A INCONSTITUCIONALIDADE DO VETO AO CASAMENTO HOMOAFETIVO

THE UNCONSTITUTIONALITY OF THE VETO ON SAME-AFFECTIVE MARRIAGEHE

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202504112152


Sarah Kerstin Alves Estevão1
Wania Campoli Alves2


RESUMO

Em 2023, foi apresentado na Câmara dos Deputados um projeto de lei que propõe a proibição do reconhecimento do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo no Brasil. O presente artigo se dedica a analisar e expor os fundamentos constitucionais que tornam tal projeto inconstitucional, buscando demonstrar que sua aprovação violaria direitos fundamentais previstos pela Constituição Federal. O casamento entre pessoas do mesmo sexo é, assim, uma questão de igualdade de direitos e não pode ser alvo de discriminação ou exclusão. Com base no princípio da dignidade da pessoa humana, assegurado em nossa Constituição Cidadã, que defende, por meio de seus princípios basilares, que todos os cidadãos, independentemente de sua orientação sexual, devem ter acesso aos mesmos direitos civis, incluindo o direito ao casamento. Por fim, a aprovação do projeto de lei em questão não só representaria uma afronta aos direitos fundamentais, mas também prejudicaria os avanços sociais e jurídicos conquistados ao longo dos anos, refletindo um retrocesso em relação ao reconhecimento e respeito pela diversidade sexual no Brasil.

Palavras-Chave: Casamento homoafetivo. Igualdade. Homossexuais.

ABSTRACT

In 2023, a bill was introduced in the Chamber of Deputies that proposes to prohibit the recognition of civil marriage between people of the same sex in Brazil. This article is dedicated to analyzing and exposing the constitutional grounds that make such a bill unconstitutional, seeking to demonstrate that its approval would violate fundamental rights provided for in the Federal Constitution. Same-sex marriage is, therefore, a matter of equal rights and cannot be the target of discrimination or exclusion. Based on the principle of human dignity, guaranteed in our Citizen Constitution, which defends, through its basic principles, that all citizens, regardless of their sexual orientation, must have access to the same civil rights, including the right to marriage. Finally, the approval of the bill in question would not only represent an affront to fundamental rights, but would also undermine the social and legal advances achieved over the years, reflecting a setback in relation to the recognition and respect for sexual diversity in Brazil.

Keywords: Samesex marriage. Equality. Homosexuals.

1 INTRODUÇÃO

A Constituição Cidadã trouxe consigo os princípios de igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana, tutelando os direitos das minorias como nunca antes no Brasil. No entanto, é notório que, quando se trata dos direitos dessas minorias, a Constituição muitas vezes é esquecida e desconsiderada.

Além da precária regulamentação dos direitos das minorias, há uma constante ameaça a esses direitos, o que resulta em impunidade para aqueles que os violam e em insegurança jurídica para quem deveria estar protegido.

Esse cenário justifica a propositura do Projeto de Lei, manifestamente inconstitucional, que visa proibir o reconhecimento do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo no Brasil.

2 DA CONSTITUIÇÃO CIDADÃ

É possível citar mais de um princípio constitucional que assegure o direito de casamento civil a casais homoafetivos, tais como: igualdade, dignidade da pessoa humana e liberdade. O princípio da igualdade, no artigo 5º, caput, da Constituição Federal, estabelece:

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.” (Brasil, 1988).

É importante ressaltar que a igualdade não se restringe apenas ao conceito formal, mas também abrange a ideia de igualdade material, que trata de forma igual os iguais e de forma desigual os desiguais. Nesse sentido, mesmo que o texto formal fosse aplicado de forma eficaz, ainda seria necessário implementar políticas públicas para assegurar a igualdade material, proporcionando paridade de armas a esses cidadãos discriminados pela sociedade. A igualdade material busca assegurar que todos tenham as mesmas oportunidades e condições de exercício de seus direitos, eliminando desigualdades fáticas.

Já o princípio da dignidade da pessoa humana, no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, dispõe que, mais do que um direito à vida, a pessoa tem direito a uma existência digna, respeitosa e honrosa.

No Brasil atual, pessoas homossexuais são “cidadãos de papel”, termo utilizado por Gilberto Dimenstein para conceituar aqueles que possuem direitos apenas no papel, direitos adquiridos, mas não usufruídos.

