A GESTÃO DAS CALAMIDADES E O CONTROLE EXTERNO: OS TRIBUNAIS DE CONTAS NA DEFESA DOS DIREITOS SOCIAIS EM TEMPOS DE CRISE

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11659449


Marco Antônio Castilho Rockenbach1
Eneias Viegas da Silva2


RESUMO

Este artigo examina como os Tribunais de Contas no Brasil têm respondido a crises de calamidade pública, com foco na sua capacidade de garantir a preservação de direitos sociais por meio da fiscalização de contratações emergenciais e alocações de recursos em contextos de urgência. Utiliza-se de uma análise crítica da legislação pertinente e estudos de caso recentes, como a pandemia de COVID19 e inundações no Rio Grande do Sul, para ilustrar os desafios e as práticas eficazes adotadas. O estudo adota uma metodologia que mescla revisão bibliográfica com análise de episódios específicos da atuação do Tribunal de Contas em crises de calamidade pública para identificar tanto práticas adotadas quanto lacunas nas respostas institucionais. A pesquisa, que inclui revisões exploratórias, descritivas e documentais, visa estabelecer diretrizes para fortalecer a capacidade institucional de resposta a situações críticas e fornecer insights sobre estratégias eficazes para futuros desafios. São postos três cenários em perspectiva com relação as ações do Tribunal de Contas antecedentes, concomitante e posteriores às adversidades severas. O artigo contribui para a discussão sobre governança e a proteção de direitos sociais em condições extremas, destacando a necessidade de uma fiscalização ágil e adaptativa que possa responder proativa e reativamente às crises, com o objetivo de preservar a dignidade humana e garantir o bem-estar coletivo.

Palavras-chave: Tribunais de Contas; Direitos Sociais; Calamidade Pública; Fiscalização; Legislação.

ABSTRACT

This article examines how the Courts of Accounts in Brazil have responded to public calamity crises, focusing on their ability to ensure the preservation of social rights through the oversight of emergency contracts and the allocation of resources in urgent contexts. It employs a critical analysis of relevant legislation and recent case studies, such as the COVID-19 pandemic and floods in Rio Grande do Sul, to illustrate the challenges and effective practices adopted. The study adopts a methodology that combines a literature review with an analysis of specific episodes of the Courts of Accounts’ actions during public calamities to identify both adopted practices and gaps in institutional responses. The research, which includes exploratory, descriptive, and documentary reviews, aims to establish guidelines to strengthen institutional capacity to respond to critical situations and provide insights into effective strategies for future challenges. Three scenarios are presented concerning the actions of the Courts of Accounts before, during, and after severe adversities. The article contributes to the discussion on governance and the protection of social rights under extreme conditions, highlighting the need for agile and adaptive oversight that can respond proactively and reactively to crises, with the goal of preserving human dignity and ensuring collective well-being.

Keywords: Courts of Audit; Social Rights; Public Calamity; Oversight; Legislation.

1. INTRODUÇÃO

A escalada no número de emergências e calamidades públicas na sociedade altamente industrializada do século XXI revela uma situação crítica que se desenvolve num contexto contemporâneo hipercomplexo e globalizado, que caracteriza o modelo de sociedade de risco. Nessa realidade, os danos provocados por crises das mais diversas ordens não representam apenas ameaças à produção econômica, mas também constituem riscos sistêmicos que afetam as esferas sociais e políticas (Beck, 2011, p. 27).

Prova disso é o aumento dramático nos decretos de emergência e calamidade pública no Brasil, na última década. Especialmente após a emergência internacional relacionada à COVID-19, declarada em 30 de janeiro de 2020 pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 2020), que gerou a inédita declaração de estado de calamidade pública em nível federal e, com isso, acrescentou uma nova dimensão a compreensão do conceito de calamidade, impactando profundamente áreas que estão muito além da saúde pública.

A crise pandêmica teve um impacto devastador nas finanças públicas, com queda acentuada nas receitas e surgimento de novas despesas. Governos implementaram políticas compensatórias, como auxílios emergenciais, apoio a Estados e Municípios, e alívio fiscal, além dos gastos em saúde. O FMI estima que os gastos globais relacionados à pandemia totalizaram US$ 9,9 trilhões, sendo US$ 1,3 trilhão em saúde, US$ 8,6 trilhões em outras despesas, e US$ 6,1 trilhões em suporte de liquidez. A dívida pública mundial aumentou significativamente, crescendo 13% do PIB global e alcançando 89% no Brasil (Lima, 2021, p. 19).

Em seguida, 2023 estabeleceu um novo recorde preocupante da tendência mundial crescente de calamidades públicas. No contexto nacional, as mudanças climáticas alteraram drasticamente o ambiente natural, trazendo vulnerabilidades agudas, especialmente nas regiões do Nordeste e Sul. No Brasil, Estados como Rio Grande do Sul (2024) e Bahia (2023) emergiram como centros frequentes dessas crises. 

Esse cenário de desastres constantes e severos questiona de maneira inexorável a solidez e a eficácia de nossas instituições, destacando a urgente necessidade de readaptação delas em prol dos direitos sociais fundamentais nos novos cenários de crises iminentes. 

Em meio a essa conjuntura, os Tribunais de Contas emergem não apenas como entidade fiscalizadora, mas como bastião fundamental na arquitetura da governança em tempos de crise. Confrontado com o desafio de adaptar suas funções para responder não somente com celeridade, mas com equidade e eficiência, este órgão tem seu valor magnificado nos momentos em que as demandas por intervenções rápidas e substanciais se tornam vitais para mitigar os impactos sociais adversos gerados pelas calamidades.

