A HIPÉRBOLE E A NATUREZA DE DEUS NO VELHO TESTAMENTO: UMA ANÁLISE DAS FIGURAS DE LINGUAGEM E SUAS IMPLICAÇÕES TEOLÓGICAS 

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102411011043


Josué Vicente Irmão 1


  Resumo 

 O presente artigo analisa a presença de hipérboles no Velho Testamento e como essas figuras de linguagem influenciam a compreensão da natureza de Deus. Embora algumas passagens possam retratar um Deus violento, a essência divina é frequentemente associada ao amor, à misericórdia e à justiça. Este estudo busca discutir o contexto histórico e cultural, as funções das hipérboles na narrativa bíblica e como isso se relaciona com a teologia contemporânea, oferecendo uma nova perspectiva sobre a interpretação das Escrituras.   

Palavras  – chave: Hipérbole, Velho Testamento, Deus, linguagem figurativa, interpretação bíblica, amor.  

1.  Introdução   

O Velho Testamento é uma coletânea rica e multifacetada que inclui uma variedade de gêneros literários, como narrativas históricas, poesias, leis e profecias. Essas categorias não apenas refletem a complexidade da experiência humana, mas também carregam profundas verdades teológicas que moldaram a identidade do povo de Israel. Dentre as várias técnicas literárias empregadas pelos autores, a Hipérbole se destaca como uma ferramenta poderosa usada para enfatizar emoções e realidades espirituais.   

Historicamente, os textos foram escritos em um contexto de opressão, guerra e busca por identidade, o que se reflete nas linguagens drásticas e emocionais. As Hipérboles não foram empregadas apenas para descrever eventos, mas para provocar uma resposta da comunidade e estimular reflexões sobre sua relação com Deus. Apesar de algumas passagens retratarem um Deus severo, a essência divina também é caracterizada pelo amor, pelo desejo de reconciliação e pela justiça.   

Assim, este artigo visa explorar como as hipérboles podem ser lidas como manifestações da complexidade da natureza de Deus, desafiando as interpretações simplistas que podem reforçar visões negativas do divino.   

2.  A natureza das hipérboles  

 Hipérbole é uma figura de linguagem que exagera a realidade para conferir maior expressividade. Utilizada amplamente em diversas culturas e épocas, essa técnica é um recurso eficaz para destacar sentimentos e situações. Exemplos de hipérboles no cotidiano e na literatura, como “carregar o mundo nas costas” e em obras primas da literatura, como “A Canção do Louco” de Fernando Pessoa. O impacto emocional das hipérboles ao criar imagens vívidas que ficam na memória dos leitores e ouvintes.   

 A hipérbole, como uma figura de linguagem, busca transmitir emoções intensas ou realçar a importância de um evento ou ideia. Segundo Alter (1996), esse recurso é valioso para a narrativa, pois permite que o escritor destaque a gravidade e o impacto emocional das situações apresentadas. A utilização de hipérboles no Velho Testamento não é aleatória; elas têm a função específica de gerar uma resposta emocional no leitor, enfatizando a gravidade do pecado e a necessidade de arrependimento.   

 Exemplos de hipérboles podem ser encontrados em passagem como Levítico 26, onde a promessa de bênçãos e maldições é feita em termos extremos, criando um senso urgente de responsabilidade dentro da comunidade. As hipérboles também estão presentes em expressões típicas do dia a dia, mostrando que essa estratégia literária é compreendida universalmente.

3.  Contexto histórico e cultural  

 O ambiente sociopolítico das comunidades do Antigo Oriente Médio, em que os textos bíblicos foram escritos, estava repleto de conflitos e desafios, marcada por guerras, ocupações estrangeiras e busca pela identidade nacional, exigindo uma resposta teológica à opressão e à injustiça. Carr (2005) argumenta que a hipérbole serve como uma forma de resistência cultural, destacando as consequências tanto do pecado quanto da desobediência.  

