A IN(EFICÁCIA) DO PODER JUDICIÁRIO EM RELAÇÃO À PRÁTICA DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA 

THE IN(EFFICIENCY) OF THE JUDICIAL POWER IN RELATION TO THE PRACTICE OF OBSTETRIC VIOLENCE

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7357511


Lívia Andrade Silva do Rosário1
Sarah Inês Santos Garcia2


Resumo: Objetiva-se, através da presente pesquisa científica, abordar sobre a ineficácia do Poder Judiciário em relação à prática de violência obstétrica. Nesse esteio, tem-se que a violência obstétrica pode ser praticada em detrimento das mulheres que se encontram em processo de parto ou em processo de abortamento, atingindo a esfera física, emocional ou sexual das vítimas. Conforme visto, na atual conjuntura das Leis, a violência obstétrica não se encontra disposta no Código Penal Brasileiro, nem tampouco na legislação esparsa. Desse modo, tem-se que as vítimas buscam uma compensação ou reparação em âmbito cível, por intermédio do instituto da responsabilidade civil. Nesses casos, há de se comprovar a existência de uma conduta ilícita, de um dano e do nexo de causalidade, para fins de responsabilização do profissional da saúde que tenha atuado na contramão dos valores e preceitos éticos. Com base nos resultados auferidos, coaduna-se com o posicionamento da doutrina majoritária, qual seja, que o Poder Judiciário e o Poder Público em geral mostram-se ineficazes em relação à prática de violência obstétrica, haja vista que não existem leis específicas que tratem sobre o assunto nem tampouco uma disposição no âmbito do Código Penal Brasileiro. Portanto, mister que sejam criadas políticas e medidas públicas para sanar tais óbices. Com relação à metodologia científica, ressalta-se a utilização de artigos de leis, jurisprudências, artigos jurídicos e periódicos, tendo em vista que se trata de uma temática prevalentemente teórica. 

Palavras- chave: Violência obstétrica. Direito à vida. Direito à saúde. Princípio da dignidade humana. Parturiente. 

Abstract: The objective of this scientific research is to address the ineffectiveness of the Judiciary in relation to the practice of obstetric violence. On this basis, obstetric violence can be practiced to the detriment of women who are in the process of childbirth or in the process of abortion, reaching the physical, emotional or sexual sphere of the victims. As seen, in the current conjuncture of the Laws, obstetric violence is not provided for in the Brazilian Penal Code, nor in the sparse legislation. 

In this way, victims seek compensation or reparation in the civil sphere, through the institute of civil liability. In these cases, the existence of illicit conduct, damage and the causal link must be proven, for the purpose of holding the health professional who has acted against ethical values and precepts accountable. Based on the results obtained, it is in line with the position of the majority doctrine, that is, that the Judiciary and the Public Power in general are ineffective in relation to the practice of obstetric violence, given that there are no specific laws that address on the subject nor a provision within the scope of the Brazilian Penal Code. Therefore, it is necessary to create public policies and measures to remedy such obstacles. Regarding the scientific methodology, the use of articles on laws, jurisprudence, legal articles and periodicals is highlighted, considering that it is a purely theoretical theme. 

Keywords: Obstetric violence. Right to life. Right to health. Principle of human dignity. parturient. 

1. INTRODUÇÃO 

É sabido que o momento do parto, para a maioria das mulheres, representa um dos momentos mais marcantes e gratificantes da vida, devendo ser respeitado e considerado como tal. Contudo, devido à realidade vivenciada, diversas parturientes são submetidas a um tratamento degradante e cruel, enquadrando-se no termo hodiernamente considerado como “violência obstétrica”, ou seja, uma prática que pode atingir a esfera física, emocional ou sexual das vítimas.  

Nesse prumo, além da temática ressaltada, ainda é possível vislumbrar e questionar a ausência de um tratamento adequado às vítimas em âmbito judicial, ou seja, a ausência de leis e medidas eficazes que possam contornar tal problemática apresentada. 

Para cumprir com os objetivos suscitados, tem-se que a presente pesquisa científica aborda sobre o termo “violência obstétrica”, apresentando uma análise conceitual, os elementos caracterizadores de tal prática, a questão da violência obstétrica em sentido amplo, bem como as modalidades de violência que se enquadram no tema em comento. 

Posteriormente, trata-se sobre os direitos e princípios fundamentais relativos à mulher parturiente, abordando, principalmente, sobre os direitos humanos e também sobre o princípio da dignidade humana. 

Através do tópico principal, aborda-se sobre a ineficácia do Poder Judiciário para instituir medidas preventivas e repressivas à conduta de violência obstétrica no Brasil. Do mesmo modo, apresenta-se os posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais que permeiam à questão suscitada. 

Ademais, trata-se sobre um caso recente de violência obstétrica, cometido em detrimento da influenciadora digital, Shantal Verdelho, durante o processo de parto da filha da mesma. 

Para fins de complementação e refinamento da pesquisa, também se aborda sobre o projeto de Lei nº 2.082/2022 e os principais elementos presentes no mesmo. 

Por intermédio da conclusão, retomam-se os argumentos suscitados ao longo da pesquisa científica e apresenta-se o posicionamento pessoal dos discentes acerca da ineficiência do Poder Judiciário para tratar sobre a questão da violência obstétrica. 

Com relação à metodologia adotada, enfatiza-se a utilização de elementos bibliográficos, legais, doutrinários, jurisprudenciais e artigos científicos, haja vista que a temática abordada é prevalentemente teórica. 

2. VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA: Análise conceitual e elementos preponderantes 

Compreende-se, inicialmente, que o termo “violência obstétrica” constitui-se a prática de atos de abuso, violência e maus-tratos em detrimento de mulheres, durante a realização do parto ou durante uma situação de abortamento, em âmbito hospitalar ou centros de maternidade. Nesse esteio, observa-se que existem diversas expressões que se adequam ao termo em realce, quais sejam, “violência de gênero no parto e aborto”, “assistência desumanizadora à parturiente”, “crueldade durante a realização do parto ou aborto”, dentre outras (TESSER; KNOBEL; ANDREZZO; DINIZ, 2015).  

