A INFLUÊNCIA DA VIOLÊNCIA AFETIVA NA DESPERSONALIZAÇÃO EM PACIENTE COM TRANSTORNO DE PERSONALIDADE BORDERLINE

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202410241502


ALBUQUERQUE, Raimundo Fabrício Paixão1


RESUMO

Este artigo explora uma pesquisa qualitativa sobre a despersonalização em uma paciente diagnosticada com transtorno de personalidade borderline (TPB), a partir da análise de prontuários e relatos clínicos. A despersonalização, caracterizada pela sensação de desconexão de si mesmo, é frequentemente associada a distorções na percepção da identidade. O transtorno de personalidade borderline é caracterizado por instabilidade emocional, impulsividade e dificuldades nas relações interpessoais, muitas vezes decorrentes de traumas não resolvidos. A pesquisa identifica que a despersonalização age como uma defesa egóica, surgindo como uma reação a experiências emocionais dolorosas vivenciadas na infância, como a ausência de cuidado e violência afetiva. Esses fatores contribuem para a formação de uma identidade instável, na qual a paciente se desconecta de suas emoções para evitar o sofrimento. O estudo sugere que a despersonalização é uma tentativa do ego de proteger-se da sobrecarga emocional, dissociando-se das experiências traumáticas. Os resultados enfatizam a importância de um ambiente afetivo seguro para o desenvolvimento emocional saudável. A falta de apoio emocional na infância, marcada por abandono ou abuso, cria um vazio afetivo que pode ser preenchido por mecanismos defensivos, como a despersonalização. A pesquisa sugere que intervenções terapêuticas devem focar na construção de um vínculo seguro, no fortalecimento da identidade e na regulação emocional, proporcionando à paciente a reconexão com suas emoções e a construção de uma autoestima saudável.

Palavras-chave: despersonalização; borderline; violência; afetividade.

1  INTRODUÇÃO

A despersonalização, esse fenômeno psíquico que, em suas formas mais dolorosas, rasga o tecido da realidade e nos afasta de nós mesmos, é uma experiência angustiante e ao mesmo tempo fascinante. É como se o sujeito, com seus olhos incrédulos, olhasse para sua própria existência a partir de uma janela distante, em que seu corpo, seus pensamentos e sentimentos se tornam entidades estranhas e desprovidas de sentido. Este distanciamento, por mais aterrador que seja, não é aleatório. Ele é um reflexo de um mecanismo de defesa profundo, que surge em resposta ao tumulto interno provocado por experiências de dor e abandono. Tal fenômeno, que se reflete de forma particularmente aguda em pessoas com transtorno de personalidade borderline, oferece um campo fértil de reflexão sobre a natureza humana, sobre nossa busca por identidade e conexão, e sobre o modo como as feridas da infância podem reverberar durante toda a vida.

O transtorno de personalidade borderline, com sua constelação de sintomas característicos — instabilidade emocional, dificuldade em estabelecer e manter relacionamentos, e uma identidade fluida, quase volúvel (DSM V) — revela a fragilidade do ser, que se fragmenta como um vidro rachado. Há algo de visceral nesse distúrbio, algo que invade o ser e o desorganiza, como se a vida fosse uma sucessão de momentos esfacelados, onde o indivíduo não consegue se reconhecer, não consegue se sentir plenamente em sua própria pele. O mundo parece se distorcer, e a percepção da realidade se embaralha, tornandose uma espiral que arrebenta os sentidos.

Mas o que alimenta essa sensação de despersonalização? O que a torna tão invasiva e, ao mesmo tempo, necessária? As raízes dessa desconexão podem ser mais profundas do que imaginamos, e são frequentemente alimentadas por um terreno árido e infértil de experiências adversas na infância. A violência afetiva, a negligência emocional, a ausência de um cuidado verdadeiro, são feridas invisíveis, mas que deixam cicatrizes eternas na alma. Quando uma criança é privada de um afeto genuíno, quando é ignorada ou violentada emocionalmente, ela aprende a se defender dessa dor de um modo que parece ser sua única forma de sobrevivência: se desconectando de si mesma. A despersonalização se apresenta assim, como uma defesa, como um mecanismo de proteção, uma tentativa de se distanciar de um sofrimento que parece impossível de suportar. Mas o preço dessa defesa é alto. A pessoa, ao se distanciar de sua dor, acaba se distanciando da vida, das suas emoções, do próprio sentido de existir.

Foi nesse contexto que nos debruçamos sobre o caso de uma paciente atendida no Serviço de Psicologia da Universidade Nilton Lins. A paciente, com um histórico de traumas profundos, conflitos familiares e uma existência marcada pela falta de vínculo emocional seguro, relatou intensos episódios de despersonalização, que surgem com uma frequência angustiante sempre que as suas emoções entram em ebulição. Através da análise de seus prontuários e relatos clínicos, buscamos entender o que se esconde por trás dessa desconexão tão cruel e dolorosa, como ela se manifesta na sua vida cotidiana e como a sua trajetória de vida, atravessada por experiências de violência emocional e abandono, interage com esse fenômeno. Quais são as raízes de sua dor, e o que a despersonalização busca proteger?

A pesquisa, ao se aprofundar nesse território sombrio, deseja não apenas iluminar as complexidades dessa condição, mas também abrir um espaço de escuta genuína. A despersonalização, longe de ser uma anomalia a ser apenas eliminada, precisa ser compreendida. Para tanto, um ambiente terapêutico acolhedor e seguro se torna essencial. Não se trata apenas de uma intervenção técnica, mas da criação de um espaço onde o paciente se sinta ouvido, visto e validado. Este é um lugar em que as feridas emocionais podem começar a cicatrizar, onde é possível começar a reconstruir uma identidade que, com o tempo, se tornará mais sólida e conectada.

