A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA DISCIPLINA ESCOLAR EMC: O DECRETO-LEI N°869/1969, SEUS ATORES E IMPLICAÇÕES.

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202411301553


Álvaro José Feijó Neto


Introdução

Esse artigo se propõem a pensar a institucionalização da disciplina escolar Educação Moral e Cívica (EMC), criada durante a ditadura civil militar brasileira. Buscaremos trabalhar no decorrer do texto as disputas entre os órgãos regulatórios em razão da institucionalização ou não da disciplina e qual eram as intenções dos militares ao propor essa ação. A análise será centrada principalmente no Decreto-lei n°869/1969 que estabelece a EMC como disciplina obrigatória e em como deu-se o funcionamento da disciplina pós decreto. 

A análise histórica da regulação da Educação Moral e Cívica (EMC) no Brasil revela a interseção de fatores políticos, militares e educacionais que moldaram o currículo nacional durante o período da Ditadura Civil-Militar (1964-1985). A introdução da EMC como disciplina obrigatória nas escolas, a partir do Decreto-lei nº 869 de 1969, reflete a tentativa do regime militar de implementar um controle ideológico sobre a formação dos jovens brasileiros, preparando-os para um modelo de cidadania conformada, alinhada aos ideais de ordem, moralidade e progresso defendidos pelo regime.

O Decreto-lei nº 869, de 1969, estabeleceu a obrigatoriedade da Educação Moral e Cívica em todos os níveis de ensino, com um currículo centrado em valores como a preservação da unidade nacional, a defesa do regime democrático (sob uma ótica controlada), e o culto à Pátria e seus símbolos. A disciplina visava, entre outras coisas, formar cidadãos comprometidos com os valores do trabalho, da obediência à lei e com uma ideia de moral cristã conservadora, alinhada com a Doutrina de Segurança Nacional (DSN) da Escola Superior de Guerra (ESG).

A EMC deveria ser ensinada em diferentes graus de escolaridade, incluindo o ensino superior, onde seria tratada sob a forma de “Estudo dos Problemas Brasileiros”. O Decreto também enfatizava a necessidade de alinhamento ideológico na produção de material didático, destacando o papel da Comissão Nacional de Moral e Civismo (CNMC), criada pelo Decreto para regulamentar a implantação da disciplina.

A CNMC teve um papel central na implementação da EMC, especialmente no que se refere à supervisão e censura de livros didáticos. Criada por decreto, a CNMC foi composta por membros alinhados ao regime militar e com forte conexão com a ESG. Ela era responsável por coordenar as ações entre as esferas civis e militares para garantir a propagação da doutrina defendida pela EMC e de valores que correspondessem à ideologia do regime.

Dessa maneira, a comissão exerceu grande influência na aprovação de livros didáticos, vetando obras que não seguiam a linha do governo militar e aprovando aquelas que fortaleciam os ideais de patriotismo, moralidade conservadora e anticomunismo. Este controle sobre o conteúdo educacional era uma das estratégias mais eficazes para disseminar a ideologia militar nas escolas, visando criar uma geração de jovens dispostos a aceitar a ordem estabelecida e a contribuir para o desenvolvimento do país sob os moldes capitalistas, sem questionar o regime.

O Conselho Federal de Educação (CFE) também desempenhou um papel relevante no debate sobre a EMC. Criado pela Lei nº 4.024 de 1961, o CFE era uma instituição técnica e normativa vinculada ao Ministério da Educação e Cultura (MEC), responsável por estabelecer as diretrizes curriculares para o ensino no Brasil. Inicialmente, o CFE se opôs à imposição da EMC como disciplina obrigatória, defendendo que outras disciplinas como Organização Social e Política Brasileira (OSPB) já atendiam a essa demanda ideológica.

Entretanto, após o golpe militar de 1964, a atuação do CFE foi gradualmente modificada. A nova administração militar passou a influenciar fortemente suas decisões, resultando na criação da CNMC e no alinhamento de suas políticas educacionais com os objetivos do regime. Com isso, o CFE perdeu parte de sua autonomia e a EMC foi consolidada como uma disciplina obrigatória, alinhada ao projeto de formação de uma geração passiva e comprometida com os valores do regime militar.

A disciplina EMC foi implantada como parte de um projeto político de formação de um cidadão controlado e submisso, voltado para o fortalecimento do regime militar e para a defesa da Doutrina de Segurança Nacional. O regime buscava formar cidadãos com pouca capacidade crítica, que respeitassem as normas estabelecidas, adorassem a Pátria e suas instituições, e se preocupassem unicamente com o trabalho, afastando-se de qualquer pensamento subversivo.

A disciplina não só buscava um alinhamento moral e cívico, mas também servia como um mecanismo de repressão e de controle das manifestações contra o regime. Os livros didáticos eram cuidadosamente selecionados pela CNMC, com uma forte censura sobre conteúdos que pudessem ser considerados “subversivos” ou contrários aos princípios defendidos pelos militares.

A implantação da disciplina escolar Educação Moral e Cívica no Brasil em 1969

No dia 12 de setembro de 1969, através do Decreto-lei n° 869, foi implementada no Brasil, o ensino de educação moral e cívica, como disciplina obrigatória em todos os níveis de ensino e prática educativa. O artigo 2° do Decreto expõe as finalidades da EMC enquanto disciplina e prática. 

Art. 2º A Educação Moral e Cívica, apoiando-se nas tradições nacionais, tem como finalidade:

a) a defesa do princípio democrático, através da preservação do espírito religioso, da dignidade da pessoa humana e do amor à liberdade com responsabilidade, sob a inspiração de Deus;

b) a preservação, o fortalecimento e a projeção dos valores espirituais e éticos da nacionalidade;

c) o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade humana;

d) a culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições e aos grandes vultos de sua história;

e) o aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na dedicação à família e à comunidade;

f) a compreensão dos direitos e deveres dos brasileiros e o conhecimento da organização sócio-político-econômica do País;

g) o preparo do cidadão para o exercício das atividades cívicas com fundamento na moral, no patriotismo e na ação construtiva, visando ao bem comum;

h) o culto da obediência à Lei, da fidelidade ao trabalho e da integração na comunidade.

Parágrafo único. As bases filosóficas de que trata este artigo, deverão motivar:

a) a ação nas respectivas disciplinas, de todos os titulares do magistério nacional, público ou privado, tendo em vista a formação da consciência cívica do aluno;

b) a prática educativa da moral é do civismo nos estabelecimentos de ensino, através de todas as atividades escolares, inclusive quanto ao desenvolvimento de hábitos democráticos, movimentos de juventude, estudos de problemas brasileiros, atos cívicos, promoções extraclasse e orientação dos pais. (Decreto-lei n° 869/69).

Observamos o apelo ao caráter religioso que deveria permear a disciplina, a busca pela homogeneização através das noções de unidade nacional, do culto à pátria e seus símbolos e instituições. Ainda mais importante é a busca pela conformação dos cidadãos através do culto da obediência à lei e da fidelidade ao trabalho, demonstrando outra inspiração por trás da disciplina: a de preparar o jovem para o trabalho, com o discurso de preparo para o desenvolvimento do país.

O artigo 4°1 do Decreto-lei trata dos currículos e programas básicos para os diferentes cursos da disciplina, destacando que esses seriam elaborados pelo Conselho Federal de Educação, com a colaboração da Comissão Nacional de Moral e Civismo (CNMC), que os artigos 5° e 6° predispõem:

Art. 5º É criada, no Ministério da Educação e Cultura, diretamente subordinada ao Ministro de Estado, a Comissão Nacional de Moral e Civismo (CNMC).