Este artigo busca explorar, através de um diálogo detalhado com a literatura existente e análise de casos concretos, como o Tribunal de Contas tem recalibrado suas estratégias de atuação frente às recentes crises, com especial atenção à preservação e promoção de direitos sociais. A investigação se debruça sobre a adequação das práticas de fiscalização e controle em contextos em que a normatividade regular se mostra insuficiente e onde a flexibilidade e inovação emergem como ferramentas indispensáveis.

Adotando uma abordagem metodológica que combina revisão bibliográfica com análise de episódios específicos da atuação do Tribunal de Contas durante crises de calamidade pública, este estudo busca revelar não apenas as práticas adotadas, mas também identificar as lacunas nas respostas institucionais. Além disso, emprega-se uma metodologia de revisão bibliográfica exploratória, descritiva e documental. Tais observações têm como objetivo estabelecer diretrizes para o fortalecimento da capacidade institucional de resposta a situações críticas, proporcionando insights sobre estratégias eficazes para superar futuros desafios.

Ao iluminar as ações do Tribunal de Contas diante de severas adversidades, este artigo propõe-se a contribuir para a reflexão sobre práticas de governança e a urgência de proteger direitos sociais sob pressões extremas. O exame da progressão das ações antecedentes, concomitantes e posteriores às crises reafirma a importância de uma fiscalização que seja simultaneamente ágil e adaptativa, capaz de responder tanto proativa quanto reativamente às crises imprevisíveis, garantindo o postulado da dignidade humana (artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988) como farol que guia todas as nossas instituições em seu papel de garantir os direitos sociais.

2. OS TRIBUNAIS DE CONTAS NA SALVAGUARDA DOS DIRIETOS SOCIAIS

A delimitação precisa dos conceitos de direitos sociais é complexa e não deve ser reduzida a meros direitos prestacionais do Capítulo II da Constituição Federal de 1988. Ao tratar de direitos sociais, aborda-se um espectro amplo e diversificado que, embora compartilhe objetivos comuns, possui naturezas distintas. Esses direitos abrangem áreas como proteção ao trabalho, saúde, educação, alimentação, previdência social, moradia, segurança, lazer, assistência aos desamparados e à maternidade e infância.

Contudo, historicamente, esses direitos nem sempre foram reconhecidos. A teoria econômica keynesiana, amplamente adotada após a Grande Depressão dos anos 1930 e mantida até a crise do petróleo na década de 1970 nos Estados ocidentais, preconizava uma postura ativa e intervencionista do Estado, com aumento dos gastos gerais e, especialmente, dos investimentos para fomentar o desenvolvimento econômico. Esse modelo visava superar as deficiências de demanda do setor privado, temporariamente negligenciando a austeridade e o equilíbrio orçamentário (Abraham, 2020).

Durante esse período, os discursos das finanças públicas e dos direitos sociais permaneceram distantes. Contudo, os eventos do início do século XXI forçaram uma aproximação entre essas áreas. A crise financeira global, especialmente nos Estados mais vulneráveis, rapidamente se transformou em uma crise econômica e social, ameaçando os fundamentos do Estado Constitucional (Costa, 2015, p. 293).

Nesse contexto, emergiu a Escola Neodesenvolvimentista, com economistas como Joseph Stiglitz e Amartya Sen, defendendo a complementaridade entre Estado e mercado para promover o desenvolvimento sustentável e uma distribuição de renda mais equitativa, com foco na equidade social (Abraham, 2020).

Atualmente, independentemente das ideologias de cada Estado, é amplamente aceito que os direitos sociais, mesmo quando resumidos ao mínimo existencial, configuram-se como direitos fundamentais nos Estados democráticos. 

Ainda, soma-se ao quadro de crises financeiras a ocorrência de calamidades públicas de ordem sanitária e ambiental estreita ainda mais a ligação entre a qualidade das finanças públicas de um Estado e sua capacidade de respeitar a Constituição e garantir os direitos sociais.

Paulo Nogueira da Costa observa que um Estado incapaz de se autofinanciar em tempos de crise tem sua soberania comprometida, transformando seus cidadãos em meros instrumentos de satisfação de crédito. O autor argumenta, então, que uma boa governança financeira pública é crucial para garantir os direitos fundamentais (Costa, 2015, p. 294).

A Constituição, enquanto espaço de filtragem, tradução e integração dessas influências externas ao sistema jurídico, harmoniza-as com os valores e princípios fundamentais de cada comunidade. Nesse contexto, Costa se refere à constitucionalização fundamental, afirmando que problemas econômicos, sociais e científicos são também problemas constitucionais, suscetíveis de resolução por meio de decisões político-constitucionais que vinculam as ações do poder público (Costa, 2015, p. 295).

De outra forma, a Constituição e as leis não são barreiras para a resolução de crises, mas sim o próprio caminho para superá-las. Elas oferecem o melhor trajeto, ainda que não o único.

Assim, as situações extraordinárias nos exigem encontrar soluções dentro do marco constitucional, utilizando os mecanismos que o ordenamento jurídico já disponibiliza.

Lenio Streck, reforça essa ideia ao ensinar que as Constituições são as soluções para as crises e que a civilização depende da constitucionalidade, razão pela qual afirma: “sempre fazemos jurisdição constitucional. Uma lei só é lei se for constitucional. Logo, é um exercício pleno e efetivo de jurisdição constitucional” (Streck, 2020).