Mas, como podemos abordar a despersonalização de forma eficaz? Como podemos tratar não apenas os sintomas, mas também as profundas feridas emocionais que alimentam essa experiência? A resposta, talvez, esteja na escuta atenta à história de vida de cada paciente. No caso dessa paciente em particular, foi fundamental reconhecer que os sintomas de despersonalização não eram apenas manifestações isoladas de um transtorno psicológico, mas reflexos de uma vida marcada por traumas e ausências afetivas. O que precisamos, então, não é apenas de intervenções superficiais, mas de uma compreensão profunda da história emocional do paciente. Precisamos ir além da dor e enxergar a pessoa por trás do sintoma.

A terapia, em sua essência, deve ser um espaço de reconexão. Reconectar o paciente com sua identidade, com suas emoções, com a sensação de pertencimento, que é fundamental para o ser humano. A despersonalização, embora uma defesa, não é o fim do processo, mas um indicativo de que a dor precisa ser enfrentada. E enfrentar essa dor exige acolhimento, empatia e uma escuta que se dispõe a perceber a história única e singular de cada ser.

Ao refletirmos sobre esses aspectos, somos confrontados com uma verdade simples e, ao mesmo tempo, profunda: todos nós, em algum momento da vida, buscamos a sensação de estar plenamente presentes, de nos reconhecermos em nosso próprio corpo e em nossa própria história. E é esse reconhecimento, tanto em nós mesmos quanto nos outros, que permite ao sujeito sair do lugar da despersonalização e encontrar um caminho para a reconstrução de uma identidade saudável e integrada.

2  HISTÓRICO E DEMANDA DA PACIENTE

A presente pesquisa realizou uma análise do prontuário de uma paciente atendida no Serviço de Psicologia da Universidade Nilton Lins. Trata-se de uma jovem brasileira, do sexo feminino, de 18 anos, estudante, com ensino médio completo, nascida em Manaus-Amazonas. A paciente declara-se sem religião, solteira, e reside com seu pai, mãe e irmão, mantendo contato rotineiro com outros parentes. Foi adotada aos 2 anos de idade, e desde então não tem contato com sua família biológica.

O prontuário aponta que os sintomas da paciente começaram a se manifestar ainda na infância, e ela está em atendimento psicológico desde os 13 anos. Os sintomas relatados estão fortemente ligados aos conflitos familiares, especialmente com a mãe, e são atribuídos à sensação de rejeição por ser filha adotiva. A paciente aponta que a rejeição, em grande parte, ocorreu devido à falta de correspondência com as expectativas da mãe adotiva.

A paciente queixa-se de diversos transtornos, como bipolaridade, transtorno de personalidade borderline e depressão. Ela associa todos esses sintomas ao trauma emocional de viver em uma família que sente não ser seu “verdadeiro” lugar de pertencimento, especialmente no que diz respeito ao relacionamento com a mãe adotiva. Esse conflito, segundo a paciente, se originou pela percepção de não corresponder aos desejos da mãe, o que reforçou sua sensação de inadequação e a intensificação dos sintomas emocionais.

A paciente possui um diagnóstico de transtorno de personalidade borderline. Indivíduos com esse quadro apresentam fragilidade nas funções egóicas, o que resulta em uma integração deficiente do self. Isso se traduz em dificuldades na formação de conceitos e na elaboração de juízos verdadeiros. No entanto, algumas pessoas com esse transtorno conseguem se adaptar de certa forma à realidade, distinguindo-se dos pacientes psicóticos. Uma característica marcante do transtorno borderline é a labilidade egóica, que se manifesta por uma intolerância exacerbada à ansiedade e à frustração, além de descontrole impulsivo e dificuldades no desenvolvimento da sublimação. Este quadro também é associado a defesas psíquicas arcaicas, como a clivagem do ego e a despersonalização, além de uma intensa idealização, identificação projetiva, negação e uma forte sensação de onipotência (Etchegoyen, 2007).

3  A DESPERSONALIZAÇÃO COMO DEFESA EGÓICA

Antes da análise, é importante destacar que os conceitos de despersonalização discutidos nesta seção serão, principalmente, aqueles encontrados nas obras de Winnicott e Le Breton, afastando-se das concepções psicopatológicas clássicas sobre o fenômeno. 

Dito isso, foi possível observar, através do discurso da paciente, que ela se percebe ainda no mundo principalmente por meio da figura do pai e pelo amor à natureza e à literatura, ou seja, os únicos objetos que a mantêm na continuidade de sua existência. Ela parece não encontrar razão para continuar viva em termos de seu próprio corpo, sendo a vida sustentada por esses objetos externos como um fôlego existencial diante de um desejo profundo de não habitar em si mesma. Para ela, viver, mesmo que minimamente, parece excessivo (Le Breton, 2018).

Com uma licença filosófica, o presente estudo aborda a interação entre a mente e o corpo, algo que remete ao dualismo de Descartes (2001), no qual a mente parece não desejar habitar o corpo, como se houvesse uma rejeição do “eu” à “casa corporal”. Trata-se de uma forma de despersonalização, pois o self necessita se localizar no corpo, assim como o indivíduo precisa perceber-se nele. Quando ocorre uma sensação de estranheza do “eu” em relação ao seu próprio corpo, de acordo com Winnicott (2000), isso aponta para uma personalização insatisfatória.

