REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202505160809
Guilherme Henrique de Paulo Perez1
João Victor Vieira de Sant’anna2
RESUMO
A função social figura não apenas como irradiador fundamental, mas como prisma jurídico primordial, seja por si, de igual modo quando comparado aos outros textos constitucionais. A evolução histórica do direito, que se baliza pela sua constitucionalização, na qual posicionou o ser humano e sua respectiva dignidade como ponto central, ocasionou a condução do bem como centro. O ter, a certa medida, foi substituído pela ideia do ser. O deslocamento hermenêutico movimentou a dignidade humana como viés principal. Nesta toada, no âmbito do direito autoral, mister que seja compreendido um liame de ponderação quando confrontados o direito de propriedade e o necessário cumprimento da sua função social. O presente estudo, portanto, concentra-se no exame da aplicabilidade do princípio da função social no direito autoral como direito de propriedade constitucionalmente garantido, com balizamento na Lei de Direitos Autorais.
Palavras-chave: Direito Constitucional; Direito Civil; Constitucionalização do Direito Civil; Função Social; Direito de Propriedade; Direito Autoral.
ABSTRACT
The social function appears not only as a fundamental radiator, but as a primordial legal prism, whether in itself, equally when compared to other constitutional texts. The historical evolution of the law, which was guided by its constitutionalization, in which it positioned the human being and its respective dignity as a central point, led to the conduct of good as the center. Having, to a certain extent, was replaced by the idea of being. The hermeneutic shift moved human dignity as the main bias. In this sense, within the scope of copyright, it is necessary to understand a link of consideration when comparing the right to property and the necessary fulfillment of its social function. The present study, therefore, focuses on examining the applicability of the principle of social function in copyright as a constitutionally guaranteed property right, based on the Copyright Law.
Keywords: Constitutional right; Civil right; Constitutionalization of Civil Law; Social role; Property Law; Copyright Law.
INTRODUÇÃO
Inicialmente, faz-se imperativo, para que abordamos a função social no viés do direito autoral, explorarmos a relevância da universalidade dos direitos fundamentais diante da perspectiva da Constituição. Nesse contexto, a universalidade dos direitos fundamentais implica, por definição, que sua aplicação ocorra de maneira indiscriminada.
Os direitos fundamentais – constitucionais – visam atender às necessidades básicas que surgem na sociedade, reconhecidas como valores comuns ligados à proteção da existência e identidade, considerados patrimônio comum da humanidade.
No contexto nacional, particularmente com a Constituição de 1988, a pessoa humana passou a figurar como objeto central do direito. A constitucionalização dele, alinhada à ideia de Estado Social, enfatizou a dignidade da pessoa humana, relegando a uma menor preponderância o direito individual de propriedade, anteriormente considerado absoluto.
A referida mudança teve impacto não somente no âmbito jurídico, mas de igual modo no político, fortalecendo o Estado Democrático de Direito, aproximando desta feita os ideais constitucionais e democráticos.
Destarte, o deslocamento interpretativo da Constituição para o centro do ordenamento jurídico brasileiro acolheu a irradiação de seus princípios e valores, notadamente os direitos e garantias fundamentais, assegurando, assim que, a axiologia Constitucional fosse requisito de validade das normas infraconstitucionais.
Quando compreendido o direito autoral – como direito de propriedade – e a função social abrigados no artigo 5º da Constituição Federal, almeja-se o equilíbrio da aplicação deste instituto naquele direito.
Para tanto, é vital aprofundar-se na ideia da função social, correlacionando-a com a Lei de Direitos Autorais (nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998).
CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO
De proêmio, devemos compreender a magnitude social vivida em tempos atuais. Os reflexos entendem-se como relações sociais cada dia mais complexas, fazendo-se necessária a criação de adaptações jurídicas cotidianas.
O Direito é construído em conjunto com o dinamismo de uma sociedade, conforme suas próprias necessidades, portanto, compreendido como um produto social. Entretanto, o direito não se afasta da ideia da proteção da dignidade da pessoa humana e da coletividade.
No âmbito da linha temporal, com a ascensão da burguesia ao poder, com a Revolução Francesa, o Estado absolutista foi afastado, surgindo neste contexto um Estado liberal, prevalecendo a vontade livre dos particulares. Norteado na época pelas ideias de Adam Smith, a propriedade passou a figurar como centro do ordenamento jurídico civil. O ter era a pedra angular quando comparado ao ser. Desta forma, a propriedade fez-se o fim e a pessoa o meio.