§ 1º A CNMC será integrada por nove membros, nomeados pelo Presidente da República, por seis anos, dentre pessoas dedicadas à causa da Educação Moral e Cívica.

§ 2º Aplica-se aos integrantes da CNMC o disposto nos §§ 2º, 3º, e 5º, do art. 8º da Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961.

Art. 6º Caberá, especialmente à CNMC:

a) articular-se com as autoridades civis e militares, de todos os níveis de governo, para implantação e manutenção da doutrina de Educação Moral e Cívica, de acordo com os princípios estabelecidos no artigo 2º;

b) colaborar com o Conselho Federal de Educação, na elaboração de currículos e programas de Educação Moral e Cívica;

c) colaborar com as organizações sindicais de todos os graus, para o desenvolvimento e intensificação de suas atividades relacionadas com a Educação Moral e Cívica;

d) influenciar e convocar a cooperação, para servir aos objetivos da Educação Moral e Cívica, das Instituições e dos órgãos formadores da opinião pública e de difusão cultural, inclusive jornais, revistas editoras, teatros, cinemas, estações de rádio e de televisão; das entidades esportivas e de recreação, das entidades de classes e dos órgãos profissionais; e das empresas gráficas e de publicidade;

e) assessorar o Ministro de Estado na aprovação dos livros didáticos, sob o ponto de vista de moral e civismo, e colaborar com os demais órgãos do Ministério da Educação e Cultura, na execução das providências e iniciativas que se fizerem necessárias, dentro do espírito deste Decreto-lei.

Parágrafo único. As demais atribuições da CNMC, bem como os recursos e meios necessários, em pessoal e material, serão objeto da regulamentação deste Decreto-lei. (Decreto-lei n° 869/69).

Nessa perspectiva,

A EMC passou a ser ministrada como disciplina e prática educativa, em todos os graus e níveis de ensino, sendo que no ensino superior deveria ser realizada como―complemento, sob a forma de Estudo dos Problemas Brasileiros. Os currículos, programas básicos e as respectivas metodologias seriam elaborados pelo Conselho Federal de Educação, com a colaboração da Comissão Nacional de Moral e Civismo, criada pelo mesmo decreto-lei, mas com nome diferente do que havia sido sugerido pelo anteprojeto da ADESG, que previa ―Comissão de Formação Moral e Cívica. (Lemos, 2011, p.98)

Como já havíamos visto que o CFE foi durante alguns anos uma importante oposição aos interesses dos militares frente à educação e, principalmente, frente à implantação da EMC como disciplina escolar obrigatória, com este Decreto-Lei os militares buscam por meio da criação da CNMC tomar as rédeas das decisões e discussões futuras que atingissem o ensino de Moral e Civismo.

É importante mencionar que o Conselho Federal de Educação era contrário à obrigatoriedade da disciplina escolar EMC. A Comissão Nacional de Moral e Civismo (CNMC) via na disciplina a forma mais eficaz de reverter os desvios de conduta que acometiam a juventude. Os órgãos normativos não trabalharam em conjunto, caracterizando a implantação da disciplina como um processo marcado pelas tensões ideológicas e disputas de poder (…) formação da Moral e Cívica pelo CFE teve sua primeira regulamentação em 1962, que indica a EMC como prática educativa no sistema federal de ensino. Com o golpe militar de 1964 as determinações do CFE foram revisadas e revogadas. O novo governo intencionava colocar a obrigatoriedade da EMC como disciplina escolar nos currículos para transmitir em seu currículo a ideologia da Segurança Nacional, bem como fazer dela um controle disciplinar para evitar ações subversivas contra o Governo. (Lemos, 2011, Apud, Cunha, 2021, p. 68) 

Chama a atenção, principalmente, as demandas de articulação da comissão com as mais variadas camadas do poder, inclusive para além da estrutura federal. Nesse sentido, outras esferas de poder deveriam colaborar com o CFE na elaboração de currículos, colaborar com organizações sindicais para o desenvolvimento de atividades cívicas, influenciar a cooperação dos órgãos formadores de opinião pública e de difusão cultural, a fim de explanar a EMC e, principalmente, o assessorar o Ministro de Estado na aprovação dos livros didáticos sob o ponto de vista moral e cívico. 

Foi nesse ponto em específico que a comissão mais exerceu seus poderes, nas decisões acerca dos livros didáticos. “As publicações sobre a disciplina escolar EMC deveriam ser submetidas a exame prévio antes de sua impressão pelo setor de exames de livros didáticos da Comissão Nacional de Moral e Civismo (CNMC).” (CUNHA, 2021, p.70) O autor ainda destaca que a CNMC, reunia membros que se articulavam com a censura federal e civil.

A CNMC contribuiu com pareceres desfavoráveis à circulação de diversos livros sobre EMC, tendo sido determinante na escolha do que seria ou não difundido através dos livros didáticos da disciplina.

A partir do decreto Lei 68065 de 1971, coube à Comissão Nacional de Moral e Civismo implantar e manter a doutrina da disciplina Educação Moral e Cívica por intermédio de livros e materiais que eram utilizados como suporte para a formação educacional, havendo um setor responsável pela elaboração de currículos e exames de livros didáticos. (Cunha, 2021, p.69)

Em 14 de janeiro de 1971, o Decreto n° 68.065, regulamentou o Decreto-lei n°869/69. Estabelecendo as normas de seu funcionamento. O artigo 7° em específico aponta as novas resoluções de funcionamento da disciplina:

Art. 7º O Conselho Federal de Educação, com a colaboração da Comissão Nacional de Moral e Civismo, elaborará os currículos e programas básicos para diferentes cursos e áreas de ensino, com as respectivas metodologias e determinará a distribuição mínima pelas séries das atividades de Educação Moral e Cívica, levando em conta:

a) a disciplina Educação Moral e Cívica deverá integrar o currículo de, ao menos, uma das séries de cada ciclo do ensino de grau médio e de uma série do curso primário;

b) no educandário em que “Organização Social e Política Brasileira” não constar do currículo de acordo com a Indicação nº 1 do Conselho Federal de Educação ou com disposições análogas do Conselho Estadual competente, o seu conteúdo será ministrado obrigatoriamente como parte integrante da Educação Moral e Cívica na 4º série do 1º ciclo e em uma das séries do 2º ciclo, sem substituir o que dispõe a alínea anterior;

c) a Educação Moral e Cívica como prática educativa deverá ser ministrada, ao menos, nas séries dos cursos primários e médios não integrados, pela disciplina Educação Moral e Cívica ou Organização Social e Política Brasileira;

d) a Educação Moral e Cívica deverá constituir preocupação geral da escola, merecendo o cuidado dos professores em geral e, especialmente, daqueles cujas áreas de ensino tenham com ela conexão, como: Religião, Filosofia, Português e Literatura, Geografia, Música, Educação Física e Desportos, Artes Plásticas, Artes Industriais, Teatro Escolar, Recreação e Jornalismo (Decreto n° 68.065/71)

Fica determinado, através do Decreto n°68.065/71 que a disciplina EMC seria ensinada em ao menos uma das séries de cada ciclo do ensino de grau médio e de uma série do curso primário, sendo presente em ao menos 3 anos da formação dos estudantes. O decreto também aponta que os professores que tinham formação voltada à área das humanidades deveriam ser, em geral, aqueles que cuidariam da disciplina.