No caso em análise, a paciente sente-se desconectada de tudo, incluindo seu próprio corpo. Ela faz uso de laxantes e sofre de quadros agudos de bulimia, como se houvesse um ódio profundo por seu corpo. Além disso, submeteu-se a uma cirurgia bariátrica, em grande parte devido à pressão da mãe, que não aceitava tê-la como filha obesa. Em um momento, a paciente mencionou que, após a cirurgia, sente como se o corpo atual não fosse o seu.

Para Winnicott (2000), a psique e a soma precisam aprender a conviver, e o “eu” precisa sentir-se pertencente ao corpo. Caso contrário, surge a despersonalização, um “eu” que vagueia sem um lar, sem descanso. Esse “eu” vive em constante alerta, como se habitasse uma casa estranha, percebendo o corpo como um local hostil.

A paciente já tentou o suicídio diversas vezes, recorrendo ao uso excessivo de medicamentos nas tentativas. Em uma ocasião, enviou ao terapeuta fotos de autolesões, com grande quantidade de sangue, como forma de comunicar seu estado emocional de apatia, sentindo-se sem sentido para viver. Além disso, ela faz uso abusivo de álcool, sexo e drogas, colocando sua vida em risco. O prontuário também revela que, em um final de semana, a paciente se envolveu em relações sexuais com estranhos e, em outra ocasião, saiu de madrugada para uma área perigosa da cidade com o intuito de beber. Esses comportamentos refletem uma busca desesperada por sensações e formas de lidar com o vazio e a desconexão que ela sente consigo mesma.

De acordo com Le Breton (2008), o sofrimento pessoal pode levar jovens a comportamentos de risco, frequentemente associados à depressão e tentativas de suicídio. A sociologia, em suas estatísticas, frequentemente não leva em consideração o lado afetivo, especialmente as experiências da infância, que geram essas consequências nos atos dos indivíduos na vida adulta. Isso resulta em uma compreensão limitada dos fenômenos sociais, sem levar em conta sua total complexidade. Posteriormente, será discutido como os maus afetos influenciam as manifestações desse fenômeno no caso em questão.

A paciente reconheceu, durante a sessão, que estava se expondo ao risco quando saía para beber em postos de gasolina, acompanhada por pessoas aleatórias e desconhecidas. Ela não sabia o que essas pessoas poderiam fazer com sua integridade física, tratando-se de uma situação que, para ela, se configurava como uma espécie de loteria – onde poderia ter azar ou sorte. Entretanto, afirmou não ter nada a perder. Se morresse, isso seria um evento positivo. Ela também relatou que, em São Paulo, costumava andar de madrugada no metrô, horário em que só havia bêbados e prostitutas nos vagões. Fazia isso para sentir a adrenalina, pois esse perigo parecia mais estimulante para ela do que o tédio e o vazio que constantemente experimentava.

Existe uma fluição do sujeito moderno em busca de fugir de si, o que seria uma espécie de abandono de sua personalização. Ninguém escapa disso, todos de alguma maneira fluem em direção a um outro fazer/ser, não estando totalmente presente em si. O que seria uma forma de fugir do vazio e tédio em que a personalização mergulhou. Essa fluidez pode ser representada nos atos de embriaguez, drogas, exposição ao risco em geral (Le Breton, 2018). Uma mente inquieta com sua habitação corporal. Acredita que a vida tem que ter uma pitada de tragédia. Quando tudo está bem (uma apatia), ela se angustia, precisa provar o trágico para sentir a vida.  

Søren Kierkegaard (2010) fala do desespero humano, em que esse pode se manifestar em o não querer ser si mesmo, ou seja, em determinado momento o indivíduo deseja ser uma outra pessoa. E sofre por não ser. A paciente em nada deseja ser ela mesma, gostaria de um outro corpo e novos comportamentos, sempre vivendo pelo “não sou, não sou atraente, não sou uma boa pessoa, não sou uma boa filha” […], só que de tanto não gostar do que se é, considerando sua totalidade, tornou-se sem esperança em relação a construção de uma nova personalização, onde a mente estaria satisfeita num novo corpo.

Em uma sessão, a paciente expressou o desejo de desaparecer, sentindo-se sobrecarregada. Ela almejava um sono eterno, desaparecer para sempre, não ter mais consciência de si mesma. A ideia de não suportar outra vida refletia uma espécie de aniquilamento, uma rendição à angústia primitiva, como se não fosse possível evitá-la (Bergeret, 2006).  Essa experiência de despersonalização reflete-se também no mundo externo, com a paciente não reconhecendo vínculos mais profundos. Ela relatou ter saído de uma “não família”, que seria a família biológica, para uma outra “não-família”, a adotiva. Essa sensação de desconexão é reminiscente do que Fernando Pessoa (1982) descreve em O Livro do Desassossego, onde narra uma vida sem vínculos, embora deseje tê-los. O autor fala de uma existência que parece sem história, em que tudo lhe é indiferente, como se quisesse afastar-se de suas próprias sensações, colocando-as em “férias”.

Apesar de se queixar constantemente de um sentimento de abandono, afirmando que a mãe não a ama e que ninguém gosta dela, a paciente expressa um forte desejo de resgatar um vínculo com a figura materna adotiva. Ela sente que não conseguiu corresponder às expectativas, especialmente as da mãe. Contudo, existe, paradoxalmente, uma busca por reconectar-se com esse objeto relacional, como diz Pessoa (1982), no sentido de construir o vínculo que nunca foi estabelecido. No entanto, ela acredita que sua mãe a considera “bizarra”, como se não fosse a filha idealizada, a criança que ela queria apresentar à sociedade.

