A HISTÓRIA DA PENA NO BRASIL Elementos de Direito Penal Indígena, as Ordenações do Reino e o Código Penal do Império

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11644303


Bruno Paiva Garcia


1. O direito penal no Brasil antes dos portugueses.

São imensas as dificuldades para a reconstituição do direito penal dos povos originários, pois havia centenas de grupos étnicos espalhados no território que hoje conhecemos como Brasil, com línguas e costumes distintos e sem um governo central que impusesse a todos uma ordem jurídica uniforme.

Além disso, não há registros escritos das tradições que orientavam o comportamento daqueles povos e quase tudo o que se sabe hoje é o que relataram os primeiros cronistas portugueses que aqui chegaram. E esses relatos, como aponta João Bernardino Gonzaga, devem ser lidos com extrema cautela, pois eram comuns os exageros ou a romantização, o preconceito com os povos não cristianizados e a descrição, na maioria das vezes, resumia-se ao pitoresco e apenas àquilo que mais chamava a atenção dos colonizadores (GONZAGA, 1970, p. 12).

De toda forma, sabe-se que eram baixíssimos os fatores criminógenos, em vista da inexistência de classes sociais, do coletivismo e da inexistência da propriedade privada (GONZAGA, 1970, p. 45).

As sanções entre os povos originários, de forma semelhante ao que ocorre modernamente, também tinham um caráter de retribuição e de prevenção geral e especial. Não havia, porém, a ideia de regeneração do faltoso e imperava a vingança privada, a vingança coletiva e o talião (PIERANGELLI, 1980, p. 05).

O Pe. José de Anchieta, citado por João Bernardino Gonzaga, traz o relato do rigor dos indígenas em relação às transgressões e da inexorabilidade da punição:

certa velha, que se intrometera em briga doméstica, acabou matando um terceiro interveniente; fugiu diante desse desfecho, mas retornou depois à sua casa, para pedir que a matassem. No dia seguinte, seu filho mais velho “fez uma cova para enterrar o morto, e, tomando a mãe pela mão, lhe deitou uma corda no pescoço, e a enforcou, a enterrou, e pôs em cima dela o que ela tinha morto. Nenhum de todo o povo lho impediu, não lhe falou uma só palavra, porque assim soem vingar os semelhantes homicídios, por que não façam guerra os parentes do morto, e se comam uns aos outros” (GONZAGA, 1970, p. 53). 

Em relação às formas de punição, predominavam as sanções corporais ou a perda da paz, que significava a exclusão da comunidade (GONZAGA, 1970, p. 121). A privação de liberdade só se empregava em “certas circunstâncias, para deter os inimigos em seguida à captura, ou nas horas que precediam de imediato seu sacrifício: então, deixavam às vezes o paciente desde a véspera, sob guarda, dentro de pequena cabana levantada para esse fim no terreiro” (GONZAGA, 1970, n.p.).

2. A pena nas ordenações do reino.

A fonte do Direito Penal vigente no Brasil, desde a chegada dos portugueses até a independência, era o livro V, das ordenações do Reino de Portugal.

Inicialmente, vigoraram as Ordenações Afonsinas até 1521, depois as Ordenações Manuelinas até 1603, e desde então até a independência as Ordenações Filipinas. Em relação ao Direito Penal, especificamente, as Ordenações Filipinas vigoraram até a promulgação do Código Penal do Império, em 1830.

Ao tempo das capitanias hereditárias, porém, com ainda incipiente influxo português na colônia, imperava mais o arbítrio do donatário que o direito português, “mesmo porque as cartas de doação entregavam aos donatários o exercício de toda a justiça” (PIERANGELLI, 1980, p. 07).

Somente com a instituição dos governadores-gerais, passou-se a centralizar a administração da justiça, de forma mais disciplinada e com efetiva aplicação das ordenações do reino (PIERANGELLI, 1980, p. 07).

