A INFÂNCIA XERENTE E OS DESAFIOS DE EDUCAR PARA A GLOBALIZAÇÃO SEM PERDER A ANCESTRALIDADE

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102501111725


Andre Ribeiro De Goveia[1]
Neila Barbosa Osório[2]
Luiz Sinésio Silva Neto[3]
Janeisi De Lima Meira[4]
Armando Sopre Xerente[5]
Marlon Santos De Oliveira Brito[6]
 Leonardo Sampaio Baleeiro Santana[7]
Nubia Pereira Brito Oliveira[8]
Marileide Carvalho De Souza[9]
Leila Cardoso Machado[10]
Luciano Paulo De Almeida Souza[11]
Samuel Marques Borges[12]
Wilma Gomes Da Silva[13]
Danilo Rodrigues Corsino[14]
João Antônio Da Silva Neto[15]


RESUMO

Este artigo discute a infância em contextos de resistência cultural, com ênfase nas práticas culturais de comunidades indígenas brasileiras e nos desafios impostos pela globalização. Partindo do entendimento de que a infância não é uma etapa passiva ou isolada, mas um período fundamental para a construção de identidades e a preservação de tradições, o estudo problematiza a relação entre práticas sociais locais e as dinâmicas globais que tendem a homogeneizar culturas. A pesquisa foi conduzida com base em uma metodologia qualitativa e bibliográfica, utilizando referenciais teóricos que exploram as interfaces entre infância, cultura e globalização. O estudo examina como as crianças são participantes ativas no processo de transmissão e renovação cultural em suas comunidades, resistindo às forças hegemônicas. Foram analisados os desafios enfrentados por comunidades indígenas, como a padronização cultural promovida pela lógica de mercado global e a transformação das crianças em consumidores passivos, o que ameaça a preservação de práticas tradicionais e saberes ancestrais.

Os resultados apontam que as crianças, por meio de práticas de oralidade, participação em rituais e interação com seus grupos sociais, exercem um protagonismo significativo na manutenção e reinvenção das culturas locais. A infância emerge, assim, como um espaço simbólico de resistência e criatividade frente às pressões externas. Além disso, destaca-se a importância de valorizar as vozes infantis nos processos de formulação de políticas públicas e na construção de narrativas que considerem suas perspectivas. Ao final, o artigo reflete sobre as limitações da pesquisa e sugere a necessidade de estudos futuros que aprofundem a análise em diferentes contextos culturais, incluindo a relação entre infância e tecnologia, mudanças climáticas e outras dimensões contemporâneas. Tais reflexões são cruciais para a construção de um entendimento mais amplo sobre o papel da infância em tempos de globalização, contribuindo para a formulação de estratégias inclusivas que respeitem a diversidade e o protagonismo infantil.

Palavras-chave: Infância, Globalização, Resistência Cultural

1. INTRODUÇÃO

A infância, enquanto categoria social e cultural, ocupa um espaço central nas discussões sobre desigualdade, globalização e identidade. Em contextos de profundas transformações econômicas, políticas e culturais, como os que vivemos atualmente, as crianças frequentemente se encontram na interseção entre múltiplas forças que moldam suas realidades. Entre essas forças, a globalização se apresenta como um fenômeno ambivalente: ao mesmo tempo em que possibilita trocas culturais e econômicas mais amplas, também impõe padrões hegemônicos que muitas vezes marginalizam culturas locais e práticas tradicionais. Esse processo impacta diretamente a vivência da infância, especialmente em comunidades onde a preservação cultural é essencial para a continuidade de identidades coletivas.

O presente estudo aborda o tema da invisibilidade da infância em contextos de resistência cultural, com foco na relação entre as práticas culturais locais e as pressões globais. A investigação parte do entendimento de que a infância, especialmente em comunidades indígenas, não é apenas uma fase da vida, mas uma etapa crucial para a formação de indivíduos que carregam e transformam as tradições e valores de seus grupos sociais. Essa perspectiva é explorada em diálogo com o impacto da globalização, que, ao homogeneizar práticas e discursos, desafia a manutenção de identidades locais.