A psicanálise clássica sugere que, ainda na fase oral de mordedura, a criança fantasia que, através de seu ato sádico, tenha “destruído” a mãe. Surge, então, o conceito de “perda ideal”. Nesse contexto, um luto idealizado se instala no ego da pessoa. Sua energia libidinal, em vez de se direcionar aos objetos externos, retorna-se para o interior, onde permanece o objeto perdido. Isso explica a relação em que a mãe está, no fundo, em uma posição de perda ou morte. No campo da fantasia, torna-se improvável reconstruir um vínculo de confiança e aceitação entre ambas, pois o vínculo com a mãe fica irremediavelmente marcado pela perda (Bergeret, 2006).

A paciente já se relaciona com as pessoas sabendo que, cedo ou tarde, essas relações terminarão. Em muitos casos, ela fantasia que é melhor sofrer pouco com alguém “tóxico” do que muito com alguém “bom”. Essa defesa é uma resposta ao medo constante do abandono (Bergeret, 1998). Antes que alguém a deixe, prefere antecipar a dor, dando início ao processo de afastamento. Assim, ela busca mitigar o sofrimento.

Uma elaboração possível desse mecanismo de defesa se reflete em uma fala da paciente registrada no prontuário: “Quando penso que a culpa de minha mãe ter me abandonado não é minha, e que a culpa de minha mãe adotiva ser tão péssima também não é minha, isso me traz um certo alívio.” Isso pode ser interpretado como uma quebra do ciclo triangular descrito por Klein na fase depressiva (Segal, 1975), onde a culpa, que normalmente alimentaria a defesa de reparação e o sadismo, já não tem mais o mesmo impacto.

Talvez os efeitos da não-personalização, do não-desejo de habitar em si mesma, tenham sido suavizados pela busca de objetos externos que proporcionem bons afetos. A paciente tem mantido uma forte ligação com a literatura, especialmente com obras do gênero distópico, e possui uma sensibilidade artística considerável. Ela reconhece que isso tem sido uma das razões para não tirar a própria vida, pois, de alguma forma, essas conexões com o mundo literário lhe conferem algum propósito. Além disso, a paciente se identifica com os animais indefesos, o que reflete uma forma de empatia e uma tentativa de encontrar algum tipo de vínculo emocional fora de si mesma.

4  A VIOLÊNCIA AFETIVA NA FASE RELACIONAL DO PACIENTE

A violência afetiva será compreendida nesta seção com base nos conceitos dos maus afetos em Espinosa e das falhas ambientais devido ao não-cuidado em Winnicott. Os maus afetos podem ser inferidos a partir da história relatada pela paciente nos prontuários, onde ela, em meio a muito choro, contou que sua mãe biológica era viciada em drogas e que viveu em várias casas de acolhimento. Aos 2 (dois) anos, foi adotada por sua mãe adotiva.

De acordo com Michael Balint (1972, apud lejarraga, 2008a), para o bom desenvolvimento de uma criança, é necessário que haja um afeto calmo, que proporcione uma sensação de bem-estar, originado pela satisfação de um desejo de ternura. Esse ambiente deve ser confiável para o bebê, permitindo que o desejo de ser amado, cuidado e protegido incondicionalmente seja atendido. Quando isso ocorre, evita-se a intranquilidade e as agonias que colocariam o bebê em um estado constante de alerta.

No caso em análise, o processo de habitar temporariamente em várias casas de abrigo provavelmente impediu o estabelecimento de afetos calmos, uma vez que não se criou uma relação de confiança entre a cuidadora e a criança. Além disso, não houve um espaço para suprir as demandas iniciais de ternura da paciente. Esse contexto pode ser considerado uma agressão ambiental (ausência de cuidado) à criança, um mau afeto ou uma violência afetiva, ou ainda um afeto agoniante. Embora não exista um termo específico para definir essa situação, entende-se que há uma falha ambiental.

Essa repetição de falhas ambientais prejudica a comunicação entre a cuidadora e o bebê, resultando na ausência de uma sensação de confiabilidade e segurança, o que gera agonias ou agressões ambientais (Winnicott, 2002). A paciente relata perceber que sua mãe adotiva não tinha a capacidade de ser mãe. Ela apenas a adotou para dar uma filha ao pai e apresentar uma criança ao seu círculo social.

A paciente afirma nunca ter recebido de fato bons afetos. Nos relatos apresentados, percebe-se que não houve uma aliança de confiança; ela desconfia e desacredita no amor da mãe adotiva, vivendo em um estado constante de ameaça em relação ao objeto de quem cobra amor, um amor sempre insuficiente. Embora a mãe adotiva tente reproduzir bons afetos na relação com a filha, há uma falha básica nas primeiras relações objetais da paciente, incluindo a mãe biológica e os cuidadores de diversos abrigos. Essas falhas deixam marcas e cicatrizes que se reproduzem em outras relações (Balint, 1993).

A paciente, com base no que aprendeu, acredita que muitos de seus conflitos internos estão relacionados ao abandono pela mãe biológica e à exposição ao perigo. Em seu discurso, há um reconhecimento da genitora como um fator fundamental em relação aos seus conflitos psicológicos. Embora haja uma adaptação em outras relações, sempre ocorrerá uma atualização desta primeira relação, pois existiu uma falha básica que pode cicatrizar como uma ferida, mas jamais será completamente suprimida (Balint, 1993).