No mesmo contexto apresentado, tem-se, consoante o entendimento de Bowser e Hill (2010), que existem determinadas condutas que podem ser enquadradas em violência obstétrica, sendo elas: abuso físico, abuso psicológico, procedimentos que atentem contra a dignidade, ausência de sigilo/ discrição, atos de discriminação relativos às características físicas ou de aparência da paciente, abandono durante o parto, manutenção da paciente em instalações fechadas contra a vontade da mesma ,dentre outros (BOWSER; HILL, 2010). 

Em caráter complementar ao exposto, ressalta Souza (2014) acerca do conceito de violência doméstica para o âmbito jurídico moderno: 

A violência institucional decorre das relações sociais marcadas pelo descaso com os aspectos humanísticos do cuidado, da rigidez hierárquica nas relações dos profissionais de saúde com os pacientes/clientes, das falhas no processo de comunicação, da mecanização do cuidado, do uso inadequado da tecnologia, do não compromisso dos profissionais com o processo de cuidar (SOUZA, 2014, p. 42). 

Nesse sentido, também se tem as ponderações de Hack et al (2020): 

Como se observa, mesmo que não haja um consenso quanto ao termo, a Violência Obstétrica, é o desrespeito aos direitos da gestante e da criança, desde o pré natal ao pós-parto, e também aos casos de abortamento, violência esta que deve ser verificada sob aspectos sexuais, reprodutivos, de vida e de liberdade, para que não se torne uma violação aos direitos fundamentais das mulheres, seja no período pré-parto, seja no parto ou mesmo no pós-parto (HACK et al, 2020, p. 08). 

Observa-se, nesse prumo, que a violência obstétrica se trata de um problema social, de saúde pública, de grande ocorrência em ambientes hospitalares, onde a violência é praticada em detrimento da mulher parturiente. Nesse sentido, consoante Souza (2014), trata-se aqui de uma situação de extrema violação aos direitos humanos da mulher, que deve ser amplamente abordada por estudiosos e severamente punida pelas Leis vigentes. 

É importante destacar, segundo o entendimento de Juárez et al (2012), que a prática da violência obstétrica ocorre em um momento de grande vulnerabilidade da mulher, ou seja, uma conduta contrária ao que é esperado durante o momento de ocorrência de um parto ou de um procedimento de aborto. Tem-se, nesse âmbito, uma nítida violação aos princípios, garantias e direitos precípuos às mulheres, exercidos por profissionais da saúde, com a utilização de ações intervencionistas contrárias aos preceitos éticos e morais adjacentes. 

2.2 MODALIDADES DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA 

Observa-se, no sentido avençado, que a violência obstétrica se desdobra em uma série de atos e violações em detrimento das mulheres que estão em processo de parto ou de aborto. Desse modo, tem-se que tais condutas podem ser expressas de maneira física (que recaem diretamente sob o corpo das mulheres, ocasionando em dores e danos físicos leves ou graves), sendo evidenciados através da utilização de fórceps (para retirada do bebê ou do feto), utilização do medicamento denominado “ocitocina” (para fins de aceleração anormal do parto), manobra de Kristeller (para fins de aceleração do parto), privação de alimentos à parturiente ou da realização de um procedimento de cesárea sem qualquer indicação médica prévia (PARTO DO PRINCÍPIO, 2012). 

Em relação às condutas errôneas mencionadas, ressalta Leal et al (2014) que a denominada “manobra de Kristeller” constitui-se como o ato mais violento que pode ser praticado em detrimento da mulher, haja vista que se constitui como uma manobra, onde um profissional da saúde se mantém apoiado sob a barriga da parturiente, com o auxilio do braço ou cotovelo, forçando para que a criança saia mais rapidamente. 

Dentre as possíveis sequelas ocasionadas após a manobra de Kristeller, salienta-se a possibilidade de “ruptura uterina, lesão do esfíncter anal, fraturas em recém-nascidos ou dano cerebral, dentre outros” (LEAL, et al, 2014, p. 43). 

Com relação às demais condutas que se enquadram no termo “violência obstétrica”, encontram-se as condutas psicológicas, ou seja, aquelas que afetam o lado psíquico e emocional da mulher que se encontra em processo de parto ou de abortamento (PARTO DO PRINCÍPIO, 2012). 

Observa-se, nesse esteio, que tais atos constituem-se como a ausência de informações sobre o quadro da parturiente, do abandono da mesma pela equipe médica durante o parto ou aborto, da restrição de assistência, da prática de condutas de desprezo, humilhação, vexatórias. Ademais, tem-se aqui todas ações verbais ou comportamentais que ocasionem em um abalo psicológico da mulher, que lhe causem sentimentos de autoestima baixa, de alienação, perda da dignidade, acuação ou prestígio (PARTO DO PRINCÍPIO, 2012). 

Compreende-se, do mesmo modo, que a violência obstétrica também pode ser praticada e pode vir a atingir a esfera de dignidade sexual da mulher. Portanto, temse aqui condutas relacionadas ou não aos órgãos sexuais, partes íntimas, que ocasionem em uma violação à integridade sexual ou reprodutiva da parturiente (PARTO DO PRINCÍPIO, 2012). 

É importante enfatizar que as condutas de violência obstétrica que se encaixam nessa seara constituem-se como a prática da episiotomia (onde tem-se um corte entre a região da vagina e do ânus da mulher, para fins de facilidade da passagem do feto), o excesso de esforço da gestante, que ocasiona em lesões graves (principalmente quando o profissional da saúde se utiliza do fórceps), a manobra de Kristeller (que poderá ocasionar em rupturas uterinas) (PARTO DO PRINCÍPIO, 2012). 

