A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA E SUA CORRELAÇÃO COM A USUCAPIÃO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7427626


Pedro Leonardo Tonaco Alexandre


RESUMO

O presente estudo buscará compreender o significado da posse; da propriedade urbana e sua função social, conforme conceituação dada pela Constituição Federal de 1988; e a correlação da função social com a modalidade de usucapião ordinária, prevista no Código Civil de 2002. Para isso, utilizar-se-á uma pesquisa documental e bibliográfica. Analisar-se-ão diversas doutrinas, teses e autores, buscando os principais pontos da matéria e, também, responder aos assuntos que forem conflitantes entre eles. No primeiro capítulo, o instituto da posse será analisado. Far-se-á uma introdução a respeito desse tema, que, embora seja uma situação de aparência, merece defesa por parte do direito. Um paralelo será traçado entre a Teoria Subjetiva de Savigny e a Teoria Objetiva de Ihering, apontando qual é a atualmente utilizada pelo ordenamento jurídico pátrio e o seu conceito. Além disso, determinar-se-á a sua natureza jurídica. O instituto do fâmulo da posse será aqui tratado, também. Já no segundo capítulo, o direito de propriedade será o objeto de discussão. Em sua análise, um breve histórico será traçado e, após isso, poderemos facilmente conceitá-lo e definir quais são os seus elementos constitutivos. A diferenciação entre a propriedade e o domínio será aqui abordada, também. Por fim, o conceito de função social da propriedade, após realizar um breve histórico, e as suas características serão definidos neste capítulo. No último capítulo, a usucapião ordinária será o principal tema. Nele, apontaremos o conceito desse fenômeno, apontaremos as suas principais características e qual é a melhor doutrina a respeito de alguns pontos divergentes, como, por exemplo, a exigência da averbação do justo título no Registro de Imóveis competente. Após analisar todos os conceitos e pilares da posse, do direito de propriedade, de sua função social e da usucapião ordinária, será possível enxergá-los de maneira conjunta e vislumbrar que a existência de um desses institutos está ligando com o outro, possibilitando, assim, correlacionar a usucapião ordinária com a função social da propriedade.

PALAVRAS CHAVES: direito de propriedade; posse; domínio; usucapião; justo título.

INTRODUÇÃO

Nos primórdios da vida humana, as civilizações eram nômades e sua alimentação era baseada na caça. A partir da descoberta da agricultura, os homens passaram a fixar-se em determinados locais, não mais migrando em decorrência da escassez da caça ou da mudança climática.

Em virtude desse fenômeno, começou a surgir um esboço do que viria a ser, em um futuro bem longínquo, a propriedade. Esse embrião do direito de propriedade sofreu diversas modificações até chegar no atual modelo, que se distingue da posse e da mera detenção, por exemplo, e deve considerar a sua função social para que haja uma real utilização do bem.

O presente estudo buscará compreender o significado da posse; da propriedade urbana e sua função social, conforme conceituação dada pela Constituição Federal de 1988; e a correlação da função social com a modalidade de usucapião ordinária, prevista no Código Civil de 2002.

Para isso, utilizar-se-á uma pesquisa documental e bibliográfica. Analisar-se-ão diversas doutrinas, teses e autores, buscando os principais pontos da matéria e, também, responder aos assuntos que forem conflitantes entre eles.

No primeiro capítulo, o instituto da posse será analisado. Far-se-á uma introdução a respeito desse tema, que, embora seja uma situação de aparência, merece defesa por parte do direito. Um paralelo será traçado entre a Teoria Subjetiva de Savigny e a Teoria Objetiva de Ihering, apontando qual é a atualmente utilizada pelo ordenamento jurídico pátrio e o seu conceito. Além disso, determinar-se-á a sua natureza jurídica. O instituto do fâmulo da posse será aqui tratado, também.

Já no segundo capítulo, o direito de propriedade será o objeto de discussão. Em sua análise, um breve histórico será traçado e, após isso, poderemos facilmente conceitá-lo e definir quais são os seus elementos constitutivos. A diferenciação entre a propriedade e o domínio será aqui abordada, também. Por fim, o conceito de função social da propriedade, após realizar um breve histórico, e as suas características serão definidos neste capítulo.

No último capítulo, a usucapião ordinária será o principal tema. Nele, apontaremos o conceito desse fenômeno, apontaremos as suas principais características e qual é a melhor doutrina a respeito de alguns pontos divergentes, como, por exemplo, a exigência da averbação do justo título no Registro de Imóveis competente.