Essa falha básica é caracterizada pela falta de empatia entre a mãe e a criança, ou entre a criança e o ambiente, o que resulta em uma perturbação do self (Balint, 1993). Por outro lado, a paciente expressou, em uma das sessões, que, se a mãe adotiva soubesse dar afeto a ela, tudo seria diferente. Ela acredita que a relação atual, com bons afetos, resolveria seus conflitos. No entanto, entende-se que a melhora nas vivências relacionais contemporâneas apenas abrandaria a situação, mantendo os espaços vazios das falhas originais (Balint, 1993).

Recapitulando, as falhas ambientais, resultantes da ausência de cuidado e empatia entre a mãe e o bebê, geram maus afetos (agonias) e marcas psicológicas, ou seja, são formas de violência produzidas contra uma criança, que fica exposta ao acaso, configurando uma agressão ambiental. Freud (2010) já afirmou que a natureza é provedora, mas fria e insensível diante da necessidade de um sujeito isolado e distante de um agrupamento. Uma criança sem o cuidado de uma pessoa capaz de cuidar não sobreviveria. Diante disso, conclui-se que a ausência de cuidado constitui uma violência (agressão) por omissão.

Percebe-se que, na história da paciente, há uma atualização dos maus afetos na nova família, não permanecendo apenas no campo da representação e fantasia, mas se concretizando na realidade. Conforme relatado no prontuário, a paciente afirma não sentir afeto vindo da mãe adotiva. Inicialmente, acreditava que isso fosse devido à adoção, mas atualmente acredita que, mesmo que fosse filha “legítima”, não seria amada. Sente que a mãe adotiva a vê como um troféu a ser exibido na sociedade. Quando estava acima do peso, a paciente sentia que a mãe se envergonhava dela. Por isso, a mãe pagou uma cirurgia bariátrica para a filha, sendo que, hoje, a paciente afirma não entender os motivos para a depressão da adolescente, já que se encontra magra.

A paciente relatou que não queria voltar a ser gorda, pois associava o fato de ser gorda a ser criticada, o que prejudicaria ainda mais sua autoestima. Ela não quer ser rejeitada novamente por causa do corpo. Reconheceu que, no fundo, sua preocupação com a aparência do corpo é para agradar os outros, o que a desespera, mas ao menos evita que a percebam como “horrorosa.”

Há uma passividade da paciente em relação ao olhar e à opinião da mãe. Na época, aceitou fazer a cirurgia bariátrica seguindo a orientação da mãe, apesar de ter apenas 16 anos e não se incomodar com seu peso. Essa passividade a coloca em uma posição de vulnerabilidade aos maus afetos, pois ser passiva em relação ao outro pode permitir tanto bons afetos quanto afetos tristes, dependendo de como o outro decide afetar, seja de maneira positiva ou negativa (Espinosa apud Chauí, 1995).

A paciente também relatou que tem pavor de baratas e acredita que, de todos os seres vivos, o único que deveria ser extinto seria a barata. Esse medo começou quando, na infância, aos 8 anos, entrou no banheiro e se deparou com uma barata. Começou a gritar e pedir socorro à mãe, mas ela apenas trancou a porta do banheiro e a deixou sozinha, lidando com seu desespero. Essa atitude da mãe adotiva, ao reproduzir maus afetos, dificulta a resolução dos conflitos internos da paciente com o objeto primário (genitora) e contribui para o fortalecimento dos vestígios das primeiras experiências na formação de sua constituição, personalidade e caráter. Isso a coloca em um cenário de trauma semelhante aos anteriores (Balint, 1993).

Assim, conclui-se que alguns aspectos observados no prontuário da paciente indicam a presença de violência afetiva em sua relação com os primeiros objetos, tanto no âmbito da família originária quanto na família substituta.

5  A VIOLÊNCIA AFETIVA E SUA IMPLICAÇÃO NA DESPERSONALIZAÇÃO

O presente estudo segue um raciocínio lógico. (1) Considerando que a paciente apresenta sintomas de despersonalização, conforme a leitura de Winnicott e Le Breton; (2) a paciente possui um histórico de maus afetos, onde a retirada da família originária configura um evento traumático por si só, especialmente devido ao período vivido em casas de acolhimento. A transição para uma nova família, rica, mas sem afeto emocional, exacerbou as falhas ambientais; (3) neste tópico, foram analisadas as consequências dessas falhas ambientais na formação da constituição subjetiva, da personalidade e dos comportamentos repetitivos da paciente.

Entende-se que a prevalência de maus afetos, como um fantasma na vida da criança, alimenta a angústia de aniquilamento e desamparo, levando a criança a se proteger com defesas como a despersonalização. Nesse processo, o self evita integrar-se ao corpo (Lejarraga, 2008a), pois uma “má casa” (maltratada) é um local que se evita habitar.

A paciente pontua que sacrificou parte de si ao realizar a cirurgia bariátrica, como se tivesse abandonado uma parte de seu corpo para agradar as pessoas ao seu redor. Ela ainda se sente como alguém que perdeu uma parte de si. Gostaria de voltar a ser aquela pessoa dos tempos da pré-adolescência. A cirurgia lhe trouxe a sensação de ter cedido às pressões externas, como se fosse uma forma de negação e perda do pouco que era genuinamente seu. Até hoje, ela sente uma desagradável sensação de que aquela pessoa, que existia antes, “morreu”.