Adotou-se uma metodologia qualitativa e bibliográfica, fundamentada em referenciais teóricos que possibilitam uma análise aprofundada sobre a infância em seus contextos socioculturais específicos. Por meio da revisão de literatura, o estudo examina tanto as práticas de socialização infantil em comunidades indígenas brasileiras quanto os desafios contemporâneos enfrentados por essas populações em um mundo globalizado. Essa abordagem permite problematizar como a infância se torna, simultaneamente, um espaço de reprodução cultural e de resistência frente às pressões externas.

O objetivo é, portanto, compreender como a infância, em sua invisibilidade diante das narrativas hegemônicas, emerge como uma força de resistência e transformação cultural. Essa análise não se limita a descrever os desafios enfrentados, mas busca identificar as possibilidades de integração entre práticas tradicionais e demandas globais, bem como destacar a importância de ouvir e incluir as vozes das crianças nos processos sociais que as envolvem. Assim, este trabalho pretende contribuir para a construção de reflexões mais amplas sobre o lugar da infância na contemporaneidade e os caminhos para garantir sua visibilidade e protagonismo.

2. A Infância Xerente e os Desafios de Educar para a Globalização sem Perder a Ancestralidade

A infância entre os Akwẽ-Xerente é um período fundamental para a construção de identidades culturais sólidas que dialogam com a ancestralidade. Para este povo indígena, a educação não se resume a ensinar habilidades práticas ou preparar-se para o futuro; é um processo contínuo de incorporação ao tecido social, espiritual e simbólico da comunidade. Essa integração se dá por meio de práticas tradicionais que envolvem a oralidade, o aprendizado por observação e imitação, e a participação ativa em rituais. Contudo, as demandas impostas pela globalização representam desafios importantes à preservação dessas tradições.

A globalização tem transformado as dinâmicas culturais e educacionais, introduzindo novos paradigmas que nem sempre se ajustam aos valores e às práticas Xerente. A introdução de modelos educacionais formais, muitas vezes desconectados do contexto sociocultural indígena, é um exemplo claro dessa tensão. As escolas formais, com currículos baseados em referências eurocêntricas, muitas vezes ignoram a riqueza da cosmologia Xerente, dificultando a integração entre os saberes ancestrais e as demandas contemporâneas. Esse contexto é analisado por autores como Viveiros de Castro (2002), que discute a complexidade das cosmologias indígenas e o impacto do contato com outras culturas.

No entanto, é importante destacar que os Xerente não são meros receptores passivos dessas mudanças. Eles adotaram estratégias de resistência e adaptação que buscam preservar a ancestralidade enquanto negociam os desafios do presente. A oralidade, por exemplo, continua sendo uma ferramenta central para a transmissão de conhecimento. Por meio de histórias, cantos e narrativas míticas, os mais velhos ensinam às crianças os valores fundamentais da coletividade, como o respeito pelos clãs, a relação com o cosmos e a importância do equilíbrio entre as forças naturais (SEEGER et al., 1979).

Neste caso, o aprendizado por observação permanece como um dos pilares da educação Xerente. Desde muito cedo, as crianças são incentivadas a acompanhar as atividades dos adultos, como a caça, a pesca e o cultivo, absorvendo lições práticas por meio da vivência direta. Esse método contrasta fortemente com o ensino formal, que muitas vezes enfatiza a memorização e a transmissão de conteúdos de maneira desconectada do cotidiano. É nesse contraste que reside a principal dificuldade de conciliar os dois sistemas educacionais.

Eventos como o Dasĩpê, realizados anualmente, não apenas reafirmam os valores comunitários, mas também são momentos de aprendizado intensivo. Durante esses rituais, as crianças vivenciam práticas culturais como pinturas corporais, danças e cantos que carregam significados profundos sobre a organização social e espiritual do povo Xerente. Esses rituais, contínuos pelos mais velhos, reforçam a integração das crianças ao cosmos simbólico da comunidade (Oliveira-Reis, 2001).

A chegada das novas tecnologias também traz impactos relevantes ao cotidiano educacional e cultural dos Xerente. Smartphones e redes sociais, por exemplo, alteram a forma como as crianças interagem com os mais velhos e com os rituais. Apesar disso, algumas comunidades utilizam essas tecnologias de maneira criativa, registrando práticas tradicionais em vídeos e compartilhando conteúdos que fortalecem a identidade cultural. Nesse sentido, a globalização pode ser vista não apenas como uma ameaça, mas também como uma oportunidade de preservação, desde que utilizada com intencionalidade (Viveiros de Castro, 2002).