Após a primeira guerra, em conjuntura diversa, notou-se a necessidade de o Estado mostrar-se próximo das relações privadas, a fim de minimizar as desigualdades provocadas pela supremacia do economicamente mais forte. A pessoa deveria ser tutelada como bem jurídico em si mesmo, como valor máximo do ordenamento.
Assim nasce o Estado Social, objetivando harmonizar o desenvolvimento econômico com as questões jurídicas sociais, abalizando a pessoa como centro e não somente como sujeito dos direitos a serem protegidos.
Com a promulgação da Constituição de 1988, no Brasil, a designada “Constituição-Cidadã”, foi adotado o Estado Constitucional Democrático de Direito. Em igual tempo foram consagrados os princípios fundamentais como a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e o pluralismo político, ao lado de uma economia balizada no liberalismo. Restado demonstrado, desta forma, instituições maduras e seguras.
Precedente ao movimento de deslocamento hermenêutico tratado, o Código Civil desempenhava papel fundamental na regulamentação das relações privadas. Via-se, deste modo, tímida a eficácia dos direitos fundamentais nas relações interprivadas.
A Constituição, nesta concepção, passou a figurar como filtro normativo. Além de sua supremacia formal, possui sua supremacia material. Passou a abordar questões anteriormente tratadas apenas na legislação privada, como ensina Anderson Schreiber:
“Fruto de um amplo debate democrático, a Constituição brasileira de 1988 elegeu como valores fundamentais da sociedade brasileira a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social, a redução das desigualdades, a erradicação da pobreza, entre outros valores de cunho fortemente social e humanista. Ao mesmo tempo, permanecia em vigor o Código Civil de 1916, que, inspirado na filosofia liberal e individualista, seguirá, qual servo fiel, a cartilha das codificações europeias dos séculos XVIII e XIX”.
Nesta toada, substancial a necessidade de adaptação da norma infraconstitucional civilista à axiologia principiológica constitucional. As relações privadas deveriam inclinar-se aos direitos fundamentais, para sua ampla eficácia.
Leonardo Brandelli, em seu artigo “A função econômica e social do registrador de imóveis diante do fenômeno da despatrimonialização do direito civil”, aqui em uma aplicação-adaptativa do direito de propriedade imobiliária com o âmbito do direito de propriedade autoral, aponta:
“Ocorre um fenômeno de despatrimonialização do direito privado, que muda o seu alvo da propriedade para o ser humano, trazendo a pessoa humana para o seu centro, abandonando para um segundo plano a propriedade, que passa a ser o meio, e não mais um fim em si mesma”.
Nota-se, neste sentido, a constitucionalização do direito civil, impulsionando o princípio da dignidade da pessoa humana como alvo primordial do ordenamento, transformando, desta forma, o significado dos institutos e a finalidade do direito em si.
Em oportuna lição, Gustavo Tepedino (Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil), alude:
“Imprescindível e urgente uma releitura do Código Civil e das leis especiais à luz da Constituição”.
O constitucionalismo contemporâneo, desta forma, demanda as constantes interfaces com os demais ramos do direito, como o direito autoral. Destarte, galga a sua função principal da resiliência, no sentido de adaptar-se ao cenário social atual e suas contínuas mudanças.
Cumpre reiterar que, todo esse contexto acha-se pautado na proteção da dignidade da pessoa humana e da coletividade. Margeada no princípio da proporcionalidade, portanto, quando os benefícios angariados a todos seja superior às desvantagens provocadas.
O DIREITO DE PROPRIEDADE, O DIREITO AUTORAL E SUA NECESSÁRIA FUNÇÃO SOCIAL
No contexto da propriedade, cabe breve análise perfunctória no tocante à origem da propriedade, no qual dividem-se filósofos e teóricos. Isso porque, há quem entenda ser um direito natural, que, portanto, nasce com o indivíduo, independentemente da existência do Estado. Por outro lado, há quem entenda tratar se de direito que só adquire o homem como consequência à existência do Estado.
É certo que não há conceito fechado acerca do instituto da propriedade. A Constituição Federal o trata em seu artigo 5º, no aspecto de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Seus incisos XXII e XXIII garantem o direito à propriedade, atendendo a sua função social. Concomitantemente encontra-se disposto no Código Civil de 2002 como direito real, no título II do Livro III, que trata do Direito das Coisas.
Difere-se do direito pessoal, pois ultrapassa a relação entre a pessoa e a coisa, possuindo o condão de garantir ao titular do bem poder direto e imediato sobre ele, podendo reivindicá-lo de quem quer que seja, como veremos.