 Nessa época, vigoravam a Ordenações Filipinas, que Batista Pereira sintetizou da seguinte forma:

“Espelho, onde se refletia, com inteira fidelidade, a dureza das codificações contemporâneas, era um misto de despotismo e de beatice, uma legislação híbrida e feroz, inspirada em falsas ideias religiosas e políticas, que invadindo as fronteiras da jurisdição divina, confundia o crime com o pecado, e absorvia o indivíduo no Estado fazendo dele um instrumento. Na previsão de conter os maus pelo terror, a lei não media a pena pela gravidade da culpa; na graduação do castigo obedecia, só, ao critério da utilidade. Assim, a pena capital era aplicada com mão larga; abundavam as penas infamantes, como o açoite, a marca de fogo, as galés, e com a mesma severidade com que se punia a heresia, a blasfêmia, a apostasia e a feitiçaria, eram castigados os que, sem licença de El-Rei e dos Prelados, benziam cães e bichos, e os que penetravam nos mosteiros para tirar freiras e pernoitar com elas. A pena de morte natural era agravada pelo modo cruel de sua inflição; certos criminosos, como os bígamos, os incestuosos, os adúlteros, os moedeiros falsos eram queimados vivos e feitos em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura se pudesse haver memória. Com a volúpia pelo sangue, negação completa de senso moral, dessa lei que, na frase de Cicero, é in omnibus diffusa, naturae, congruens, constans, eram supliciados os réus de lesa-majestade, crime tão grave e abominável, e os antigos sabedores tanto o estranharam, que o compararam à lepra, porque, assim como esta enfermidade enche o corpo, sem nunca mais se poder curar, assim o erro da traição condena o que a comete, e impece e infama os que da sua linha descendem, posto que não tenham culpa. A este acervo de monstruosidade outras se cumulavam: a aberrância da pena, o confisco dos bens, a transmissibilidade da infâmia do crime (Apud Pierangeli, 1980, p. 07-08).

As Ordenações Filipinas tiveram por fonte as Ordenações Manuelinas, que a precederam, e tinha como característica a substituição da justiça privada pela justiça pública e o fortalecimento do poder real (ZAFFARONI e PIERANGELI, 2007, p. 180).

Em relação às sanções, a pena de morte era cominada para a maior parte dos delitos e podia ser executada de quatro formas: (a) morte cruel, em que a vida era tirada vagarosamente e com suplícios; (b) morte atroz, em que se acrescentava à pena de morte, algumas circunstâncias agravantes, como o confisco de bens, queima de cadáver, esquartejamento e a proscrição da memória; (c) morte simples: havia apenas a perda da vida a sanção era executada mediante degolação ou enforcamento, para as classes subalternas, posto que infamantes; (d) morte civil, com a perda de direitos da cidadania e eliminação da vida civil (ZAFFARONI e PIERANGELI, 2007, p. 181).

Havia, ainda, as denominadas penas vis, que consistiam em açoites, corte de membros, galés ou trabalhos públicos, multas e degredo, sendo neste caso o mais grave aquele que se cumpria no Brasil (ZAFFARONI e PIERANGELI, 2007, p. 181).

Não vigia o princípio da legalidade (nullum crimen nulla poena sine lege), de forma que para alguns delitos era cominada uma pena arbitrária, que era aplicada a critério do julgador, segundo a “qualidade da malícia” (ZAFFARONI e PIERANGELI, 2007, p. 181).

A maior crítica que se faz às ordenações é o extremo rigor nas punições, a desproporcionalidade entre os crimes e as sanções e o uso exagerado da pena de morte.

2.1. As Ordenações Filipinas no Brasil e o julgamento de Tiradentes. 

Tiradentes foi acusado do crime de lesa-majestade, no final do século XVIII, em razão de sua participação na Inconfidência ou Conjuração Mineira – movimento político-social que pretendia a independência da então capitania de Minas Gerais, com fundamento em ideias iluministas e com inspiração na revolução francesa e na independência dos Estados Unidos (Brigagão, 2018, n.p.).

A investigação ou “auto de devassa” teve início com o que hoje se poderia denominar delação premiada – um dos inconfidentes, Joaquim Silvério dos Reis, delatou os companheiros a autoridades portuguesas em troca de perdão de dívidas que possuía com a coroa (Brigagão, 2018, n.p.).