Consoante à OMS, toda e qualquer conduta do profissional da saúde que não leve em conta a integridade física, psicológica ou sexual da gestante, podem ser enquadradas em violência obstétrica. Nesse sentido, incluem-se aqui qualquer violência à base de gritos, de ausência de medicação adequada ao parto, do impedimento da entrada de um acompanhante na sala de parto, de todo e qualquer ato grosseiro, discriminatório, vexatório, que coloque em risco à dignidade humana. Do mesmo modo, também se considera o ato de impedimento de acesso da mulher ao filho recém-nascido (sem uma justificativa plausível), o impedimento de aleitamento materno, a privação de alimentos ou de líquidos para fins de hidratação da mulher (sem uma justificativa plausível), também se constituem como graves violações aos direitos fundamentais das mulheres parturientes (OLIVEIRA, 2018). 

No contexto proposto, aduz Hack et al (2020) que não existe apenas um momento de ocorrência da violência obstétrica, ou seja, ela pode ser praticada em diferentes momentos da gestação da mulher (durante a realização do pré-natal e exames clínicos, após a entrada na maternidade, durante a internação ou no preparo para o processo de parto ou aborto).  

De modo complementar, observam-se que são atos totalmente contrários aos direitos humanos da mulher, ao princípio da dignidade humana: 

Eu digo para as grávidas: ‘se não ficar quieta, eu vou te furar todinha’. Eu aguento esse monte de mulher fresca?” T., técnica de enfermagem relatando o procedimento de colocar o soro durante o trabalho de parto, Itaguaí-RJ 

“Tinha uma mulher lá do preparo, do pré-parto lá, preparando as mulheres, falou na minha cara: “você não acha que está velha demais não, pra estar parindo?”. Falou na minha cara. Falou que eu estava velha pra estar parindo. Eu falei: “não, eu não sou velha. Eu só estou maltratada”; falei pra ela. E ela lá menina, e eu com dor e ela: “se você não calar a boca…” que se eu começasse a gritar que ela ia embora e ia deixar eu lá gritando”. Ester, 32 anos, no parto de seu segundo filho.  

“Na manhã seguinte do parto o médico passou na porta da enfermaria e gritou: ‘Todo mundo tira a calcinha e deita na cama!  Quem não estiver pronta quando eu passar vai ficar sem prescrição!’. A mãe da cama do lado me disse que já tinha sido examinada por ele e que ele era um grosso, que fazia toque em todo mundo e como era dolorido. Fiquei com medo e me escondi no banheiro. E fiquei sem prescrição de remédio pra dor.” P. atendida na ala do serviço público da Maternidade Pró-Matre de Vitória/ES (PARTO DO PRINCÍPIO, 2012). 

Observa-se, nesse sentido, que a violência obstétrica poderá constituir-se de inúmeras faces, mas sempre atingirá a dignidade humana da mulher, seja no âmbito físico, psicológico ou sexual, devendo ser tratada e punida da maneira correta. 

3. DOS DIREITOS E PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS PERTINENTES À MULHER PARTURIENTE 

Observa-se, nesse âmbito de análise, que a violência obstétrica ocasiona em uma série de violações aos direitos e princípios fundamentais pertinentes à mulher parturiente. Desse modo, trata-se aqui sobre os direitos, princípios e valores pertinentes às mulheres que se encontram em processo de parto ou de aborto. 

No âmbito de análise de princípios, mister que se trate, inicialmente, sobre o significado dos princípios jurídicos constitucionais. Nesse esteio, tem-se que os princípios se constituem como verdadeiros alicerces aos operadores do Direito, ou seja, delimitam as bases precípuas e os caminhos que devem ser seguidos: 

No sentido, notadamente no plural, significa que as normas elementares ou os requisitos primordiais instituídos como base, como alicerce de alguma coisa. E, assim, princípios revelam o conjunto de regras ou preceitos, que se fixam para servir de norma a toda espécie de ação jurídica, traçando, assim, a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica. Desse modo, exprimem sentido mais relevante que o da própria norma ou regra jurídica. Mostram-se a própria razão fundamental de ser das coisas jurídicas, convertendo-as em perfeitos axiomas. Princípios jurídicos, sem dúvida, significam os pontos básicos, que servem de ponto de partida ou de elementos vitais do próprio Direito. Indicam o alicerce do Direito. (SILVA, 2012, p. 49, grifo nosso). 

Com subsídio no entendimento de Alexy (2008), pode-se compreender também que os princípios e direitos fundamentais se tratam de verdadeiros “mandados de otimização”, sendo satisfeitos em diferentes graus, possibilidades fáticas e jurídicas. Trata-se, sobretudo, daquilo que está contido nas entrelinhas das normas jurídicas, indicando o ponto de partida para os aplicadores das leis. 

No contexto apresentado, observa-se que os direitos e princípios basilares, relativos às parturientes, constituem-se como o direito à vida, o direito à saúde e o princípio da dignidade humana. 

Com relação ao direito à vida, observa-se que tal direito fundamental se encontra previsto no artigo 5º, caput, da Magna Carta de 1988: 

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes […] (BRASIL, 1988). 

No sentido apresentado, compreende-se que o direito à vida se trata de um bem jurídico de inestimável importância dentro da esfera jurídica, haja vista que sem o referido direito, os demais restam prejudicados. Portanto, segundo o entendimento de Bulos (2020), o direito à vida engloba os demais preceitos e valores, sendo considerado um direito vital aos seres humanos. 

No sentido apresentado, Bulos (2020) ressalta que o direito à vida deve ser protegido e garantido até mesmo em suas fases iniciais: 

O direito à vida é o mais importante de todos os direitos. Seu significado constitucional é amplo, porque ele se conecta com outros, a exemplo dos direitos à liberdade, à igualdade, à dignidade, à segurança, à propriedade, à alimentação, ao vestuário, ao lazer, à educação, à saúde, à habitação, à cidadania, aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Sem a proteção incondicional do direito à vida, os fundamentos da República Federativa do Brasil não se realizam. Daí a Constituição proteger todas as formas de vida, inclusive a uterina (BULOS, 2020, p. 315, grifo nosso). 