Ainda, o princípio da liberdade, se estende além da simples liberdade de ir e vir, abarcando também a liberdade de escolhas, expressão, manifestação e pensamento. No contexto das relações afetivas e familiares, esse princípio é crucial para garantir que cada indivíduo tenha a liberdade de escolher seu parceiro e de viver sua afetividade de maneira plena, sem imposições ou discriminações. No mais, a liberdade de escolha está intimamente relacionada ao direito de cada pessoa decidir com quem deseja compartilhar sua vida, sem que essa decisão seja cerceada por normas que discriminam com base na orientação sexual.

Além disso, é importante ressaltar o disposto no artigo 5º, X, da CRFB/88, que assegura a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas.

Ademais, esses direitos estão previstos no rol de garantias individuais da Carta Magna e, conforme o artigo 60, § 4º, inciso IV, da CRFB/88, não podem ser modificados por emenda que vise sua abolição ou restrição, sendo, portanto, cláusulas pétreas.

3 LEGISLAÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO

A história da legislação brasileira sobre o casamento homoafetivo é caracterizada por diversas lutas e avanços significativos ao longo dos anos. Nos anos 1990 e 2000, as discussões sobre o reconhecimento das uniões homoafetivas começaram a ganhar força, com iniciativas como o projeto de lei apresentado pela deputada Marta Suplicy em 1995, que visava regulamentar a união civil entre pessoas do mesmo sexo, mas que não avançou no Congresso.

Em 2004, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deu um passo importante ao permitir a adoção de crianças por casais homoafetivos.

Em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu por unanimidade a união estável entre pessoas do mesmo sexo, equiparando-a à união estável heteroafetiva, fundamentado nos princípios de igualdade e dignidade humana. Dois anos depois, em 2013, o CNJ publicou a Resolução 175, que proíbe os cartórios de recusarem a celebração de casamento civil e a conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo. Essa resolução efetivamente legalizou o casamento civil homoafetivo em todo o Brasil.

Em 2018, o STF avançou ainda mais ao decidir que pessoas transgêneros podem alterar seu nome e gênero no registro civil, independentemente de cirurgia de redesignação sexual ou decisão judicial, ampliando os direitos de identidade de gênero no país. E, no ano de 2019, fixou a tese de que, enquanto o Congresso Nacional não aprovar uma lei específica, as condutas homofóbicas e transfóbicas devem ser equiparadas aos crimes de racismo.

4 AUSÊNCIA DE LEI ESPECÍFICA

Segundo Marília Moschkovich, a inexistência de uma legislação específica abre brechas para que grupos conservadores, sejam eles de orientação católica ou evangélica, questionem a validade da união homoafetiva. Ela menciona um caso ocorrido em Santa Catarina, onde o promotor Henrique Limongi contestou dezenas de pedidos de casamento em Florianópolis, utilizando argumentos semelhantes aos dos parlamentares que atualmente defendem a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo (Moschkovich, Marília).

Sobre o tema e outras questões pertinentes à comunidade LGBTQIA+, o senador Fabiano Contarato, do PT do Espírito Santo, apresentou um relato no ano de 2021 à Comissão de Constituição e Justiça. Em sua exposição, destacou as dificuldades enfrentadas para assegurar os direitos dessa parcela da população por meio de legislações aprovadas no Congresso Nacional. Segundo Contarato:

Esta Casa fecha, constantemente, as portas para a população LGBTQIA+. Prova disso é que todos os direitos dessa população não se deram aqui por lei, direito ao casamento, direito à adoção, direito ao nome social, direito à declaração de Imposto de Renda, direito ao recebimento de pensão, direito de doar sangue e criminalização da homofobia. São alguns direitos. Nenhum se deu pela via adequada para essa minoria – que eu não chamo de minoria; eu chamo de maioria menorizada. (Contarato, 2021)

O Congresso Nacional tem se revelado uma barreira para o progresso dos direitos da comunidade LGBTQIA+. Na falta de uma legislação específica, o sistema judiciário tem sido o único recurso acessível para reivindicações. Foi por meio de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, que a LGBTfobia foi equiparada ao racismo no Brasil. Além disso, são os mecanismos judiciais que possibilitam a casais LGBTQIA+ a oficialização do casamento e a adoção de filhos. “O Congresso precisa corrigir sua negligência”, afirma o senador Fabiano Contarato, um dos principais defensores das causas LGBTQIA+ no Senado Federal.