Assim, nesse processo de filtragem constitucional dos problemas contemporâneos é que as instituições públicas se reposicionam diante dessas racionalidades concorrentes que reivindicam a validade universal da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial, entendido como as condições básicas para o florescimento humano e uma existência digna (Abraham, 2021, p. 98). Esse reposicionamento busca garantir que, mesmo diante de crises, os princípios constitucionais e o núcleo mínimo dos direitos fundamentais sejam preservados e respeitados.

A garantia de tais valores, reafirma a necessidade de uma governança pública racional que otimize o uso dos escassos recursos financeiros sem sacrificar os princípios do Estado de Direito. Nesse contexto, a expansão das atribuições dos três poderes é uma consequência direta do aumento das demandas da sociedade moderna e da complexidade crescente dessas exigências. 

No passado, essa situação era exacerbada pela resistência em reconhecer outros poderes ou órgãos como atores essenciais no processo de formulação de respostas rápidas e adequadas às necessidades dos cidadãos. No entanto essa situação mudou, notadamente após a Segunda Guerra Mundial, quando o papel do controle externo passou a ganhar protagonismo entre os arranjos institucionais como se verá a seguir.

2.1 A evolução do papel dos Tribunais de Contas na gestão pública

A evolução do papel das Cortes de Contas acompanhou a transição da administração pública do modelo patrimonialista para o burocrático, motivada pela incompatibilidade do primeiro com o capitalismo e as democracias do século XIX. A revolução na administração pública gerencial, destacada nos anos 80, trouxe para a gramática dos Tribunais de Contas o modelo de descentralização, de redução dos níveis hierárquicos, de controle por resultados e foco no atendimento ao cidadão, principalmente no Reino Unido, Nova Zelândia e Austrália, inspirada pelos avanços na administração empresarial (Pereira, 1996, p. 10-11).

Seguindo o progresso no âmbito internacional, os Tribunais de Contas brasileiros também passaram por transformações significativas em sua estrutura, atuação e relação com a Administração Pública. Ancorados na missão institucional exercida conforme os poderes, expressos e implícitos dos artigos 70, 71 e 75 da Constituição Federal de 1988, os Tribunais de Contas foram consagradas como órgãos independentes e autônomos, dedicados à fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial dos entes federados, desempenhando cada vez mais protagonismo na Administração Pública.

A natureza híbrida das Casas de Contas, que as define como órgãos de controle, também as distingue das demais instituições republicanas previstas constitucionalmente. Essa característica eleva sua posição estratégica no aparato estatal, permitindo-lhes lidar melhor com a complexidade dos problemas contemporâneos (Ferreira Júnior, 2021, p. 39). Nesse sentido, Paulo Nogueira da Costa destaca que justamente por isso os Tribunais de Contas e instituições congêneres podem contribuir significativamente para uma governança mais eficaz e para a proteção dos direitos sociais dos cidadãos (Costa, 2015, p. 297). 

Como bem observado por Ferreira Júnior (2021, p. 54), diferentemente do Poder Judiciário, que está vinculado ao princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional (artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal), os Tribunais de Contas não são obrigados a analisar todas as questões que lhes são submetidas. Assim, o princípio da inafastabilidade, no âmbito da jurisdição de contas, é aplicado de maneira mitigada, conforme metodologias de auditoria preestabelecidas.

A expansão dos objetivos das Cortes de Contas com o passar dos anos impulsionou o redesenho de processos de trabalho e construção de indicadores de desempenho, por meio de mecanismos de seletividade no exercício do controle externo, priorizando as demandas mais relevantes ou identificadas como sensíveis, observando parâmetros gerais estabelecidos nas Normas de Auditoria Governamentais (NAGs) e nas Normas Brasileiras de Auditoria do Setor Público (NBASP), que são benchmark para todos os Tribunais de Contas do país. Esse planejamento também contempla o Marco de Medição do Desempenho dos Tribunais de Contas que fixa critérios de avaliação à nível nacional com incentivo à adoção do Índice de Efetividade da Gestão Municipal (IEGM) por todos os Tribunais de Contas do Brasil (Silva; Martins e Ckagnazaroff, 2013, p. 259).

Em tempos de crise, as Cortes de Contas têm a autonomia e capacidade para redirecionar esses critérios de seletividade com base em parâmetros como relevância, risco, oportunidade, materialidade, gravidade, urgência e tendência dos temas a serem fiscalizados e julgados. Esse enfoque seletivo é o que torna a atuação das Cortes contemporânea e comprometida em assegurar que recursos e esforços sejam direcionados às áreas de maior impacto e necessidade.

Além das normas de critérios de auditoria, as Cortes de Contas do Brasil evoluíram em seu modo de interação até formar o plexo denominado “Sistema Tribunais de Contas,” formado para alinhar uniformemente elementos chaves do vocabulário ético-administrativo do sistema de controle (BRITO, 2018, p. 16), com vistas a desenvolver sistemas de informação apropriados e estabelecer redes de cooperação com entidades externas. 

Essa estrutura interorganizacional de capaz de reunir instituições em torno de objetivos comuns é composta pelos 33 Tribunais de Contas dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, que juntos formam uma rede de controle sobre a administração pública. A rede de atores de caráter técnico o operacional é complementada, ainda, por outras importantes instituições, como o Poder Legislativo, o Ministério Público, o Tribunal Superior Eleitoral, a ControladoriaGeral da União e o Tribunal de Contas da União (Speck, 2011).