Compreende-se, desse modo, que o direito à vida, no âmbito de análise exposta, abrange não apenas a vida da parturiente, mas também o direito à vida do feto. Portanto, tal direito fundamental deve ser considerado de modo amplo, constituindo-se como a fonte primária de todos os demais direitos e princípios e, inclusive, do princípio da dignidade humana. Em outras palavras, não há de se considerar o direito à vida sem se levar em conta que a vida deve ser garantida sob uma base digna e equânime (SILVA, 2008). 

Acerca da importância da vida humana e da necessidade de integração com os demais direitos e valores fundamentais, preleciona Silva: 

[…] A vida humana, que é o objeto do direito assegurado no art. 5º, caput, integra-se de elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais). A “vida é intimidade conosco mesmo, saber-se e dar-se conta de si mesmo, um assistir si mesmo e um tomar posição de si mesmo”. Por isso é que ela constitui a fonte primária de todos os direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos. No conteúdo de seu conceito se envolvem o direito à dignidade da pessoa humana […] (SILVA, 2012, p. 198). 

Compreende-se, nesse contexto, que o direito à vida se traduz como o cerne do direito, dos princípios e valores existentes. Desse modo, de nada adianta a existência dos demais direitos se o direito à vida não for respeitado e garantido. 

No que se refere ao direito à saúde, compreende-se que tal direito se encontra também previsto na Magna Carta de 1988, através do artigo 196, in verbis

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1988). 

Atualmente, pode-se compreender que o direito à saúde se trata de um direito indispensável a todos os cidadãos, sendo dever do Estado garanti-lo por intermédio de políticas e medidas públicas voltadas para tais objetivos. Nesse esteio, tem-se que o mencionado direito se constitui como um meio termo entre o bem-estar físico e mental: 

Atualmente a saúde pode ser conceituada como um meio-termo entre o bem-estar físico e mental, ou seja, pode ser entendida como o equilíbrio entre a busca por um corpo sadio e pela tranquilidade em saber que todas as condições materiais básicas para esta conquista serão garantidas pelo Ente Público (GUIMARÃES; SOBRINHO, 2013, p. 23).  

Aduz-se, nesse sentido, que o direito à saúde é considerado um direito irrevogável, indispensável e fundamental a todos os cidadãos. Além disso, tem-se que o mencionado direito está ligado ao direito à vida. Em resumo, não há de se falar em direito à saúde sem tratar sobre o direito e proteção à vida humana (GUIMARÃES; SOBRINHO, 2013). 

Nessa senda, aborda-se também que o direito à saúde também abarca o fornecimento de medicamentos e tratamentos para recuperação da pessoa enferma, ou para atenuação de possíveis sintomas ou sequelas provenientes de alguma doença ou complicações: 

Inerente ao dever do Estado de prover a saúde pública está a obrigação de promover políticas públicas de redução do risco de doenças, através de campanhas educativas, de vigilância sanitária, de desenvolvimento de recursos humanos, alimentação saudável, construção de hospitais, centros ambulatoriais e postos de saúde. Por fim, o fornecimento gratuito de medicamentos para a recuperação ou para a redução das consequências causadas pelos mais variados tipos de doenças (PARANHOS, 2007, p. 155). 

Enfatiza-se ainda que as normas jurídicas relativas ao direito à saúde centramse naquelas que disciplinam o Sistema Único de Saúde (SUS), disciplinado por intermédio da Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990 e também por intermédio da Lei nº 8.142 de 28 de dezembro de 1990 (BRASIL, 1990). 

Consoante ponderações realizadas pelo Conselho Nacional de Justiça (2016), toda mulher possui o direito de realizar exames de acompanhamento pré-natal com segurança, de ter um processo de parto sadio e dentro das normas éticas e morais vigentes, de ter um prazo de licença-maternidade de amamentação. Tratam-se de direitos, garantias e valores previstos em leis, que devem ser observados tanto pela gestante quanto pela equipe de profissionais da saúde que vierem a atendê-la (CNJ, 2016). 

Com relação ao princípio da dignidade humana, tem-se que o mencionado princípio é considerado o cerne, o sustentáculo maior, dentre todos os demais princípios. Em outras palavras, compreende-se que a dignidade humana é fundamento de todos os direitos fundamentais (BULOS, 2020). 

Nessa linha de pensamento, observa-se que o princípio da dignidade humana se encontra previsto na Magna Carta de 1988, por intermédio do artigo 1º, inciso III: 

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: 

[…] III – a dignidade da pessoa humana […] (BRASIL, 1988). 

Diante disso, pode-se considerar que a dignidade humana se consubstancia em tudo aquilo que torna o ser humano merecedor de um respeito e consideração por parte do Estado e da sociedade. Ademais, é tal princípio que determina que todas as pessoas devem viver sob condições dignas, além de garantir a participação ativa e corresponsável pela própria existência e pela vivência em sociedade com os demais pares: 

A qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET, 2013,p. 89). 

Salienta-se também que o ser humano se encontra em um processo de vivência que transcende o mundo individual, ou seja, não existem relações apenas individuais, sendo necessário compreender e considerar o ambiente onde vive o próximo. Portanto, para que se tenha uma convivência social mais harmônica, mister que se considere a dignidade humana do outro, respeitando e levando em consideração realidades sociais distintas, mas que possuem os mesmos valores (BULOS, 2020).  

Acerca do contexto tratado, aduz Camargo (2001): 

Pessoa humana, pela condição natural de ser, com sua inteligência e possibilidade de exercício de sua liberdade, se destaca na natureza e diferencia do ser irracional. Estas características expressam um valor e fazem do homem não mais um mero existir, pois este domínio sobre a própria vida, sua superação, é a raiz da dignidade humana. Assim, toda pessoa humana, pelo simples fato de existir, independentemente de sua situação social, traz na sua superioridade racional a dignidade de todo ser (CAMARGO, 2001, p. 35).  