O crime de lesa-majestade era considerado gravíssimo, comparando-se à lepra, porque – segundo o texto das ordenações – “assi como esta enfermidade enche todo o corpo, sem nunca mais se poder curar, e empece ainda aos descendentes”.

A pena prevista nas ordenações para esse crime era a morte com crueldade, o confisco de todos os bens em favor da coroa e, inclusive, a danação da memória, se o autor da infração morresse antes de ser preso (PIERANGELLI, 1980, p. 20).   

Durante a apuração, não se reconhecia direito algum ao investigado e se buscava a confissão a todo custo, inclusive mediante tortura. Tiradentes foi interrogado 11 vezes até que, por fim, confessou a participação no levante e chamou a si toda a responsabilidade (Brigagão, 2018, n.p.). Além dele, foram condenados outros 23 inconfidentes e importa destacar, para os fins deste trabalho, as penas imposta aos líderes do movimento, como indicado por Pedro Doria:

Joaquim José da Silva Xavier: morte pela forca, cabeça extirpada e fincada numa haste em frente a sua casa, em Vila Rica, a qual deve ser demolida e o terreno, salgado. O resto do corpo dividido em quatro partes, pregadas em postos em Varginha, Cebolas e nas cidades de maior povoação da capitania de Minas. Réu, filhos e netos declarados infames. Bens confiscados para o fisco. 

Francisco de Paula Freire de Andrade: morte pela forca, cabeça extirpada e fincada numa haste em frente a sua casa, em Vila Rica. Sua casa deve ser demolida e o terreno, salgado. Pena comutada para degredo perpétuo na Pedra de Ancoche, Angola. Réu, filhos e netos declarados infames. Bens confiscados para o fisco. 

Padre Carlos Correia de Toledo: morte pela forca. Bens confiscados para o fisco. Sentença guardada em sigilo perpétuo.

Padre José da Silva e Oliveira Rolim: morte pela forca. Bens confiscados para o fisco. Sentença guardada em sigilo perpétuo.

José Álvares Maciel: morte pela forca, cabeça extirpada e fincada numa haste em frente a sua casa, em Vila Rica. Pena comutada para degredo perpétuo em Massangano, Angola. Réu, filhos e netos declarados infames. Bens confiscados para o fisco. 

Domingos de Abreu Vieira: morte pela forca, cabeça extirpada e fincada numa haste em frente a sua casa, em Vila Rica. Pena comutada para degredo perpétuo em Angola. Réu, filhos e netos declarados infames. Bens confiscados para o fisco.

Inácio José de Alvarenga Peixoto: morte pela forca, cabeça extirpada e fincada numa haste no lugar mais público de São João del-Rei. Pena comutada para degredo perpétuo em Dande, Angola. Réu, filhos e netos declarados infames. Bens confiscados para o fisco.

Luis Vaz de Toledo Piza: morte pela forca, cabeça extirpada e fincada numa haste no lugar mais público de São José del-Rei. Pena comutada para degredo perpétuo em Cambambe, Angola. Réu, filhos e netos declarados infames. Bens confiscados para o fisco.

Francisco Antonio de Oliveira Lopes: morte pela forca, cabeça extirpada e fincada numa haste em frente a sua casa, em Ponta do Morro. Pena comutada para degredo perpétuo no Presídio da Machimba, Angola.  Réu, filhos e netos declarados infames. Bens confiscados para o fisco. (Doria, 2017, n.p.).

A pena imposta a Tiradentes, o alegado autor intelectual do levante e de classe social mais baixa que os outros inconfidentes, não foi comutada e exemplifica bem o rigor e a ritualística própria das Ordenações Filipinas:  