Nesse rumo, à medida que os órgãos de controle assumem um papel de grande amplitude e alcance, eles se tornam essenciais até mesmo em certos aspectos da governança, cujas funções adentram a arena das políticas públicas. Essa expansão da atuação avança na concretização dos direitos e garantias fundamentais, incluindo o direito à boa administração pública e os diversos direitos a ela associados, cujos parâmetros de avaliação são a eficiência, a eficácia e os resultados obtidos, sempre considerando os interesses gerais da sociedade (FERREIRA JÚNIOR, 2021, p. 40).

Esses são alguns dos aspectos que ilustram o progresso dos Tribunais de Contas em direção à proteção dos direitos sociais e à promoção de uma governança responsável. Sob essa perspectiva, é crucial reconhecer o papel dos Tribunais de Contas em momentos de crise. Tal reconhecimento é evidenciado nos casos emblemáticos a seguir examinados, que demonstram a eficácia e a importância da atuação desses órgãos em situações emergenciais.

3. TRIBUNAIS DE CONTAS EM AÇÃO: ESTUDOS DE CASOS 

A emergência sanitária provocada pela pandemia de COVID-19 e a emergência climática que causou enchentes no Estado do Rio Grande do Sul são dois exemplos de crises que desafiaram a administração pública brasileira em diferentes contextos. Ambas as situações exigiram respostas rápidas e eficazes dos poderes públicos para mitigar os impactos sociais e econômicos. 

A pandemia de COVID-19, declarada como emergência de saúde pública internacional pela Organização Mundial da Saúde em janeiro de 2020, levou à promulgação do Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, que reconheceu o estado de calamidade pública no Brasil. Este decreto permitiu ao governo federal adotar medidas extraordinárias para enfrentar a crise sanitária, incluindo a flexibilização das metas fiscais estabelecidas pela LRF.

Da mesma forma, as severas enchentes no Estado do Rio Grande do Sul em 2024 resultaram no Decreto Legislativo nº 36/2024, promulgado pelo Senado Federal, que também reconheceu o estado de calamidade pública. Esse reconhecimento proporcionou aos gestores públicos a possibilidade de implementar ações emergenciais necessárias para a recuperação das áreas afetadas.

O reconhecimento do estado de calamidade pública em ambas as situações acionou os efeitos do artigo 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal. Este dispositivo permitiu a suspensão temporária de algumas exigências fiscais durante o período de calamidade. O artigo autoriza a suspensão do cumprimento dos resultados fiscais fixados na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a necessidade de limitação de empenho, conforme previsto no artigo 9º da LRF.

A aplicação do dispositivo da LRF em momentos de calamidade pública é essencial para que os entes federados possam concentrar seus recursos em ações emergenciais e de recuperação, sem comprometer a responsabilidade fiscal a longo prazo. Em resumo, a ativação desse dispositivo legal proporciona a flexibilidade necessária para que as autoridades enfrentem crises excepcionais de maneira eficaz, enquanto mantém o compromisso com a transparência e a boa gestão dos recursos públicos.

A experiência desses eventos sublinhou a importância de possuir sistemas de controle robustos e adaptáveis, capazes de responder de maneira flexível em tempos de crise. As lições aprendidas a partir dessas situações têm impulsionado mudanças nas práticas regulatórias e nos procedimentos de fiscalização dos Tribunais de Contas, com o objetivo de melhorar a preparação para crises futuras.

3.1 A Pandemia da Covid-19: desafios e respostas do controle externo 

Em resposta à pandemia de COVID-19, o Governo Federal aprovou o Orçamento de Guerra através da PEC nº 10/2020, resultando na Emenda Constitucional nº 106, com intuito de flexibilizar as regras de licitação durante a vigência de calamidade pública. A partir disso, o Tribunal de Contas da União (TCU) emitiu Recomendações para transparência de contratações emergenciais em resposta à Covid-19 (TCU, 2020). Nesse material, a Corte destacou que a flexibilização das regras de contratação pública foi mecanismo essencial para permitir respostas rápidas e eficazes aos desafios impostos pela pandemia, especialmente na área da saúde.

A necessidade de redirecionar o planejamento estratégico para priorizar a fiscalização dos substanciais gastos relacionados à pandemia sublinhou a flexibilidade e eficiência desses órgãos em tempos de crise (Lima, 2021, p. 20). Internamente, os Tribunais de Contas demonstraram uma notável capacidade de adaptação. Implementaram sessões de julgamento por videoconferência, conduziram auditorias remotas, expandiram o teletrabalho e adotaram plenários virtuais (IRB, 2020).  Além disso, foram tomadas diversas medidas para adaptar rapidamente seus procedimentos de fiscalização e controle devido à urgência e ao volume significativo de recursos envolvidos. 

Com os primeiros impactos da pandemia na economia brasileira, o Governo Federal lançou um programa de auxílio financeiro destinado a pessoas físicas que se enquadrassem em determinadas condições previstas na Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020. A partir de então, os Tribunais de Contas e a Controladoria Geral da União (CGU), conjuntamente, foram capazes de cruzar seus bancos de dados para identificar o recebimento irregular do auxílio emergencial.

Com base nos relatórios divulgados por algumas Cortes de Contas, o Conselho Nacional dos Presidentes dos Tribunais de Contas (CNPTC), com o apoio das demais entidades, emitiu a Resolução nº 1/2020, recomendando que os Tribunais de Contas orientassem Estados e Municípios sobre os critérios para a concessão do auxílio emergencial e adotassem medidas para apurar eventuais ações de agentes públicos no recebimento indevido deste auxílio (IRB, 2020).

