REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ma10202401111359
Paulo Alexandre Sousa Queiroz
Wesley Cosmo Martins
Resumo
O artigo tem como objetivo realizar uma análise acerca do programa Jovem de Futuro, do Instituto Unibanco, e sua interferência na gestão das escolas públicas de ensino médio do estado do Ceará. Foi realizado por meio de pesquisas a fontes secundárias e literatura sobre o tema, corroborando a visão dos mecanismos mercadológicos e a gradual privatização da gestão escolar na rede pública estadual de ensino no Ceará.
Palavras-chave: Gestão escolar; Parceria público-privado; Privatização endógena.
Introdução
Este artigo pretende realizar uma análise sobre a participação de uma entidade não governamental que vem atuando desde 2012, por meio de parceria com a Secretaria de Educação (Seduc) na gestão escolar da rede pública estadual do Ceará, com a introdução de ferramentas e procedimentos de gestão, típicos do setor empresarial, nas escolas. No Brasil, essas práticas vêm ganhando força a partir dos anos 2000 por meio das inúmeras parcerias formalizadas com redes escolares de estados e municípios, e que tem possibilitado uma gama de interferências na forma e conteúdo da gestão escolar nos estabelecimentos de ensino, abrindo assim, espaço para que a gestão pública incorpore elementos cada vez mais próximos de modelos adotados na iniciativa privada.
Na visão de Ball e Youdell (2009) esse modelo pode ser caracterizado como privatização endógena, que envolve a importação de ideias, técnicas e práticas do setor privado a fim de tornar o setor público mais mercadológico.
Essas instituições adentram o campo educacional num claro propósito de introduzir modelos de gestão que floresceram numa economia capitalista e num mercado neoliberal. No Brasil, a ação de entidades não governamentais no campo educacional, procurando dar contribuições no campo da gestão escolar, remonta aos anos de 1990, nas ondas de neoliberalismo e globalização que se alastraram pelo mundo.
Desde então, esse movimento tem se ampliado e ocupado espaço, inclusive na agenda do Ministério da Educação (MEC), que lança Edital para análise, validação e disseminação de um Guia de Tecnologias Educacionais, que desde 2008 já teve quatro edições, e em 2018 foi lançado novo Edital. Dos quatro guias publicados até o momento, tecnologias relacionadas à gestão da educação se fazem presentes, muitas delas propostas por instituições não governamentais, o que evidencia a aquiescência do MEC na reprodutibilidade de ações dessa natureza nas redes públicas.
O presente trabalho concentra sua análise no Projeto Jovem de Futuro, do Instituto Unibanco, cadastrado no Guia de Tecnologias Educacionais 2009, e que ganha alto poder de difusão nas redes estaduais de ensino público, atendendo no período de 2007 a 2024 cerca 1,8 milhão de estudantes em mais de 5.000 escolas públicas de Ensino Médio e Fundamental de 11 redes de ensino (CE, ES, GO, MG, MS, PA, PI, RJ, RN, RS e SP). Assim, neste texto, daremos ênfase ao conteúdo da proposta do programa para as escolas públicas de ensino médio do estado do Ceará.
1. Parcerias na gestão escolar na rede estadual do Ceará
A primeira experiência de inserção de ferramentas e procedimentos de gestão advindos da iniciativa privada na rede estadual de ensino do Ceará se deu em 2001, no terceiro governo de Tasso Jereissati (1999 – 2002) quando em parceria com a Fundação Brava e o Instituto de Desenvolvimento Gerencial (INDG), inicia uma experiência denominada Programa de Melhoria da Educação Básica (PMEB), tendo como objetivo melhorar os indicadores educacionais. Este programa disponibilizava aos gestores escolares ferramentas de gestão, apoiadas pelas tecnologias da informação e comunicação, com o objetivo de contribuir para a construção de bases necessárias para a realização do gerenciamento do ensino e aprendizagem, entendido como a execução do projeto pedagógico da escola.
Em 2008, uma nova experiência de gestão escolar aporta na rede estadual do Ceará, desta feita, dirigida para as escolas de educação profissional que estavam sendo inauguradas. Esse modelo de gestão tem seus fundamentos no documento intitulado Tese (Tecnologia Empresarial Socioeducacional), que por sua vez, constitui-se em um instrumento de apoio à gestão produzido pelo Instituto de Co-Responsabilidade pela Educação (ICE), adotado nos Centros de Ensino Experimental de Pernambuco, em Recife e que foi adaptado da Tecnologia Empresarial Odebrecht (TEO) para aplicação na educação pública de nível médio (LIMA, 2014). Em 2017 são 116 escolas de ensino médio integrado à educação profissional que adotam esse modelo de gestão escolar.