Enfatiza-se também, segundo o entendimento de Sarlet (2013), que o princípio da dignidade humana está presente no contexto dos direitos fundamentais, ou seja, mostra-se presente junto ao direito à vida e também ao direito à saúde. Desse modo, considera-se que a parturiente deve ser tratada com todo respeito, levando-se em consideração o princípio da dignidade humana, do respeito às condições de existência, dos seus objetivos, dos seus anseios, das suas limitações e condições de vulnerabilidade (PARTO DO PRINCÍPIO, 2012). 

Em caráter complementar ao exposto, enfatiza Nobre (2002): 

Igualdade de direitos entre todos os homens, uma vez integrarem a sociedade como pessoas e não como cidadãos; Garantia da independência e autonomia do ser humano, de forma a obstar toda coação externa ao desenvolvimento de sua personalidade, bem como toda atuação que implique na sua degradação e desrespeito à sua condição de pessoa, tal como se verifica nas hipóteses de risco de vida; Não admissibilidade da negativa dos meios fundamentais para o desenvolvimento de alguém como pessoa ou imposição de condições sub humanas de vida. Adverte, com carradas de acerto, que a tutela constitucional se volta em detrimento de violações não somente levadas a cabo pelo Estado, mas também pelos particulares (NOBRE, 2002, p. 143). 

Portanto, segundo Bulos (2020), a dignidade humana trata-se do corolário do direito, responsável pelo estabelecimento dos caminhos que devem ser observados pelos operadores do direito, levando-se em consideração que a dignidade humana não pode ser negociada, ignorada, nem tampouco renunciada. Trata-se de uma garantia precípua à existência humana e que deve ser respeitada em todo e qualquer segmento profissional. 

4. A IN(EFICÁCIA) DO PODER JUDICIÁRIO EM RELAÇÃO À PRÁTICA DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA 

Conforme visto, tem-se que a violência obstétrica se trata de uma grave violação aos direitos humanos das mulheres que se encontram em processo de parto ou de abortamento. Há, sobretudo, nítidas condutas que atentam contra o direito à vida, o direito à saúde e o princípio da dignidade humana, tanto da mulher quanto do nascituro ou feto (PARTO DO PRINCÍPIO, 2012). 

Levando-se em consideração a realidade apresentada, tem-se que muitos doutrinadores e estudiosos questionam a possibilidade de se pleitear danos morais e materiais em decorrência da comprovação da violência obstétrica. Em outras palavras, trata-se aqui sobre a forma como o Poder Judiciário atua, em face da responsabilidade civil daqueles que praticam violência obstétrica (SOUZA, 2014). 

Segundo Dias (2020), o instituto da responsabilidade civil pode vir a ser aplicado em casos de comprovação de violência obstétrica, pois tal responsabilidade decorre de uma contratação de serviços mediante pagamento, ou seja, trata-se de uma responsabilidade contratual. 

Dentre os requisitos para fins de responsabilidade civil, aduzem Gagliano e Pamplona Filho (2018) que se trata da assunção das consequências provenientes de um fato jurídico, ou seja, de algo que não decorreu da forma correta e que gerou prejuízos para uma das partes: 

Responsabilidade, para o Direito, nada mais é, portanto, que uma obrigação derivada — um dever jurídico sucessivo — de assumir as consequências jurídicas de um fato, consequências essas que podem variar (reparação dos danos e/ou punição pessoal do agente lesionante) de acordo com os interesses lesados (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2018, p. 31). 

Nesse sentido, ressalta Silva (2012) que, uma vez que tais deveres venham a ser violados, no âmbito privado, surgirá o direito do ofendido à reparação: 

Uma vez violados esses deveres, com a ocorrência de danos, surge o direito do ofendido à reparação, em razão do preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil – ação, dano e nexo causal, assim como ocorre diante da prática de ato ilícito em outras relações jurídicas (SILVA, 2012, p. 102, grifo nosso). 

Observa-se, portanto, que o instituto da responsabilidade civil possui como pressupostos legais o conteúdo previsto nos artigos 186, 187 e 927, todos pertencentes ao Código Civil Brasileiro. Nesse esteio, uma vez que a parte comprove a existência de uma conduta ilícita, de um dano e do nexo causal, surgirá o dever de reparação ou de indenização em prol dessa vítima (BRASIL, 2002). 

No contexto narrado, enfatiza Sílvio Rodrigues (2008) que a responsabilidade civil derivada de um contrato, gera a obrigação de indenizar por parte daquele que não o cumpriu da forma correta: “na hipótese de responsabilidade contratual, antes de a obrigação de indenizar emergir, existe, entre o inadimplente e seu contratante, um vínculo jurídico derivado da convenção” (SILVIO RODRIGUES, 2008, p. 14). 

Desse modo, segundo preceitua Souza (2014), o profissional da saúde deve utilizar as melhores técnicas e os melhores procedimentos em prol dos seus pacientes, haja vista que há predominância do dever de tutela e do melhor interesse do paciente. Portanto, tanto em âmbito pré-contratual, durante a execução ou no período pós-contratual, faz-se precípuo que o médico atue com boa-fé objetiva, de modo ético e respeitoso. Ademais, mesmo que o paciente receba alta médica, deverá o profissional da saúde atuar com sigilo quanto ao diagnóstico, tratamento ou procedimentos, além de ter a obrigação de conservar o prontuário e todas as informações cabíveis. 

