REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.11433002
Willian Silva Martins1
Vânia Cristina Costa de Vasconcelos Lima Carvalho2
Resumo
Introdução: O Método Canguru é um modelo de atenção que visa o cuidado qualificado e humanizado ao recém-nascido pré-termo, durante o pré-natal, parto e pós parto. O método se divide em três etapas, sendo a primeira e segunda realizada em ambiente hospitalar. A terceira etapa inicia com a alta hospitalar e se encerra quando o RN alcança o peso de 2.500g. Metodologia: trata-se de revisão integrativa de literatura de publicações entre 2010 e 2023, em português e inglês, realizada nas bases de dados Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e Scientific Electronic Library Online (SciELO). Foram empregados os descritores a partir dos descritores “Método Canguru” e “Kangaroo Method”. Resultados: A pesquisa encontrou 1146 resultados (BVS n= 994; SciELO n = 152). Na primeira fase de seleção, pela leitura do título, foram selecionados 905 artigos, após a leitura do resumo restaram 202, dos quais 169 foram excluídos por não atender aos critérios de inclusão. Após a leitura na íntegra de 33 artigos e aplicação dos critérios de exclusão restaram 13 estudos que foram incluídos nessa revisão. Os estudos revelaram que os principais desafios para a implantação da terceira etapa do método canguru incluem a falta de capacitação profissional e a ausência de um desenho de rede que permita uma melhor comunicação entre a atenção primária e os demais níveis. Conclusão: A efetividade da terceira etapa do Método Canguru demanda o aprimoramento da rede de atenção no que tange a referência e contrarreferência, a capacitação dos profissionais de saúde na atenção secundária e primária bem como a instrução dos pais nos cuidados exigidos pelo recém-nascido em domicílio.
Palavras-chave: Método Canguru, Recém-Nascido Prematuro, Atenção Primária à Saúde.
1 INTRODUÇÃO
A mortalidade neonatal é um problema importante no mundo, a OMS (Organização Mundial de Saúde) aponta que 2,4 milhões de crianças morreram no primeiro mês de vida em 2020, das quais 75% ocorrem ainda durante a primeira semana de vida. Em 2019, um milhão de recém-nascidos morreram ainda no primeiro dia de vida (WHO, 2023). No Brasil, foram contabilizados 303.260 óbitos neonatais no período de 2007 a 2017, com a taxa média de mortalidade neonatal de 9,46 por 1.000 nascidos vivos. A taxa média de mortalidade neonatal precoce, ou seja, que ocorre de 0 a 6 dias de vida, foi de 7,20 por 1.000. Já a tardia, aquela que ocorre de 7 a 27 dias de vida, foi 2,26 por 1.000 (BERNARDINO, 2022).
As principais causas de mortalidade neonatal decorrem da prematuridade/baixo peso de nascimento (BPN) e de anomalias congênitas. Entende-se por recém-nascido pré-termo aquele que nasce antes de completar 37 semanas de idade gestacional e o recém-nascido de baixo peso é aquele que nasce com menos de 2.500g. Entende-se por mortes evitáveis aquelas que poderiam ter sido prevenidas na presença de assistência à saúde tais como imunização, atenção adequada na gestação, no parto e ao recém-nascido; diagnóstico e tratamento adequado e ações adequadas de promoção da saúde (MALTA et al., 2019).
Em análise das causas evitáveis de mortalidade neonatal no Brasil, Prezotto et al. (2023) aponta que 76,85% das mortes neonatais precoces e 73,18% das mortes neonatais tardias entre 2000 e 2018 seriam evitáveis com melhores serviços de atenção à saúde. O autor também aponta que as 3 principais causas evitáveis no período foram síndrome da angústia respiratória, septicemia bacteriana do recém-nascido e asfixia ao nascer. A publicação Saúde Brasil 2022 do Ministério da Saúde (MS) corrobora esse achado ao mostrar que no ano de 2020, 75,1% das mortes neonatais precoces e 71,2% das mortes neonatais tardias eram evitáveis (BRASIL, 2023).