Pode-se dizer que é o mais complexo dos direitos reais, dotado de importância ímpar no ordenamento jurídico brasileiro, que estabelece regras e limitações à sua fruição, a fim de respeitar a função social que lhe compete.
Acerca do tema, o artigo 1.228, do Código Civil, estabelece: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.
Assim, entende-se como propriedade o direito que determinada pessoa, física ou jurídica, tem de usar, gozar e dispor da coisa, bem como de reavê-la de quem a possua ou detenha injustamente.
A propriedade, portanto, é caracterizada tanto por elementos do domínio (usar, gozar e dispor), quanto pelo direito de sequela que diz respeito a reaver a coisa em poder de quem quer que injustamente a possua ou a detenha.
Por direito de usar, entende-se a faculdade de se servir das utilidades da coisa. Já no tocante ao direito de gozar, podemos dizer que abrange a exploração econômica do bem, sendo que o proprietário poderá aferir de seus benefícios e vantagens. Por fim, pelo direito de dispor, entende-se o direito de modificar, vender, locar, se desfazer e até de destruir a coisa, característica mais abrangente do direito de propriedade, mas que não está imune a limitações que garantam o fim social a que deve se destinar a propriedade.
Como ensinam Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona, quando o proprietário reúne todos esses direitos, diz-se que tem propriedade plena.
Toda essa disposição, inclusive, é adaptativa e aplicável na seara do direito autoral, acolhido pelo raciocínio do direito de propriedade.
No entanto, o direito de propriedade não se faz absoluto. Nesta ordem de ideias, a sua garantia requer o respectivo atendimento à função social em si.
A harmonização das fontes normativas a partir dos valores e princípios constitucionais é essencial. O intérprete não deve idealizar um ambiente de liberdades patrimoniais desvinculadas da legalidade constitucional. É necessário considerar a unidade do sistema e interpretar os dispositivos legais de forma sistemática, garantindo harmonia entre eles e respeitando os princípios fundamentais da Constituição.
Destarte, como bem pontua Anderson Schreiber:
“Não se trata apenas de recorrer à Constituição para interpretar as normas ordinárias de direito civil (aplicação indireta da Constituição), mas também de reconhecer que as normas constitucionais podem e devem ser diretamente aplicadas às relações jurídicas estabelecidas entre particulares. A rigor, para o direito civil constitucional não importa tanto se a Constituição é aplicada de modo direto ou indireto (distinção nem sempre fácil). O que importa é obter a máxima realização dos valores constitucionais no campo das relações privadas”.
A tradicional eficácia dos direitos fundamentais, outrora compreendida tão somente existente no elo Estado-Cidadão, incide necessariamente nas relações interprivadas. Denominada eficácia horizontal dos direitos fundamentais, a sua condução às relações entre particulares apresenta-se como juízo ponderador.
A Constituição consagra um modelo de Estado Social, voltado para a promoção da igualdade substantiva. Gilmar Mendes trata ainda da ideia de que os direitos fundamentais possuem uma feição objetiva:
“Que não somente obriga o Estado a respeitar os direitos fundamentais, mas que também o força a fazê-los respeitados pelos próprios indivíduos, nas suas relações entre si. Ao se desvendar o aspecto objetivo dos direitos fundamentais, abriu-se à inteligência predominante a noção de que esses direitos, na verdade, exprimem os valores básicos da ordem jurídica e social, que devem ser prestigiados em todos os setores da vida civil, que devem ser preservados e promovidos pelo Estado como princípios estruturantes da sociedade”.
O direito autoral, compreendido sistematicamente abarcado pelo direito constitucional da propriedade, limita-se, por óbvio, ao devido cumprimento da sua função social. Não há afastamento ou hermenêutica diversa no campo dos direitos autorais. A proteção está atrelada ao exercício efetivo da funcionalidade social.
O direito autoral reputa-se bem móvel para efeitos legais, conforme preceitua o artigo 3º da Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998 (LDA).
Guilherme Carboni traz em sua obra “Função Social do Direito do Autor” o conceito da função social dos direitos autorais:
“O Direito do Autor tem como função social a promoção do desenvolvimento econômico, cultural e tecnológico, mediante a concessão de um direito exclusivo para a utilização e exploração de determinadas obras intelectuais por um certo prazo, findo o qual, a obra cai em domínio público e pode ser utilizada livremente por qualquer pessoa”.