Em 2012, o Ceará adere ao Programa Jovem de Futuro, do Instituto Unibanco, atendendo em 2024 a 90% das escolas de ensino médio propedêutico e 320.912 mil alunos (UNIBANCO, 2024), o que representa a totalidade da rede estadual, retiradas as escolas de ensino médio integrado à educação profissional. Assim, na rede estadual do Ceará, convivem dois modelos de gestão escolar: aquele em que os diretores passam por seleção técnica, consulta à comunidade (eleição) e adotam o modelo de gestão presente no Programa Jovem de Futuro do Instituto Unibanco (IU) e o outro que os diretores se submetem a seleção técnica, são escolhidos a partir do poder discricionário do(a) Secretário(a) e seguem o modelo de gestão fundamentado na Tecnologia Empresarial Socioeducacional (Tese). Cumpre ressaltar que, em variados graus, o Circuito de Gestão conseguiu adentrar em todas as modalidades de escolas no Ensino Médio público do Ceará, a exemplo da estratégia de gestão para equidade racial, iniciada como piloto em 2022 e expandida para todas as escolas da rede estadual em 2024 que objetiva permitir às escolas a realização de uma autoavaliação o nível de suas ações acerca da equidade racial.
Em 2024, há a transferência de tecnologia de definição de metas para a Secretaria da Educação, contando apenas com assessoria técnica do Instituto Unibanco, uma vez que a configuração e definição das metas para a rede estadual era definida pelo Instituto Unibanco até o ano de 2023.
2. Instituto Unibanco, percurso na formalização de parcerias com o Estado do Ceará
A parceria entre a Seduc e o Instituto Unibanco foi formalizada por meio do Termo de Cooperação nº 01/2012 e não envolve repasses de recursos financeiros entre as partes, tendo como finalidade a consecução de interesse público e recíproco, com base legal na Lei nº 3.019/2014. No entanto, o Plano de Trabalho anexo ao Termo de Cooperação, que traça as diretrizes entre os parceiros, delega ao Instituto Unibanco o poder sobre as decisões a respeito das concepções e
conteúdos da proposta implementada, cabendo a Seduc, apenas a operacionalização das etapas previstas no âmbito das escolas, evidenciando assim, uma relação desigual entre os parceiros, sendo que o órgão estadual tem pouco poder de interferência na implementação do projeto.
Esse desequilíbrio no compartilhamento de responsabilidades e atribuições na execução do projeto contraria o artigo 15 da LDB que preconiza que “os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de educação básica que os integram progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira, observadas as normas gerais de direito financeiro público”. Ao concordar que o IU seja responsável pelas decisões sobre as concepções e conteúdos da proposta a ser implementada, a Seduc abre mão de assumir o protagonismo nos rumos da gestão escolar da sua própria rede. Peroni (2016) questiona a respeito de quais intentos atrelam-se quando o estado abre mão de ofertar uma educação pública de qualidade para comprar ou aderir a uma determinada tecnologia que propõe transferências de responsabilidade (CAETANO, 2016).
O projeto prevê a criação de metas de aprendizagem para a rede de ensino, para os órgãos intermediários e para cada escola, a partir de diagnósticos levantados com base em dados relativos a anos anteriores. Esse levantamento vai constituir um plano de ação, que será monitorado de forma presencial e por meio de um sistema informatizado, denominado Sistema de Gestão de Projetos (SGP) a cargo do Instituto Unibanco.
O modelo de gestão escolar adotado pelo IU é denominado de Gestão Escolar para Resultados de Aprendizagem (GEpR) e tornou-se o pilar estrutural do Projeto Jovem de Futuro. De acordo com o GEpR, todos os processos de gestão escolar devem estar voltados para os resultados de aprendizagem, considerado o foco prioritário de todos que compõem a comunidade escolar, sob uma perspectiva de bom funcionamento da escola, visando contribuir para a melhoria na rotina da gestão escolar (UNIBANCO, 2017). A premissa do programa Jovem de Futuro é desenvolver nos gestores a melhoria de técnicas de gestão, para assim melhorar a aprendizagem dos estudantes. Esse método compõe o Circuito de Gestão, que se propõe a organizar o trabalho dos gestores educacionais, por meio da organização, sistematização e orientação dos procedimentos e processos de gestão (UNIBANCO, 2017). A lógica do circuito se fundamenta no método PDCA, criado por Deming (1950), que na tradução simples significa planejar (plan), executar (do), monitorar (check) e agir (act).
Nesse sentido, a proposta introduz termos comuns ao mercado privado e a tecnologias empresariais, como a racionalização dos processos de planejamento e definições de estratégias para o ambiente escolar, com os padrões de qualidade da escola associados, conforme a lógica expressa, ao acompanhamento de resultados em relação a cada etapa planejada (LUMERTZ, 2010; FREITAS, 2012). São utilizados instrumentos denominados de “protocolos”, aplicados por um agente externo à escola, via de regra, da Secretaria da Educação, e eles representam a construção de ações e execução de tarefas que os atores escolares precisam realizar para conquistar o “sucesso” da escola, guiados pelos resultados nas avaliações externas.