A relação com a língua materna é outra questão central. A preservação da língua Xerente é fundamental para garantir que as crianças possam compreender plenamente as narrativas e os valores transmitidos pela comunidade. No entanto, a predominância crescente do português nas escolas e na vida quotidiana das aldeias tem colocado a língua em risco. Os esforços têm sido feitos para integrar o ensino do Xerente às escolas formais, mas os resultados ainda são desafiadores, refletindo a dificuldade de equilibrar as demandas da globalização com a preservação da ancestralidade.

O papel dos mais velhos, ou wawẽ, é indispensável na transmissão de conhecimento e valores. Eles atuam como mediadores culturais, orientando as crianças em práticas cotidianas e rituais e transmitindo a sabedoria acumulada ao longo das gerações. Contudo, o status dos dirigentes pode ser enfraquecido pela influência de valores externos que priorizam a juventude e o progresso tecnológico. Ainda assim, entre os Xerente, o respeito pelos mais velhos continua sendo um pilar central da educação e da organização social (OLIVEIRA-REIS, 2001).

Enquanto o sistema formal segue um cronograma fixo, os rituais indígenas são determinados pelas estações e pelo ritmo da natureza. Isso cria uma tensão constante para as famílias que buscam equilibrar a participação das crianças nos rituais com a frequência escolar. Em alguns casos, as comunidades conseguiram negociar adaptações, mas ainda há muito a ser feito para harmonizar essas duas dimensões (SEEGER et al., 1979).

A educação entre os Xerente, longe de ser um processo homogêneo, reflete a complexidade das interações entre o global e o local. Enquanto a globalização traz desafios significativos, como a perda da língua e a desconexão com os saberes ancestrais, também abre possibilidades para novas formas de resistência cultural. A chave para enfrentar esses desafios é a capacidade da comunidade de adaptar a identidade sem perder de vista sua.

3. Globalização: Reflexões sobre Infância, Desigualdade e Resistência Cultural.

A globalização, como aparência de muitas nuances, apresenta impactos diversos e muitas vezes contraditórios, como observa Rizzini (2002). Apesar de indicadores econômicos como o PIB sugerirem um progresso significativo nas condições de vida, eles mascaram uma realidade de extrema desigualdade. O enriquecimento de frações privilegiadas ocorre frequentemente em custos de empobrecimento em massa de populações vulneráveis. No Brasil, essa concentração de riqueza e o aumento da pobreza são reflexos nítidos desse processo. A globalização econômica, longe de ser um processo uniforme, revela-se como um campo de disputas que afeta de forma direta as crianças e adolescentes, especialmente em contextos de pobreza extrema (Rizzini, 2002).

A desigualdade, que cresce de forma alarmante no cenário global, evidencia o abismo crescente entre os países mais ricos e os mais pobres. Embora a pobreza absoluta tenha diminuído em alguns contextos, a desigualdade relativa aumenta, intensificando o contraste entre riqueza e privação. Para as crianças, esse cenário é particularmente devastador, pois limita seu acesso aos direitos fundamentais e perpetua ciclos de exclusão social. Conforme destacado por Rizzini (2002), as crianças se encontram frequentemente à margem das narrativas hegemônicas de progresso, invisibilizadas tanto nas estatísticas quanto nas políticas públicas que deveriam observá-las.

Um exemplo emblemático dessa invisibilidade pode ser encontrado na coletânea de textos intitulada Infância (in)visível (2007), organizada por Vera Vasconcelos e Manuel Sarmento. Esta obra denuncia o processo de empobrecimento de crianças em diversos contextos sociais, destacando como a desigualdade estrutural é mascarada por discursos que promovem uma suposta igualdade de condições. Conforme Bourdieu (1998), desvelar essas realidades ocultas é essencial para romper o estado de letargia social que impede transformações efetivas. Assim, os artigos da coletânea oferecem uma análise sobre as condições precárias de vida de muitas crianças brasileiras, trazendo à tona a urgência de ações fundamentadas em evidências científicas para a construção de políticas públicas efetivas.