A pessoa que não atinge a personalização (não integrada ou desintegrada) tem sua espontaneidade quebrada, necessitando criar uma versão falsa de si mesma (Winnicott, 1994), como se precisasse se esconder, sendo algo que não é, para defender o pouco que resta de sua essência. Assim, age de forma defensiva. Apesar de não gostar da ideia de realizar a cirurgia, a paciente se submeteu ao procedimento médico interventivo, cedendo às pressões externas, o que resultou na desconstrução de seu falso self, que protegía o pouco de si, deixando-a exposta. Dessa forma, ela sente que uma parte de si morreu.

A paciente ainda se queixa de traumas, ou seja, maus afetos, principalmente em relação aos primeiros anos de vida. A maneira como a pessoa é afetada aumenta ou diminui sua vontade de permanência no ser, interferindo também na intensidade do conatus, apetite e desejo. Em Espinosa (2008), no conceito de afetos tristes e afetos alegres, destaca-se que, para evitar os maus afetos, é necessário agir, o que implica capacidades intelectuais e físicas que faltam na criança. É como se o ser humano pudesse controlar a forma como seria afetado; embora, reconheça que, de alguma maneira, o ser humano será afetado negativamente, mas se agir (em detrimento da paixão), poderá diminuir essa probabilidade.

A adolescente passou a emitir comportamentos rebeldes às regras da família. Ela expôs que, ao agir dessa forma, estava praticando uma espécie de resistência, uma vez que a mãe adotante tentava transformá-la em quem ela não desejava ser. O comportamento rebelde, para ela, seria uma forma de resistência, uma tentativa de proteger o pouco que resta de si. A paciente começou a se dar conta de que estava em uma posição de passividade, sendo diretamente afetada pela mãe adotante, cumprindo as vontades dela. No entanto, ela decidiu resistir a essas imposições, o que, de acordo com Espinosa (apud Chauí, 1995), torna a pessoa menos vulnerável aos afetos negativos. Ao afetar, em vez de ser afetada, surge uma proteção ao desejo, mantendo assim a vontade de viver.

Talvez, Espinosa tenha desenvolvido suas ideias com um público adulto em mente, uma vez que uma criança, especialmente de poucos dias ou meses, não possui a capacidade intelectual e física para agir. Nesse caso, a criança se encontra em uma posição de passividade. Segundo Winnicott (1994), a prevalência dos maus afetos pode ser evitada por meio de um ambiente satisfatório, o que depende não da criança, mas dos seus cuidadores e outros objetos externos. 

A paciente foi adotada, o que representou uma ruptura com seu lugar de possível pertencimento. Ela descreve a experiência como sendo de inserção em uma “não-família”, onde faltava a fantasia do cuidado e da devoção. Falhas semelhantes a essa produzem experiências de agonias impensáveis. Embora seja uma vivência extrema, todos podem, em algum momento, experimentar sensações análogas à loucura. Para a paciente, essa agonia seria uma sensação de aniquilamento do ser, uma descontinuidade da permanência no ser, como se houvesse uma ruptura no desenvolvimento inato do indivíduo (Winnicott, 1994).

Essas falhas ambientais geram as agonias impensáveis que assombram a criança. Ignorando infortúnios que fogem do alcance humano, essas falhas ocorrem devido à falta de cuidado emocional e físico. Como mencionado anteriormente, embora todos, em algum momento, possam enfrentar essas falhas e ter pensamentos intrusivos, é na intensidade e prevalência dos maus afetos sobre os bons que as agonias impensáveis causam danos irreparáveis ao pequeno ser (Winnicott, 1994).

A criança reage ao ambiente, canalizando suas energias iniciais para lidar com essas falhas, ausências e afetos negativos, sem encontrar alívio pela confiança fantasiosa em relação ao ambiente (Winnicott, 1994). A paciente procurou respostas em diversos livros e filmes e chegou à conclusão de que ela é resultado de um trauma. Tudo o que é, para ela, se deve ao trauma. Ou seja, os maus afetos definiram sua constituição e personalidade. Uma das defesas que pode perdurar em todas as fases é a despersonalização. No caso da paciente, ela sente que a habitação em seu corpo é insuportável. Essa defesa existe para evitar o aniquilamento do ser.

A agressão ambiental, resultante pela falta de cuidado (bons afetos), gera uma sensação de aniquilamento, que é intraduzível para a criança, criando agonias que o pensamento não consegue compreender. Além de gerar traumas, é importante destacar que, para Winnicott, esses fenômenos traumáticos não precisam ser eventos que a sociedade considera chocantes. Ações ou omissões simples do cotidiano, como uma mãe depressiva e ausente, podem gerar tais traumas (Lejarraga, 2008b).

Em outras palavras, os afetos negativos superam o que o bebê pode suportar, manifestando-se na falta de disposição para cuidar. Como se não houvesse uma ligação afetiva entre a criança e a mãe, ela se torna vulnerável a uma agressão ambiental. Conforme Espinosa (2008), quando o homem está sujeito ao acaso (em Winnicott, 1994), aumenta sua probabilidade de ser atingido por afetos tristes, uma vez que é mais fácil, no encontro com a natureza, se deparar com sua frieza do que com sua benevolência (Freud, 2010).

As falhas ambientais que causam traumas forçam a criança a utilizar defesas primitivas, sendo a despersonalização uma delas. Em outras palavras, a pessoa pode não se sentir real, não se identificar consigo mesma, não possuir um sentimento de pertencimento a si própria. Isso interfere diretamente em sua autonomia e desenvolvimento (Lejarraga, 2008b). Segundo Espinosa (2008), isso resultaria na ausência de vontade de permanecer no ser, o que reduziria a potência de vida da pessoa. Esse impacto, é claro, pode ser observado também ao longo prazo.