Uma iniciativa para redução da mortalidade neonatal é o Método Canguru (MC) que é um modelo de atenção que visa o cuidado qualificado e humanizado durante o pré-natal, parto e pós parto, tanto para o recém-nascido, quanto para sua família. A abrangência do MC inicia no pré-natal quando é identificado o maior risco do recém-nascido para baixo peso e/ou prematuridade, perpassa o parto, a internação do RN até a alta hospitalar e se encerra quando o RN alcança o peso de 2.500g (BRASIL, 2018).
As origens do Método Canguru
As origens do MC remontam a 1978 no Instituto Materno Infantil em Bogotá, Colômbia. O Método Mãe Canguru foi idealizado como uma resposta aos recursos limitados em saúde e a superlotação de serviços neonatais que resultam em alta morbidade e mortalidade em prematuros na Colômbia. O cuidado pele-a-pele (skin-to-skin care) era um dos pilares do método, cujas vantagens incluem a redução da separação entre o RN e seus pais, a melhoria do controle térmico do RN, o estímulo ao aleitamento materno precoce, a redução do risco de infecções hospitalares e da mortalidade neonatal. Com o sucesso da iniciativa, outros países passaram a adotar modelos similares (CHARPAK et al., 1996).
Método Canguru: uma política pública no Brasil
No Brasil o MC iniciou oficialmente no ano 2000 quando foi publicada a Portaria nº 693 do MS, que aprovou a Norma de Orientação para a Implantação do MC no país, prevendo diretrizes de cuidado e atenção aos recém-nascidos prematuros internados em unidades neonatais. Essa regulamentação foi atualizada em 2007 pela Portaria 1.683 do MS e encontra-se vigente. As estratégias de intervenção preveem o cuidado individualizado e singular através de medidas como: atenção especializada em ambulatório e internação da gestante, a internação do recém-nascido, o contato pele-a-pele precoce e prolongado (posição canguru), o controle ambiental das unidades neonatais e o aleitamento materno (BRASIL, 2018).
Atualmente, o MC está inserido no contexto da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança do Ministério da Saúde – PNAISC instituída através da Portaria nº 1.130 de 2015 do MS. Desde a sua implementação no Brasil, o MC é constituído em três etapas.
A primeira etapa inicia no pré-natal na identificação do RN de risco, isto é, aqueles cujo peso de nascimento é abaixo de 1500g e/ou idade gestacional (IG) menor que 34 semanas e de extremo risco os que nasceram com menos de 1000g e/ou IG inferior a 28 semanas. Após o parto, o RN fica internado em Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN) e/ou na Unidade de Cuidado Intermediário Neonatal Convencional (UCINCo). Nesse período, os pais tem acesso irrestrito ao RN e é incentivada a posição canguru e o aleitamento materno (BRASIL, 2018).
A segunda etapa ocorre quando o RN é transferido para a Unidade de Cuidados Intermediários Canguru (UCINCa), mediante estabilidade clínica, nutrição enteral e peso mínimo de 1.250g do neonato e critérios de elegibilidade da mãe. A melhora clínica através do ganho de peso de pelo menos 1.600g, amamentação em sucção exclusiva ao seio ou, excepcionalmente, com complemento resulta na alta hospitalar (BRASIL, 2018).
A terceira etapa ocorre já no domicílio da família, com suporte ambulatorial da maternidade e da Unidade Básica de Saúde. Os atendimentos são realizados até que o RN alcance o peso de 2.500g. Neste momento há alta do MC e acompanhamento passa a ser o fluxo regular na UBS e/ou serviços especializados (BRASIL, 2018).
O presente trabalho tem o objetivo de identificar na literatura os desafios e potencialidades da implantação da terceira etapa do Método Canguru no Brasil.
2 METODOLOGIA
Trata-se de uma revisão integrativa da literatura de caráter qualitativo-descritivo, na qual teve como embasamento o método utilizado por Souza, Silva & Carvalho (2010), que consiste em seis fases de elaboração: elaboração da pergunta norteadora; busca na literatura; coleta de dados; análise crítica dos estudos incluídos; discussão dos resultados e apresentação da revisão integrativa.