Uma investigação sobre os mundos sociais da infância também requer uma abordagem epistemológica que reconheça as crianças como sujeitos de conhecimento, em vez de objetos de análise. Sarmento (2007) propõe uma ruptura com o etnocentrismo adultocêntrico, que esvazia frequentemente as interpretações das crianças sobre seus próprios mundos. Ao contrário, ele defende uma escuta ativa e reflexiva que permita incorporar as vozes infantis nos processos de construção social. Essa abordagem representa um passo importante na superação da exclusão das crianças nos processos de tomada de decisão que afetam diretamente suas vidas (Sarmento, 2007).

Essas questões foram amplamente discutidas no I Congresso Internacional em Estudos da Criança, realizado em Braga, Portugal, em 2008. O evento reuniu mais de mil pesquisadores de diferentes partes do mundo, com o objetivo de socializar experiências que destacam a participação ativa das crianças na construção de seus direitos. Entre os textos apresentados, destaca-se Brincando de ‘ser’ Sateré-Mawé , que explora como crianças dessa etnia transitam entre saberes tradicionais e os valores da sociedade de consumo. Essa pesquisa demonstra como elas conseguem preservar elementos culturais próprios, mesmo diante das pressões da globalização (Mubarac Sobrinho, 2008).

A discussão sobre os direitos das crianças indígenas foi aprofundada no texto O direito da criança Sateré-Mawé em ser indígena (Mubarac Sobrinho, 2007). O estudo destaca a importância de incluir as crianças nos debates sobre seus próprios direitos, propondo um modelo de construção coletiva que valorize as subjetividades infantis. Essa abordagem reflete uma resistência à homogeneização cultural promovida pela globalização hegemônica, abrindo espaço para a emergência de narrativas alternativas que valorizam a diversidade.

Boa Ventura de Souza Santos (2003) oferece uma importante contribuição para essa discussão ao propor o conceito de globalizações contra-hegemônicas. Ele argumenta que, embora a globalização hegemônica seja predominante, é possível construir alternativas baseadas em solidariedade e resistência cultural. Essas globalizações alternativas desafiam a lógica capitalista, promovendo formas de organização social que respeitam as especificidades locais. No contexto da infância, essa perspectiva se traduz na valorização das culturas locais e na inclusão das crianças como protagonistas de seus próprios mundos.

A infância, nesse cenário, emerge como um campo de disputas simbólicas e políticas. Santos (2003) ressalta que o paradigma dominante, centrado na padronização e no consumo, precisa ser substituído por um paradigma emergente que celebra a diversidade e promove a emancipação. Para tanto, é necessário considerar as crianças como agentes ativos, capazes de contribuir para a transformação social por meio de suas experiências e perspectivas únicas.

A padronização cultural, promovida pela globalização hegemônica, ameaça a rica diversidade das culturas infantis ao importar modelos homogêneos de consumo e comportamento. Conforme Sarmento (2006), essa dinâmica resulta da marginalização das expressões culturais locais, que são fundamentais para a identidade de cada povo. No entanto, iniciativas baseadas no protagonismo infantil oferecem uma resposta promissora a esse desafio. Ao envolver as crianças na construção de currículos, políticas e práticas educacionais, essas iniciativas criam espaços de resistência à padronização global.

Michel de Certeau (2003) e Clifford Geertz (1989) reforçam a importância de preservar as culturas locais como expressão viva de resistência. Para eles, as práticas cotidianas são o que mantém as comunidades vivas diante das forças homogeneizadoras. Essa perspectiva destaca a relevância de incluir as crianças nos processos de tomada de decisão, valorizando suas vozes e perspectivas como elementos centrais na construção de um futuro mais justo e inclusivo.

4. Resistência Cultural e os Desafios da Participação Infantil

A infância, muitas vezes invisibilizada pelas estruturas sociais e econômicas dominantes, emerge como um espaço simbólico de resistência cultural. Nas comunidades indígenas brasileiras, essa resistência é profundamente marcada pela tentativa de manter vivas as tradições culturais frente aos desafios impostos pela globalização. Como discute Bourdieu (1998), os mecanismos que tornam invisíveis as condições de vida de grupos marginalizados reforçam um estado de miséria social, no qual as crianças são frequentemente excluídas das narrativas de transformação e justiça.