Neste sentido, após regulamentação do Decreto-lei 869/69 e seguindo os escritos de Cunha (2007) vemos que:

A finalidade da disciplina representa uma sólida fusão do pensamento reacionário, do catolicismo conservador e da DSN, conforme era concebido pela ESG. Os conceitos de ordem, moral, progresso, foram difundidos no campo militar e reorganizados dentro da ESG, criaram a base para a implantação da disciplina escolar Educação Moral e Silva. (Cunha, 2007, Apud. Cunha, 2021, p.67)

Assim, a EMC serviria como um elemento de endosso de que o Estado era legítimo graças a um constante desenvolvimento capitalista. Essa legitimidade é medida através do desenvolvimento econômico e da segurança interna, sob as bases da Doutrina de Segurança Nacional. (Cunha, 2021)

Outro momento de regulamentação importante na história da disciplina escolar EMC foi a Lei de Diretrizes e Bases de 1971 – LDB/71.

A implantação da Lei n° 5.692/71, que fixou as Diretrizes e Bases para os ensinos de 1° e 2° graus, reafirmou a introdução no currículo das escolas de todos os níveis de ensino da disciplina de Educação Moral e Cívica. Segundo o Artigo 7°, da Lei 5692/71: “Será obrigatória a inclusão da Educação Moral e Cívica, Educação Física, Educação Artística e Programa de Saúde nos currículos plenos dos estabelecimentos de 1° e 2° graus”. No ensino superior, a Educação Moral e Cívica seria realizada, sob a forma de “Estudos de Problemas Brasileiros.” (Filgueiras, 2006, p.50)

A Lei n° 5692/71 era a expressão da nova organização do sistema educacional brasileiro. O ensino passava a possuir um currículo nacional, em torno de um núcleo comum de matérias e a EMC integrava-se ao currículo com essa reforma. O artigo 7° da lei, dispunha especificamente sobre a disciplina Educação Moral e Cívica: 

Será obrigatória a inclusão de Educação Moral e Cívica, Educação Física, Educação Artística e Programas de Saúde nos currículos plenos dos estabelecimentos de lº e 2º graus, observado quanto à primeira o disposto no Decreto-Lei n. 369, de 12 de setembro de 1969. (Vide Decreto nº 69.450, de 1971) Parágrafo único. O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais dos estabelecimentos oficiais de 1º e 2º graus. (Lei 5692 de 1971)

Nessa perspectiva, a educação moral e cívica é chancelada pela última instância das leis educacionais e mais do que nunca passa a integrar o cotidiano escolar da juventude brasileira.

A institucionalização da disciplina de Educação Moral e Cívica pelo Regime Militar fazia parte de um projeto político nacional, que procurou construir um ideário patriótico, com uma nação forte, que ressaltava os valores da moral, da família, da religião, da defesa da Pátria e inculcava valores anticomunistas nos jovens e crianças. De acordo com Martins a introdução da Educação Moral e Cívica nos currículos explicitava como o Estado e os Grupos dirigentes lidavam com a escolarização: a finalidade do ensino seria a “formação genérica de um cidadão, amante da pátria e defensor de princípios moralizadores”. Os objetivos e funções desse saber escolar estavam delimitados: “adequar o estudante à sociedade em que se inseria, amar a pátria e respeitar a ordem política e social estabelecida” (Filgueiras, 2006, p.53)

Infelizmente, podemos perceber o sucesso do plano dos militares, uma vez que, ainda hoje, diversos desses resquícios apontados por Martins são perceptíveis em nossa sociedade. O discurso de formação cívica e moral disfarçava na verdade uma busca pelo cidadão conformado, que aceitava as coisas como estavam e preocupava-se apenas com o trabalho, incutido pela ideia de que o Brasil caminhava rumo ao futuro. Os ideais moralizadores ainda estão presentes nas discussões sobre sociedade e política no Brasil e continuam sendo sinônimo, para uma parte da população, da moral militar, haja vista os movimentos que defendem o retorno da ditadura e a exaltação dos militares como os governantes mais aptos e morais para guiarem o Brasil rumo ao progresso.

Cunha (2021, p.69) ao citar Germano (1989) destaca que a reintrodução da EMC nos currículos oficiais como disciplina, busca cumprir o mesmo papel de sua primeira implantação em 1925, pretendia-se que ela funcionasse como uma ferramenta de prevenção às manifestações contrárias ao governo.

A EMC atua na defesa da formação do bom cidadão que cumpre com os deveres cívicos e patrióticos contribuindo para o desenvolvimento de um projeto de nação. A escola é utilizada para transmitir os valores de uma postura passiva e ideológica de cidadania como forma de legitimação do regime. (Cunha, 2021, p.69)

José Vaidergon em As Moedas Falsas – educação, moral e civismo (1987) nos fornece uma ótima contextualização do que significou a implantação da EMC no governo militar:

Os golpistas de 1964 adotaram a moral e cívica como uma condição necessária para afastar o perigo da Guerra Revolucionária. Em 1969, após as pressões a favor e contra sua institucionalização, e depois das crises do ano anterior que terminaram com as medidas de força representadas pelo AI-5 e pelo Decreto lei 4772, a educação moral e cívica é criada, como disciplina e área de estudo, pela junta militar, através do Decreto-lei 869. (Vaidergon, 1987, p.183)

Nessa perspectiva, o que se buscou através da discussão sobre cidadania, é entender qual tipo de cidadão enquadrava-se dentro do sujeito idealizado pela Ditadura Civil-Militar brasileira. Dessa forma, José Murilo de Carvalho (2021) contribui em nossa pesquisa ao fazer uma espécie de historiografia da cidadania em terras brasileiras. Mostrando que em momentos de autoritarismo governamental, nossos dirigentes sempre optaram por uma primazia aos direitos sociais e a supressão dos direitos políticos, defendendo que essa supressão gerou um tipo de cidadania diferente no Brasil.

Assim, buscou-se demonstrar que a EMC é temática de discussão ao menos desde a Primeira República. Analisou-se as disputas e os interesses por trás desse debate nos mais variados contextos da história republicana brasileira, deixando explícita as mudanças de significados em relação ao papel da educação cívica e moral, e, finalmente, desembocando no período da Ditadura Civil Militar e a “absolvição” da ideia da educação moral e cívica pelos preceitos defendidos pela Escola Superior de Guerra (ESG). 

A ESG, através de sua Doutrina de Segurança Nacional (DSN), tinha como objetivo combater os inimigos internos e externos ao desenvolvimento do país nos trilhos do capitalismo. Quando se refere a inimigos, leia-se comunista ou qualquer pessoa que fosse contra o regime. Dentro da Doutrina de Segurança Nacional, a educação era considerada arma primordial dentro da guerra ideológica travada no País. E foi através da disciplina escolar de educação moral e cívica que esse ideário gerado no seio da ESG foi colocado em prática.

A partir da implantação da EMC enquanto disciplina obrigatória, procuramos entender seus principais marcos regulatórios, como: o Decreto-lei 869/69, o Decreto-lei 68.065/71 e a LDB/71. Destacam-se dentro desses marcos regulatórios a busca pela homogeneização da sociedade, através da disciplina de EMC, defendendo conceitos como: Unidade Nacional, o culto à pátria e seus símbolos e instituições e a busca pela conformação dos cidadãos através do culto da obediência às leis e a fidelidade ao trabalho.

Dentro desse contexto, destaca-se ainda a criação da CNMC, que tinha a maioria dos seus membros formados pela ESG, e disputou frente ao CFE a direção nos rumos da EMC no período, tendo destaque principalmente na seleção dos livros didáticos que seriam utilizados na disciplina. A comissão exerceu um importante papel de censura frente aos materiais que não eram alinhados à ideologia dos militares.