A pergunta norteadora determinada foi “Quais são os desafios e potencialidades da implantação do Método Canguru na etapa domiciliar segundo a literatura?”. Para a segunda fase foram selecionadas as bases de busca da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e Scientific Electronic Library Online (SciELO). Foram utilizados os Descritores em Saúde (DeCS/MeSH): “Método Canguru” e “Kangaroo Method”.
Foram incluídos estudos disponíveis de acesso livre, dentro do recorte temporal de 2010 a 2023, publicados em inglês ou português em revistas indexadas, relacionados à pergunta norteadora. Foram excluídas duplicadas, trabalhos de conclusão de curso ou monografias, revisões de literatura, estudos experimentais sem aprovação do comitê de ética, que não estavam relacionados com a pergunta a norteadora e que não dialogavam com o contexto brasileiro, resumos, teses de mestrado ou doutorado ou que não eram de acesso gratuito.
3 RESULTADOS E DISCUSSÕES OU ANÁLISE DOS DADOS
Quadro 1. Fluxograma dos resultados das pesquisas com os descritores nas bases de dados selecionadas. Fonte: Próprio Autor.
Conforme Quadro 01, ao pesquisar os descritores em português e inglês foram encontrados 1146 resultados ao todo (BVS n= 994; SciELO n = 152). Na primeira fase de seleção, pela leitura do título, foram selecionados 905 artigos, após a leitura do resumo restaram 202, desses 169 artigos não estavam de acordo com os critérios de inclusão/exclusão. Após a leitura na íntegra e aplicação dos critérios de exclusão restaram 13 estudos que foram incluídos nessa revisão (Quadro 02). A pesquisa nas bases de dados foi realizada na data de 15 de março de 2024.
Quadro 02. Artigos levantados nas bases de dados SciELO e BVS a respeito dos desafios e potencialidades da implantação do Método Canguru no Brasil segundo a literatura. Fonte: Próprio Autor.
TÍTULO | AUTOR/ANODE PUBLICAÇÃO | METODOLOGIA | CONCLUSÃO |
Avaliação da terceira etapa do método canguru na atenção primária a saúde. | SILVA et al., 2022 | Estudo transversal a partir de questionário semiestruturado | A avaliação da terceira etapa do método canguru na atenção primária, sob o olhar de mães, apontou fragilidades na qualificação, integralidade da assistência, redesenho/discussão da rede, na referência e contrarreferência. |
Impacto da segunda e terceira etapas do método canguru: do nascimento ao sexto mês. | ALVES et al., 2021 | Coorte retrospectiva | As segunda e terceira etapas do Método Canguru favoreceram a prática e manutenção do aleitamento materno exclusivo, além de apresentarem menores taxas de reinternação até o sexto mês de idade gestacional corrigida. |
“Vou para casa. E agora?” A difícil arte do Método Canguru no domicílio. | CAÑEDO et al., 2021 | Pesquisa qualitativa a partir de questionário semiestruturado | Os pais, mesmo diante dos desafios diários com os cuidados no domicílio, detêm uma significação clara sobre a importância da posição canguru para os recém-nascidos pré-termos e/ou baixo peso e sua capacidade de impactar na qualidade do cuidado oferecido. |
Conhecimento de mães sobre cuidados de recém-nascidos prematuros e aplicação do Método Canguru no domicílio. | GOMES et al., 2021 | Estudo qualitativo-descritivo | Os discursos das mães entrevistadas apontaram seus conhecimentos sobre os cuidados domiciliares de prematuros e entendimento da importância do Método Canguru, principalmente adquiridos e aprimorados com as orientações dos profissionais durante a internação e aplicação do método. |
Terceira etapa do método canguru: experiência de mães e profissionais da atenção primária. | REICHERT et al., 2020 | Estudo qualitativo, exploratório-descritivo | Identificou-se o ínfimo conhecimento dos profissionais e das mães acerca do Método Canguru, ausência de capacitação dos profissionais da atenção primária, lacuna na comunicação entre a atenção primária e terciária. |
Vivência materna com o Método Canguru no domicílio. | REICHERT et al., 2020 | Pesquisa qualitativa-descritiva a partir de questionário semiestruturado | A vivência materna durante o Método Canguru no domicílio é permeada por desafios quanto ao cuidado ao recém-nascido, portanto, as mães necessitam de orientações claras em todas as suas etapas, bem como do apoio dos profissionais da Estratégia Saúde da Família e de familiares para dar continuidade ao método e, assim, reduzir a morbimortalidade infantil. |
