a centralização de poder, tal como alhures mencionado, dificulta a inserção de normas às grandes empresas, as quais, igualmente, possuem robusto aparato jurídico atento às lacunas legislativas de cada nação ou parte do planeta, o que lhes possibilita o aumento do oligopólio da IA em estrita afinidade com a ausência de fiscalização normativa.

A dificuldade de colocação de princípios dentro do ambiente da Inteligência Artificial repousa, especialmente, na ausência de padronização de métodos, o que se torna ainda mais complexo em um ambiente virtual em que não se vislumbra horizonte definido no que atine à responsabilização dos usuários, bem assim das próprias máquinas.

2.4. Machine Bias

Nessa toada, pode-se mencionar que toda a carga de comandos e algoritmos da máquina foi feita pelos seus criadores, ou seja, machine learning nada mais é do que um produto das relações humanas, em dado momento, em determinada sociedade, que carrega fortes tendências e padrões daquele certo país ou região, e alberga específica parcela demográfica. Daí podem surgir temas intimamente ligados e afetos ao direito: isonomia e senso de justiça, que o Judiciário tem como missões precípuas.

As chamadas machine bias, ou seja, as máquinas que desenvolvem preconceitos e estereótipos sociais por si sós, tratam-se de modalidades de IA em que ocorre o aprendizado não-supervisionado, por meio de algoritmos não expostos e robustos, o que afasta a figura de um humano controlador do robô.

A esse respeito, doutrina Paulo Sá Elias6:

É o viés tendencioso. A remoção de tal viés tendencioso em algoritmos não é trivial e é um campo de pesquisa em andamento. Os desvios são difíceis de serem descobertos se o algoritmo for muito complexo, (como são utilizados pelo Google), pior ainda se forem secretos. 

E essa prática verificada pela máquina somente espelha o projeto pelo qual foi desenvolvida, o que pode ocorrer igualmente com deslizes e falhas éticos, a exemplo de uma configuração de reconhecimento facial e fotos realizada exclusivamente por caucasianos, que deixam de programá-la para rostos asiáticos.

Tais vícios internos e exponencialmente desenvolvidos pelas máquinas através dos algoritmos e redes neurais constituem um significativo entrave à melhor aceitação da IA no Poder Judiciário.

É bem verdade que a sociedade 4.0 que hoje em dia grande parcela encontra-se inserta – especialmente o Brasil – na qual se ventila, dentro desse conceito informacional, a massificação dos dados e o surgimento das relações instantâneas à distância, trouxe consigo a robótica automatizada, algo inarredável e perene, e que tem sido objeto de estudos e louváveis avanços nas mais diversas áreas, assim como na Administração Pública e no Judiciário, inclusive no setor de gestão.

3. EFETIVAÇÃO DOS PRINCÍPIOS E NORMAS PELA RESOLUÇÃO Nº 332/2020, DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ)

Malgrado haja barreiras a serem ultrapassadas, é sabido que a Inteligência Artificial deve servir de apoio e facilitadora às relações humanas, e ter seu entorno um cabedal normativo e extranormativo (ético) vinculante, que não sejam somente diretrizes abstratas e vagas, a fim de que haja o pleno desenvolvimento de modo correto e, definitivamente, se insira no acesso efetivo da população.

A propósito, leciona Hoffmann-Riem7:

Confiar unicamente em princípios éticos não deve corresponder à responsabilidade estatal de proporcionar garantias. Em face dos riscos associados à digitalização de modo geral e à utilização da IA em particular, o direito estabelecido pelo Estado ou, em todo caso, pelo qual ele é corresponsável e que esteja dotado de possibilidades de sanção deve ser imprescindível. O direito concernente a isso deveria, porém, ser estruturado de tal maneira que reforce, tanto quanto possível, a efetividade de critérios éticos.

Por este segmento, tanto no direito alienígena quanto no brasileiro, vislumbra-se que, em maior ou menor escala, haja um rol legislativo concreto no que tange a normatizar e estabelecer parâmetros de inserção da Inteligência Artificial nas relações.

Neste ponto, após alguns anos da entrada da IA no Poder Judiciário, e o rápido progresso do sistema, especialmente na automatização e coleta de dados, pesquisa automática de jurisprudência e precedentes, indexação de processos semelhantes para julgamento, reconhecimento facial de usuários, dentre outros exemplos em praticamente todos os tribunais do país, foi editada a recente Resolução nº 332, de 21 de agosto de 2020, do Conselho Nacional de Justiça, de autoria de seu atual Presidente e Ministro do Pretório Excelso, Dias Toffoli, a qual será objeto de análise pormenorizada.