No final de 2020, após o êxito das ações de fiscalização dos pagamentos do auxílio emergencial, o Tribunal de Contas da União (TCU) teve a oportunidade de elaborar o Relatório de Fiscalizações em Políticas e Programas de Governo (RePP), destinado à Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional. Na ocasião o papel da Corte foi alavancado para realizar uma avaliação antecedente abrangente de programas assistenciais, trabalhistas, previdenciários e tributários ainda não implementados. Em meio às discussões sobre a criação de um novo programa social para substituir o Bolsa Família, o TCU teve a chance de analisar os pontos fortes de cada programa, identificar possíveis falhas no desenho ou na implementação das políticas públicas, assim como considerar elementos importantes para a formulação do novo benefício (TCU, 2022).

O envolvimento proativo do Tribunal de Contas na fase de planejamento programas sociais, ainda mais essenciais em momentos de crise, pode significar a diferença entre uma ação governamental bem-sucedida e uma que falha em atender suas metas e compromete recursos públicos em situações emergenciais.

Em janeiro de 2021, a Agência de Vigilância Sanitária (ANVISA), aprovou a compra de vacinas contra a Covid-19. O progresso inicial da vacinação no Brasil foi lento devido à escassez de imunizantes e à morosidade da aprovação de outras marcas de vacinas pela ANVISA, o que tornou imperativa a atuação do controle externo na fiscalização da execução dos planos de vacinação.

Diante desse cenário, o CNPTC manifestou preocupação e disponibilizou a Recomendação nº 01/2021 aos tribunais de contas do Brasil para atuação diante do aumento no número de casos. Na sequência, a Recomendação nº. 2/2131 acrescentou a sugestões de acompanhamento dos Planos de Vacinação orientando que as Cortes verificassem a existência de planos regionais e locais contendo: projeção de doses, transparência na execução da vacinação e divulgação do plano de vacinação.

A partir de então, as entidades representativas do sistema de Controle Externo Brasileiro decidiram articular uma ação em rede para aumentar a transparência no monitoramento da vacinação contra a Covid-19, por meio da criação de um Hot Site Nacional, lançado em abril de 2021.

Para além desse cenário de adaptação dos seus procedimentos fiscalizatórios, os Tribunais de Contas também tiveram um papel fundamental no acompanhamento do cumprimento das decisões judiciais que estabeleceram diretrizes para a correta aplicação dos recursos públicos durante a pandemia, a exemplo da decisão decorrente da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.357/DF, em que o Supremo Tribunal Federal (STF) deferiu uma medida cautelar na suspendendo temporariamente as exigências de adequação orçamentária previstas na LRF para a criação e expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento da Covid-19.

A referida decisão do Supremo afastou a aplicação dos artigos 14, 16, 17 e 24 da LRF durante o estado de calamidade pública. Esses artigos estabelecem exigências para demonstrar o impacto orçamentário-financeiro e a origem dos recursos para a criação ou ampliação de programas públicos. O artigo 14 trata da renúncia de receita, o artigo 16 exige estimativas de impacto financeiro para novas ações governamentais, o artigo 17 requer a demonstração da origem dos recursos para despesas contínuas, e o artigo 24 impede a criação de benefícios relacionados à seguridade social sem a indicação da fonte de custeio.

A flexibilização das normas orçamentárias e financeiras em situações extraordinárias, integrou o pacote de medidas excepcionais dentro de um regime jurídico-constitucional. Como corretamente afirma Abboud (2020), em momentos de crise, “somos convidados a reconsiderar os mecanismos já existentes para enfrentar as ameaças que nos cercam”. 

Nesse mesmo sentido, Amaral Júnio e Araújo (2021, p. 66) entendem que a formulação de respostas legislativas para a questão do Direito Financeiro em tempos de crise se deu na estruturada conforme os parâmetros institucionais estabelecidos. Os autores afirmam, inclusive, que os mecanismos empregados para flexibilização legal demonstraram elevada maturidade das funções de poder no país, evidenciando que o enfrentamento da crise não ocorreu à margem da moldura constitucional.

A suspensão das exigências da LRF colocou os Tribunais de Contas em uma posição crucial para garantir que, mesmo sem as tradicionais amarras legais, os recursos destinados ao enfrentamento da pandemia fossem utilizados de forma transparente, eficiente e conforme os princípios da administração pública.

Além disso, os Tribunais de Contas continuaram a exercer um rigoroso monitoramento e controle das despesas públicas para evitar abusos e garantir a legalidade dos atos administrativos. Um exemplo notável é o Processo n.º 016.759/2020-6 do Tribunal de Contas da União (TCU), que acompanhou as ações desenvolvidas pelo Ministério da Educação (MEC) e pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) no âmbito da Educação Básica. Este acompanhamento focou especificamente no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e no Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), em resposta à crise provocada pela pandemia de Covid-19.

Devido à situação de calamidade pública, a Lei 13.987, de 7 de abril de 2020, autorizou, de forma excepcional, a distribuição imediata de gêneros alimentícios adquiridos com recursos do PNAE aos pais ou responsáveis pelos estudantes matriculados durante o período de suspensão das aulas nas escolas públicas de Educação Básica, com supervisão do Conselho de Alimentação Escolar. A distribuição desses alimentos foi monitorada através de processos formalmente estabelecidos no TCU e nos outros 33 Tribunais de Contas da federação.