Fatores que impactam a prática do cuidado canguru domiciliar com bebês de baixo peso ao nascer após alta hospitalar. | DAWAR et al., 2019 | Estudo exploratório-descritivo, com abordagem qualitativa | Programas futuros podem aumentar a disseminação e a adoção do MMC doméstico, abordando especificamente os facilitadores e as barreiras relacionadas à duração do contato pele a pele. |
Percepções maternas e fatores que afetam a continuidade do cuidado canguru no domicílio: um estudo descritivo. | RAAJASHRI et al., 2018 | Estudo exploratório-descritivo, com abordagem qualitativa | Após a formação em MMC no hospital, a maioria das mães pós-natais conseguiram continuar a prática satisfatoriamente em casa, apesar dos fatores dificultadores, incluindo a falta de privacidade. Os módulos de formação do MMC devem enfatizar a continuação da prática em casa após a alta e abordar as potenciais barreiras para a continuidade do MMC na comunidade. |
Acompanhamento na terceira etapa do método canguru: desafios na articulação de dois níveis de atenção. | SILVA et al., 2018 | Estudo de campo, qualitativa e exploratória | Durante a internação não é construída a vinculação da família com a APS e os trabalhadores da APS não reconhecem seu papel na atenção à criança egressa de unidade neonatal. |
Assistência integral ao recém-nascido prematuro: implicações das práticas e da política pública. | KLOSSOSWSKI et al., 2016 | Estudo descritivo de delineamento qualitativo | Considera-se não haver acompanhamento efetivo para os prematuros e questiona-se a continuidade nos atendimentos, para uma assistência integral. Observa-se que os profissionais desconhecem o que a política pública preconiza, e valorizam a atenção e cuidado hospitalar. |
Seguimento do bebê na atenção básica: interface com a terceira etapa do método canguru. | AIRES et al., 2015 | Estudo exploratório-descritivo, com abordagem qualitativa | A participação da Atenção Básica no Método Canguru ainda é tímida, o cuidado prestado ao bebê pré-termo é permeado de insegurança e ainda focado no modelo biomédico. |
Percepções maternas no Método Canguru: contato pele a pele, amamentação e autoeficácia. | SPEHAR& SEIDL, 2013 | Estudo longitudinal de curto prazo, com delineamento multimetodológico baseado uso de instrumentos e de técnicas de análise de dados qualitativas e quantitativas | Os dados evidenciaram que as etapas hospitalares do MC contribuíram para a aquisição de autoeficácia das mães em relação aos cuidados com seus filhos e à interação com eles. |
Terceira etapa método Canguru: convergência de práticas investigativas e cuidado com famílias em atendimento ambulatorial. | BORCK&SANTOS, 2010 | Estudo Convergente-Assistencial, de natureza qualitativa | Os resultados mostram a necessidade de fortalecer o papel da família na desospitalização, a comunicação entre a equipe interdisciplinar e rever critérios de alta da terceira etapa. |
3.1 Os profissionais de saúde e a terceira etapa do Método Canguru
A terceira etapa do MC possui uma particularidade que a torna um grande desafio: a necessidade de articulação entre dois níveis de atenção em saúde. Esse ponto de vista é discutido por Silva et al. (2018), em uma análise qualitativa de entrevistas semiestruturadas que abordavam questões gerais sobre o MC, mas com foco na terceira etapa. No total, 47 profissionais de saúde participaram, sendo que 14 atuavam na atenção especializada e 33 na atenção primária. Apesar da diferença numérica entre os grupos foi possível observar que havia unanimidade entre eles diante de algumas questões chave do processo de construção do vínculo entre a família e os serviços de saúde. Ambos grupos reconheceram que os recém-nascidos pré-termo e/ou baixo peso necessitavam de uma atenção especial devido a sua condição de fragilidade. No entanto, os profissionais não sabiam especificar quais as suas atribuições no cuidado dessas crianças após a alta das maternidades.