De partida, verifica-se, dentre as disposições iniciais do ventilado ato normativo, que o mesmo tem por escopo a “ética, a transparência e a governança na produção e no uso de Inteligência Artificial no Poder Judiciário”8.

Outrossim, relevante conjugar, dentre os próprios intentos da resolutiva, que a Inteligência Artificial deve obediência a “critérios éticos de transparência, previsibilidade, possibilidade de auditoria e garantia de imparcialidade e justiça substancial9”, em preservação dos direitos fundamentais mais sensíveis ao ser humano, presentes, sobretudo, dentre o rol dos artigos iniciais da Constituição Federal de 1.988, bem como a privacidade e controle de uso dos dados pessoais, o que vem ao encontro da Lei nº 13.709/2018, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

É consabido que a Inteligência Artificial, inserta no Poder Judiciário brasileiro, tem como umas das principais missões a prestação célere e equânime de uma justiça considerada extremamente morosa e ineficaz na resolução dos problemas estruturais de um país com dimensões continentais e com níveis extremos de desigualdade.

Nesse sentido, assim dispõe a Resolução em seu artigo 2º, de seguinte redação:

Art. 2º A Inteligência Artificial, no âmbito do Poder Judiciário, visa promover o bem-estar dos jurisdicionados e a prestação equitativa da jurisdição, bem como descobrir métodos e práticas que possibilitem a consecução desses objetivos.

Prossegue-se ainda com disposições iniciais no sentido de definir importantes conceitos atinentes à IA, e que devem ser posteriormente aperfeiçoados no contexto do Judiciário, tais como algoritmo, modelos, sinapses e modalidades de usuários internos e externos.

A seguir, passado o cenário de intróito, analisa-se a preocupação concernente à tutela dos direitos fundamentais e controle de dados sensíveis e ao segredo de justiça, estes previstos na LGPD.

A mencionada normativa, por sua vez, alberga a chamada “não discriminação”, que tem o condão de proteger, como baluarte do sistema, os desacertos de julgamento originários nos preconceitos, que visam à supressão dos marginalizados socialmente, bem assim na subsídio para um julgamento justo.

Publicidade e transparência, a seu turno, aliadas à chamada governança e qualidade, indicam, segundo as diretrizes, “os objetivos e resultados pretendidos pelo uso do modelo de Inteligência Artificial10”, além dos responsáveis pela divulgação dos próprios dados dos usuários externos envolvidos no sistema, sempre sob a batuta e controle de regras de gestão e planejamento dos “próprios sistemas computacionais, as Resoluções e as Recomendações do Conselho Nacional de Justiça, a Lei nº 13.709/2018, e o segredo de justiça11”.

A atenção conferida à segurança dos sistemas e da informação que tramite dentro dos modelos (dataset) também é pertinente às fontes seguras, e que sejam, preferivelmente, governamentais, ou seja, que tenham o crivo do Estado. No mais, dentro do núcleo seguro, os dados devem ser “eficazmente protegidos contra os riscos de destruição, modificação, extravio ou acessos e transmissões não autorizados12”, com “padrões consolidados de segurança da informação”.

A pesquisa, o desenvolvimento e a implantação de serviços de IA constitui um notável acréscimo e de grande relevância normativa, haja vista que buscam, de fato, aliar, em equilíbrio evolutivo, a atual fase da IA no país e as pesquisas que não cessam a despeito de sua transformação contínua.

O artigo 20 aduz que a IA será “orientada pela busca da diversidade em seu mais amplo espectro, incluindo gênero, raça, etnia, cor, orientação sexual, pessoas com deficiência, geração e demais características individuais”, com maior participação representativa possível, em atenção à diversidade.

Aliás, estudos, pesquisas, ensino e treinamentos devem ser avessos a preconceitos, e respeitar a dignidade e liberdade de todos, o que se complementa pela previsão de atividades indenes de ameaça ou dano ao homem.

No ambiente do direito penal, a IA é vista com ressalvas, precipuamente no que concerne às chamadas “decisões preditivas” – baseada em dados estatísticos e históricos -, o’que, todavia é permitido quando se tratar de utilização de melhorias “computacionais destinadas à automação e ao oferecimento de subsídios destinados ao cálculo de penas, prescrição, verificação de reincidência, mapeamentos, classificações e triagem dos autos para fins de gerenciamento de acervo13”.