A experiência infantil em comunidades como a dos Sateré-Mawé revela a importância de práticas culturais que preservam a identidade e oferecem às crianças uma participação ativa em suas próprias formações sociais. Mubarak Sobrinho (2008) destaca que os contextos lúdicos, mesmo em ambientes de transição entre saberes tradicionais e modernos, contribuem para a construção de culturas infantis próprias, mostrando que a resistência cultural não se dá apenas na reprodução das tradições, mas também em sua adaptação criativa.

Geertz (1989) argumenta que as culturas locais são tecidas em significados compartilhados, que se renovam constantemente através das práticas cotidianas. Essa perspectiva se alinha à noção de que a infância indígena, ao preservar elementos fundamentais de uma cosmologia específica, reforça os laços comunitários e rejeita as imposições hegemônicas da cultura de massa. Nesse sentido, o protagonismo infantil torna-se essencial para que as crianças se reconheçam como agentes ativos na manutenção e reinvenção dessas culturas.

Dessa forma, Iturra (2007) destaca o valor do imaginário infantil na preservação cultural, enfatizando que as crianças, ao ouvir e reinterpretar narrativas orais, estabelecem conexões entre passado e presente. Essa dinâmica, presente em muitas comunidades indígenas, demonstra que a oralidade é um recurso pedagógico poderoso para resistir à padronização global, permitindo que as crianças se apropriem de suas próprias histórias e as adaptem às suas vivências.

Em sua análise sobre a pedagogia Xerente, Nolasco (2010) descreve como as práticas educativas tradicionais estão profundamente enraizadas na coletividade. O aprendizado acontece por meio de uma integração orgânica entre o cotidiano e os rituais, nos quais as crianças são incentivadas a observar, ouvir e participar. Essa abordagem contrasta com o modelo escolar convencional, que muitas vezes prioriza a transmissão unidirecional de conhecimentos e ignora a riqueza das práticas locais.

Os rituais, como o Dasĩpê, são exemplos significativos de como as culturas indígenas integram as crianças em processos sociais mais amplos. Oliveira-Reis (2001) descreve esses eventos como momentos de aprendizado intensivo, nos quais as crianças experimentam valores e práticas que moldam sua identidade e fortalecem os laços comunitários. Esses rituais, conduzidos pelos mais velhos, representam não apenas a continuidade da tradição, mas também a resistência contra as forças homogeneizadoras da globalização.

A invisibilidade da infância, como aponta Sarmento (2006), é agravada pela lógica de consumo global que transforma as crianças em alvos de mercado, reduzindo suas identidades culturais a padrões homogêneos. Nesse contexto, as práticas tradicionais emergem como atos de resistência que rejeitam a imposição de modelos culturais externos, reafirmando a singularidade de cada comunidade e o papel ativo das crianças em suas culturas.

Cohn (2000) enfatiza que, nas comunidades indígenas, a infância não é percebida como uma etapa isolada da vida, mas como um período fundamental para a construção da pessoa. Essa visão está intimamente ligada à relação entre corpo, aprendizado e identidade, na qual as crianças adquirem habilidades e conhecimentos ao se envolverem diretamente com suas comunidades. Essa abordagem contrasta fortemente com a visão ocidental, que frequentemente considera as crianças como receptores passivos de educação.

Viveiros de Castro (2002) argumenta que a construção da pessoa, nas cosmologias indígenas, está profundamente vinculada ao corpo como um idioma simbólico. Nas culturas indígenas, as crianças aprendem a partir da interação com seus próprios corpos e com o mundo ao seu redor, reforçando uma visão de aprendizado que integra dimensões físicas, espirituais e sociais. Essa perspectiva desafia os modelos educacionais padronizados, que tendem a segmentar o aprendizado em categorias desconectadas.

O conceito de globalizações contra-hegemônicas, proposto por Santos (2003), oferece um quadro teórico para entender a resistência cultural das comunidades indígenas. Essa resistência, ao desafiar a lógica hegemônica do capital, permite que as crianças participem ativamente na construção de novos significados sociais. A infância, nesse sentido, não é apenas um campo de disputa cultural, mas também uma oportunidade para criar narrativas alternativas que valorizem a diversidade e a singularidade.