Contarato, que enfrentou episódios de homofobia durante seu trabalho na CPI da Covid, também teve que recorrer ao sistema judiciário para adotar seus filhos Gabriel e Mariana junto com seu parceiro Rosrig, com quem está casado há mais de uma década. Em entrevista à Agência Pública, ele declarou: “Minha realidade é muito diferente daquela vivida por pessoas que desconhecem seus direitos ou não têm recursos para contestar decisões injustas, que prevalecem em todo o país”, ou seja, apesar dessas adversidades, se considera relativamente favorecido por ser um senador branco e cisgênero.

5 PROJETO DE LEI 580 DE 2007

O deputado Clodovil Hernandes, apresentou o Projeto de Lei 580/07, propondo a alteração da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, para permitir que casais homossexuais constituam uma união contratual. A justificativa para o projeto na época era oferecer à população homossexual os mesmos mecanismos legais que a população heterossexual já possuía em questões patrimoniais.

Entretanto, no ano de 2023, o deputado Pastor Eurico relatou o projeto na Comissão da Família e apensou a ele o Projeto de Lei 5167/09, de autoria do ex-deputado Capitão Assumção, que visa proibir o reconhecimento do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. A aprovação da proposta está em desacordo com a jurisprudência vigente no Brasil. Desde 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem afirmado o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como uma entidade familiar. O Pastor Eurico recorreu a trechos bíblicos para argumentar que as culturas antigas consideravam a homossexualidade como um fenômeno reprovável e sustentou que o casamento tem como objetivo principal a procriação. Adicionalmente, o relator qualificou a remoção da homossexualidade da lista de transtornos mentais do DSM pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) em 1973 como “um lamentável desfecho ocorrido quando a militância político-ideológica prevaleceu sobre a ciência”.

Atualmente, na Comissão de Direitos Humanos, a deputada Erika Hilton apresentará um parecer contrário ao relatório do Pastor Eurico, buscando restaurar o objetivo original do projeto: a legalização do casamento homoafetivo e a rejeição dos projetos que o proíbem.

6 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

Em que pese o Projeto de Lei ser manifestamente inconstitucional, caso seja convertido em lei, poderá ser questionado por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) perante o Supremo Tribunal Federal (STF). Pois é o instrumento de controle concentrado que tem como objetivo impugnar leis ou atos normativos, tanto federais quanto estaduais, que violem a Constituição Federal.

Além disso, caso o STF decida, em sede de ADI, pela inconstitucionalidade do referido projeto de lei, essa decisão terá efeitos erga omnes, ou seja, será aplicada a todos, e terá efeitos vinculantes para a administração pública, tanto direta quanto indireta, além de estender-se aos demais órgãos do poder judiciário. Dessa forma, a eventual declaração de inconstitucionalidade pelo STF garantirá que a norma não seja aplicada, preservando os direitos constitucionais dos cidadãos e assegurando a uniformidade e a estabilidade do ordenamento jurídico no Brasil.

7 ESTADO LAICO

Se o estado é laico, por que ainda são apresentados projetos de lei visando a restrição de direitos com fundamentação religiosa? Segundo Paulo Casella, professor da Faculdade de Direito (FD) da USP e coordenador do Centro de Estudos sobre a Proteção Internacional de Minorias:

Acho muito importante também deixar claro que as uniões homoafetivas não podem ser avaliadas do ponto de vista de convicção religiosa de ninguém, porque isso diz respeito a direitos civis, direitos patrimoniais, à organização da vida, organização de família, organização de laços afetivos entre pessoas, e só diz respeito àquelas pessoas que se encaixam nessa situação de uniões homoafetivas. O Estado não pode impor um ou outro modelo de convicção religiosa. O Estado tem que dar parâmetros para as pessoas poderem organizar as suas vidas pessoais. (Casella, 2023)

Para ele, os deputados federais perdem tempo e energia com uma questão que já está resolvida no direito civil brasileiro, em vez de se dedicarem a assuntos mais urgentes, como os alarmantes números da violência de gênero. Ainda sobre este tema, até mesmo o deputado Marx Beltrão, conhecido por suas posições conservadoras e de direita, declarou:

Senhor presidente, está na Constituição Federal: todos são iguais perante a lei. E isso é indiscutível… Eu custo a acreditar que esta comissão está debatendo aqui o que já foi discutido, debatido e decidido no Supremo Tribunal Federal 12 anos atrás, (está) decidido! Todos são iguais perante a lei. Eu vejo aqui muito debate usando como pano de fundo religião, crença, igreja… Nós não estamos aqui na igreja, estamos no parlamento brasileiro, e pra discutir direitos. Eu sou de direita, eu tenho família, sou casado, tenho três filhos, eu sou católico atuante, mas eu defendo o direito igual para todos… Todos são iguais perante a lei… Todos! É como eu disse, não estamos aqui discutindo se é a religião A ou B deve prevalecer ou não, estamos discutindo direitos adquiridos como inclusão em plano de saúde, herança, divisão de bens, separação, direitos sucessórios, e o imposto que todos pagam, que é igual ao de todos… Ninguém paga imposto aqui maior do que ninguém, todos têm o mesmo direito e é isso que a gente tem que debater… O direito das pessoas, é isso que a gente tem que debater… Eu vejo aqui, presidente, infelizmente, muito discurso de muita forma machista, muitas vezes, discursos como se fossem leões, e entre quatro paredes, muitas vezes esses leões fazem sussurros de gatinhos. (Beltrão, 2023)

A persistência de projetos de lei fundamentados em crenças religiosas, que buscam restringir direitos civis, é um reflexo de uma falta de compreensão sobre a laicidade do Estado e os direitos constitucionais garantidos a todos os cidadãos. Como ressaltado por Paulo Casella, as uniões homoafetivas são questões de direitos civis e não podem ser analisadas sob a ótica religiosa. A Constituição Federal já assegura a igualdade de direitos para todos, e a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já se posicionou favoravelmente à união entre pessoas do mesmo sexo. Assim, qualquer tentativa de revogar esse direito é não apenas uma afronta ao princípio da laicidade, mas também um desvio de foco das questões mais urgentes que demandam a atenção dos legisladores, como a violência de gênero.

A declaração do deputado Marx Beltrão sublinha a importância de respeitar os direitos adquiridos e a igualdade de tratamento para todos, independentemente de sua orientação sexual, religião ou crença. A interferência de ideologias religiosas no campo dos direitos civis viola a ideia de um Estado que deve proteger a liberdade e a dignidade de cada indivíduo. Portanto, é fundamental que o Estado garanta a igualdade de direitos, sem imposições de crenças, permitindo que cada cidadão viva de acordo com suas escolhas e identidade.

8 BRASIL PERMANECE NO TOPO DA LISTA DE PAÍSES COM MAIS ASSASSINATOS DE PESSOAS LGBT+

O Dossiê de LGBTIfobia Letal reportou que, ao longo de 2023, foram registradas 230 mortes violentas de pessoas LGBT no Brasil. Entre essas mortes, 184 foram assassinatos, 18 suicídios e 28 resultaram de outras causas.

Figura 1: Número de mortes violentas de LGBTI+ no Brasil entre 2000 e 2023.

Fonte: Acontece LGBTI+, Grupo Gay da Bahia, Observatório de mortes e violências contra LGBTI+ no Brasil, 2023.

Figura 2: Orientação Sexual e Identidade de Gênero dos LGBT+ mortos no Brasil, 2023.

Fonte: Acontece LGBTI+, Grupo Gay da Bahia, Observatório de mortes e violências contra LGBTI+ no Brasil, 2023.

Figura 3: Tipificação das mortes violentas de LGBTI+ no Brasil, por segmento, em 2023.

Fonte: Acontece LGBTI+, Grupo Gay da Bahia, Observatório de mortes e violências contra LGBTI+ no Brasil, 2023.

Figura 4: Faixa etária das vítimas.

Fonte: Acontece LGBTI+, Grupo Gay da Bahia, Observatório de mortes e violências contra LGBTI+ no Brasil, 2023.

A organização indica que, embora o número atual já represente uma significativa perda de vidas, considera-se que ele não reflete a totalidade dos casos, dado que a pesquisa está condicionada a diversos fatores, como o reconhecimento da identidade de gênero e da orientação sexual das vítimas por parte dos veículos de comunicação responsáveis pela divulgação dos óbitos. A carência de dados governamentais também contribui para a presunção de que muitos casos ainda permanecem não registrados.

Diante o exposto, no contexto da banalidade do mal, como abordado por Hannah Arendt ao acompanhar o julgamento de Eichmann, ela argumenta que o mal que ele praticava não era um mal demoníaco, mas sim um mal rotineiro que se tornou parte do trabalho diário dos oficiais nazistas. Em outras palavras, a banalidade do mal refere-se a um mal que se tornou comum de ser praticado. Nesse sentido, as pessoas estão tão acostumadas com a discriminação que não dão a devida importância aos casos de homofobia. Embora a homofobia tenha sido equiparada ao racismo pelo Supremo Tribunal Federal, é muito comum conhecer uma ou mais pessoas preconceituosas no círculo de convivência.