Em arremate, o capítulo atinente à prestação de contas e responsabilização civil, dois temas tão valiosos e apropriados quando se menciona a IA na órbita de análise do Judiciário, pois sua credibilidade e segurança, além da reputação dos defensores da própria computação dentro do terceiro poder, necessariamente, perpassam pela punição aos envolvidos.

Nessa perspectiva, o que fora algures abordado a respeito da dificuldade de regulamentação conjunta, tanto normativa quanto ética, carregada de preceitos abstratos – e às vezes de difícil compreensão – tem por fim a plena aplicabilidade da IA, com o “fim de garantir o impacto positivo para os usuários finais e para a sociedade14”.

Daí por que a prestação de contas ganha destaque, tanto no controle dos responsáveis e custos da IA, bem assim no esforço mútuo entre os órgãos estatais e o setor privado, em uma abordagem sistematizada acerca do resultados planejados em detrimento aos reais, além de acertos e desacertos, e à divulgação ampla sobre os prós e contras do uso da Inteligência Artificial, o que deve ser feito sempre em consonância com “os princípios e regras” inicialmente positivados, pena de sanção aos envolvidos.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 A Inteligência Artificial no Poder Judiciário trata-se de uma silenciosa e constante revolução, que deve ser pautada sempre pela enorme ajuda que oferecerá ao jurisdicionado e à própria administração da justiça em termos de praticidade e celeridade, sem se imiscuir de seu auxílio diversificado ao juiz, o que se verifica na análise e formação de precedentes aplicáveis ao caso concreto.

Ocorre que, para sua plena aplicabilidade, a IA deve ser minimamente regulamentada, a fim de dar guarida e proteção ao sistema e aumentar a confiança e credibilidade de algo que propiciará grandes transformações na forma de conhecimento, gestão, política, controle e segurança informacional no vasto campo de abrangência do Poder Judiciário, sobretudo em uma democracia tridimensional em que os poderes políticos do legislativo e executivos encontram-se em franco desgaste e choque mútuo.

As dificuldades presentes na assimilação desta forma de inteligência não devem ser escondidas, mas objeto de acentuada carga valorativa e normativa é fruto de melhorias paulatinas, o que deverá ocorrer com a utilização do exemplo europeu acerca da unificação do regime geral de proteção de dados e a guarida constitucional alemã que refere-se aos direitos fundamentais de tecnologia e segurança da informação.

A máquina, em sentido estrito, deve ser utilizada sem quaisquer valores nela inicialmente anexados, a fim de eliminar pré concepções e abordagens tendenciosas carregadas de arquétipos dos seres humanos responsáveis por sua criação e programação.

A regulação legislativa e envolta por axiomas éticos era necessária e imprescindível para melhor acolher a IA e nominar os conceitos, definir padrões, usuários, tratar acerca da publicidade, transparência e segurança, e por fim, responsabilizar os que a utilizem com finalidades divergentes de seu plano exordial.

Nesse sentido, ainda que através de uma ato administrativo resolutivo – e não por meio de lei federal de iniciativa do legislativo –  ou seja, do órgão responsável pelo “controle e atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário”, qual seja, o Conselho Nacional de Justiça, incluído por norma constitucional derivada, oriunda da Emenda nº 45/2.004, a novata Resolução nº 332, de 21 de agosto, com pouco mais de três meses de vigência no presente ordenamento, pode ser considerada um importante marco normativo sobre a Inteligência Artificial no Judiciário tupiniquim.

A partir de um pressuposto de estudo voltado à União Europeia, presente no Regime Geral de Proteção de Dados, observa-se em muito a similitude topográfica dos institutos conexos e pujantes da IA no judiciário, em nítida amostra de que os estudiosos do tema buscaram origem ética e normativa nos principais países do velho continente. 

De bom alvitre frisar, dentre as justificativas da ventilada resolução, as quais justificam a sua feitura, que observou-se o “contido na Carta Europeia de Ética sobre o Uso da Inteligência Artificial em Sistemas Judiciais e seus ambientes15”, fruto de uma experiência de sucesso há alguns anos, que inicia seus passos no Brasil.

Portanto, sem se descuidar dos limites éticos e normativos, bem desenhados na Resolução nº 332/2020, a Inteligência Artificial deve ter seu abono para o pleno desenvolvimento nas mais diversas possibilidades de contribuição aos usuários, mormente no espectro do Poder Judiciário.

REFERÊNCIAS

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1 Advogado. Pós Graduado em Processo Civil pela Universidade Anhanguera. Possui graduação em Direito pela Associação Educacional do Vale da Jurumirim – Faculdade Eduvale de Avaré/SP. E-mail: brunoborsoi@borsoiadvogados.com.br