Dentre os demais elementos presentes no âmbito de responsabilidade civil, tem-se também a necessidade de se analisar se a conduta do médico foi de negligência, imprudência ou imperícia em detrimento do paciente. Desse modo, consoante Venosa (2018), o Código de Defesa do Consumidor (CDC), por intermédio do artigo 14, traz em seu bojo o conteúdo atinente à uma responsabilidade pessoal desses profissionais, ou seja, ocorrerá mediante comprovação da culpa. Por outro lado, consubstanciando-se no conteúdo presente também no CDC, observa-se que a responsabilidade das unidades hospitalares será objetiva, ou seja, prescinde-se do elemento culpa, haja vista serem os fornecedores diretos daquele serviço. Tal situação também não obsta que o hospital mova uma ação de regresso em detrimento do profissional da saúde que tenha atuado de modo errôneo para com o paciente (VENOSA, 2018). 

Acerca da temática realçada, preleciona Oliveira: 

Ressalta-se ainda, que, o médico tem o dever de assistir o paciente, o assessorando da melhor forma possível, sempre buscando atender seus chamados, respondendo as solicitações, prestando esclarecimentos, deve sempre estar pronto a assisti-lo, pois a ocorrência de danos por falta de assistência poderá caracterizar a culpa do médico. O médico que não cumpre seu dever de dar assistência ao paciente está incorrendo em negligência, sendo, portanto, responsabilizado no caso de dano ou prejuízo ao paciente. Sobre o dever de abstenção de abuso, consiste na obrigação do médico de pautar-se nos princípios da ética em sua atuação, não devendo visar apenas o lucro ou obtenção de vantagens (OLIVEIRA, 2018, p. 1). 

É importante destacar que, no âmbito público, a prestação de serviços de saúde encontra-se ligada ao conteúdo previsto no artigo 37 da Magna Carta de 1988, onde:  

As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa (BRASIL, 1998). 

Em tom supletivo ao exposto, compreende Diniz (2020), que existem três pressupostos para fins de responsabilidade civil no âmbito privado, quais sejam, a ação ou omissão do agente, o dano ocasionado e o nexo causal. Contudo, Venosa (2018) ressalta que há mais um pressuposto a ser considerado: “[…] os requisitos para a configuração do dever de indenizar: ação ou omissão voluntária, relação de causalidade ou nexo causal, dano e finalmente, culpa” (VENOSA, 2018, p. 17). 

Sendo assim, observa-se que o dever de indenizar em casos de assistência médica errônea no âmbito público independerão da comprovação do dolo ou culpa dos profissionais de saúde. Ademais, mantém-se o mesmo pensamento quando o paciente for atendido em unidade hospitalar privada, mas sob convênio do SUS (VENOSA, 2018). 

No âmbito jurisprudencial, observam-se decisões provenientes de instâncias primárias, onde se considera existente a prática de violência obstétrica e, consequentemente, surge o dever de indenizar a vítima dessa prática lastimável. Em caráter ilustrativo, observa-se a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em sede de análise de um recurso de Apelação Cível: 

VOTO DO RELATOR EMENTA – RESPONSABILIDADE CIVIL – 

INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA – 

Demanda ajuizada pelos pais de recém-nascida – Parto levado a termo no banheiro do hospital que integra o polo passivo – Procedência decretada – Cerceamento de defesa – Inexistência – Descabida a realização de prova técnica para comprovação de parto precipitado – Autora que deu entrada nas dependências do hospital no dia 06/09/2019, em trabalho de parto que ocorreu no dia seguinte, após cerca de 16 horas (no banheiro do hospital, sem a assistência de qualquer profissional, com a queda do recém-nascido decorrente da expulsão fetal) – Completa desassistência à parturiente e, bem assim, não observância dos critérios estabelecidos pela ANVISA (RDC 36/2008)– Dano moral configurado e que decorre do sofrimento resultante da violência obstétrica a que foi submetida a parturiente, que também se estendeu ao genitor ao presenciar o nascimento da filha em tais condições – Quantum indenizatório – Fixação pelo valor de R$ 40.000,00 que comporta majoração para a importância de R$ 60.000,00, corrigida monetariamente desde a data do sentenciamento – Juros de mora – Termo inicial – Data do evento danoso (Súmula 54 C. STJ)- Sentença reformada – Recurso dos autores provido, improvido o da ré (BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. AC: 10386117820198260506/SP 103861178.2019.8.26.0506. Relator: desembargador Salles Rossi. Diário Judiciário Eletrônico- DJe, 28 jul. 2021, grifo nosso). 

Observa-se, com base na decisão exposta, que o Tribunal de Justiça de São Paulo considerou existente a prática de violência obstétrica em detrimento da vítima (pela completa desassistência à mesma durante o parto, a não observância dos critérios estabelecidos pela ANVISA, pelo sofrimento do feto e também pelas circunstâncias presenciadas pelo genitor da criança), estipulando um valor remuneratório ou compensatório e considerando a responsabilização civil do hospital (TJSP, 2021). 

Além das questões suscitadas em sede doutrinária e jurisprudencial, consoante Nogueira e Sever (2016), muitas pacientes que se sentiram lesadas durante o procedimento de parto, demonstraram a necessidade de obtenção não apenas da reparação pelos danos ocasionados, mas também um reconhecimento de que tais danos foram provenientes de uma má conduta do profissional: 

No ajuizamento das ações com pedido de reparação dos danos decorrentes das condutas praticadas no parto, as mulheres demonstraram não apenas a demanda pela reparação dos danos sofridos, mas também a expectativa do reconhecimento de que os danos sofridos decorreram da conduta dos profissionais e não do parto em si, desejando, portanto, a força simbólica da decisão judicial na nomeação e no reconhecimento da violência institucional sofrida (NOGUEIRA; SEVER, 2016, p. 465). 

Portanto, consoante Nogueira e Sever (2016), para fins de combate à violência obstétrica, mister que se considere as consequências provenientes do instituto da responsabilidade civil, além da necessidade de um amplo debate social acerca dessas situações. Faz-se precípuo, sobretudo, que se tenha uma análise por parte do Poder Judiciário, levando-se em conta a situação de vulnerabilidade da mulher naquele momento do parto ou de um procedimento de aborto.  