Silva et al. (2018) também relata que devido às condições de risco dos RN, os profissionais da Atenção Primária à Saúde (APS) não reconhecem a importância do acompanhamento familiar e atribuem aos especialistas esse cuidado. Enquanto isso, o serviço especializado não atua na promoção do cuidado compartilhado e não auxilia na construção de vínculos com a APS, algo que deveria começar a ocorrer desde o momento da internação até a alta dos RN no serviço.
Ao descrever a realidade de um município do interior do Paraná, Klossoswski et al. (2016) aponta que os profissionais sabem da importância da terceira etapa do MC, inclusive da importância da busca ativa, mas não há um fluxo de atendimento e de regulação entre os níveis de atenção. Contudo, a assistência acaba sendo realizada na atenção secundária, mesmo quando o mesmo profissional atua em ambos os níveis. Os profissionais apontam o subdimensionamento das equipes de ESF para o respectivo território, seja pela sobrecarga da equipe, seja pela incapacidade de solução de todas as demandas.
Nessa perspectiva, o processo de continuidade da atenção aos RN é um desafio, uma vez que os próprios profissionais não reconhecem suas atribuições após a alta hospitalar, perpetuando a fragmentação do cuidado. Todavia, a responsabilidade dessa ausência de articulação entre os níveis de atenção não pode ser atribuída integralmente nos profissionais. Reichert et al. (2020) em estudo de uma capital do nordeste brasileiro, na qual foram entrevistados doze profissionais de saúde e dez mães-canguru, identificou que as lacunas na comunicação entre os níveis de atenção e o ínfimo conhecimento dos profissionais sobre suas atuações no cuidado pós-alta são resultados de capacitações insuficientes dos profissionais no MC, em especial na terceira etapa. Dessa forma, há uma evidente falha na gestão de saúde em algumas regiões no país que não oferece aos profissionais o acesso a capacitações no âmbito da terceira etapa do MC. Além disso, não há uma organização de regulação que facilite a comunicação entre os dois níveis envolvidos.
Essa realidade de falta de capacitação e de um empenho em programas governamentais de apoio é demonstrada em estudos internacionais como o de Dawar et al. (2019), no qual por meio de uma análise descritiva-qualitativa de entrevistas com mães e profissionais em uma região da Índia. O autor conclui que sem a implementação de programas futuros que capacitem os profissionais em toda a rede de atenção não é possível uma implementação e adoção adequada da terceira etapa do MC, já que profissionais sem confiança com o método não conseguirão orientar os pais e familiares e assim a adesão não é garantida. Klossoswski et al. (2016) aponta que a formação dos profissionais é um dos fatores que limita a implementação da política pública para os prematuros e mesmo quando há especialização, o cuidado não é realizado de modo integral e multiprofissional.
Destarte, as fragilidades da terceira etapa do MC descritos no artigo de Silva et al. (2022) são consonantes às descritas nos estudos de Rajaashri et al. (2018) e Dawar et al. (2019). Os autores Reichert et al. (2020) corroboram esses achados ao descrever que durante entrevistas com mães canguru, estas revelam que os próprios profissionais da unidade neonatal orientam que a consulta de retorno e acompanhamento sejam realizadas nas maternidades, desconsiderando o papel da atenção primária no cuidado.
Assim, fica evidente que além da necessidade de qualificação dos profissionais e pais é imprescindível que haja uma reformulação e uma discussão sobre o desenho das redes de atenção. Essa discussão sobre a reformulação das redes não é algo recente. Os pesquisadores Borck & Santos (2010) há mais de uma década já alertavam a necessidade do fortalecimento do papel da família na desospitalização e a melhoria da comunicação entre a equipe multidisciplinar da APS com a da maternidade para que houvessem resultados positivos na terceira etapa.