(…) Pelas onze horas do dia, que o sol descoberto fazia ardente, entrou na praça vazia por um dos ângulos da figura, que faziam os regimentos postados, o réu e o demais acompanhamento dos ministros de justiça, dos irmãos de misericórdia, do clero e dos religiosos. Ligeiramente subiu os degraus e sem levantar os olhos, que sempre conservou pregados no crucifixo sem estremecimento algum, deu lugar ao carrasco para preparar o que era necessário e por três vezes pediu-lhe que abreviasse a execução. Não desistiram os sacerdotes de dirigir a Deus os auxílios tão necessários para avivar a fé, a esperança e a caridade em transe tão arriscado. O guardião do convento de Santo Antônio, que também acompanhava os seus súditos, inflamando-se desmarcadamente em caridade e em justiça, subiu a escada e daí admoestou os espectadores, que não se deixassem possuir só da curiosidade e do assombro, mas que implorassem de Deus a última graça para quem tão constante ia pagar o seu delito, e que assim mesmo tinha servido de objeto de clemência da soberana, que não o punia mais gravemente, e não menos da iluminada justiça de seus ministros, que não lhe agravarão a pena. Repetido pelo mesmo padre guardião o credo, viu-se suspenso de uma das traves da forca o corpo do infame réu, cuja alma em paz descanse. Seguiu-se a fala do costume feita por religiosos. (Assembleia Legislativa de Minas Gerais, 2016, p. 162). 

Percebe-se, pois, na execução de Tiradentes, as principais características da punição nas Ordenações Filipinas e que marcam todo aquele período histórico: o espetáculo na punição, o suplício, a desproporcionalidade da pena, o uso excessivo da pena de morte, o imenso poder do Estado sobre o corpo do condenado e a transcendência da punição aos descendentes do criminoso.

3. O Código Penal do Império.

Com a Proclamação da Independência, instalou-se em março de 1823 uma Assembleia Nacional Constituinte, por iniciativa do Imperador Dom Pedro I, que a dissolveu alguns meses depois e outorgou ele próprio a Constituição de 1824. 

Nessa carta, ainda que imposta à força, foram reconhecidos princípios liberais, que nortearam a produção legislativa subsequente, destacando-se, entre as disposições do art. 179, as regras inerentes ao devido processo e a garantia – apenas formal – da humanidade das penas, em claro avanço em relação às velhas ordenações do reino.

A nova constituição determinou a elaboração, com urgência, de um código criminal, mas somente em 1830 foi sancionado o Código Criminal do Império, que foi considerado inovador para a época e influiu em diversos diplomas estrangeiros, inclusive no Código Espanhol de 1848 (PIERANGELLI, 1980, p. 09).

A originalidade do Código, segundo Roberto Lyra, consistia em 

(a) no esboço da indeterminação relativa e de individualização da pena, contemplando, ja, os motivos do crime, só meio século depois tentado na Holanda e, depois, na Itália e na Noruega; (b) na fórmula da cumplicidade (co-delinqüência como agravante) com traços do que viria a ser a teoria positiva a respeito; (c) na previsão da circunstância atenuante da menoridade, desconhecida, até então, das legislações francesa, napolitana e adotada muito tempo após; (d) no arbítrio judicial no julgamento dos menores de 14 anos; (e) na responsabilidade sucessiva nos crimes por meio da imprensa antes da lei belga, e, portanto, esse sistema é brasileiro e não belga, como é conhecido; (f) a indenização do dano ex-delicto como instituto de direito público, também antevisão positivista; (g) na imprescritibilidade da condenação (apud Pierangelli, 1980, p. 09).

É importante destacar, também, que foi a partir do Código Penal de 1830 que nasceu em solo brasileiro a pena de prisão. Ao tempo das ordenações, a privação de liberdade tinha o objetivo de acautelamento, isto é, impedir a fuga enquanto se aguardava a punição. Com a edição da nova legislação, a prisão assume um papel central na punição, o que se verifica ainda hoje, apesar de todas as críticas que podem ser dirigidas a essa forma de sanção (Migowski, 2018).