4.1 CASO SHANTAL VERDELHO 

Compreende-se que existem inúmeros casos de violência obstétrica em tempos atuais, contudo, para fins exemplificativos, trata-se sobre o caso “Shantal Verdelho Vazam”, ocorrido em setembro de 2021, em São Paulo (RODRIGUES, 2021). 

Tem-se, nesse contexto, que a influenciadora digital Shantal Verdelho Vazam foi vítima de violência obstétrica por parte do médico Renato Kalil, durante o processo de parto de sua filha, Domênica. Na ocasião, ressalta-se que a família da influenciadora gravou diversos áudios durante a realização do parto, momentos esses onde o profissional da saúde gritava palavras de baixo calão em detrimento da paciente e a tratava com total desrespeito, expondo a intimidade da influenciadora: 

Mãe pela segunda vez há menos de três meses, a influencer Shantal Verdelho afirma que foi vítima de violência obstétrica durante o parto da filha mais nova, Domênica, nascida em setembro, em São Paulo. 

Em áudio de conversa íntima vazada nas redes sociais, a influencer acusou o médico obstetra Renato Kalil de usar palavrões contra ela durante o parto e expor sua intimidade para o pai da criança, Mateus Verdelho, durante o procedimento e também para terceiros. 

“Quando a gente assistia ao vídeo do parto, ele me xinga o trabalho de parto inteiro. Ele fala ‘Porra, faz força. Filha da mãe, ela não faz força direito. Viadinha. Que ódio. Não se mexe, porra’… depois que revi tudo, foi horrível”, comenta a influencer no áudio vazado. 

“Ele chamou meu marido e falou: ‘Olha aqui, toda arrebentada. Vou ter que dar um monte de pontos na perereca dela’. Ele falava de um jeito como ‘olha aí, onde você faz sexo, tá tudo fodido’. Ele não tinha que fazer isso. Ele nem sabe se eu tenho tamanha intimidade com meu marido”, contou (RODRIGUES, 2021). 

Em decorrência da comprovação nítida de prática de violência obstétrica, temse que a vítima procurou as autoridades públicas para fins de responsabilização civil e penal em detrimento do médico que realizou o procedimento de parto. Desse modo, ressaltou a influenciadora que o parto teve uma duração aproximada de 48 horas e foi totalmente desumanizado (RODRIGUES, 2021). 

Ademais, consoante a influenciadora, foram realizados exames de corpo de delito e foram juntados à denuncia todos os conteúdos presentes nos áudios gravados pela família da mesma. 

Diferentemente do resultado esperado, tem-se que, recentemente, a justiça inocentou o médico responsável pelo procedimento de parto da filha da influenciadora, demonstrando-se o descaso do Poder Público para com as vítimas de violência obstétrica: 

A Justiça de São Paulo rejeitou nesta segunda-feira (31) a denúncia do Ministério Público contra o médico obstetra Renato Kalil acusado de violência obstétrica durante o parto da segunda filha da influenciadora Shantal Verdelho, Domênica, ocorrido em setembro de 2021.  

O autor da decisão é o juiz da 25ª Vara Criminal de São Paulo, Carlos Alberto Corrêa de Almeida Oliveira. Na decisão, ele afirmou que não foram apresentadas provas de que tenha havido erro médico ou procedimento inadequado no parto. 

O médico Renato Kalil foi acusado do crime de lesão corporal leve, uma vez que a violência obstétrica não está tipificada na legislação brasileira como um delito. A denúncia foi apresentada no dia 25 de outubro pelas promotoras de Justiça Fabiana Damas e Silvia Chakian. 

Shantal fez exames de corpo de delito e, na análise do magistrado, “não foi constatado erro médico ou procedimento inadequado por parte do médico e que por si só tenham causado as lesões” (PANHO, 2022). 

Ademais, considerou o magistrado que no caso de Shantal não ficou claro o nexo causal existente entre as condutas errôneas do médico e as lesões verificadas na vítima. Com relação às “palavras de baixo calão” proferidas pelo médico, ressaltou o magistrado que o acusado não teve a intenção de causar sofrimento à vítima, sendo proferidas em razão das circunstâncias vivenciadas durante o parto: 

O juiz Carlos Alberto Corrêa de Almeida Oliveira avaliou que deveria estar evidente o “nexo causal entre a suposta manobra de Kristeller e as lesões verificadas na vítima, o que não foi estabelecido pelos senhores peritos. “Observa-se que foram três médicos que analisaram a conduta do investigado e o nexo causal não foi estabelecido”, destacou o magistrado. “Não há a demonstração de um nexo causal entre os ferimentos físicos sofridos pela vítima”, disse Oliveira. 

Sobre as expressões utilizadas durante o trabalho de parto, o juiz entendeu que o acusado não teve intenção de causar sofrimento a Shantal: “Não se verifica o ânimo (dolo) do investigado de causar sofrimento moral ou humilhações na pessoa da vítima com os palavrões proferidos”.  

Segundo ele, “o parto da filha da vítima foi uma situação tensa, demorada e complicada pelo que pode ser observado nas filmagens, com muito sofrimento físico por parte da parturiente” (PANHO, 2022). 

Ressalta-se, consoante Panho (2022) que a vítima analisará as ponderações do magistrado juntamente com seus advogados, para fins de se buscar uma responsabilização do médico para com tais danos ocasionados. 

4.2 O PROJETO DE LEI Nº 2.082/2022: PRINCIPAIS PONDERAÇÕES  

Consoante exposto, tem-se que o crime de violência obstétrica não se encontra previsto na legislação penal pátria, nem tampouco na legislação esparsa, sendo considerado, em muitos casos, como crime de lesão corporal em detrimento da vítima (GRECO, 2020). 

Desse modo, tem-se que, recentemente, foi criado o projeto de Lei nº 2.082/2022 de autoria da senadora Leila Barros. Nesse esteio, observa-se que o referido projeto (que se encontra em tramitação) visa alterar o Código Penal Brasileiro e a Lei nº 8.080/ 1990, para que se considere a prática de violência obstétrica como crime, além de se estabelecer sanções penais e procedimentos preventivos (SENADO FEDERAL, 2022). 