Após analisar todos os conceitos e pilares da posse, do direito de propriedade, de sua função social e da usucapião ordinária, será possível enxergá-los de maneira conjunta e vislumbrar que a existência de um desses institutos está ligando com o outro, possibilitando, assim, correlacionar a usucapião ordinária com a função social da propriedade.

Ao relacioná-los, perceber-se-á que o proprietário que não respeita a função social de sua propriedade acabará, fatalmente, perdendo a sua propriedade para um terceiro possuidor que, de fato, respeitará a função social e adquirirá a propriedade por meio da usucapião.

1. POSSE

A posse possui relação com o estado de aparência, que significa sinais exteriores, exterioridades, superficialidades. Dessa forma, impossível seria conviver com os demais, se não acreditássemos nos estados de aparência.

Como bem afirma Sílvio de Salvo Venosa (2014), a sociedade não pode dispensar a relevância dada à aparência e o Direito não pode deixar de proteger os estados de aparência, sob, é claro, algumas condições, tendo em vista que se busca uma adequação social entre o que é regulado pelo Direito e o que, de fato, acontece na sociedade. Sempre que o estado de aparência for juridicamente relevante, haverá normas ou princípios de direito que a resguardam. Não é, todavia, qualquer aparência que deve ser protegida, mas somente aquelas que possuem uma relevância social e a sua consequência jurídica. 

Compete ao Direito, entre outras coisas, tutelar as aparências, embora sejam apenas situações fáticas. Assim o é feito em diversas situações, como, por exemplo, no erro, como causa de anulação de um determinado negócio jurídico; pagamento feito ao suposto credor (art. 309, CC); a legítima defesa putativa, no âmbito do Direito Penal. Com base na proteção das aparências, cabe ao Direito fornecer proteção àqueles que, aparentemente, são titulares do direito, ainda que não o sejam realmente. (VENOSA, 2014).

A origem da posse remonta aos primórdios da sociedade humana e relaciona-se com a necessidade de justificar o poder que o homem exerce sobre as coisas e sua necessidade de se apropriar delas. Dessa forma, evita-se a violência, pois se deve considerar como legítimo proprietário aquele que possuir aparências de proprietário. 

Dessa forma, “[…] a posse trata de estado de aparência juridicamente relevante, ou seja, estado de fato protegido pelo direito.”. Assim, o ordenamento jurídico protege “o estado de aparência, situação de fato, que pode não corresponder ao efetivo estado de direito, o qual poderá ser avaliado, com maior amplitude probatória e segurança, posteriormente.”. (VENOSA, 2014).

Essa aparência, embora, para muitos, seja considerada apenas como situação fática, é muito importante, tendo em vista que pode levar a aquisição da propriedade, que será tratada mais à frente nesta monografia. Além disso, o estado aparente, aqui tratado como posse, influenciará no ajuizamento das ações possessórias. Assim, uma posse – ou estado de aparência – que possuir uma duração inferior a ano e dia pode ser contestada por uma ação possessória, permitindo, inclusive, a concessão de liminar initio litis. Todavia, se a posse for superior a esse período, será discutida pela via ordinária, não cabendo liminar inaudita alterando partes. O art. 924 do Código de Processo Civil Dispõe sobre esse assunto.

Finalizando a apresentação, a aparência deve ser vista como um detalhe a mais no que diz respeito à posse. Ainda que, segundo a doutrina, esteja colocada, dentro do nosso conjunto de normas, em uma posição menos relevante, a aparência explica e justifica o estado de fato daquele sujeito que se relaciona com o bem. A proteção daquilo que aparenta ser pressupõe a conceituação e definição legal do que virá a ser propriedade e, até mesmo, dos demais direitos reais, bem como a sua relação com sua destinação econômica e sua função social. (VENOSA, 2014)

O conceito de aparência, para o direito, é extremamente útil, pois tornará mais fácil o entendimento do que é o direito de propriedade e, além disso, influenciará no uso correto do bem, que poderá, se for propriedade imóvel, transformar-se em uma usucapião. Seria um erro não proteger aquele sujeito que aparenta ser o proprietário do bem em face do real proprietário que não respeita a finalidade social de seu bem.

No que tange à posse, embora seja um tema extensamente debatido, ainda há muitas controvérsias. Como bem afirma Roberto de Ruggiero (apud GONÇALVES, 2012), é a matéria do direito que possui mais dificuldades no que diz respeito aos seus mais diversos aspectos, como, por exemplo, sua origem histórica, seu objeto, seus elementos, seus efeitos, etc.