Entidades representativas do Controle Externo brasileiro também desempenharam um papel crucial na uniformização das diretrizes adotadas pelas Cortes de Contas em consenso com relação aos jurisdicionados. A Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) emitiu a Nota Recomendatória n° 02/2023, orientando os órgãos de controle a alertarem os gestores públicos sobre a necessidade de aplicar, até o final do ano, os valores destinados à educação que não foram desembolsados em 2020 e 2021 devido à pandemia de covid-19. A recomendação enfatizou o dever de repasse da diferença entre os gastos dos anos de 2020 e 2021 e o valor estipulado pela Constituição para a manutenção e o desenvolvimento do ensino, conforme o artigo 212 da Constituição, que estabelece que “a União aplicará, anualmente, nunca menos de 18%, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, 25%, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino”.

Dessa forma, a fiscalização dos Tribunais de Contas durante a pandemia abrangeu diversas áreas, como saúde, educação, alimentação e habitação. Os Tribunais de Contas asseguraram que a flexibilização normativa não comprometesse a integridade fiscal e a transparência na gestão dos recursos durante a crise sanitária, garantindo, sobretudo, que os direitos prestacionais dependentes de recursos públicos fossem preservados.

3.2 Enchentes no Rio Grande do Sul: fiscalização em tempos de desastres naturais 

O exemplo mais recente acionamento da interação do Sistema Tribunais de Contas foram as respostas alinhadas dadas pelo TCU e o Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul (TCE/RS) para o enfrentamento da crise provocada pelas enchentes no Estado do Rio Grande do Sul, em 2024. 

O primeiro passo foi dado pelo TCU, na sessão plenária de 8 de maio de 2024, quando o presidente, ministro Bruno Dantas, anunciou a criação do Programa Recupera Rio Grande do Sul. Este programa tem como objetivo acompanhar as ações de reestruturação do estado, facilitando a transparência dos processos, reduzindo a formalidade e flexibilizando a burocracia. A iniciativa visou oferecer segurança aos gestores públicos na tomada de decisões durante a recuperação do estado após as severas chuvas que afetaram a região.

A partir de então, o TCU formou uma força-tarefa de auditores para acompanhar em tempo real as ações de recuperação do estado. Este esforço inclui a colaboração com o governo federal, o Senado e a Câmara dos Deputados, visando flexibilizar as formalidades e reduzir a burocracia para garantir um atendimento eficaz à população. 

Segundo o TCU informa, foram autuados três processos: o primeiro vai analisar as contratações em geral e as obras de infraestrutura (TC 008.817/2024-3), da relatoria do ministro Vital do Rêgo; o segundo vai avaliar a conformidade das medidas adotadas pelo governo federal às normas de finanças públicas e seus impactos fiscais (TC 008.813/2024-8), da relatoria do ministro Jhonatan de Jesus; o terceiro diz respeito aos recursos aplicados para as atividades de Defesa Civil (008.848/2024-6), de relatoria do ministro Augusto Nardes.

Em estreito contato com o TCE-RS para assegurar uma fiscalização ágil e cooperativa, o TCU priorizou contribuir com ações para viabilizar a chegada de socorro e auxiliar na recuperação do Estado, refletindo as lições aprendidas durante a pandemia da Covid-19.

Tanto que, na referida sessão plenária, o presidente Bruno Dantas enfatizou a importância da sensibilidade e da prioridade na resposta às necessidades da população do Rio Grande do Sul. O ministro destacou que, assim como na pandemia da Covid-19, o TCU deve demonstrar sensibilidade às necessidades das pessoas afetadas pela catástrofe climática. O programa Recupera Rio Grande do Sul inclui, em síntese, a autuação de três processos específicos para analisar contratações, obras de infraestrutura, conformidade das medidas governamentais com as normas de finanças públicas e recursos aplicados às atividades de Defesa Civil. 

Em sintonia com o Programa do TCU, o TCE/RS, em 10 de maio de 2024, editou a Cartilha orientativa “Calamidade Pública nos municípios do Estado do Rio Grande do Sul: eventos climáticos de chuvas intensas” orientando os gestores públicos a desenvolverem planos de contingência específicos para situações de calamidade pública.

Para o TCE/RS, estes planos devem incluir protocolos detalhados para ações rápidas e eficazes, abrangendo desde o socorro imediato à população até a reconstrução das comunidades afetadas. A referida cartilha do TCE-RS enfatiza, ainda, a importância de uma resposta coordenada e bem estruturada, destacando a necessidade de medidas excepcionais para garantir condições mínimas de socorro e restabelecimento da normalidade.

No que se refere as contratações de bens e serviços, a TCE/RS destacou a viabilidade disso por meio de dispensa de licitação, conforme previsto na Lei nº 14.133/21. Advertindo, porém, que tais contratações devem ser minimamente instruída, incluindo a descrição dos problemas, a identificação dos locais afetados, e a justificativa da escolha dos contratados e dos preços, conforme manda a Lei. O TCE-RS destacou, ainda, que, mesmo em emergências, é essencial manter a transparência e a legalidade das ações administrativas, evitando abusos e irregularidades.

Outro ponto ressaltado foi a orientação para utilização de regime de adiantamento cujas regras podem ser flexibilizadas para suprimento de fundos, permitindo a aquisição de bens e serviços pelo regime de adiantamento, conforme o artigo 68 da Lei nº 4.320/1964. Esta medida visa agilizar a resposta a calamidades, garantindo que os recursos sejam utilizados de forma eficiente e documentada. Para o TCE/RS, os gestores devem assegurar que os gastos sejam compatíveis com os padrões de mercado e devidamente comprovados, como exemplificado pela Nota Técnica CAGE/DEO 01/2024 do Governo do Estado.