A paciente tentou suicídio diversas vezes. Em uma de suas memórias, ela relata que, quando tentou tirar a própria vida com excesso de álcool, chegando ao coma, a mãe não demonstrou preocupação com sua saúde. Sua única preocupação foi com as bebidas caras que haviam sido desperdiçadas. O desejo de não pertencer ao próprio corpo (despersonalização), buscando um apagamento da consciência de si, um aniquilamento, reflete a diminuição de sua potência de vida. A sensação de ser um hóspede que deseja abandonar uma casa (o corpo) onde nunca se sentiu em casa é clara.

Uma criança que cresce e se torna um adulto sem ter potencializado suas características inatas enfrenta dificuldades no desenvolvimento de sua identidade. Segundo Winnicott (1994), existem dois tipos de pessoas: aquelas que experimentaram agonias impensáveis de forma não dominante, o que leva à constituição de indivíduos saudáveis, e aquelas que vivenciaram esse fenômeno de forma excessiva, o que pode resultar em doenças psíquicas. Ou seja, o assombro prevaleceu sobre a alegria, os afetos tristes prevaleceram sobre os afetos alegres.

Em um episódio, a paciente foi ameaçada de agressão por um de seus parceiros amorosos. Ela relatou que não sentiu medo, pois não valoriza sua própria vida, e, de algum modo, acreditava que ele tinha razão. Ela reconheceu que compreendia seu desejo masoquista. A paciente sente prazer durante a violência no contexto sexual, chegando a desenvolver uma fantasia sádico-masoquista. Ela faz parte de um grupo maior de pessoas que compartilham dessas fantasias. Nesse grupo, ela é vista como uma das masoquistas, frequentemente chamada de “queridinha do papai”.

A paciente descreve um padrão de prazer que surge da violência física e humilhação durante o sexo. Ela conclui que tudo o que causa dor ao seu corpo, de alguma forma, lhe dá prazer. Deteriorar seu corpo, seja de forma física ou moral, faz com que ela se sinta mais viva, e ela não suporta a monotonia.

Num contexto psicanalítico clássico, o desejo sádico e masoquista no campo feminino pode ser entendido em termos de rivalidade entre a criança e outros objetos relacionais, como um irmão ou irmã. A criança entra em conflito sobre quem terá o amor do pai, que é o objeto de desejo. A criança imagina que, ao ver o pai castigar o irmão (rival), ele está, na verdade, punindo alguém que ela odeia, o que gera prazer sádico. Nesse momento, a criança fantasia que o pai a ama exclusivamente, e o castigo ao irmão parece reforçar essa crença (Freud, 1995).

Na fase seguinte, o pai (agressor) passa a castigar a criança diretamente, o que provoca uma fantasia de culpa e prazer masoquista. Esse fenômeno se torna inconsciente, com mecanismos de defesa como repressão e regressão. Em uma terceira fase, o agressor deixa de ser o pai, sendo substituído por uma figura como um professor. Neste ponto, o sadismo é retomado, e a criança sente prazer ao ver outra criança sendo espancada. Frequentemente, são meninos que se tornam o alvo da violência, e essa dinâmica se manifesta de maneira mais consciente (Freud, 1995).

Entretanto, apesar da explicação clássica, sugere-se que o masoquismo se relacione mais com o comportamento de risco voltado à autodestruição corporal, como consequência das primeiras relações objetais nos meses iniciais de vida, do que com a dinâmica triangular que envolve o pai.

A paciente relata que se dirige ao álcool como uma forma de autodestruição, não buscando alívio, mas sim se aproximando da destruição de si mesma. Ela não sente prazer em nenhum dos atos sexuais, independentemente das fantasias. Descreve-se como uma “boneca inflável”, achando tudo sem graça. Ela considera o beber e fumar como práticas horríveis, não encontrando prazer algum nesses atos. Faz isso como uma forma de punição.

Isso sugere que o princípio de vida esteja sufocado pela pulsão de morte, com o corpo se inclinando para o estado inorgânico (Freud, 1996b). Em Espinosa (2008), a diminuição da potência de vida não é vista como uma causa em si mesma, mas pode ser atribuída aos excessos de maus afetos. No caso da paciente, a ausência de cuidado (violência afetiva contínua) na fase adulta agrava a situação, com maus afetos que não são apenas reminiscências do passado, mas ainda estão em vigor.

Para enfrentar as decepções, frustrações e angústias ao longo da vida, é necessário ter uma base sólida emocional. Dessa forma, o indivíduo só poderá lidar de maneira saudável com as intempéries de sua história se, na infância, a alegria prevaleceu sobre o assombro, e os afetos alegres superaram os tristes. Como diz Winnicott: “Se a pessoa já foi feliz, pode suportar a dificuldade” (1999, p. 32).

Apesar da pulsão de morte presente na maior parte do discurso e nos fatos relatados, é possível perceber um fio de esperança, uma vontade de permanecer. Ela afirmou ao terapeuta que o que mais desejava era viver bem, ter uma kombi azul e andar por aí com seus bichinhos de estimação, contemplando a natureza.

Disse que gosta de plantas e animais, e tem ciúmes de seus livros, especialmente aqueles que já estão desgastados de tanto serem lidos repetidamente. Em uma ocasião, discutiu com sua mãe porque não encontrou um de seus livros, chorando muito até encontrá-lo depois de algum tempo. Abraçou o livro, dizendo que se sentiu como se fosse mãe dele, embora não fosse caro, mas ela realmente gostava dele.