No mesmo sentido, segue Oliveira Ascensão (apud GONÇALVES, 2012, p. 45) ao lembrar que, no que tange à posse, “‘surgem grandes dificuldades terminológicas’ e que o seu fundamento ‘é vivamente debatido, sem que desse debate resultem, aliás, proveitos visíveis.’”. 

Com o intuito de ilustrar ainda mais a dificuldade no que diz respeito a esse tema, José Carlos Moreira Alves (apud GONÇALVES, 2012, p. 45) afirma que “poucas matérias há, em direito, que tenham dado margem a tantas controvérsias como a posse. Sua bibliografia é amplíssima, e constante a afirmação dos embaraços de seu estudo.”.

Percebe-se que, ao discutir esse tema, encontramos poucas unanimidades entre os autores e uma delas é a de que a matéria não é unânime. Para uma discussão mais rica, é importante relembrar o início da discussão sobre esse assunto tão complexo. Dessa forma, impõe-se que seja debatida a dicotomia entre Ihering e Savigny.

1.1 TEORIAS SOBRE A POSSE

Há diversas teorias que tentam explicar o conceito de posse, mas que podem ser subdivididas em dois grupos. O primeiro grupo é o das teorias subjetivas, que possui Friedrich Karl Von Savigny como o primeiro expoente nos tempos modernos. O segundo grupo, por sua vez, é o das teorias objetivas, cujo principal disseminador é Rudolf Von Ihering.

Além desses dois grupos, no início do século XX, surgiram novas teorias que valorizam o caráter econômico e a função social da posse, sendo denominadas de teorias sociológicas. (GONÇALVES, 2012).

1.1.1. TEORIA SUBJETIVA DE SAVIGNY

Savigny, ao interpretar o sistema da posse no direito romano, descobriu a autonomia que a posse possuía em detrimento da propriedade, afirma, taxativamente, que há direitos resultantes, apenas, da posse – o ius possessionis. Sustentou, ainda, que somente esse núcleo de direitos constituía o núcleo próprio da teoria possessória. (RODRIGUES apud GONÇALVES, 2012).

A posse, segundo Friedrich Karl Von Savigny, possui dois elementos centrais: o corpus e o animus. O primeiro é o corpo, consistindo na detenção física do bem. O segundo elemento, por sua vez, é o elemento subjetivo que se encontra na intenção do possuidor em exercer, sobre a coisa, um poder em seu próprio interesse e de defender qualquer tipo de ameaça feita por outrem ao seu direito. Não se trata, especificamente, da convicção de ser dono (opinio seu cogitatio domini), mas, sim, a vontade de possuir a coisa como sua, de ser sujeito do direito de propriedade. (GONÇALVES, 2012, p. 49).

Dessa forma, somente quando o possuidor exerce ou, pelo menos, acha que pode exercer os direitos de proprietário e de defendê-la contra terceiros que, porventura, a ameacem estará realmente configurada a posse.

Os dois elementos – corpus e o animus – são necessários para que se configure a posse, pois, se não existir o primeiro elemento, inexistirá a posse visível, a aparência, e, se faltar o segundo elemento, não existe a intenção de ser possuidor, mas mera detenção. A subjetividade dessa teoria vem desse segundo elemento, qual seja o animus. Assim, “para Savigny adquire-se a posse quando, ao elemento material (poder físico sobre a coisa) vem juntar-se o elemento espiritual, anímico (intenção de tê-la como sua).” (GONÇALVES, 2012, p. 50).

Segundo essa teoria, não são relações possessórias as situações em que as pessoas detêm em seu poder um determinado bem, ainda que juridicamente fundamentada, como, por exemplo, locação, usufruto, mas não a exercem com a intenção de tê-las como dono.

Entretanto, a Teoria Subjetiva de Savigny, principalmente nesse ponto, não sustentou as críticas e questionamentos feitos pela doutrina. O direito contemporâneo não pode afirmar que o arrendatário, locatário e usufrutuário, por exemplo, não possuem a posse da coisa, negando a eles os direitos possessórios simplesmente por possuir a coisa com animo nomine alieno. Eles podem e devem ajuizar as ações possessórias, por exemplo, caso haja esbulho ou turbação do seu direito.

Ihering, ex-aluno de Savigny, contestou esse ponto da Teoria Subjetiva ao afirmar que um bandido, por exemplo, que arrebata a coisa, vindo a adquirir a posse de um imóvel, possuirá, segundo a Teoria Subjetiva, proteção ao seu direito sucessório por meio das ações possessórias contra quem não possuir melhor posse; já aquela pessoa que, por sua vez, detém a posse do bem de maneira justa (usufrutuário, verbi gratia) não poderá proteger-se juridicamente. Este estaria excluído de todo e qualquer direito, não somente no que tange à relação possessória. Não poderá nem se proteger em face daquele para o qual se obrigou a devolver a coisa no termo do arrendamento ou da locação. (SAVIGNY apud GONÇALVES, 2012).