A Cartilha aborda diretamente a garantia de direitos sociais básicos, como o trabalho, estabelecendo que os municípios afetados por eventos climáticos podem contratar servidores temporários conforme previsto na Constituição (art. 37, IX), para situações temporárias de excepcional interesse público. Essa contratação deve ser autorizada por lei, observando a excepcionalidade e a duração dos contratos. Além disso, em situações excepcionais de calamidade pública, pode-se extrapolar o limite legal de horas extras dos servidores, desde que autorizado pela chefia imediata e garantido um período mínimo de descanso entre as jornadas para reduzir os riscos de acidentes (TCE/RS, 2024, p. 14-15).

No que tange ao direito à moradia, a Cartilha dispõe que, para atender às necessidades de desabrigados e desalojados devido a intempéries, pode ser necessário o alojamento provisório dos afetados por um período prolongado. A Corte explica que, embora essa despesa seja atípica para os gastos públicos, é possível sua legitimação se houver recursos disponíveis e se uma série de requisitos forem atendidos e autorizados por lei. Além disso, a Cartilha detalha os critérios razoáveis para justificar esses gastos, como a impossibilidade do assistido se alojar com parentes ou amigos e a incapacidade de arcar com as despesas de aluguel devido a recursos insuficientes ou desemprego (TCE/RS, 2024, p. 20).

O TCE/RS afirma ainda que, se não houver imóveis disponíveis no município, é possível alugar imóveis em localidades próximas. Nesse caso, a Secretaria Municipal responsável pela área social deve realizar o cadastramento e a seleção dos mais necessitados para garantir que os recursos sejam destinados adequadamente (TCE/RS, 2024, p. 21).

Claramente, tais orientações visam proporcionar uma gestão pública mais ágil e eficiente durante crises, garantindo a proteção dos direitos sociais e a integridade dos processos administrativos.  Elas refletem o papel crucial que as instituições de controle têm na moldagem de respostas a emergências, destacando a dinâmica entre a lei, a moral, as finanças públicas e a urgência humanitária em contextos de crise profunda.

3.3 Novas diretrizes para a fiscalização de verbas destinadas à defesa civil: o novo paradigma aprovado pelo CNJ

Tanto diante da emergência da COVID-19 quanto das enchentes no Rio Grande do Sul, é evidente que uma das principais limitações é equilibrar a rapidez necessária para a liberação de recursos públicos com a manutenção de padrões rigorosos de fiscalização para evitar fraudes e corrupção, conforme relatado no documento sobre o impacto da calamidade pública na Lei de Responsabilidade Fiscal.

Em tempos de crise, uma das fontes de recursos públicos são as verbas oriundas de penas de prestação pecuniária, que, quando não destinadas à vítima ou a seus dependentes, podem ser alocadas pelo Poder Judiciário a entidades públicas ou privadas com finalidade social (CP, art. 45, § 1º), previamente conveniadas, conforme a Resolução CNJ 154/2012. Originalmente, a prestação de contas desses recursos deveria seguir os termos da Resolução CNJ 558/2024.

Diante das vicissitudes provocadas pelas chuvas no Rio Grande do Sul, tornou-se imperativo repensar os mecanismos de repasse, fiscalização e aplicação das verbas destinadas à Defesa Civil. Nesse contexto, o Plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na 3.ª Sessão Virtual Extraordinária de 2024 (Acórdão nº 0002567-91.2024.2.00.0000), aprovou novas diretrizes relacionadas à gestão de recursos oriundos de condenações criminais, incluindo a adição do artigo 14-A na Resolução CNJ 558/2024.

O principal objetivo dessa alteração é simplificar o procedimento de prestação de contas dos recursos destinados à Defesa Civil. Devido à gravidade e urgência da situação, a sistemática de prestação de contas prevista na Resolução CNJ 558/2024 mostrou-se inadequada, pois exigia que múltiplas unidades gestoras realizassem a prestação de contas de forma fragmentada, o que poderia atrasar a aplicação eficiente dos recursos.

Para resolver esse problema, o CNJ estabeleceu que, em situações de calamidade pública formalmente reconhecidas, a prestação de contas dos recursos destinados à Defesa Civil deve ser realizada diretamente ao respectivo Tribunal de Contas, independentemente de prévio credenciamento das entidades beneficiadas. Isso implica que as verbas provenientes de penas de prestação pecuniária podem ser transferidas diretamente do Fundo da Defesa Civil do Estado para os Fundos de Defesa Civil dos municípios afetados. Esse mecanismo reconhece a necessidade de descentralização e maior eficácia na alocação de recursos, permitindo uma resposta mais rápida e direcionada às necessidades locais.

O Ato Normativo 0002567-91.2024.2.00.0000, ao alterar a Resolução CNJ n. 558/2024, não apenas simplifica o processo de prestação de contas em situações emergenciais, mas também amplia a competência dos Tribunais de Contas para julgar a adequação da aplicação de tais fundos. A importância dessa alteração normativa foi enfatizada pelo ministro Luís Roberto Barroso, relator da matéria, que destacou que a exigência de prévio cadastramento de entidades poderia impedir a prestação de ajuda humanitária a quem mais precisa. Tal assertiva ressalta o dilema entre manter controles financeiros rigorosos e atender à urgência em mitigar o sofrimento humano decorrente de desastres naturais.