 O autor Walter Brueggemann (2002) explica que o Velho Testamento foi escrito em um ambiente onde a luta pela identidade e pela fé era prevalente, sendo as narrativas uma forma de preservar e explicar a experiência do povo. Assim, a hipérbole funciona como um meio de expressar a gravidade das ações humanas diante de um Deus que deseja a retidão e o amor. Além disso, a literatura bíblica deve ser vista como uma resposta a esse cenário, onde as hipérboles funcionam não apenas como forma de comunicação, mas também como forma de resistência cultural e religiosa. A função das hipérboles em refletir as preocupações teológicas e morais da época, enfatizando a necessidade de justiça divina entre um povo oprimido.   

4.  A hipérbole como expressão emocional  

 A comunicação emocional é vital na relação entre Deus e o povo de Israel. As hipérboles são frequentemente utilizadas em passagens que expressam a ira divina, como em Gênesis 6:5, onde Deus vê que “a maldade do homem se multiplicou na terra”. A análise de passagens que utilizam hipérboles sobre a ira de Deus, como a destruição de Sodoma e Gomorra (Gênesis 19), onde a linguagem dramática enfatiza a realidade do pecado. Esse exagero ilustra a intensidade do desagrado divino e destaca as implicações morais da desobediência. As hipérboles são uma maneira eficaz de contar histórias e expressar a intensidade de experiências religiosas e emocionais, criando uma conexão emocional entre o texto sagrado e os eleitores.

Além disso, os profetas são notáveis por seu uso de hipérboles, como Amós e Isaías, que utilizam exageros para comunicar a urgência do arrependimento e a necessidade de revisão moral. Por exemplo, no livro de Amós, as descrições da destruição são carregadas de linguagem vívida que busca afetar o coração das pessoas, incentivando a reflexão e a mudança de comportamento.   

5.  Análise de configurações teológicas  

 A complexidade da natureza divina e a intersecção entre justiça e misericórdia emergem fortemente das hipérboles do Velho Testamento. Vanhoozer (2005) sugere que essas figuras literárias não apenas acentuam a santidade de Deus, mas também revelam um amor que convida à reconciliação. Discussão sobre como a tensão entre justiça e misericórdia é um tema recorrente no Velho Testamento, com hipérboles persistindo como um meio para balancear essas qualidades divinas.  

Essa realidade é colocada em contraste com a figura de Jesus Cristo no Novo Testamento. Enquanto Deus se revela como um ser que exige justiça e retidão, a manifestação de Cristo dentro do contexto humano reflete um Deus que se aproxima do homem em amor e compaixão. Em João 3:16, “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho Unigênito”, a hipérbole é substituída pela profundidade do amor que transcende a expectativa, oferecendo salvação no contexto fraternal de restauração universal. Primeiro, fala sobre o amor de Deus, que não é um amor qualquer, mas um amor incondicionalmente!  Ele se entrega ao próprio Filho, mostrando que esse amor é sacrifical e cheio de compaixão! Isso nos lembra que somos valiosos e amados, independente das nossas falhas!  

Além disso, destaca o caráter universal de Deus. C. S. Lewis (1952), em “O Problema do Sofrimento”, aborda esse amor como um “afeto que se desfaz por aqueles que ama”, enfatizando a entrega total de Deus pelos seres humanos. Este amor não se limita a grupos específicos, mas abrange toda a humanidade, refletindo uma teologia inclusiva e acolhedora. No entanto, o impacto de João 3: 16 transcende a análise teológica, influenciando a prática da fé cotidiana. A mensagem de amor, sacrifício e inclusão continua a inspirar e guiar as comunidades cristãs contemporâneas. E uma era de crescente divisão social, a mensagem de amor universal se torna ainda mais relevante, incentivando um diálogo positivo e construtivo entre diferentes culturas e crenças.  

6.  Implicações para a teologia contemporânea  

A leitura do Velho Testamento à luz das hipérboles é crucial para a teologia contemporânea, pois essas figuras destacam a complexidade da experiência humana. A justiça e a misericórdia são apresentadas como aspectos complementares da natureza divina. Essa compreensão se torna ainda mais rica quando analisada à luz do Novo Testamento, onde a encarnação de Deus em Cristo representa um convite ao relacionamento íntimo.  