Muitas vezes, não são os intolerantes que têm vergonha de demonstrar sua ignorância, mas sim os próprios discriminados, que frequentemente crescem sem respeito próprio, pois isso é o que é cultivado na sociedade.

9.1 Mortes violentas motivadas por preconceito

De acordo com o relatório do Observatório de Mortes e Violência contra LGBT, entre as ocorrências registradas em 2023, foram selecionados casos específicos que evidenciam a intensidade de agressões sofridas pelas pessoas LGBTI+. Tais incidentes ilustram práticas de extrema violência e tortura, nas quais os agressores buscam, de maneira intencional, expor de forma depreciativa as identidades de gênero e orientações sexuais das vítimas. Essas práticas, além de desumanizarem os indivíduos, resultam em crimes de caráter LGBTIfóbico, perpetrados de modo fatal, expressando uma grave violação dos direitos humanos e uma intolerância que culmina na violência extrema.

9.2 Ana Caroline Sousa Câmpelo

Ana Caroline Sousa Câmpelo, uma jovem lésbica de 21 anos, foi assassinada em Maranhãozinho (MA) de maneira brutal: a pele de seu rosto, couro cabeludo, olhos e orelhas foram retirados.

Ela havia se mudado recentemente para a cidade, onde passou a viver com sua parceira, alimentando o sonho de ingressar no Corpo de Bombeiros Militar do Maranhão. Esse projeto de vida, contudo, foi tragicamente interrompido em um crime que, segundo familiares, amigos e a linha de investigação da Superintendência de Polícia Civil do Interior (SPCI), teria motivação lesbofóbica.

Em resposta ao assassinato de Ana Caroline e em protesto contra a LGBTIfobia, manifestações e atos públicos ocorreram em diversos estados do país, demandando justiça e o fim da violência motivada por preconceito.

9.3 Carlos Bahia dos Santos

Carlos Bahia dos Santos, soldado de 31 anos e membro da Polícia Militar em Açailândia (PM/MA), relatou ter sido alvo de agressões, atos de homofobia e tortura praticados por superiores no ambiente de trabalho.

Após apresentar denúncia ao Ministério Público do Maranhão (MPMA), Carlos não obteve proteção ou resposta adequada; em vez disso, enfrentou retaliações internas por ter denunciado as agressões.

Frente à falta de apoio institucional e ao sofrimento emocional agravado pela perseguição e negligência, Carlos tentou suicídio em 29 de julho, vindo a falecer após permanecer 13 dias internado em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

Durante todo o processo, a Rede de Cidadania de Açailândia foi a única entidade a prestar auxílio ao militar, apoiando-o na busca por justiça e segurança. Para essa organização, as ações dos superiores de Carlos não se limitam aos crimes de lesão corporal, injúria homofóbica e abuso de poder denunciados, mas configuram também práticas de tortura e incitação ao suicídio.

9.4 Julia Nicolly Moreira da Silva

Julia Nicolly Moreira da Silva, uma mulher trans de 34 anos que trabalhava como técnica de enfermagem, foi brutalmente assassinada em sua residência, onde foi encontrada amordaçada e com múltiplas facadas, principalmente na região do pescoço e das costas, altura do pulmão.

10 CONCLUSÃO

A partir do presente trabalho, pode-se concluir que o descaso, a indiferença e o desdém em relação aos direitos dos homossexuais no Brasil manifestam-se em diferentes aspectos, tais como a sugestão de leis que visam restringir direitos essenciais dessa parcela da população, como os direitos decorrentes do casamento, violando princípios constitucionais de alta relevância, como os da igualdade, dignidade da pessoa humana e isonomia. Todos esses aspectos são fundamentados em argumentos que, em sua maioria, violam outro princípio basilar da Constituição, que é a laicidade do Estado.

Vivemos em uma sociedade que se acostumou com a prática da discriminação, mas o direito existe para regular as relações pessoais e, para isso, deve proteger os mais vulneráveis, de modo a fornecer-lhes paridade de armas. Não é minimamente aceitável que deputados cometam atos de intolerância e sejam vistos como exemplos para aqueles que pensam de forma igualmente criminosa.