Essa recente mudança normativa aprovada pelo CNJ, atribuindo aos Tribunais de Contas a responsabilidade exclusiva pela fiscalização das verbas destinadas à Defesa Civil em casos de calamidade pública, representa um marco na governança de crises no Brasil. Ela não apenas agiliza a aplicação dos recursos, mas também fortalece os mecanismos de controle, garantindo que a ajuda chegue a quem realmente precisa, de maneira eficiente e transparente. Esta abordagem, endossada pela visão perspicaz do ministro Luís Roberto Barroso, estabelece um precedente valioso para a administração pública brasileira, equilibrando a flexibilidade necessária em tempos de crise com o rigor indispensável na gestão de fundos públicos. 

4. CONCLUSÃO

Em tempos de crise, instituições que se mantêm autorreferenciadas e que sugam recursos públicos sem contribuir significativamente para o bom funcionamento social serão cada vez menos toleradas.

O presente estudo revelou a relevância crescente e a evolução contínua dos Tribunais de Contas no Brasil enquanto defensores dos direitos sociais, especialmente em tempos de crise. A análise detalhada das respostas institucionais durante eventos críticos, como a pandemia de COVID-19 e as enchentes no Rio Grande do Sul, destacou a capacidade adaptativa e a eficácia desses órgãos na fiscalização e controle dos recursos públicos em situações emergenciais.

A evolução das práticas de controle externo, refletida na adaptação de metodologias de auditoria e na implementação de mecanismos de seletividade, demonstrou-se essencial para a priorização das demandas emergenciais e para a garantia da legalidade e transparência nas ações governamentais. A criação de programas específicos, como o Recupera Rio Grande do Sul, e a revisão normativa pelo CNJ, sublinham a necessidade de respostas ágeis e coordenadas em contextos de calamidade pública.

A sociedade atual, exigente e dinâmica, demanda rapidez, adaptabilidade aos desafios contemporâneos e um foco claro nas necessidades da população. Nesse cenário, materiais como a Cartilha de Recomendação para Transparência de Contratações Emergenciais em Resposta à Covid-19 do Tribunal de Contas da União (2020) e a Cartilha de emergência e calamidades Públicas editada pelo Tribunais de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (2024) se mostraram instrumentos ágeis e proativos para orientar e amparar a tomada de decisões urgentes dos gestores públicos. 

A análise dos casos estudados evidenciou como a jurisprudência e as recomendações dos Tribunais de Contas, particularmente as do TCU e do TCE/RS, refletem um compromisso contínuo com a eficiência e eficácia na alocação e utilização dos recursos públicos. A atuação proativa dessas Cortes de Contas, não apenas no monitoramento rigoroso das despesas, mas também na orientação e recomendação aos gestores públicos, reafirma o papel vital dessas instituições na manutenção da ordem fiscal e na proteção dos direitos sociais.

Apesar disso, é preciso que a normatização das Cortes de Contas não seja apenas reativa as crises, mas também capaz de se antecipar a elas por meio de planejamentos robustos e bem estruturados. Nesse sentido é essencial refletir sobre o futuro do controle em tempos de crise para que as instituições possam se planejar de maneira coordenada e eficaz. No contexto dos Tribunais de Contas, é crucial a normatização de um plano permanente de gestão de crises e a adoção de um protagonismo ativo na elaboração e implementação de planos de prevenção a desastres ambientais, em colaboração com o Poder Executivo e o Poder Legislativo.

A conclusão do presente artigo não apenas corrobora a importância dos Tribunais de Contas como agentes fundamentais na proteção dos direitos sociais e na promoção de uma governança responsável e eficiente, mas também aponta para a necessidade de um aprimoramento contínuo de suas funções em resposta às crises.

É imperativo que os Tribunais de Contas elaborem diretrizes e programas específicos para o enfrentamento de crises das mais diversas ordens, levando em consideração a frequência e a intensidade dos fenômenos historicamente ocorridos, utilizando indicadores do passado para embasar suas ações. A experiência adquirida nos casos explorados ao longo deste artigo pode servir como base para o desenvolvimento de um plano abrangente que prepare as Cortes de Contas para situações emergenciais.

Tal plano deve distinguir entre medidas emergenciais e estruturantes, bem como precisam incluir o monitoramento contínuo dos diversos riscos a que estão sujeitos os seus jurisdicionados e contemplar a realização de ações transversais e interinstitucionais com outras entidades públicas.

A atuação dos Tribunais de Contas, conforme demonstrado, vai além do mero controle de gastos; ela inclui a avaliação da eficácia das políticas implementadas para enfrentar crises, assegurando que os recursos sejam direcionados de forma a realmente beneficiar a população afetada. A postura desses órgãos durante as crises sanitárias e ambientais, garantindo que a flexibilização normativa não comprometesse a integridade fiscal e a transparência na gestão dos recursos, destacou a sua importância para a preservação dos direitos prestacionais dependentes de recursos públicos.

Portanto, a atuação dos Tribunais de Contas em momentos de crise é um exemplo claro de como a fiscalização pública pode ser adaptativa e responsiva, garantindo a proteção dos direitos sociais e a promoção de uma governança responsável e eficiente. Este estudo reafirma a necessidade de um contínuo aprimoramento das práticas de fiscalização e controle, incorporando as lições aprendidas e adaptando-se às novas realidades para assegurar a dignidade humana e o bem-estar coletivo.

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1Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Autônoma de Direito – Fadisp; Secretário Geral da Presidência do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso. E-mail: mcastilho@tce.mt.gov.br.

2Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Autônoma de Direito – Fadisp; Secretário Executivo de Gestão de Pessoas do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso. E-mail: eneias@tce.mt.gov.br.