 O contraste entre a maneira como Deus se revela no Velho Testamento e como se manifesta em Jesus é vital para abordar questões éticas contemporâneas, como a responsabilidade social e a justiça. Assim, a hipérbole não apenas desempenha um papel na comunicação da severidade de Deus, mas também na necessidade de amor e reconciliação que se expressa através de Cristo.   

7.  Exemplos de hipérboles no Velho Testamento  

 Exemplos como Êxodo 15:6, onde a força de Deus é descrita como capaz de dividir  o mar, apresentam uma hipérbole que enfatiza o poder e a proteção divina oferecida a Israel. Nesse sentido, a hipérbole transcende o simples exagero; ela forma uma ponte entre a experiência humana e a realidade de Deus. Exemplos práticos que mostram a correlação entre hipérboles e a responsabilidade moral, refletindo o papel de Israel na história da salvação, evidenciado em passagem como Deuteronômio 28.

 Outro exemplo de hipérbole é encontrado em salmos 46:2- 3, onde a expressão de “fazer a terra tremer” é usada para ilustrar a proteção de Deus mesmo diante do caos. Essas descrições servem não apenas para narrar, mas para confortar e encorajar a fé do povo. Como a hipérbole de “fazer a terra tremer” ou o uso de metáfora de guerra e destruição destaca o impacto de ações humanas sobre a criação e a necessidade do povo de buscar o arrependimento.  

Considerações Finais  

A análise das hipérboles no Velho Testamento ilumina uma compreensão mais rica da natureza de Deus. Embora algumas passagens possam parecer retratar um Deus punitivo ou exterminador, as hipérboles destacam a seriedade das questões morais abordadas na Escritura e a  profundidade do amor divino. A figura de Jesus Cristo no Novo Testamento, pois revela um Deus feito homem que se aproxima do coração humano, desejando relacionamento e reconciliação.   

Esse contraste convida à reflexão sobre a aplicabilidade da mensagem bíblica em nossos dias, promovendo uma espiritualidade que abraça tanto a justiça quanto o amor e a graça. Tal análise permite que consideremos um Deus que não é apenas um juiz severo, mas também um pai amoroso que busca a reconciliação com sua criação. Além disso, ao confrontarmos as hipérboles com uma visão crítica e informada, conseguimos captar a essência do amor divino, compreendendo que, mesmo nas narrativas mais desafiadoras, Deus sempre convida seu povo ao arrependimento e ao amor. As hipérboles, portanto, se tornam uma ferramenta não apenas para instrução, mas para incentivar um engajamento ético e moral que ressoe na vida contemporânea.  

 Referências   

AARON, D. H. (1992). Biblical Interpretation: A Historical and Philosophical Introduction. New York: Oxford Universidady Press.  

ALTER, R. (1996). The Art of Biblical Narrative. New Yor: Basic Books.

BÍBLIA  DE JERUSALÉM. Autores: Traduzida e organizada por vários, com destaque para A. G.L. Dussaut. Editora Sinodal: São Paulo, 2002.  

BRUEGGEMANN, W. (2002). Theology of the Old Testament: Testimony, Dispute, Advocacy. Minneapolis: Fortress Press.  

CARR, D. M. (2005). Readingthe Old Testament: Method in Biblical Study. A. C. Black.  

EICHRODT, W. (1961). Theology of the Old Testament. Philadelphia: Westminster Press.   

GUATTARI, Félix. Dicionário de hipérboles. Editora 34: São Paulo, 1989.  

GOLDINGAY, J. (1994). Old Testament Theology, vol. 1: Israel’s Gospel. InterVarsity Press.   

LEWIS, C. S. (1952). O Problema do Sofrimento. Brasil: Editora Thomas Nelson, São Paulo.

VANHOOZER, K. J. (2005). Is There a Meaning in This Text? Grand Rapids: Zondervan.   

WALTEKE, B. K. & O’NNOR, M. (1990). An Introduction to Biblical Hebrew Syntax.Winona Lake: Eisenbrauns.  

YOUNGBLOOD, R. F. (1997). The Old Testament: Message and Introduction. Nashville: Thomas Nelson Publishers.  


1 Mestrando em Intervenção Psicológica no Desenvolvimento e na Educação 
Universidad Europea del Atlántico 
Parque Científico y Tecnológico de Cantabria 
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