Ao cuidar do livro como se fosse uma extensão de si mesma, ela demonstra um desejo de bons afetos que transcendem a valoração social, buscando felicidade genuína. Recriando as palavras de Winnicott: “Se a pessoa ainda não foi feliz, ainda assim pode suportar a dificuldade, na esperança de um dia ser feliz.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho analisou as implicações da violência afetiva no fenômeno da despersonalização, a partir de um estudo de caso realizado em uma clínica-escola. A investigação, por meio da triagem, relatos dialogados e anamnese, identificou o fenômeno da despersonalização na paciente, oferecendo uma visão alternativa à definição psicopatológica clássica, fundamentada nos pensamentos de Winnicott e Le Breton. Constatou-se que a paciente manifesta um desejo de não habitar seu próprio corpo, uma mente inquieta que se encontra presa a uma “casa corporal” à qual se sente estrangeira. Ela expressa, com palavras de Winnicott, que se a casa fosse sua, talvez cuidasse dela, mas não se percebe pertencente a si mesma.

A pesquisa também explorou as implicações da violência afetiva no relacionamento da paciente com os objetos primitivos, como os pais e as figuras de cuidado, entendendo que a ausência de afeto e a insatisfação das necessidades emocionais essenciais durante a infância expõem a criança a um ambiente com falhas, que deixam marcas em sua constituição e personalidade ao longo da vida. Foi identificado, nos primeiros meses da vida da paciente, episódios de abandono e rejeição, seguidos de conflitos e a vivência de maus afetos, que se perpetuaram em sua história emocional.

Além disso, foi analisado o discurso da paciente à luz da teoria dos afetos de Winnicott e Espinosa, entre outros teóricos. A violência afetiva se mostrou fundamental na gênese da despersonalização. As falhas ambientais, como a ausência de cuidado afetivo, geram maus afetos que implicam na negação do próprio corpo, na adoção de comportamentos autodestrutivos e na vontade consciente de aniquilamento. Esse processo de negação do próprio corpo é um reflexo do conflito interno entre a mente e o corpo, o que gera um ciclo autodestrutivo, em que o “hóspede” deseja destruir a “casa” à qual deveria pertencer, impossibilitando a sobrevivência do próprio ser.

A análise aponta que os maus afetos não apenas dificultam a personalização, isto é, a integração entre mente e corpo, mas também colocam esses dois âmbitos em um conflito destrutivo, prejudicando a capacidade do sujeito de se reconhecer e se afirmar como alguém que pertence ao próprio corpo e à própria vida. Isso gera uma rejeição do sujeito a si mesmo, alimentada pela dor e pelas agonias causadas pelos maus afetos.

Conclui-se que um ambiente emocionalmente saudável e cuidadoso, proporcionado pelos pais ou pelas figuras de cuidado, potencializa a capacidade de a criança manter-se viva e resistente às adversidades da vida. Embora falhas ambientais sejam inevitáveis, elas não devem ser excessivas, pois podem prejudicar profundamente o desenvolvimento emocional do indivíduo. Este estudo enfatiza a necessidade de se explorar as consequências negativas dos maus afetos, especialmente no que diz respeito à fase infantil, e destaca a importância de um cuidado materno e paterno adequados para prevenir problemas emocionais na vida adulta.

Embora o objetivo deste trabalho não seja fornecer um manual sobre como criar uma criança, é possível, à luz dos estudos existentes, afirmar que a redução de um ambiente frustrante e a promoção de bons afetos ao bebê são cruciais para o desenvolvimento de um adulto emocionalmente saudável. O cuidado afetuoso e a devoção ao bem-estar da criança podem criar as condições para o fortalecimento de sua autoestima, criando a base para uma vida adulta mais equilibrada e resiliente. O princípio de que “quem já foi feliz sabe lidar com as tristezas futuras” (Winnicott, 1999) se reflete na ideia de que os bons afetos, mesmo que escassos, podem proporcionar a força necessária para a paciente resistir e manter sua pulsão de vida.

Apesar das profundas cicatrizes deixadas pelos maus afetos, verificou-se que a paciente ainda demonstra uma resistência à destruição de si mesma, em grande parte devido a elementos externos que lhe proporcionam bons afetos, como o vínculo com seu pai, seus animais de estimação e a natureza. Esses elementos geram nela um desejo de permanecer no ser, sustentando a pulsão de vida (Eros) frente à força destrutiva da pulsão de morte. Assim, infere-se que, se os bons afetos fossem mais intensos, poderiam contribuir de forma significativa para a melhoria da relação da paciente consigo mesma, atenuando as marcas e feridas do passado. Os maus afetos, ao invés de serem suprimidos, poderiam ser ressignificados, tornando-se cicatrizes que, ao serem lembradas, não mais causariam dor, mas sim uma memória de superação.

Portanto, a presença de bons afetos no presente minimiza as consequências dos maus afetos do passado, oferecendo uma possibilidade de cura e de reconstrução da autoestima da paciente. A melhoria de sua relação consigo mesma depende, em grande parte, da intensidade dos bons afetos que recebe, e do cuidado que é capaz de estabelecer com os elementos afetivos que ainda são significativos em sua vida.

REFERÊNCIAS

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1Graduado em Psicologia, Direito, Filosofia, Mestre em Sociedade e Cultura (UFAM).