Há, portanto, uma falha nessa teoria. Ao perceber isso, Friedrich Karl Von Savigny procurou uma solução para a sua teoria e criou uma terceira categoria além da posse e da propriedade, que denominou de posse derivada, que ocorrerá quando houver transferência dos direitos possessórios, mas não do direito de propriedade. (GOMES apud GONÇALVES, 2012).

Rizzardo (apud GONÇALVES, 2012) afirma que Savigny, ao admitir a posse sem a intenção de dono, contrariando a Teoria Subjetiva, criada por ele próprio, demonstra uma incoerência no seu pensamento, ainda que tenha tentado fazer uma distinção entre a intenção exigida para a posse e as possibilidades decorrentes e constantes no direito de propriedade. No primeiro caso, a vontade seria de apenas representar (animus repraesentandi). No outro, por sua vez, a vontade do arrendatário, locatário e usufrutuário estariam representando o arrendante, o locador ou o nu-proprietário, que é uma situação diferente daquela que de fato ocorre.

Note-se que tanto o conceito de corpus quanto o conceito de animus sofreram modificações dentro da teoria subjetiva de Savigny. O primeiro, que, em um primeiro momento, era considerado o simples contato físico com a coisa, passou a ser considerada a mera possibilidade de ter esse contato físico, não exigindo, necessariamente, que esse contato físico seja constante. Quanto ao animus, houve uma evolução para que pudesse abarcar também os direitos reais, inclusive no que tange aos bens sem corpo físico, e não somente o domínio. (GONÇALVES, 2012).

Embora falha sua doutrina, é inegável que o grande mérito de Savigny foi o de identificar a autonomia da posse. Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, ao identificar as descobertas da teoria subjetiva de Savigny, dissertam que o uso dos bens passa a ter relevância, independentemente de ser propriedade, e a titularidade formal desse direito subjetivo não acaba com todas as possibilidades de amparo jurídico. A posse começa a ser vista como um fato que merece uma tutela, que decorre da necessidade de proteger o possuidor, manter a paz social e estabilizar as relações jurídicas. Complementando,

A posse seria um fato na origem e um direito nas consequências, pois confere ao possuidor a faculdade de invocar os interditos possessórios quando o estado de fato for objeto de violação, sem que isto implique qualquer ligação com o direito de propriedade e a pretensão reivindicatória dela emanada. (2009, p. 30-31, grifos nossos).

1.1.2. TEORIA OBJETIVA DE IHERING

Rudolf Von Ihering, que foi aluno de Savigny, criou a teoria por ele próprio intitulada de objetiva, pois não dá importância à intenção, animus, quanto o faz a Teoria Subjetiva. (GONÇALVES, 2012). Segundo ele, a intenção já está incluída no corpus e a ênfase surge, na posse, no que tange à exteriorização da propriedade.

Para ele, portanto, desnecessária é a análise do animus, bastando o corpus para que a posse ocorra. Essa expressão, todavia, não traduz o contato físico com o bem, mas na conduta de se portar como o dono. Ela se transparece na forma como o proprietário age com relação à coisa, tendo como base a sua função econômica. Será possuidor aquele que se comportar como dono e, agindo dessa forma, em sua conduta, já estará incluído o animus. Esse elemento volitivo não é a intenção de ser dono, mas apenas agir como habitualmente o faria o proprietário (affectio tenendi), independentemente de querer ser dono. (GONÇALVES, 2012).

Dessa forma, o morador que deixa sua residência trancada enquanto viaja à praia não a possui fisicamente, entretanto não a perdeu, conservando sua posse, uma vez que age da mesma maneira que um proprietário agiria ao viajar de férias. Diferente, entretanto, é a situação da pessoa que deixa um celular em cima do banquinho em uma praça pública enquanto vai fazer um cooper de duas horas no parque. Neste caso, perde-se a posse, pois não é assim que o proprietário de um celular agiria.

Para que se configure a posse, basta observar o seu requisito externo, “uma vez que o corpus constitui o único elemento e suscetível de comprovação. Para essa verificação não se exige um profundo conhecimento, bastando o senso comum das coisas.” (GONÇALVES, 2012, p. 52).