A primeira prisão construída especificamente com esse objetivo no Brasil foi a Casa de Correção da corte, no Rio de Janeiro, inspirada no modelo panóptico de Bentham, que é descrita por Eduardo Migowski da seguinte forma:

A inspiração arquitetônica foi o famoso projeto. carcerário de Jeremy
Bentham, o Panóptico. O projeto do Panóptico previa uma torre central cercada por celas que eram distribuídas de modo que um único vigilante pudesse observar todas as dependências do presídio. Quem estivesse na torre poderia vigiar qualquer preso, porém não poderia ser visto por ele. Assim, os apenados teriam a sensação de estar sendo observados 24 horas por dia, independente de haver ou não alguém na torre de controle. O projeto também previa locais iluminados, arejados e limpos para o cumprimento de uma pena mais humana. Por isso, o local escolhido para a construção do presídio foi o bairro do Catumbi, por princípios de saúde e higiene, pois o local ficava em uma “meia de uma colina”, mas também por ficar próximo à corte. A ideia era que este modelo “humanitário” de punir ficasse à vista de todos, como símbolo dos novos tempos que estavam sendo vislumbrados. Nada, porém, aconteceu como planejado. A começar pela execução do projeto que não conseguiu reproduzir o “efeito panóptico”. Por mais que reformas fossem feitas, havia “pontos escuros” que não podiam ser vigiados por um único olhar. As questões humanitárias também não foram observadas, logo a penitenciária se transformaria num depósito de seres-humanos. A Casa de Correção da Corte talvez seja o maior símbolo da falência do nosso modelo prisional. Não apenas por ter sido a primeira, mas por ter perdurado no tempo, concentrando em sua história todas as contradições e os fracassos deste sistema. Em 2010, a antiga prisão, que se transformara no Complexo Penitenciário Frei Caneca, foi finalmente desativada. Aquilo que no começo foi pensado para ser um local limpo e seguro, quando fechado no século XXI, estava completamente superlotado, com celas em que seres-humanos, segundo relatos, disputavam espaço com “ratos do tamanho de gatos” (Migowski, 2018).

Além da privação de liberdade, porém, o Código Penal de 1830 ainda trazia algumas sanções do tempo das ordenações: a pena de morte, as galés perpétuas, a prisão perpétua, o banimento, os açoites, o degredo e o desterro.

A pena de morte era executada na forca e se destinava aos crimes de homicídio qualificado, latrocínio e de insurreição, sendo que este último só poderia ser cometido por escravos:

Art. 113. Julgar-se-ha commettido este crime, retinindo-se vinte ou mais escravos para haverem a liberdade por meio da força.

Penas – Aos cabeças – de morte no gráo maximo; de galés perpetuas no médio; e por quinze annos no minimo; – aos mais – açoutes.

Art. 114. Se os cabeças da insurreição forem pessoas livres, incorrerão nas mesmas penas impostas, no artigo antecedente, aos cabeças, quando são escravos.

Art. 115. Ajudar, excitar, ou aconselhar escravos á insurgir-se, fornecendo-lhes armas, munições, ou outros meios para o mesmo fim.

Penas – de prisão com trabalho por vinte annos no gráo maximo; por doze no médio; e por oito no minimo.

Um exemplo de crime de insurreição, que foi severamente punido, foi a conhecida Revolta dos Malês, que aconteceu no início de 1835, em Salvador/BA, e reuniu cerca de 600 escravizados de origem muçulmana. Ao final do frustrado levante, foram impostas penas de prisão simples, prisão com trabalho, açoite, morte e deportação para a África. Alguns escravizados foram condenados a sofrer 1200 chibatadas, aplicadas ao longo de vários dias e 12 foram condenados a morte, sendo que dessas 04 foram efetivamente aplicadas (REIS, 2018).

O Código previa minudentemente, em mais de um artigo, a forma de execução da pena de morte: 

Art. 40. O réo com o seu vestido ordinario, e preso, será conduzido pelas ruas mais publicas até á forca, acompanhado do Juiz Criminal do lugar, aonde estiver, com o seu Escrivão, e da força militar, que se requisitar.

Ao acompanhamento precederá o Porteiro, lendo em voz alta a sentença, que se fôr executar.

Art. 41. O Juiz Criminal, que acompanhar, presidirá a execução até que se ultime; e o seu Escrivão passará certidão de todo este acto, a qual se ajuntará ao processo respectivo.

Art. 42. Os corpos dos enforcados serão entregues a seus parentes, ou amigos, se os pedirem aos Juizes, que presidirem á execução; mas não poderão enterral-os com pompa, sob pena de prisão por um mez á um anno.