Um exemplo de iniciativa pública que aborda as fragilidades relatadas é descrita por Aires et al. (2015). Na cidade de Joinville-SC, a gestão municipal instituiu a “Estratégia de vigilância à criança em condições de risco – Programa Bebê Precioso” que é uma versão modificada da terceira etapa do MC proposto pelo Ministério da Saúde. Nesse programa, as crianças egressas de unidade neonatal são atendidas de modo integral e longitudinal na atenção primária até os 11 meses e 29 dias de vida, em consultas com médicos e enfermeiros. Apesar do projeto prever a cobertura de todas as UBS do município, muitos profissionais desconhecem o MC ou não se sentem aptos a praticá-lo. O resultado é o encaminhamento de muitos RN a atenção secundária. Outro aspecto relevante é a desarticulação entre a atenção primária e secundária, que prejudica a continuidade do MC.
Pesquisas mais recentes, como a de Silva et al. (2022), apontam que os desafios não se tornaram menores. Este estudo transversal contou com a participação de 156 crianças pré-termo que tiveram seus pais entrevistados com o auxílio de um questionário que continha variáveis sociodemográficas e clínicas envolvidas à assistência prestada. Os autores concluíram que na perspectiva materna as principais fragilidades envolvem a qualificação e integralidade da assistência. Os autores apontam que a totalidade das mães receberam o relatório de alta e compartilham com os profissionais que assistem o seu RN, mas metade delas desconhecem a importância desse documento para o seguimento do cuidado na atenção básica. Além disso, foram identificadas diversas falhas no processo de referência e contrarreferência que também prejudicam a assistência na terceira etapa. Sob essa ótica, Cañedo et al. (2021) aponta que quando bem orientados os pais, mesmo diante dos desafios, entendem o significado claro sobre a importância do MC e isso influência positivamente nos impactos obtidos na qualidade do cuidado ofertado.
3.2 O papel da família na terceira etapa do Método Canguru
O trabalho descritivo-qualitativo desenvolvido por Gomes et al. (2021) foi realizado na região Norte do Brasil e contou com a participação de 15 mães de RN prematuros na maternidade de referência da região. O estudo aponta que o fato do RN passar por uma internação prolongada em unidade de cuidados críticos leva aos pais a reflexos psicológicos que comprometem sua confiança no cuidado domiciliar no Método Canguru. Além da sensação de fragilidade do RN, o desconhecimento sobre as particularidades do cuidado do RNPT, desde o banho humanizado, a troca de fraldas até a amamentação, reforçam a falta de confiança materna. A autora também aponta que o cuidado não deve ser feito somente pela mãe, mas por toda a família. É indispensável que todos conheçam os sinais de alerta de agravo que exigem atendimento de urgência. Contudo, as orientações para a continuidade das medidas do MC em ambiente doméstico não são sempre realizadas, conforme aponta Reichert et al. (2020), quando algumas mães não foram orientadas quanto a continuidade da posição canguru em casa, apesar do contato pele a pele ser o principal componente do Método Canguru.
Cañedo et al. (2021), ao entrevistar mães de RNPT na terceira etapa do Método Canguru, evidencia as diferenças entre as gestações prévias sem complicações e os cuidados exigidos por um RNPT. Uma mãe aponta que se não tivesse sido orientada pelo MC, teria dado banhos em excesso, remédios desnecessários e segurado o bebê de modo incorreto. Mães também divergem quanto ao uso da faixa em ambiente doméstico, algumas não usam temendo que seu RN caia no chão, outras adotam a medida sabendo que melhora as cólicas do RN bem como lhe permitem maior liberdade para realizar outras atividades no domicílio.