Para Ihering (apud GONÇALVES, p. 52),

[…] a visibilidade da posse tem uma influência decisiva sobre sua segurança, e toda a teoria da aquisição da posse deve referir-se a essa visibilidade. O proprietário da coisa deve ser visível: omnia ut dominum fecisse oportet. Chamar a posse de exterioridade ou visibilidade do domínio é resumir, numa frase, toda a teoria possessória. (grifos do autor).

Essa visibilidade da posse é o que dá segurança e condições para que ela seja defendida em juízo.  A posse não se transparece no poder físico, mas sim na exteriorização do que seria a propriedade. (IHERING apud GONÇALVES, 2012).

Segundo Carlos Roberto Gonçalves (2012), a posse é protegida para garantir o possível uso econômico do bem em relação às necessidades do possuidor, e não para dar a ele o simples prazer de ter o poder físico sobre a coisa. Partindo-se disso, a conceituação fica muito mais clara. Por exemplo: tijolos e materiais de construção não serão guardados dentro de móveis e armários no interior da residência, assim como joias e dinheiro não ficarão expostos na calçada ou no estacionamento do prédio, por exemplo. Cada sujeito sabe exatamente o que fazer com o objeto, segundo suas características, onde guardar e como se portar, como se fosse o proprietário da coisa, o que se transparece em um aspecto normal, que constitui a posse.

Assim, para que a posse seja constatada, faz-se necessário analisar a conduta pelos padrões do homem médio. Por exemplo: se for comum para um homem médio deixar o seu carro parado na vaga, não se extingue a posse; diferente da situação do celular em cima do banco em praça pública, que não é uma conduta normal para o homem médio. Além disso, deve-se sempre levar em conta a destinação econômica da coisa.

A conduta da pessoa em relação ao bem similar à conduta normal do proprietário será posse, independentemente da análise do animus ou intenção de possuir, segundo a Teoria Objetiva de Ihering. O que retira essa característica de posse e o transforma em uma simples detenção é uma norma que assim determina. Nesse caso, a lei desqualifica a relação de posse para mera detenção. Conclui-se que, para Ihering, a detenção será uma posse descaracterizada pela lei, ou seja, uma posse que, obedecendo aos ditames legais, limita-se à detenção. (ALVES apud GONÇALVES, 2012).

É aí que está a principal diferença da teoria subjetiva de Savigny para a teoria objetiva de Ihering:

Para a primeira, o corpus aliado à affectio tenendi gera detenção, que somente se converte em posse quando se lhes adiciona o animus domini (Savigny); para a segunda, o corpus mais a affectio tenendi geram posse, que se desfigura em mera detenção apenas na hipótese de um impedimento legal (Ihering). (PEREIRA apud GONÇALVES, 2012, p. 54).

Ihering conclui que a posse merece proteção porque ela é a visibilidade da propriedade, ou seja, na imensa maioria das situações, o possuidor é o proprietário. Sílvio Rodrigues (apud GONÇALVES, 2012) caracteriza o possuidor como sendo o proprietário presuntivo.

Embora o prestígio do doutrinador Savigny seja enorme, a teoria objetiva de Ihering é a mais utilizada, sendo, inclusive, a adotada pelos Códigos Civis de 1916 e de 2002. No art. 1.196 do Código Civil vigente, considera-se possuidor aquele que se comporta como proprietário. Além disso, em seus artigos 1.198 e 1.208, citam expressamente quais são os casos de mera detenção e não posse.

Embora seja adotada para conceituar posse no Código Civil de 2002, sua teoria objetiva é bastante criticada por subordinar a posse à propriedade, retirando sua independência, diminuindo a posse a um direito inferior, que seria uma simples exteriorização do direito de propriedade, um aditivo à sua tutela.

Além disso, a teoria subjetiva de Savigny, embora vencida pela de Ihering, é utilizada como forma aquisitiva de propriedade na definição de usucapião, tendo em vista esta não prescinde do animus domini, um dos requisitos para a posse da teoria subjetiva.

Clóvis Beviláqua, contrariando o seu próprio mentor, Rudolf Von Ihering, entende que a posse é um estágio antes da propriedade e, portanto, deve ser estudada antes, como sendo um estágio de transição. (FARIAS E ROSENVALD, 2009, p. 33).

1.1.3. TEORIAS SOCIOLÓGICAS

Com o advento das teorias que impõem à propriedade o respeito à sua função social, surgiram as teorias sociológicas, que dão mais importância à parte econômica e à função social da posse, juntamente com uma nova análise do direito de propriedade, que também deve respeitar à sua função social, conforme determina a Constituição Federal da República, são instrumentos jurídicos de enriquecimento da posse, o que permite que, em alguns casos e diante de algumas circunstâncias específicas, venha a preponderar sobre o direito de propriedade. (GONÇALVES, 2012).