Dessa forma, de acordo com as temáticas e livros estudados, fica clara que a disciplina escolar Educação Moral e Cívica foi uma arma utilizada pelos militares no poder, a fim de criar uma geração futura que atuasse de forma passiva, cultuando as obras do regime e que fossem diretamente identificados com a ideologia capitalista, combatendo assim, o “inimigo comunista” em terras brasileiras. Percebemos que o discurso e prática da disciplina são coisas totalmente diferentes. 

A preparação dos sujeitos para a cidadania e a moral preconizada pelos militares, nos abre a seguinte questão: qual o tipo de cidadão uma ditadura autoritária tem interesse em formar? Um cidadão crítico ou um cidadão controlado e passivo? As exposições acima nos dão um sentido para a resposta essa pergunta. No terceiro capítulo, através da análise do material didático intitulado Guia do Civismo, um manual para professores que lecionariam a disciplina no ensino médio, produzido através de concurso público, também contribuirá para essas respostas. Buscando analisar quais conteúdos e de quais formas esses conteúdos eram veiculados. 

A análise do livro em questão é ainda mais elucidativa, haja vista que figuras de grande destaque dentro do processo de implantação da EMC enquanto disciplina nos anos de ditadura militar, participaram de forma ativa, tanto na elaboração do concurso, quanto na comissão julgadora do trabalho vencedor, tendo eles, fornecido as bases sob as quais os trabalhos concorrentes deveriam ser escritos.

Comissão Nacional de Moral e Civismo X Conselho Federal de Educação

Ao pensarmos à implantação da EMC enquanto disciplina obrigatória é indispensável a atenção à atuação e o embate entre esses dois órgãos. Inicialmente, antes da existência da CNMC, observamos um CFE independente e contrário à obrigatoriedade da Educação Moral e Cívica enquanto disciplina, o órgão alegava que a disciplina Organização Social e Política Brasileira (OSPB), criada durante a ditadura militar, já era suficiente às demandas do regime. Abordaremos a criação e atuação de ambos os órgãos, destacando as relações formadas após a criação da CNMC e a coexistência de ambos.

Conselho Federal de Educação

O CFE foi criado a partir da LDB de 61, lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961. Foi caracterizado como colegiado superior da Educação, com amplos poderes deliberativos e de natureza técnica, normativa e decisória, conforme seu regimento aprovado em 1963, por meio do decreto nº 52.617, de 7 de outubro de 1963. (Lemos, 2011, p.66).

O órgão tinha a função de orientar a política educacional do governo, sendo seu funcionamento vinculado ao MEC, constituído por 24 membros, indicados pelo presidente da República. Seus membros deveriam ser pessoas de notável saber e dedicação à causa educacional e deveriam representar todas as regiões do país. Sobre suas funções:

Entre as suas atribuições estava a de indicar disciplinas obrigatórias para os sistemas de ensino médio, estabelecer a duração e o currículo mínimo dos cursos de ensino superior e emitir pareceres sobre assuntos e questões de natureza pedagógica e educativa que lhe fossem submetidos pelo presidente ou pelo ministro da Educação. Alguns atos do Conselho, contudo, dependiam de homologação do Ministério para que fossem efetivados. (Lemos, 2011, p.67).

A autora continua destacando que o conselho nasceu com a incumbência de promover uma educação mais igualitária e dirigir a normalização do ensino no país. Lemos (2011), em sua dissertação nos fornece detalhada lista dos membros do conselho, presentes em sua formação e após o golpe. A escolha dos primeiros membros foi pautada exclusivamente por critérios técnicos, quadro que após o golpe de 64 foi aos poucos sendo modificado. Alguns conselheiros contrários aos interesses militares na educação foram sendo substituídos por pessoas que colaborassem com o regime, suprimindo assim os critérios técnicos de escolha.

LISTA DE MEMBROS DO CONSELHO FEDERAL DE EDUCAÇÃO3

Com mandato de dois anos: 

♣ Celso Cunha: professor da faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretor da Faculdade de Humanidades Pedro II. Foi Secretário Geral de Educação e Cultura do Governo Provisório do Estado da Guanabara, em 1960. 

♣ Deolindo Couto: professor emérito da UFRJ, foi reitor da Universidade do Brasil. 

♣ Francisco Maffei: professor doutor emérito de Química da Universidade de São Paulo. Foi superintendente do Instituto de Pesquisas Tecnológicas em São Paulo, diretor da Escola Politécnica da USP e vice-reitor da instituição nos anos de 1958 e 1959.

♣ João Bruza Neto: subsecretário de Educação do Estado do Rio Grande do Sul para o Ensino Técnico e Primário. Eleito deputado estadual pelo PTB em 1962. 

♣ José Barreto Filho: professor de Psicologia Educacional na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). 

♣ José Borges dos Santos Júnior: pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil, foi presidente do Supremo Concílio dessa entidade entre 1954 e 1958 e representante do Associado Vitalício. Era ligado à alta administração da Universidade Mackenzie de São Paulo. 

♣ Roberto Bandeira Accioli: bacharel em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil. Foi professor catedrático de História do Colégio Pedro II e diretor do mesmo a partir de 1962. Foi secretário de Educação da antiga Prefeitura do Distrito Federal. 

♣ Valnir Chagas: bacharel em Direito e licenciado em Pedagogia. Autor do livro Didática Especial de Línguas Modernas (1957), obra pioneira sobre o processo de ensino e aprendizagem de línguas no Brasil, prefaciada por Anísio Teixeira. Contribuiu para a criação e desenvolvimento da Universidade Federal do Ceará. Foi professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília e um dos principais autores das leis que estabeleceram a Reforma Universitária de 1968. 

Com mandato de quatro anos: 

♣ Bispo Cândido Rubens Padim: teólogo, advogado e doutor em Filosofia. Autor de A doutrina de segurança nacional e a missão da Igreja (1973), foi um forte contestador do autoritarismo. ♣ Clóvis Salgado: professor de Medicina, foi governador de Minas Gerais entre 1955 e 1956 e ministro da Educação de Juscelino Kubitschek entre 1956 e 1961. 

♣ Edgard dos Santos: formado pela Faculdade de Medicina da Bahia em 1917, tornou-se docente da mesma instituição em 1924. Em 1936, assumiu a direção da Faculdade de Medicina e, em 1937, respondeu também pela chefia do Hospital Universitário. Líder da unificação das faculdades baianas, em 1946, tornou-se reitor da Universidade da Bahia neste mesmo ano, cargo que ocupou até 1952. Foi ministro da Educação no final do segundo governo de Getúlio Vargas, sendo eleito, em 1959, para a Academia de Letras da Bahia. 

♣ Hermes Lima: formado em Direito pela Faculdade de Direito da Bahia, foi eleito deputado estadual em 1924. Em 1935, tornou-se diretor da Faculdade de Direito da UFRJ. Foi eleito deputado em 1945 e em setembro de 1962 ocupou o então cargo de primeiro-ministro, extinto em janeiro de 1963. Foi posteriormente ministro das Relações Exteriores e nomeado para o Supremo Tribunal Federal, sendo eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1968. 

♣ Joaquim Faria Góes Filho: Inspetor Geral do Ensino de 1930 a 1931. Membro do Ministério da Educação no governo de Getúlio Vargas, reorganizou as escolas técnicas secundárias em 1937. Foi um dos fundadores e diretor do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) de 1948 a 1960. Também foi membro do Conselho Diretor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a partir de 1956. 