Para fins da compreensão do direito autoral como direito de propriedade assegurado, ou seja, protegido, ampara-se normativamente nos artigos 18 e seguintes da LDA. Não obstante, a leitura deve dar-se como viés econômico inerente aos direitos autorais, como ponto de conformidade para sua proteção e estímulo à criação.
Em contraponto, vale pontuar o fato de a exclusividade do uso não ser absoluta ou ilimitada, visto que a utilização adequada possibilita o desenvolvimento social de forma ampla. A referida limitação ao exercício, que vale reforçar não se faz absoluto, alicerça-se nos artigos 46 e seguintes da Lei nº 9.610/1998.
Há, portanto, a mitigação, norteada pela ponderação, possibilitando desta feita o alcance social da sua função, visto o interesse da coletividade. Os limites ocorrem sob a ótica da axiologia constitucional, lastreados pela finalidade, quais são: informativa, cultural-social e educacional.
Acerca das limitações ao exercício do direito de propriedade no âmbito autoral, elas representam uma conciliação entre interesses constitucionais fundamentais, como o patrimonial do autor, e de outro, os interesses coletivos, como a educação.
Ao mesmo tempo que, o uso não pode prejudicar a exploração comercial da obra. O direito autoral ou de acesso à cultura não podem ser interpretados como opostos, quando na verdade evidenciam uma lógica que objetiva remunerar e proteger o autor e, sincronicamente, não impedir a livre utilização de qualquer interessado na obra.
De um lado, considerando a mens legis da Lei de Direitos Autorais, há corrente doutrinária que entende pela maior inflexibilidade no que diz respeitos às limitações ao direito autoral, sendo prevista em rol taxativo, elencado no artigo 46.
No entanto, essa visão não está alinhada com a abordagem civil constitucional atual, que preconiza a interpretação das normas infraconstitucionais à luz dos princípios constitucionais. Assim, as limitações, que visam promover o uso livre das obras protegidas em benefício da coletividade, devem ser interpretadas de forma extensiva, a fim de garantir a efetiva aplicação da função social, um direito fundamental consagrado no artigo 5º do prisma normativo brasileiro.
Nessa toada, a função social, como já delineado, coloca-se como elemento indissociável do conceito de propriedade, de tal modo que tão somente a propriedade funcionalizada aos interesses socialmente relevantes será tutelada pelo ordenamento jurídico. Deste modo, as limitações, que representam a função social nos direitos autorais, devem ser interpretadas como numerusapertus, de modo a retirar do instituto a lógica puramente patrimonial, adequando-o à nova tábua da axiologia constitucional.
CONCLUSÃO
Diante da constitucionalização do Direito, a ordem jurídica inclinou-se à proteção da pessoa. A eficácia dos direitos fundamentais fez-se de forma horizontal, irradiando-se sobre as relações interprivadas. A dicotomia entre o privado e o público cedeu espaço ao direito constitucionalizado. Os institutos de direito privado, precedentemente em sua essência patrimonialistas, passaram a ter como requisito de validade a axiologia constitucional.
Destarte, o direito do autor e de suas obras, amparados pela Lei de Direitos Autorais, deve ser compreendido em consonância com os direitos fundamentais irradiados pela Constituição Federal. As limitações a eles precisam ser entendidas sob a referida ótica, especialmente no que concerne à função social. De modo que, o acesso e incentivo à cultura estejam em condições de equilíbrio com os direitos autorais, direitos fundamentais de igual estatura.
Diante do arrazoado, não se entende permissível outra ideia, a não ser a mitigação do paradigma de um direito autoral absoluto, a par de ser consolidado o entendimento de que a proteção aos direitos autorais também deve objetivar os interesses socialmente relevantes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRANDELLI, Leonardo. “A função econômica e social do registrador de imóveis diante do fenômeno da despatrimonialização do direito civil”. Boletim do IRIB em Revista, v. 323, p. 48-61, 2005.
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GAGLIANO, Paulo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de Direito Civil. Volume único. 4ª. ed. SÃO PAULO: 2020.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014.
SCHREIBER, Anderson. Direito Civil e Constituição. São Paulo: Atlas, 2013.
TEPEDINO, Gustavo. “Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil”. In: Temas de Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
1Mestrando em Função Social do Direito (FADISP). Especialista em Imobiliário e Direito Notarial e Registral. Escrevente em Registro de Imóveis no Estado de São Paulo.
2Mestrando em Função Social do Direito (FADISP). Especialista em Direito Civil e Direito Notarial e Registral. Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas no Estado de São Paulo.