Seguindo, assim, a nova tendência do direito privado de que tudo deve respeitar uma função social, não podendo o proprietário dispor como bem entender de seus bens ou, aqui, dá posse deles.

Assim, “quem manifesta a intenção de que todos os outros se abstenham da coisa para que ele disponha dela exclusivamente, e não encontra nenhuma resistência a isso, investe-se […] da posse, e que se pode definir como ‘a plena disposição de fato de uma coisa.’” (ALVES apud GONÇALVES, 2012, p. 57). Aqui, então, a posse de uma pessoa gera a conduta negativa dos outros com relação a esse bem. Dessa forma, “há posse onde há relação de fato suficiente para estabelecer a independência econômica do possuidor.” (FIGUEIRA JÚNIOR apud GONÇALVES, 2012, p. 57).

1.2 CONCEITO DE POSSE

A conceituação de posse depende da cultura local, ou seja, da organização social de uma determinada localidade, país, continente. Malgrado existam vários entendimentos diferentes, Caio Mário da Silva Pereira (apud GONÇALVES, 2012) afirma que:

Em todas as escolas está sempre em foco a ideia de uma situação de fato, em que uma pessoa independentemente de ser ou não ser proprietário, exerce sobre uma coisa poderes ostensivos, conservando-a e defendendo-a. É assim que procede o dolo em relação ao que é seu; é assim que faz o que tem apenas a fruição juridicamente cedida por outrem […]; é assim que se porta o  que zela por coisa alheia […]; é assim que age o que se utiliza de coisa móvel ou imóvel, para dela sacar proveito vantagem. Em toda posse, há, pois, uma coisa e uma vontade, traduzindo a relação de fruição.

Essa, como bem afirmou o autor, é uma constante em todos os conceitos de posse, não importando quais sejam as condições locais. No ordenamento jurídico brasileiro, a transferência de posse é disciplinada pelos arts. 1.196 e seguintes do Código Civil.

De qualquer ponto que se esteja e que se tente definir a posse, ainda que a Teoria Objetiva de Ihering seja a adotada pelo ordenamento jurídico pátrio, faz-se necessário conhecer os conceitos de animus e corpus.

Como se percebe pelas disposições acima, posse é a conduta de dono, que transparece a Teoria Objetiva de Ihering. Assim, sempre que houver o exercício dos poderes de fato, que são aqueles inerentes à propriedade, existirá a posse, exceto quando alguma norma disser que esse exercício configura mera detenção e não posse. (GONÇALVES, 2012). Ainda nesse posicionamento, Joel Dias Figueira Júnior (apud GONÇALVES, 2012), por sua vez, afirma que para se caracterizar a posse dispensa-se o exercício de atos, sendo apenas necessário, em qualquer hipótese, que exista um poder sobre o bem. Portanto, é admissível a posse de um imóvel sem que o possuidor o cultive, explore ou visite.

Como bem traçado anteriormente, corpus é, de forma simples, a exterioridade da propriedade; a aparência de proprietário que o possuidor possui com a coisa. Animus, por sua vez, relaciona-se com a subjetividade, com a intenção do possuidor de agir como se fosse o proprietário.

Para a conceituação da posse, a teoria de Ihering sobreleva-se e é a utilizada. Portanto, possuidor é aquele que aparenta ser o proprietário, exceto quando a lei assim o dispuser, estando o conceito de animus inserido no de corpus

Segundo essa definição, não se obriga do possuidor que esteja sempre em contato físico com o bem, pois não é dessa forma que se comporta o proprietário. O simples fato de uma pessoa sair de férias e viajar, deixando, portanto, de ter contato com o bem, não faz com que se perca a propriedade e também não fará com que se perca a posse. A exteriorização do tratamento dado pelo sujeito à coisa configura-se posse, no entanto, no íntimo, aquele que possui poderá também ser o proprietário. (VENOSA, 2014).

Assim, ao olhar para o corpus, veremos que determinada pessoa possui a relação de possuidor com a coisa, ainda que, na verdade, ela seja a proprietária. Complementando ainda o conceito de posse, há o art. 1.208 do Código Civil, que afirma que a mera permissão ou tolerância não induzem posse.

1.3 POSSE E DETENÇÃO

A superioridade da Teoria Objetiva de Ihering com relação à Teoria Subjetiva de Savigny é verdadeiramente demonstrada na facilidade de diferenciação do possuidor para o mero detentor.

Dessa forma, o detentor é um servidor da posse, também chamado de fâmulo da posse, o qual possui uma relação com a coisa em nome do verdadeiro possuidor ou do proprietário. O próprio ordenamento jurídico retira do detentor as características de possuidor.