♣ Maurício Oscar da Rocha e Silva: formado em Medicina pela Universidade do Brasil. Foi um dos criadores da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Membro fundador da Sociedade Brasileira de Fisiologia, em 1957, e da Sociedade Brasileira de Farmacologia e Terapêutica Experimental, em 1966. 

♣ Padre José Vieira de Vasconcellos: ordenado padre pelo Santuário de Caraça, em Minas Gerais, em 1929, foi um dos responsáveis pela criação dos colégios salesianos no Brasil, sendo, posteriormente, corresponsável pela política de profissionalização universal e compulsória no ensino de 2º grau. 

♣ Newton Sucupira: bacharel em Direito pelas Faculdades de Direito de Recife e de São Paulo. Foi professor de Direito e Filosofia da UFRJ e vice-presidente da Academia Brasileira de Educação (ABE). Participou das manobras políticas que resultaram nos acordos MEC-UDAID. 

Com mandato de seis anos: 

♣ Abgar Renault: formado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foi professor emérito desta mesma instituição e do Colégio Pedro II. Foi deputado estadual por Minas Gerais em 1927 e diretor do Colégio Universitário da Universidade do Brasil. Foi secretário da Educação do Estado de Minas Gerais, Diretor do Departamento Nacional da Educação de 1940 a 1946 e, posteriormente, ministro da Educação e Cultura entre 1955 e 1956. No período de 1956 e 1959, foi membro da Comissão Internacional do Currículo Secundário da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Representou o Brasil em diversas conferências internacionais sobre educação. Também foi membro da Academia Brasileira de Letras, eleito em 1968. 

♣ Alceu Amoroso Lima: líder católico, eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 1935, foi professor de Literatura Brasileira da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil e um dos fundadores da PUC RJ. 

♣ Anísio Espínola Teixeira: foi presidente da ABE na década de 1930, sendo um dos mais destacados signatários do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova. Na década de 1950, foi secretário-geral da CAPES e dirigiu o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP). Em 1963, foi nomeado reitor da Universidade de Brasília. 

♣ Antônio Balbino de Carvalho Filho: formado em Direito pela UFRJ em 1932, foi professor da Faculdade de Direito e de Filosofia da Bahia. Foi deputado federal e ministro da Educação e Saúde de 1951 a 1954. Elegeu se, em 1954, governador do Estado da Bahia. Exerceu ainda a carreira de advogado e jornalista. 

♣ Antonio Ferreira de Almeida Júnior: professor de Medicina e Direito da USP, foi nomeado conselheiro do Conselho Nacional de Educação em 1949. 

♣ Francisco de Paula Brochado da Rocha: professor catedrático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Foi procurador da prefeitura de Porto Alegre e deputado estadual de 1947 a 1951, secretário de 72 Educação e Cultura em 1959 e primeiro-ministro em 1962, sendo sucedido por Hermes Lima. Ainda em 1962, foi designado ministro da Fazenda. 

♣ Bispo Helder Câmara: diretor do Departamento de Educação do Estado do Ceará, fundou no Rio de Janeiro a Cruzada São Sebastião e o Banco da Providência, entidades destinadas ao amparo de pessoas carentes. Fundou a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), da qual foi secretário por 12 anos. Em 1964, foi designado para ser arcebispo de Olinda e Recife. 

♣ Josué Montello: Inspetor Federal do Ensino Comercial, no Rio de Janeiro, em 1937, ocupou o cargo de Técnico de Educação do MEC de 1938 a 1971. Foi diretor Geral da Biblioteca Nacional, em 1947, e professor das Universidades Federal do Maranhão, de Lisboa e Madri, sendo reitor da Universidade Federal do Maranhão. Tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras em 1954. (Lemos, 2011, p.68-74)

Membros integrados em 1964 por João Goulart:

♣ Duarte Brasil Lago Pacheco Pereira: diretor da UNE e membro da Ação Popular. Impedido de assumir pelo governo militar.

♣ Rubens Mário Garcia Maciel: professor catedrático de Clínica Médica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde atuou em órgãos colegiados. Era membro titular da Academia Nacional de Medicina e da Academia Sul-Riograndense de Medicina 

♣ Durmeval Bartolomeu Trigueiro Mendes: professor da PUC-RJ e da Universidade do Estado da Guanabara. Em 1960, passou a integrar o Conselho Consultivo da CAPES. Em 1961, foi nomeado diretor do Ensino Superior do MEC, cargo exercido até 1964.

Membros integrados no conselho pós golpe:4

♣ Henrique de Toledo Dodsworth Filho: formado em Medicina e Direito, foi professor catedrático do Colégio Pedro II. Apoiou a Revolução Constitucionalista, sendo eleito deputado em 1933 e 1935. Durante o Estado Novo, foi interventor federal do Distrito Federal. Em 1945, foi nomeado embaixador do Brasil em Portugal. 

♣ Celso Kelly: jornalista, foi dirigente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), da qual foi presidente, sucedendo Herbert Moses. Durante a sua gestão, promoveu três concursos jornalísticos e realizou um seminário para debater os problemas do ensino do Jornalismo. Foi nomeado diretor-geral do Departamento Nacional de Ensino do Ministério da Educação, renunciando ao cargo de presidente da ABI em 9 de fevereiro de 1966. 

♣ João Peregrino da Rocha Fagundes Filho: médico e jornalista, foi presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia, Biotipologia e Nutrição. Atuou como professor catedrático da Faculdade Nacional de Medicina e como membro da Academia Nacional de Medicina. 

♣ Wandick Londres da Nóbrega: professor e especialista em gramática de Latim. Foi diretor do internato do Colégio Pedro II de 1948 a 1958 e de 1964 a 1967, onde empreendeu uma forte perseguição ao movimento estudantil da instituição. 

♣ Roberto Figueira dos Santos: professor de Medicina da Bahia a partir de 1951, ocupando o cargo de reitor da instituição entre 1967 e 1971. Foi presidente da Associação Brasileira de Educação Médica e membro da Academia de Letras da Bahia.

Em 1966, um novo regimento para o órgão é aprovado, por meio do decreto nº 59.867, de 26 de dezembro de 1966. O novo regimento conferia maior poder de intervenção ao órgão dentro do ensino superior, principalmente no que diz respeito às intervenções em universidades, públicas ou privadas. Pós 1964, o ensino superior configurou um dos pontos centrais de atuação do CFE. 

Indo de encontro ao mencionado no Capítulo 1 dessa dissertação, acerca da privatização do ensino pós golpe, o órgão foi sendo modificado através de nomeações de membros que fossem alinhadas à ideologia do regime, privilegiando as questões privatistas e deixando a educação para segundo plano. 

Fonseca (1992) afirma que após as primeiras reconduções de membros e os afastamentos compulsórios pós-1964, o Conselho ajudou a conduzir o fortalecimento do segmento empresarial na educação do país, intensificando o conflito entre público e privado, que, no entanto, não constitui objeto de análise dessa dissertação. (Lemos, 2011, p.75)

Em relação à obrigatoriedade da EMC enquanto disciplina, o Conselho Federal de Educação desempenhou papel de destaque dentro do processo. 