Segundo informações previstas no site do Senado Federal (2022), o mencionado projeto trata sobre a questão da imposição de sanções à prática de violência obstétrica, tornando tal conduta passível de reprimenda penal. Ademais, trata-se sobre o estabelecimento de procedimentos preventivos no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Dessa forma, o projeto nº 2.082/2022 prevê a possibilidade de aplicação de pena detenção, variando entre três meses até um ano. Contudo, caso a vítima seja menor de 18 anos ou maior de 40 anos, a punição do profissional da saúde poderá ser agravada, alcançando até dois anos de prisão. 

Nesse contexto, observa-se que o mencionado projeto prevê também alterações no âmbito conceitual acerca da violência obstétrica: 

O texto altera o Código Penal (Decreto-Lei 2.848, de 1940) para definir violência obstétrica como “qualquer conduta que seja direcionada à mulher durante o trabalho de parto, parto ou puerpério, praticada sem consentimento, desrespeitando sua autonomia ou feita em desacordo com procedimentos estabelecidos pelo Ministério da Saúde e que lhe cause dor, dano ou sofrimento desnecessário”. 

A proposta adiciona à Lei do SUS (Lei 8.080, de 1990) a determinação para que o sistema realize ações e campanhas para combater a prática (SENADO FEDERAL, 2022). 

Em âmbito de justificativa acerca da criação do referido projeto de lei, tem-se que a senadora enfatiza que teve como subsídio o conteúdo presente na “Declaração de Prevenção e Eliminação de Abusos, Desrespeito e Maus-Tratos durante o Parto nas Instituições de Saúde”, criada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), no ano de 2014. Nesse contexto, ressalta-se que a referida declaração trazia em seu bojo a necessidade de estabelecer um diálogo, políticas públicas e uma maior mobilização sobre o tema em países democráticos (SENADO FEDERAL, 2022). 

Com relação à ampliação conceitual do termo “violência obstétrica”, ponderou a senadora: 

‘O conceito de violência obstétrica construído no projeto se assemelha ao previsto na Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres’, explica a senadora, citando o modelo que já é usado nas legislações de países como Argentina, Venezuela, Itália, Espanha e Portugal (SENADO FEDERAL, 2022). 

Aduz-se que o referido projeto se encontra, consoante informações do Senado (2022), em fase de despacho perante o Plenário do Senado Federal, podendo ser movimentado em breve. 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

 Tendo como subsídio toda a pesquisa científica realizada, pode-se compreender que a violência obstétrica abrange uma série de atos e violações para com as mulheres que se encontram em trabalho de parto ou em processo de abortamento. Tem-se aqui violações que atingem a esfera física, psicológica ou sexual da mulher que se encontra em situação de extrema vulnerabilidade. Ademais, considera-se que tais violações muitas vezes não atingem apenas às mulheres, mas também os nascituros, os genitores e demais parentes e acompanhantes daquela pessoa. 

Conforme visto, as mulheres em situação de parto ou de processo de aborto se encontram em um dos momentos mais delicados de suas vidas, ou seja, um momento que deve ser respeitado e tratado pelos profissionais da saúde com toda ética e respeito possível. Contudo, a realidade vislumbrada hodiernamente, em muito se difere do esperado. 

Dentre os casos analisados, pode-se observar que o caso de violência obstétrica vivenciado pela influenciadora digital, Shantal Verdelho, se constitui como um exemplo recorrente nos hospitais particulares existentes no país. Desse modo, tem-se que milhares de mulheres são constantemente violadas e agredidas em um momento que deveria ser respeitoso e pautado por princípios e valores éticos. 

Ademais, conforme visto, não há uma tipificação penal para enquadrar a prática da violência obstétrica em tempos modernos, tampouco uma legislação específica que venha a estabelecer sanções para tal conduta. Desse modo, tem-se que as vítimas apenas podem recorrer no âmbito cível (por intermédio da responsabilização civil do hospital e do profissional médico), desde que se comprove a existência de uma conduta ilícita, de um dano e do nexo causal existente entre tal conduta e o dano auferido. Ademais, na esfera penal, pode-se observar que os raros casos são considerados como de prática de lesão corporal (de natureza leve, grave ou gravíssima). 

Tratam-se, sobretudo, de questões que são amplamente abordadas pela doutrina majoritária, haja vista que se constituem como nítidas violações aos direitos humanos das mulheres, ao direito à vida, à saúde e também ao princípio da dignidade humana.  

Portanto, mister que o Estado atue de modo positivo, por intermédio da criação de políticas e medidas públicas que possam punir tais profissionais médicos e que sirvam de acolhimento às vítimas de violência obstétrica. Ademais, deve-se estabelecer sanções graves para os médicos e profissionais da saúde que atuam na contramão dos valores e princípios éticos. 

Deve-se, sobretudo, ter respeito pelas mulheres parturientes, levando-se em consideração todos os direitos, valores e princípios fundamentais pertinentes, não instituindo apenas um valor para fins de reparação moral, mas também sanções penais, para que tal prática seja cada dia mais rechaçada e recriminada pela sociedade atual. 

Por fim, coaduna-se com o posicionamento doutrinário pátrio, qual seja, que o Poder Judiciário ainda necessita de estabelecer um tratamento mais severo para os casos de violência obstétrica, principalmente no âmbito punitivo e também no âmbito de resposta às vítimas, em consonância com os princípios e direitos fundamentais vigentes. 

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1, 2Acadêmicas do curso de Direito do Centro Universitário UNA- Campus Bom Despacho/MG.
Artigo apresentado como requisito parcial para a conclusão do curso de Graduação em Direito do Centro Universitário UNA. 2022. Orientadora: Larissa Gabrielle Braga e Silva, mestre em Direito.