De Paula (2000) destaca que a participação infantil nas comunidades Xerente vai além de uma simples observação; é um processo ativo de aprendizado e integração que fortalece a identidade cultural. As crianças, ao se envolverem nos rituais e nas práticas cotidianas, assumem papéis de protagonistas na continuidade e transformação de suas culturas. Essa participação reforça a ideia de que a resistência cultural não é estática, mas dinâmica e criativa.

A relação entre cultura e infância é profundamente explorada por Certeau (2003), que sugere que as práticas cotidianas das crianças são formas de resistência às imposições externas. O cotidiano, nesse sentido, torna-se um espaço de criação e subversão, no qual as crianças podem preservar elementos de suas culturas enquanto negociam com as pressões da globalização.

Rizzini (2002) observa que o impacto da globalização na infância não se limita à esfera econômica; também envolve transformações profundas nas práticas culturais e sociais. As crianças, especialmente em contextos de pobreza, são as mais vulneráveis a essas mudanças, mas também têm o potencial de resistir e transformar essas condições por meio de sua participação ativa nas comunidades.

As culturas infantis, conforme Nunes (2003), são expressões vivas de resistência cultural. Ao brincar, contar histórias e participar de rituais, as crianças reafirmam sua identidade e criam espaços de autonomia dentro de contextos muitas vezes adversos. Essa autonomia é importante para que elas possam negociar com as forças externas sem perder de vista suas raízes culturais.

A construção da infância como um campo de resistência, segundo Iturra (2007), exige uma abordagem metodológica que valorize a voz das crianças. Escutá-las, em suas próprias narrativas e experiências, é fundamental para compreender como elas interpretam e respondem às transformações impostas pela globalização. Esse enfoque também desafia o etnocentrismo adultocêntrico, que frequentemente marginaliza as perspectivas infantis.

Ao participar ativamente das práticas culturais, as crianças contribuem para a continuidade de suas comunidades e culturas. Mubarak Sobrinho (2008) ilustra como as crianças Sateré-Mawé conseguem manter elementos de suas culturas enquanto interagem com os valores da sociedade de consumo. Essa interação, longe de ser uma assimilação passiva, é um exemplo de como a resistência cultural pode ser adaptativa e transformadora.

O protagonismo infantil, como observado por Soares (2006), é um elemento essencial na luta contra a exclusão social. Reconhecer as crianças como agentes de mudança, capazes de contribuir para a construção de políticas e práticas que afetam suas vidas, é um passo importante para superar as desigualdades estruturais. Essa participação ativa não apenas fortalece as crianças, mas também enriquece as comunidades como um todo.

As comunidades indígenas, como mostra Nolasco (2010), oferecem exemplos inspiradores de como integrar as crianças em processos sociais mais amplos. Essa integração não apenas preserva a cultura local, mas também desafia as narrativas hegemônicas que frequentemente invisibilizam a infância. A resistência cultural, nesse contexto, é um testemunho da resiliência e criatividade das comunidades indígenas diante dos desafios globais.

5. CONCLUSÃO

Este estudo buscou lançar evidências sobre a invisibilidade da infância em contextos marcados pela resistência cultural e pelos desafios impostos pela globalização. A análise revelou como a infância, especialmente em comunidades indígenas e em condições de vulnerabilidade social, desempenha um papel central na preservação de práticas culturais e na formação de identidades coletivas.

Ao longo do trabalho, ficou evidente que as crianças não são meras receptoras passivas de saberes, mas protagonistas na construção e adaptação de suas culturas. Este protagonismo, aliado a práticas comunitárias de aprendizagem e socialização, emerge como uma poderosa estratégia de resistência contra as forças homogeneizadoras e excludentes da globalização.

Contudo, os desafios permanecem intensos, exigindo esforços contínuos para integrar as vozes infantis em processos sociais mais amplos e garantir sua participação ativa em decisões que moldam seus mundos.

5.1. LIMITAÇÕES DA PESQUISA

Apesar de oferecer reflexões relevantes sobre a infância e os desafios culturais em um mundo globalizado, a pesquisa apresentou algumas limitações. Primeiramente, o recorte temático focou predominantemente em comunidades indígenas brasileiras, o que restringe a aplicabilidade das conclusões a outros contextos culturais e sociais.