É inaceitável que se utilizem de projetos de lei para tentar implementar medidas que apenas aumentarão o abismo entre a igualdade de direitos daqueles em situações de vulnerabilidade, enquanto deveriam se concentrar em propostas de segurança para essa parcela da população que é cotidianamente violentada, seja física ou psicologicamente.

Apesar de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter decidido, há mais de uma década, sobre o casamento homoafetivo, ainda existem pessoas desperdiçando tempo e recursos em propostas discriminatórias. Todos os direitos conquistados pela comunidade LGBTI+ foram obtidos pelo Judiciário, evidenciando como o Poder Legislativo atua de forma discriminatória.

O direito deve evoluir para acompanhar as mudanças na sociedade; caso contrário, os direitos continuarão a ser violados. O sistema necessita de leis mais rigorosas, bem como da efetiva aplicação das normas já existentes, e de políticas públicas de conscientização para impedir que pensamentos retrógrados e discriminatórios continuem a perdurar.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. 6. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

LOURES, Vinicius. Câmara dos Deputados. Comissão aprova projeto que proíbe o casamento entre pessoas do mesmo sexo. 2023. Câmara dos Deputados, 10 out. 2023. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1006272-comissao-aprova-projeto-que-proibe-o-casamento-entre-pessoas-do-mesmo-sexo/#:~:text=Comissão%20aprova%20projeto%20que%20proíbe%20o%20casamento%20entre%20pessoas%20do%20mesmo%20sexo,-Texto%20ainda%20precisa&text=A%20Comissão%20de%20Previdência%2C%20Assistência,entre%20pessoas%20do%20mesmo%20sexo. Acesso em: 21 jul. 2024.

BRASIL. Código Civil de 1916. Diário Oficial da União, 1916.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 06 jul. 2024.

CORREIA, Mariama. O Congresso precisa corrigir sua negligência com direitos LGBTQIA+, afirma Fabiano Contarato. Brasil de Fato, 14 jun. 2022. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/06/14/o-congresso-precisa-corrigir-sua-negligencia-com-direitos-lgbtqia-afirma-fabiano-contarato. Acesso em: 19 jul. 2024.

DIMENSTEIN, Gilberto. Cidadão de Papel: A Infância, a Adolescência e os Direitos Humanos no Brasil. 5. ed. São Paulo: Ática, 1994.

OLIVEIRA, Érika. Histórico da regularização das uniões homoafetivas no brasil. JusBrasil, 09 set. 2019. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/historico-da-regularizacao-das-unioes-homoafetivas-no-brasil/754291293. Acesso em: 16 jul. 2024.

OBSERVATÓRIO MORTES E VIOLÊNCIAS LGBT+ BRASIL. Dossiê: Mortes LGBT 2023. Disponível em: https://observatoriomorteseviolenciaslgbtibrasil.org/dossie/mortes-lgbt-2023/. Acesso em: 19 jul. 2024.

PACHECO, M, et al. A trajetória da legalização do casamento homoafetivo no século 21: análise do PL 508/07. Sigalei, 19 dez. 2023.  Disponível em: https://www.sigalei.com.br/blog/a-trajetoria-da-legalizacao-do-casamento-homoafetivo-no-seculo-21-analise-do-pl-508-07. Acesso em: 19 jul. 2024.

RODRIGUES, Henrique. Vídeo: Deputado de direita faz discurso contra homofobia de evangélicos e viraliza. Revista Fórum, 19 set. 2023. Disponível em: https://revistaforum.com.br/politica/2023/9/19/video-deputado-de-direita-faz-discurso-contra-homofobia-de-evangelicos-viraliza-144384.html.  Acesso em: 19 jul. 2024.

SALLES, Silvana. Por que o casamento homoafetivo voltou a ser assunto no Brasil? Jornal da USP, São Paulo, 2024. Disponível em: https://jornal.usp.br/diversidade/por-que-o-casamento-homoafetivo-voltou-a-ser-assunto-no-brasil/. Acesso em: 16 jul. 2024.


1Graduanda em direito, Centro Universitário de Santa Fé do Sul, SP/UNIFUNEC, sarahestevaotrab@gmail.com.

2Docente do Centro Universitário de Santa Fé do Sul – SP, UNIFUNEC, Mestre em  Sistema Constitucional de Direitos e Garantias, waniacampoli@yahoo.com.br.

Trabalho de conclusão de curso, apresentado ao curso de direito do Centro Universitário de Santa Fé do Sul, SP, para obtenção do título de Bacharel de Direito. Área de Concentração: Direito Constitucional.