Fâmulo da posse é aquele sujeito que não exerce sobre um determinado bem uma posse própria, mas exerce uma posse em nome do real possuidor, em estrita obediência a uma ordem ou sugestão, tendo em vista sua situação de dependência econômica em relação ao possuidor direto ou indireto. (DINIZ, 2007). 

Além disso, com base na Teoria Subjetiva de Savigny, ainda que vencida, aquele que possui a coisa, mas sem nenhum animus de possuidor ou de proprietário, também será considerado como mero detentor. É o caso, por exemplo, de uma pessoa que acha um celular em uma estação de metrô e o leva à administração, para que seja devolvido ao dono. 

Nesse caso, durante o momento em que a pessoa portava a coisa, ainda que perante aos outros parecesse como dono, considerar-se-á como mero detentor, pois sua intenção era de apenas transportar à administração do metrô.

A mera detenção é a relação mais fraca que um sujeito pode possuir com um bem. Segundo Carlos Roberto Gonçalves (2012), ela se encontra em última classificação em uma hipotética escala das relações jurídicas entre um sujeito e uma coisa. Ela possui a forma de vínculo mais franca entre estes dois objetos. Todavia, segundo Ihering (apud GONÇALVES, 2012), pai da Teoria Objetiva sobre a posse, tanto esta quanto a detenção possuem os mesmos elementos, quais sejam: o corpus, caracterizado como o elemento externo; e o animus, que é o elemento interno. Esses dois elementos são intimamente ligados, de modo indissociável, e revelam-se pela conduta de proprietário. 

A única diferença, todavia, é que, na detenção, há uma norma limitando a posse. Naquela há um elemento objetivo, externo, portanto, que se traduz em um dispositivo legal que, com base em algumas situações específicas que preenchem os requisitos da posse e, de fato, parecem posse, suprime dela os efeitos possessórios. A detenção é, portanto, uma posse degradada, que, em virtude de uma determinação legal, transforma-se em detenção. Apenas a posse gera efeitos jurídicos, que confere direitos e pretensões em nome daquele que a possui. Esta é a principal diferença entre esses institutos. (GONÇALVES, 2012). 

Detenção, enfim, pode ser considerada como uma espécie de posse a qual o direito não concede proteção ou a degrada ou a diminui. (VENOSA, 2014). Para diferenciar a posse e a detenção, deve-se olhar a lei, que determinará quais condutas são, na verdade, detenção, embora pareça posse.

1.4 NATUREZA JURÍDICA DA POSSE

Há uma enorme divergência doutrinária no que tange à natureza jurídica da posse. A primeira dessas divergências é a seguinte: a posse é um fato ou um direito?

O pai da Teoria Objetiva da Posse afirma que ela é um direito, tendo em vista que este é um interesse juridicamente protegido, que é a própria definição do direito. A posse é uma condição econômica de uso de uma propriedade e por isso nosso ordenamento jurídico a protege. Tendo em vista que se trata de um fato, é uma relação jurídica (GONÇALVES, 2012). Vários doutrinadores de peso possuem o mesmo entendimento, como, por exemplo, Caio Mário da Silva Pereira e Orlando Gomes.

Uma segunda corrente doutrinária sustenta que a posse é um fato, tendo em vista que não possui valor jurídico próprio e não tem autonomia. Dessa forma, a relação possessória não estará subordinada aos princípios que regulam uma relação jurídica no seu nascimento e extinção e na sua transferência. (GONÇALVES, 2012). 

Há uma terceira corrente doutrinária, chamada de eclética, que afirma que a posse seria, na verdade, direito e fato ao mesmo tempo. Se fosse considerada em sua definição egocêntrica, seria um fato. Já com relação aos efeitos que produz, seria um direito. 

Lafayette Rodrigues Pereira (apud GONÇALVES, 2012) afirma que impossível não reconhecer a posse como um fato e como um direito. É um fato no que diz respeito à detenção e um direito tendo em vista seus efeitos.

Outra divergência doutrinária seria quanto à sua exata colocação no Código Civil.

Tanto Savigny quanto Ihering admitem que a posse é um direito. O primeiro, em contrapartida, entende que ela é um fato também. A divergência continua no que tange à sua exata colocação no Código Civil. Aquele afirma que é um direito pessoal ou obrigacional. Este, por sua vez, afirma que só pode pertencer à categoria dos direitos reais. Segundo Ihering, a posse é um direito real e, portanto, pertence à classe dos direitos reais. Outros doutrinadores, no entanto, defendem que a posse que a posse não é direito real nem pessoal, mas um direito sui generis, tendo em vista que não se encaixa perfeitamente em nenhuma dessas classificações.