Todavia, para uma melhor eficácia, é necessário que as capacitações sejam estendidas também aos pais do RN de uma forma que haja compartilhamento do método entre a equipe multidisciplinar e a família. Segundo Raajashri et al. (2018), em contexto indiano, após a devida formação a respeito do MC ainda no hospital, a maioria das mães após a alta mantiveram de forma satisfatória o acompanhamento dos RN, apesar das diversas variáveis dificultadoras do processo, como distância das unidades e falta de privacidade. Dessa forma, a presença de módulos de formação em MC que enfatizam a continuação da prática após a alta hospitalar motivam os pais para que haja a superação de potenciais barreiras que outrora seriam motivo para evasão.
Aires et al. (2015) aponta que apesar da robustez do Projeto Bebê Precioso em Joinville (SC), os profissionais relatam que alguns pais buscam UBSs fora de seu território em busca de consultas com pediatras, bem como o abandono das medidas propostas pelo Método Canguru. Esse achado converge com o descrito por Cañedo et al. (2021) que aponta que mães mostram-se mais tranquilas com a acessibilidade ao ambulatório do hospital e a insegurança com os atendimentos prestados pela UBS caso o RN adoeça. Klossoswski et al. (2016) aponta resistência, negligência e falta de percepção da importância da equipe multidisciplinar nos cuidados com o bebê, desejando a assistência somente com o profissional médico. O autor aponta que uma explicação possível para isso é a ausência de um local centralizado que atenda ao binômio mãe-bebê de modo centralizado de forma multiprofissional. Spehar & Seidl (2013) em entrevista com dez mães do Distrito Federal, aponta que aquelas que realizavam pouco a posição canguru na segunda etapa do método, tinham tendência a redução da prática no âmbito domiciliar. Quanto à alimentação, todas empregaram o aleitamento materno exclusivo. Na avaliação da autoeficácia, que se refere às crenças e julgamentos dos pais sobre sua própria capacidade de realizar as tarefas relacionadas à criança, os maiores escores foram obtidos na terceira etapa, o que aponta a maior aptidão das mães em relação às etapas anteriores.
O aspecto socioeconômico também pode comprometer a participação do RN na terceira etapa do MC. Alves et al. (2021) relataram que na primeira semana após a alta hospitalar há menores índices de comparecimento às consultas propostas pelo MS em grandes cidades. Os autores levantam a hipótese que tal fato se justifica devido ao elevado número de consultas preconizadas, em que famílias em vulnerabilidade socioeconômica não conseguem arcar com os custos de transporte até o serviço de saúde.
3.3 Potencialidades da terceira etapa do Método Canguru
Gomes et al. (2021) realizou trabalho descritivo-qualitativo desenvolvido na região Norte do Brasil e contou com a participação de 15 mães de RN prematuros na maternidade de referência da região, para a coleta dos dados foram utilizados dois roteiros semiestruturados de entrevistas com questões objetivas e subjetivas. A análise dos discursos das mães demonstrou que havia conhecimento e entendimento das vantagens do MC e, igualmente, a motivação para a continuidade do método após a alta. As mães relataram que todo o conhecimento sobre o método e suas aplicações foi adquirido e aprimorado por meio de orientações dos profissionais durante todo o período de internação e aplicação das outras etapas. Dessa forma, é apresentado que há por parte das mães uma maior segurança no cuidado domiciliar de seus filhos assim como uma maior previsibilidade na manutenção do cuidado junto a rede de atenção primária. Apesar do baixo número de participantes, o estudo apresenta resultados promissores que corroboram com a importância da construção do vínculo na APS desde a internação na rede especializada para a menor evasão do método.
Aires et al. (2015) e Reichert et al. (2020) relataram que a dificuldade dos profissionais da atenção primária no seguimento no MC está relacionada a limitação do conhecimento e insegurança com o recém-nascido além da comunicação ineficiente com a atenção secundária. Cañedo et al. (2021) levantam outra questão que dificulta a realização do MC nas UBS: no Mato Grosso do Sul, a centralização das unidades neonatais em grandes municípios, exige que a família do RN se acomode em casa de parentes, conhecidos ou mesmo em casas de apoio. Assim, quando da alta hospitalar, a família realiza a terceira etapa ainda nesse grande centro, o que restringe a efetivação da terceira etapa em municípios de menor porte.