Além disso, o estudo teve como base uma abordagem teórica e qualitativa, deixando de lado a realização de trabalho de campo ou análise de dados empíricos que poderiam aprofundar a compreensão das dinâmicas culturais e sociais abordadas. Por fim, a delimitação de tempo e espaço também limitou a exploração de possíveis interseções entre a infância e outras dimensões, como gênero, tecnologia e sustentabilidade, que poderiam enriquecer ainda mais a discussão.

5.2. RECOMENDAÇÕES PARA ESTUDOS FUTUROS

Dado o escopo e as limitações identificadas, recomenda-se que estudos futuros adotem abordagens interdisciplinares e ampliem a análise para incluir diferentes contextos culturais, especialmente em cenários urbanos e rurais fora das comunidades indígenas. Pesquisas empíricas, baseadas em entrevistas e observações participativas, poderiam oferecer insights mais profundos sobre o protagonismo infantil em diferentes realidades.

Além disso, investigações que explorem a relação entre infância e tecnologias digitais seriam valiosas para entender como práticas tradicionais e modernas podem coexistir ou se confrontar.

Finalmente, seria enriquecedor estudar as interseções entre a infância e os desafios contemporâneos, como as mudanças climáticas e a sustentabilidade, para explorar como as crianças estão se posicionando frente a essas questões globais. Tais estudos poderiam contribuir significativamente para a formulação de políticas públicas mais inclusivas e adaptadas às necessidades e especificidades dos mundos infantis.

6. Referências

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CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2003.

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DE PAULA, L. R. A dinâmica faccional Xerente:esfera local e processos sociopolíticos nacionais e internacionais. 2000. 287 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, São Paulo, 2000.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

ITURRA, R. O imaginário das crianças: os silêncios da cultura oral. Lisboa: Fim de Século, [1997] 2007.

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NOLASCO, G. R. S. Rowahtuze Sinã: um estudo sobre a ‘pedagogia’ Akwẽ e a sua relação com a escola indígena. 2010. 87 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Faculdade de Ciências e Tecnologia, Departamento de Ciências da Vida, UC, Coimbra, 2010.

NUNES, Â. Brincando de ser criança:Contribuições da etnologia indígena brasileira à antropologia da infância. 2003. 341 f. Tese (Doutorado em Antropologia) – Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Departamento de Antropologia, UL, Lisboa, 2003.

OLIVEIRA-REIS, FC Dasĩpê e a organização cerimonial Akwẽ-Xerente. Brasília: UnB, 2001.

RIZZINI, Irene. Infância e Globalização: análise das transformações econômicas, políticas e sociais. Braga-PT: Banco de textos do IEC, 2002.

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VIVEIROS DE CASTRO, E. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002.


[1] Mestrando em Educação. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: andregoveiar@gmail.com

[2] Pós-Doutora em Educação. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: neilaosorio@uft.edu.br

                  [3] Pós-Doutor em Ciências da Saúde. pela Universidade Federal do Tocantins. E-mail: luizneto@uft.edu.br

[4] Doutor em Ensino de  Ciências e Matemática. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: janeisi@uft.edu.br

[5] Doutorando em Educação na Amazônia. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: xerente23@gmail.com

[6] Doutorando em Educação. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: marlonoliveirabrito@gmail.com

[7] Mestre em Educação. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: leonardosbsantana@gmail.com

[8] Mestre em Educação. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: professoranubiabrito@gmail.com

[9] [9] Mestre em Educação. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: carvalhomarileide@gmail.com

[10] Mestre em Linguística Aplicada. Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. E-mail: leila.machado@uems.br

[11] Mestrando em Educação. Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. E-mail: lucianocoordenador26@gmail.com

[12] Mestrando em Educação. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: samuelbiologo11@gmail.com

[13] Graduada em Educação Física. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: wilmaeguilherme@gmail.com

[14] Graduado em Pedagogia. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: danilo.corsino@mail.uft.edu.br

[15] Bacharel em Psicologia. Universidade Federal do Tocantins. E-mail: joaonetosat@gmail.com