As ações propostas no Plano de ação devem estar dirigidas para a melhoria de certos indicadores, e atrelados a isso, são criados mecanismos, por mínimos que sejam, para recompensas e sanções, atribuindo para escola vieses meritocráticos e classificador (CAETANO, 2015), e impondo mecanismos de accountability. O IU também criou um Sistema de Monitoramento e Avaliação de Resultados (SMAR), que realiza uma espécie de análise dos denominados indicadores estruturantes – frequência dos alunos, percentual de aulas dadas, quantidade de estudantes abaixo da média em pelo menos duas disciplinas, e quantidade de disciplinas críticas (UNIBANCO, 2017) – visando construir algum tipo de correlação entre a quantidade de tarefas executadas, produtos entregues e sucesso da aprendizagem dos estudantes à tecnologia desenvolvida pelo instituto.
Ribeiro e Grabowski e Marçal (2017) utilizando o caso Unibanco – Projeto Jovem de Futuro em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul, implementado nos mesmos moldes da experiência do estado do Ceará – alertam que essa transferência de responsabilidade “tanto pela concepção como pela prática pedagógica e educativa do projeto, […] é incongruente com políticas públicas nacionais baseadas na gestão democrática, na inovação curricular e na avaliação emancipatória” (p. 47).
Percebe-se que as ações implementadas e estruturadas através do circuito de gestão estão ligadas somente a indicadores que constituem o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), evidenciando a associação direta com a política de avaliação de larga escala. Nascente, Conti e Lima (2017) ao retratarem sobre as regulações micro e macro escolares apontam que as avaliações externas tornam-se interlocutoras entre o currículo oficial e a real prática, o que segundo os autores é uma inversão já que “as decisões do que e como ensinar deveriam preceder a avaliação, e esta deveria retroalimentar a escola no redirecionamento do currículo” (p. 106).
Compreende-se que a estrutura focal da relação estabelecida encontra-se em processos meios, enquanto que os atores do processo, que deveriam ser os protagonistas, ocupam posições secundárias executando tarefas planejadas. Nesse sentido, a proposta de gestão escolar pela LDB e que vinha sendo gradativamente construída pela rede escolar do estado do Ceará sofre uma inflexão, sendo retirada da gestão escolar a prerrogativa de definir seu projeto político pedagógico de forma democrática e participativa, respeitando os contextos nos quais as escolas estão inseridas e assumindo uma proposta dirigida por um ator externo, a partir de pressupostos nem sempre compartilhados e acordados.
3. Considerações Finais
Por meio da análise temporal de implementação da parceria entre Instituto Unibanco e Secretaria de Educação do Estado, observa-se que, embora tenha havido a transferência de tecnologia para definição das metas da rede estadual para a Secretaria de Educação, o conceito e os cálculos aplicados permanecem incólumes, evidenciando um protagonismo apenas de execução, o que mantêm a influência da concepção ao Instituto Unibanco. Dado que revela a incorporação das ideias privadas à gestão educacional sendo apresentadas como mecanismo de autonomia pela secretaria.
A partir da análise realizada é possível perceber o adentramento de iniciativas associadas a um modelo privatizado de gestão escolar no âmbito da rede pública estadual, sobretudo a partir dos princípios e os métodos organizacionais implementados como consequência do projeto Jovem de Futuro do Instituto Unibanco. Esse movimento implica na implementação de ideias e princípios que transformam a dinâmica escolar, muitas vezes, caminhando à revelia de uma escola includente, democrática e participativa, dando prioridade aos resultados e favorecendo a construção de um paradigma comum nos grandes conglomerados empresariais, que incutem seus interesses por meio da privatização endógena, em que os recursos humanos, a estrutura física e financeira são públicas, contudo, as ideias são privadas.
Referências
BALL, S. J.; YOUDELL, D. Hidden privatisation in public education. Education Review, v. 21, n. July, p. 73–83, 2009.
CAETANO, M. R. Ensino Médio no Brasil e a privatização do público : o caso do Instituto Unibanco. Universidade e Sociedade, 2015.
CAETANO, M. R. O Ensino Médio no Brasil e o Instituto UNIBANCO: um caso de privatização da educação pública e as implicações para o trabalho docente. Revista Educação e Emancipação, v. 9, n. 1, p. 122–139, 2016.
FREITAS, L. C. DE. Os reformadores empresariais da educação: da desmoralização do magistério à destruição do sistema público de educação. Educação & Sociedade, v. 33, n. 119, p. 379–404, 2012.
LIMA, Ana Léa Bastos. Escolas estaduais de educação profissional – a experiência de ensino médio integrado à educação profissional no Ceará a partir de 2008. Dissertação de mestrado. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2014.
LUMERTZ, J. As parcerias público-privadas na educação e a gestão democrática escolar: um estudo de caso sobre o Instituto Ayrton Senna. 2010.
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