(…) foi possível observar que o Conselho tentou manter no âmbito educacional uma postura menos autoritária do que exigiam os militares. No entanto, as mudanças arbitrárias impostas a sua estrutura geraram uma diminuição da autonomia dos membros contrários à política dominante. O poder Executivo fortalecido, sendo a única instância responsável pela nomeação e recondução dos conselheiros, acabou por introduzir no CFE os critérios de disseminação da ideologia do poder instituído. A resistência da maioria dos conselheiros em relação à EMC, contudo, prevaleceu sobre os posicionamentos favoráveis a sua manutenção, como veremos a seguir. (Lemos, 2011, p.76)

A LDB de 61, não menciona a obrigatoriedade da EMC enquanto disciplina, destacando apenas que a formação moral e cívica deveria ser levada em conta na formação da juventude (BRASIL, LDB/61, art. 38). O debate acerca da formação cívica dos estudantes continuou sendo tema dentro do conselho, muito pela falta de clareza da LDB ao tratar sobre o tema. Nesse sentido, Lemos (2011, p.78) defende que a disciplina de OSPB foi criada como disciplina optativa visando preencher essa lacuna que a lei deixou. A disciplina tinha como objetivo preparar os jovens para o exercício consciente da cidadania em uma democracia, sem nenhuma referência à formação moral dos estudantes, apenas cívica. Foi essa disciplina que serviu como escudo, frente às investidas dos militares pela obrigatoriedade da EMC, sendo sua defesa bem-sucedida até 1969.

A criação foi justificada pelo argumento de que os conteúdos de OSPB não tinham equivalência em nenhuma outra disciplina curricular. Os temas por ela abordados deveriam abranger a realidade social e a política do Brasil, a fim de estimular a vivência concreta de virtudes morais e cívicas e estimular decisões responsáveis. A disciplina deveria preencher a lacuna existente nas escolas no que dizia respeito à consciência de defesa das instituições democráticas por parte da juventude, que deveria ser educada para adquirir conhecimentos sobre cidadania e civismo. (Lemos, 2011, P.78)

A questão da formação moral e cívica proposta pelo art.35 da LDB de 61, continuou sendo questionada ao conselho. Questionamentos no sentido de o que caracterizaria uma prática educativa, respondida pelo parecer nº 131, de 30 de julho de 19625, e quais as formações seriam necessárias ao professor que ministrasse essas práticas educativas, respondidas no parecer nº 371, de 06 de dezembro de 19636.

Sobre a distinção entre prática educativa e disciplina educativa, 

(..) explicou que as disciplinas seriam atividades escolares destinadas à assimilação de conhecimentos sistematizados e progressivos, enquanto que as práticas educativas estariam relacionadas às necessidades de ordem física, artística, cívica, moral e religiosa, e teriam o objetivo de atuar na maturação da personalidade e na formação de hábitos, embora necessitassem também da ―assimilação de certos conhecimentos. (CFE, parecer n° 131/62). (Lemos, 2011, p.78)

A partir do golpe de 1964, o caráter facultativo da prática educativa cívica e moral começa a ser questionado pelos recém donos do poder. A EMC passa a fazer cada vez mais parte das discussões educacionais, pois era vista pelos militares como a principal arma dentro da educação para diminuir e/ou prevenir a participação política dos jovens e a adesão por partes desses à atitudes “subversivas”. O regime deseja cidadãos passivos e que os apoiassem e fornecessem sustentação ao seu governo, utilizando o fantasma da “subversão” para atacar as liberdades, inclusive a de pensamento.

Em 1966, é realizada a III Reunião Conjunta dos Conselheiros de Educação, onde a EMC foi o tema norteador dos debates. Lemos (2011, p.85) destaca algumas das exposições feitas no evento: 

∙ ―Objetivos primordiais da educação cívica na formação da juventude – professor Erasmo de Freitas Nuzzi e Padre Lionel Corbeil; 

∙ ―Organização social e política brasileira e a educação cívica – professor João Camilo de Oliveira Torres; 

∙ ―Meios e processos da educação cívica – Irmão José Otão.

Ao analisar os autores dessas exposições, chama a atenção a presença de duas figuras religiosas ligadas ao catolicismo. Um padre e um Irmão Marista, essa ligação entre educação moral e cívica e catolicismo fica explicitada durante toda nossa análise, e os dirigentes – buscando maneiras de incutir suas ideias de forma mais fácil – apropriavam-se da religiosidade para garantir uma maior simpatia entre receptor e produto, no caso a EMC. Para além do caráter religioso, destaca-se a presença de importantes figuras no universo educacional brasileiro, como conselheiros estaduais de educação e professores da rede federal de ensino superior.

Também foram apresentadas palestras como “Conceitos de civismo”, de Newton Sucupira, “Civismo da casa ao Cosmos”, Alceu Amoroso Lima. Nos anais foi anexado um texto de Humberto Grande, “A educação Cívica e a Organização Social”. (Lemos, 2011, p.85)

Após analisar os discursos presentes na Reunião Conjunta, Lemos destaca: 

Nos discursos analisados, percebe-se a existência de uma mudança na forma de apresentação da Educação Cívica. Se até 1965 ela sempre havia sido definida como uma prática educativa de livre escolha, a partir da Reunião Conjunta de 1966 ela passou a ser defendida como um recurso indispensável na formação de condutas patrióticas, impondo-se, portanto, a criação de um componente curricular específico. Segundo a proposta, a EMC complementaria a OSPB, e vice-versa. (Lemos, 2011, p.92)

Essa mudança de posicionamento foi sendo forçada a se manter, principalmente após a posse de Costa e Silva e a crescente atuação do já mencionado General Moacir Araújo Lopes, a EMC passa a ser presente cada vez mais nas discussões do CFE. Assim, após apresentação do anteprojeto elaborado pela ADESG sob a batuta do General, e intensa deliberação no CFE, os conselheiros cedem ao ímpeto militar e aprovam, com ressalvas – o anteprojeto-, através do parecer n°3, de 4 de fevereiro de 1969. 

Como já mencionado, Henrique Dodsworth foi o relator responsável e deixa claro no parecer que, independente do posicionamento do CFE, ficava a cargo do então presidente aprovar ou não o anteprojeto.

No parecer ainda foi explicado que encontros foram promovidos entre membros do CFE e os autores do anteprojeto da ADESG, entre eles Moacir Araújo Lopes. Esses encontros propiciaram, conforme o relator, um conhecimento profundo sobre os motivos inspiradores da redação. Foi ressaltado que, diferentemente do que vinha sendo veiculado por outros projetos, este relacionava a emergência da Educação Moral e Cívica a um problema de Segurança Nacional, com implicações em aspectos preventivos e repressivos da segurança interna. A disciplina era apresentada como um meio de corrigir as falhas que estavam levando os jovens a contestar os valores tradicionais da cultura. (Lemos, 2011, p.94)

O parecer transparece a contrariedade do órgão frente à obrigatoriedade da EMC. No entanto, influenciado pelo momento político nacional – de endurecimento do regime – a posição final do relator é a de aprovação do trabalho do grupo de estudos da ADESG. De acordo com Henrique Dodsworth “(…) o seu conteúdo correspondia às exigências do momento, o que legitimava a sua conveniência e a justificativa de urgência da aprovação” (Lemos, 2011, p. 96). A aprovação, no entanto, foi acompanhada de ressalvas em relação ao anteprojeto, com destaque à: 

Art. 3º – Onde se lia: A educação Moral e Cívica, como disciplina, será ministrada…; Redija-se: a educação Moral e Cívica, como disciplina e prática educativa, será ministrada…;

Art. 3º – Acrescenta-se: nos estabelecimentos de grau médio, além da Educação Moral e Cívica, será ministrada, como complemento e, no mesmo espírito de obediência ao que preceitua a Política Formativa traçada na Lei, a disciplina ―Organização Social e Política Brasileira. (CFE, parecer nº 3/69).