Quando a prestação do cuidado da terceira etapa do MC é feita de maneira adequada, os benefícios vão além da redução das taxas de morbimortalidade e auxiliam no aleitamento e melhora da dinâmica familiar e, dessa forma, beneficiam o RN diretamente até no mínimo seu sexto mês de idade gestacional corrigida (REICHERT et al., 2020). O artigo de Alves et al. (2021) identificou por meio de um estudo de coorte retrospectivo as afirmações anteriores, além disso o estudo reafirma que a terceira etapa auxilia no processo de desospitalização do RN contribuindo para menores taxas de reinternação, de desmame, complicações como a sepse tardia e a redução dos custos hospitalares.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A implantação da terceira etapa do MC é uma estratégia essencial para uma eficácia completa do método, já que além de contribuir para a redução das taxas de morbimortalidade, esta etapa fornece a consolidação de vínculos entre a atenção primária e as famílias permitindo que a continuidade do cuidado permaneça mesmo após a alta do método.
Os desafios do método consistem na deficiência articulação entre os níveis de atenção necessários já que não há uma cultura de referência e contrarreferência nos serviços. Além disso, parte dos profissionais não se sente capacitados no método e não reconhecem seus papéis na assistência, o que dificulta a integralização do cuidado com o RN e sua família.
No âmbito da família do RN, os principais desafios envolvem a adesão ao MC no contexto domiciliar. Uma vez fora do ambiente hospitalar, as angústias e inseguranças com a condição de saúde do RN são potencializadas pela falta de capacitação dos profissionais de saúde e de um fluxograma de atendimento inexistente na maioria dos municípios, notadamente os de menor porte. Assim, a família termina realizando a continuidade do acompanhamento do RN na atenção secundária, o que diverge da política proposta pelo Ministério da Saúde.
As experiências de sucesso do MC demonstram as suas potencialidades entre as quais destaca-se a otimização do cuidado do RN, permitindo à família retornar ao seu lar e suas atividades cotidianas tão logo os cuidados hospitalares sejam concluídos. Tudo isso, realizado através da orientação adequada para o cuidado domiciliar sob assistência da UBS bem como o conhecimento dos sinais de alerta que exigem o retorno ao hospital.
Portanto, urge que mais intervenções sejam realizadas a fim de instituir a terceira etapa do método em outras regiões. Além disso, é indispensável que mais políticas públicas destinem a atenção necessária para os desafios identificados na comunicação e capacitação dos profissionais da rede de saúde responsáveis por efetivar o Método Canguru.
As limitações do trabalho envolvem a produção literária sobre o MC que é centralizada nas etapas que envolvem a assistência hospitalar ao RN prematuro, a primeira e segunda etapa do Método Canguru. Entretanto, a presente revisão de literatura é inédita no que tange aos desafios e potencialidades da terceira etapa do MC em território nacional. Observamos que há uma quantidade pequena de artigos orientados para a terceira etapa do MC no contexto brasileiro. Apesar de haver produção internacional sobre o tema, a comparação direta com a realidade nacional é limitada uma vez que o MC instituído pelo MS é estratificado em três etapas, enquanto outros países dividem o método em duas etapas. Outra particularidade nacional é que o MC não se restringe ao cuidado pele-a-pele (skin-to-skin care) como outras localidades. Entretanto, os artigos que retratam a realidade nacional permitem um olhar sobre as diferentes regiões do Brasil, desse modo, acredita-se que a revisão permite conhecer os desafios e potencialidades da terceira etapa do MC no país.
Este trabalho foi produzido com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí – FAPEPI, no âmbito do Centro Integrado em Especialidades Médicas (CIEM) da Universidade Federal do Delta do Parnaíba.
REFERÊNCIAS
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¹ Discente do Curso Superior de Medicina da Universidade Federal do Delta do Parnaíba, Campus Ministro Reis Velloso. E-mail: nailliw.martins@gmail.com.br
² Docente do Curso Superior de Medicinada Universidade Federal do Delta do Parnaíba, Campus Ministro Reis Velloso. E-mail: vccvlc1@hotmail.com