Art. 43. Na mulher prenhe não se executará a pena de morte, nem mesmo ella será julgada, em caso de a merecer, senão quarenta dias depois do parto.

Em junho 1835, possivelmente por medo das rebeliões de escravizados, editou-se a conhecida lei n. 04 que passou a prever a pena de morte para o escravo que matasse o senhor ou algum de seus familiares, independentemente de se tratar de homicídio simples ou qualificado, ou que os ferisse gravemente. Em caso de lesão leve, a pena era de açoites.

O escravizado somente poderia receber a pena de morte e galés. Se praticasse crime que previsse pena mais branda, a sanção era automaticamente substituída por açoites, no máximo de 50 por dia. A execução do açoite ficava a cargo do Estado.       

A principal crítica dirigida ao Código Penal do Império, ainda que retratasse uma evolução em comparação com as Ordenações Filipinas, é a triste distinção punitiva entre homens livres e escravos, passa assegurar por meio do medo a manutenção de uma situação de flagrante injustiça.

São esclarecedores, a esse respeito, alguns discursos apresentados por parlamentares que defendia a pena de morte, destacando-se o deputado Francisco de Paula Sousa, que abertamente defendia a forca para atemorização de escravizados: 

— O sistema de escravidão no Brasil é certamente péssimo. Porém, havendo entre nós muitos escravos, são precisas leis fortes, terríveis, para conter essa gente bárbara. Quem duvida que, tendo o Brasil 3 milhões de gente livre, incluídos ambos os sexos e todas as idades, esse número não chegue para arrostar [enfrentar] 2 milhões de escravos, todos ou quase todos capazes de pegar em armas? O que, senão o terror da morte, fará conter essa gente imoral nos seus limites?

Para Sousa, a mera prisão não seria uma punição pesada o suficiente para os escravizados:

— Excluindo-se do código a pena de morte e as galés, resta a prisão. Ora, o escravo que vive vergado sob o peso dos trabalhos terá porventura horror a encerrar-se em uma prisão, onde poderá entregar-se à ociosidade e à embriaguez, paixões favoritas dos escravos? Ele julgará antes um prêmio que o incitará ao crime. Citarei um exemplo mui frisante. Na Filadélfia no tempo do inverno, a gente desarranjada cometia pequenos crimes para ser recolhida à casa de correção. Foi necessário tornar a prisão mais incômoda, acrescentando-lhe trabalhos pesados. (Agência Senado, 2020).

Referências Bibliográficas

BRASIL. ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Autos de devassa da Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, v. 9, 2016.

BRASIL. SENADO FEDERAL. Há 190 anos, 1º Código Penal do Brasil fixou punições distintas para livres e escravos. Agência Senado, 2020. Disponivel em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/ha-190-anos-1o-codigo-penal-do-brasil-fixou-punicoes-distintas-para-livres-e-escravos>. Acesso em: 15 agosto 2022.

BRIGAGÃO, G. Tiradentes. In: CASTRO NEVES, J. R. Os grandes julgamentos da história. [S.l.]: Nova Fronteira, 2018.

DORIA, P. 1789: a história de Tiradentes e dos contrabandistas, assassinos e poetas que lutaram pela independência do Brasil. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2017.

GONZAGA, J. B. O direito penal indígena à época do descobrimento do Brasil. São Paulo: Max Limonad, 1970.

MIGOWSKI, E. Das Ordenações Filipinas ao Código de 1830. Justificando, 2018. Disponivel em: <https://www.justificando.com/2018/10/12/das-ordenacoes-filipinas-ao-codigo-criminal-de-1830/>. Acesso em: 15 agosto 2022.

PIERANGELI, J. H. Códigos Penais do Brasil: evolução histórica. Bauru: Jalovi, 1980.

REIS, J. J. A revolta dos Malês em 1835. Disponível em: <http://educacao.salvador.ba.gov.br/adm/wp-content/uploads/2015/05/a-revolta-dos-males.pdf>. Acesso em: 15 agosto 2022.

ZAFFARONI, E. R.; PIERANGELI, J. H. Manual de Direito Penal. 7ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 1, 2007.