Conforme já acompanhamos, em 12 de setembro de 1969, o decreto-lei 869/697 é baixado pela Junta Militar no comando, tornando a EMC obrigatória nos mais variados níveis de ensino do Brasil. Uma grande vitória dos defensores de sua causa, principalmente dos militares formados pela ESG.

Lemos (2011, p. 98) destaca que comparando o decreto-lei e o anteprojeto proposto pela ADESG, é possível percebermos pequenas vitórias do CFE – as já mencionadas ponderações do relator – uma vez que existem mudanças de um documento para o outro. 

A Educação Moral e Cívica foi instituída enquanto disciplina obrigatória, mas também como prática educativa, contrariando a vontade dos militares de estabelecê-la apenas como disciplina. Outro ponto de modificação foi a preferência por membros diplomados pela ESG para compor os quadros da comissão, essa preferência foi substituída por escolha através da dedicação dos membros à causa da EMC. Faz-se necessário destacar que essa mudança em específico, ficou somente no discurso, uma vez que ao acompanhar a composição da comissão, é impossível não perceber a influência da ESG no grupo. 

Uma grande vitória do decreto, em favor da comissão, foi a concessão da responsabilidade de auxiliar o CFE na elaboração de currículos e programas básicos para a disciplina, tarefa que antes cabia inteiramente ao conselho. A comissão também ficou responsável pela escolha do material didático destinado à disciplina, tendo possuído e exercido poder de censura frente aqueles que fosse considerado fora dos ideais do regime. 

Comissão Nacional de Moral e Cívismo 

A Comissão Nacional de Moral e Civismo foi criada pelo Decreto –lei n° 869/69, o mesmo que institucionalizou a EMC enquanto disciplina obrigatória. A CNMC foi um órgão de caráter normativo, sendo subordinado diretamente ao Ministério de Educação e Cultura. Foi composta por nove membros – que serão mencionados posteriormente- todos brasileiros e dedicados à causa da EMC. O mandato de um terço dos membros da Comissão cessaria de dois em dois anos, sendo passível de recondução apenas uma vez. Seu objetivo primário era o de fazer a articulação entre sociedade civil e militares, visando implantar, propagar e manter a doutrina da EMC, com foco na formação do caráter do brasileiro e de seu preparo para o exercício da cidadania democrática. Outra atribuição da comissão era de fixar medidas de atividades extraescolares que também visassem a divulgação do ideal da EMC na sociedade.

As suas atribuições, regulamentadas pelo decreto n° 68.065/71, e seu regimento interno, divulgado pela portaria 524-BSB, de 10 de julho de 1972, destacavam o papel atuante da Comissão, em colaboração com o Conselho Federal de Educação, na elaboração dos currículos e programas básicos da disciplina. No entanto, as decisões da CNMC dependiam da homologação do ministro da Educação, que poderia devolver, para reexame, os pronunciamentos por ela geridos. (Lemos, 2011, p.99)

Conforme o regime aumentava seu grau de autoritarismo, a Comissão foi ficando mais poderosa e consequentemente mais influente nos meios educacionais. A Comissão passou a assessorar o Ministro de Educação e Cultura no julgamento e aprovação de livros didáticos para a disciplina, o que na prática configurou a aprovação somente de discursos que se enquadrassem nas normas conservadoras idealizadas pelo regime.

O decreto n° 68.065, de 14 de janeiro de 1971, que regulamentou as atribuições da CNMC contidas no decreto-lei nº 869/69, definiu que ela deveria articular-se com as autoridades responsáveis pela censura, no âmbito federal e estadual, ―tendo em vista a influência da educação sistemática sobre a educação assistemática‖ (art. 9, alínea ―n‖). Como não poderia ser diferente, os colaboradores da Comissão eram, na sua grande maioria, vinculados às Forças Armadas, o que aumentava a sua influência nos assuntos educacionais e enquadrava a nova disciplina no aparato repressivo do momento. (Lemos, 2011, p.100)

Membros indicados para a composição da primeira comissão em 1969:8

♣ General Moacir Araújo Lopes: primeiro presidente da Comissão, foi diplomado pela ESG em 1960. Atuava como professor titular de Estudo de Problemas Brasileiros na Faculdade de Humanidades Pedro II, tendo sido um dos principais elaboradores do anteprojeto de lei da EMC. 

♣ Almirante Ary dos Santos Rongel: havia sido diretor da Escola Naval entre os anos de 1953 e 1956. Na CNMC, foi dirigente do Setor de Exame dos Livros Didáticos. Ocupou, em 1976, o cargo de ministro interino da Marinha. 

♣ Álvaro Moutinho Neiva: desempenhou o cargo de diretor do Instituto Cruzeiro entre 1932 e 1944. Também integrou a Secretaria Geral de Educação do Rio de Janeiro, sendo membro da Academia Petropolitana de Letras. Na CNMC, foi vice-presidente e dirigente do Setor de Implantação e Manutenção da Doutrina. 

♣ Padre Francisco Leme Lopes: membro da Companhia de Jesus, era professor da Faculdade de Filosofia da PUC-RJ e do Colégio Santo Inácio. Diplomado na ESG em 1967, foi autor de várias obras que versavam sobre Filosofia e EPB. Na CNMC, ocupou o cargo de dirigente do Setor de Currículos e Programas Básicos. 

♣ Eloywaldo Chagas de Oliveira: diplomado na ESG em 1954, exercia a função de professor de Engenharia da Escola Politécnica e da Universidade Federal da Bahia. Também era membro da Academia de Letras da Bahia. 

♣ Humberto Grande: foi procurador da Justiça do Trabalho em 1951 e propagandista da legislação trabalhista, sendo um dos ideólogos da ditadura de Getúlio Vargas. Publicou os livros A Pedagogia do Estado Novo (1941), A educação cívica e o trabalho (1966) e Educação Cívica das mulheres (1967)

♣ Guido Ivan de Carvalho: era professor da Universidade de Campinas (UNICAMP) e assessor do Ministério da Educação, na década de 1960. 

♣ Hélio de Alcântara Avellar: professor do Colégio Pedro II a partir de 1963, era jurista e historiador. Também escreveu livros sobre a evolução e a história da Administração Pública no Brasil. 

♣ Arthur Machado Paupério: foi professor catedrático e, posteriormente, titular da Faculdade de Direito da UFRJ, onde também desempenhou a função de vice-diretor. Ministrou aulas na Universidade Federal Fluminense (UFF) e na PUC-RJ como livre-docente. Fez o curso da Escola Superior de Guerra em 1966, tornando-se, posteriormente, membro da ADESG. (LEMOS, 2011, p. 101-102)

A análise de perfil dos membros destaca a predominância da atuação de militares, religiosos ligados à Igreja Católica e professores conservadores. O que fortaleceu ainda mais as concepções ideológicas conservadoras ligadas à disciplina.  Na visão de Lemos (2011), a comissão buscava na obrigatoriedade da EMC a solução para a “omissão ideológica” nas escolas, na visão de seus membros essa omissão facilitava a ação dos grupos considerados subversivos na formação da juventude.

O perfil dos membros não surpreende se levarmos em consideração o contexto de disciplinarização da EMC e mais ainda, a quais interesses ela defende. O apelo ao catolicismo e ao nacionalismo como formas de fomentar um sentimento de identificação da juventude para com o regime foi o ritmo do funcionamento da disciplina. Disciplina essa que nasce sob a tutela conservadora dos Militares ligados a ESG, onde a educação surge como arma primordial na luta contra a “subversão” e comunismo, ou seja, uma forma de através da educação homogeneizar a sociedade, silenciando as oposições e fomentando a afirmação do regime, através de tópicos cotidianos que aproximavam essas pessoas.

Conclusão:

Nessa perspectiva pensarmos a questão da institucionalização da disciplina escolar Educação Moral e Cívica no Brasil, especialmente após o golpe militar de 1964, revela a complexa articulação entre os processos educacionais e as necessidades ideológicas e políticas que o regime militar utilizou para atingir seus objetivos. A análise das intervenções do Conselho Federal de Educação, das discussões acerca da obrigatoriedade da EMC e da criação da Comissão Nacional de Moral e Cívico nos ajuda a entender como o sistema educacional brasileiro foi utilizado como um campo de combate para consolidar as bases de um regime militar que buscava, por meio da educação, moldar as mentalidades e garantir o apoio popular a seu projeto de poder.

A partir de 1964, o CFE, até então um órgão voltado para a organização e fiscalização do ensino superior, foi progressivamente transformado por intervenções do governo, alinhando suas decisões com a ideologia do regime. A nomeação de membros do CFE que compartilhassem das mesmas visões privatistas e autoritárias do regime e o controle militar sobre a educação superior refletiram a busca por uma educação que sustentasse a ordem militar, suprimindo as críticas e limitando educacionalmente a juventude. A privatização do ensino, a repressão à formação de ideias progressistas e a implementação de políticas educacionais alinhadas aos interesses da Doutrina de Segurança Nacional constituíram os pilares dessa reconfiguração educacional.

A introdução da Educação Moral e Cívica enquanto disciplina obrigatória, a partir de 1969, foi um dos aspectos mais emblemáticos dessa reformulação educacional. Como vimos, o CFE, embora tenha resistido por algum tempo à imposição militar da EMC, não conseguiu impedir a implementação obrigatória da disciplina, que passou a ser vista como essencial para a formação de uma geração que se encaixasse nos moldes de um cidadão passivo e obediente ao regime. Embora o CFE tenha tentado, através de pareceres e decisões, manter um mínimo de liberdade e pluralidade no debate educacional, a pressão militar se intensificou a ponto de alterar profundamente o papel do conselho e das políticas educacionais.

Nesse sentido, a EMC que inicialmente fora defendida como uma prática educativa facultativa, passou a ser defendida como uma disciplina obrigatória, a ser ministrada em todos os níveis de ensino, e foi projetada para moldar uma juventude submissa e alinhada aos interesses do governo militar. A criação da CNMC, conforme o Decreto-Lei nº 869/69, consolidou ainda mais o controle do regime sobre a educação, com a comissão exercendo papel crucial na definição dos currículos e materiais didáticos para a nova disciplina. 

Além de sua função pedagógica, a EMC também teve um caráter claramente político e ideológico, como uma ferramenta de legitimação do regime militar e de combate a tudo que o governo considerasse subversão. O regime militar via na educação uma forma de domesticar a juventude, moldando suas percepções de cidadania e lealdade ao governo. A disciplina tornou-se, portanto, um dos principais mecanismos de controle social, já que, além da formação cívica e moral, ela também tentava tornar aceitáveis para aquela juventude as bases do autoritarismo e da repressão política.

É fundamental reconhecer que, apesar da imposição de uma educação homogênea e voltada para o controle ideológico, houve resistência por parte de setores da educação, especialmente dentro do CFE. A atuação do conselho, embora progressivamente enfraquecida pela intervenção militar, procurou, em vários momentos, fazer valer uma educação que fosse menos autoritária. No entanto, o processo de militarização da educação, que culminou na imposição da EMC obrigatória, impôs um retrocesso significativo para as liberdades acadêmicas e educacionais no país. A vitória dos defensores da EMC, em especial dos militares formados pela Escola Superior de Guerra (ESG), representou um passo decisivo para a construção de um regime educacional alinhado aos interesses do regime e contrário aos princípios democráticos.

Por outro lado, a criação da CNMC e sua atuação em conjunto com o CFE foram fundamentais para assegurar que a disciplina fosse aplicada de maneira eficaz em todo o território nacional. A comissão, composta majoritariamente por membros vinculados às Forças Armadas, se tornou uma peça-chave para garantir a disseminação da ideologia do regime, inclusive com a responsabilidade de censurar materiais didáticos e livros que não correspondessem aos valores defendidos pelo governo militar. Essa centralização da decisão sobre o conteúdo educacional, unicamente pautada pela ideologia autoritária, transformou a educação em um campo de disputa política, onde a liberdade de expressão e de pensamento foi severamente limitada.

Em suma, a imposição da Educação Moral e Cívica não foi apenas um esforço de institucionalização de uma disciplina escolar, mas uma tentativa de transformar a própria natureza da educação no Brasil, moldando uma juventude que fosse apática às mudanças políticas e resistisse à participação ativa na construção de um futuro democrático. O processo de militarização da educação, como demonstrado neste artigo, teve repercussões profundas não apenas no currículo escolar, mas também na estrutura social e política do país, refletindo um período de intenso autoritarismo, repressão e controle social. 

A análise da imposição da EMC nos permite refletir sobre os limites da educação como instrumento de conformação política e social, ressaltando a importância de se preservar a autonomia do sistema educacional frente às pressões ideológicas e políticas externas. Além disso, o estudo da resistência dentro das instituições educacionais, como o CFE, evidencia a luta contínua pela liberdade acadêmica e a proteção da diversidade de pensamento, elementos essenciais para a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática

Compreender esse período histórico é essencial para evitar retrocessos e assegurar que a educação continue sendo um espaço de promoção do pensamento crítico, da diversidade e da liberdade de expressão. Mais do que nunca, é fundamental refletir sobre o tipo de cidadão que se pretende formar e garantir que o sistema educacional permaneça comprometido com os valores democráticos e os direitos humanos.


1 Art. 4º Os currículos e programas básicos, para os diferentes cursos e áreas de ensino, com as respectivas metodologias, serão elaborados pelo Conselho Federal de Educação, com a colaboração do órgão de que trata o artigo 5º, e aprovados pelo Ministros da Educação e Cultura. (Decreto-lei n° 869/69)
2 Define infrações disciplinares praticadas por professores, alunos, funcionários ou empregados de estabelecimentos de ensino público ou particulares, e dá outras providências. (Decreto-lei 477/69)
3 Lista retirada de: Lemos, K.S. Colvero. A normatização da Educação Moral e Cívica (1961-1993). Rio de janeiro, 2011.p. 69-74
4 Lista retirada de: Lemos, K.S. Colvero. A normatização da Educação Moral e Cívica (1961-1993). Rio de janeiro, 2011.p. 69-74
5 CFE, parecer nº 131/62 – visto em: Lemos, K.S. Colvero. A normatização da Educação Moral e Cívica (1961-1993). Rio de janeiro, 2011.p.78
6Idem
7 O decreto em questão, suas disposições e finalidades já foram analisados anteriormente nesse mesmo capítulo.
8 Lista retirada de: Lemos, K.S. Colvero. A normatização da Educação Moral e Cívica (1961-1993). Rio de janeiro, 2011.p.102


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

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FILGUEIRAS, Juliana M. A Educação Moral e Cívica e sua produção didática (1964-1993). São Paulo, 2006. Dissertação (Mestrado em Educação) – PUC-SP, SÃO PAULO, 2006

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LEMOS, K. S. Colvero. A normatização da Educação Moral e Cívica (1961-1993). Rio de Janeiro, 2011. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

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