A resposta dessas divergências é bastante relevante para o Direito. As ações que envolvem direitos reais exigem a presença do cônjuge na relação processual concernente a bem imóvel. (GONÇALVES, 2012).

Ainda que bastante divergente, há uma inclinação em aceitar a doutrina exposta por Clóvis Beviláqua, que afirma que a posse não é direito real, nem direito pessoal, mas sim uma espécie sui generis.

A posição mais razoável parece ser a doutrina que considera a natureza jurídica como fato e direito, pois ela nasce como um direito e, para ser efetivamente protegida, torna-se um direito. Quanto à sua exata colocação no Código Civil, a tese de que seria uma categoria sui generis é a mais razoável. 

2. PROPRIEDADE

Após discutir a posse, que, em poucas palavras, nada mais é do que um estado aparente de propriedade, discutir-se-á um pouco deste tema, seu contexto histórico, conceito e principais características.

Não há consenso quanto ao surgimento do direito de propriedade. Entretanto, estima-se que ele tenha surgido no início das civilizações, como surgimento de bandos e grupos.

2.1 BREVE HISTÓRICO SOBRE O DIREITO DE PROPRIEDADE

No início das comunidades de seres humanos, a propriedade possuía um sentido comum, coletivo. De forma diversa, entretanto, ainda nessa época, alguns determinados bens eram de titularidade privada, como, por exemplo, uma rede de dormir, um vaso ou panela.

Essa característica é explicada quando lembramos que os seres humanos eram nômades. Dessa forma, aquele território específico seria a morada de um grupo por um determinado período específico, enquanto houvesse abundância de recursos naturais (caça e água, por exemplo). Com o esgotamento dos recursos, essas civilizações retiravam apenas os seus bens privados (rede e vaso, acima citados, por exemplo) e mudavam-se de “propriedade”.

Posteriormente, com o advento da agricultura, que ajudou a sociedade humana a produzir sua própria alimentação, as comunidades começaram a fixar-se em determinados territórios, o que gerou o embrião da propriedade imóvel.

Entretanto, foi no direito romano que, realmente, se achou a inspiração para o atual direito de propriedade. (DINIZ, 2007).

Não é possível determinar o início do direito de propriedade individual. Porém, Sílvio de Salvo Venosa (2014) afirma que nasceu da Lei das XII Tábuas, que determinava que uma fração específica de uma terra seria de uma pessoa, enquanto a colheita durasse. Após esse período, a terra voltaria a ser coletiva, somente podendo alienar os bens móveis.

Com o decorrer do tempo e de sucessivas colheitas, as terras iam sendo, paulatinamente, dadas, durante o período de colheita, às mesmas famílias. Assim, com o passar dos tempos, ia nascendo uma relação com aquela terra. As famílias iam criando uma estrutura específica, construíam uma casa, um cocho para animais, etc. 

Maria Helena Diniz (2007) concorda que o direito romano foi uma das bases para o atual direito de propriedade, mas de uma forma diferente. Segundo ela, no o início da sociedade romana, a propriedade da terra era das cidades ou gens, possuindo cada indivíduo uma restrita fração da terra (meio hectare).

Com o passar dos anos, essa propriedade coletiva das cidades foi sendo substituída pela da família, que, posteriormente, foi aniquilada perante o fortalecimento do pater famílias. Este possuía a titularidade de toda a propriedade e os seus servos deveriam produzir ou fornecer algo a ele em troca do direito de habitar determinada porção de terra.

Posteriormente, com a chegada da idade média, surgiram-se os feudos, onde o senhor feudal possuía a terra e os seus servos deveriam fornecer algo em troca do direito de ali habitar e de segurança, em caso de ataque dos bárbaros. Prevalecia o nulle terre sans seigneur.

Com o passar dos anos, essas cessões passaram a ser perpétuas e transmissíveis pelas linhas masculinas. Havia uma diferenciação entre as propriedades dos nobres e as do povo, que deveria contribuir de forma onerosa em prol daqueles. O feudalismo só se encerrou com a Revolução Francesa.

Em nossa sociedade, o direito de propriedade iniciou-se com as capitanias hereditárias, que funcionavam exatamente da mesma forma que os feudos da idade média.

Invariavelmente o direito de propriedade é reflexo da cultura e do regime político. Nas sociedades do regime socialista, por exemplo, como a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), permitia-se a propriedade exclusiva sobre os bens de consumo pessoal e a “propriedade usufrutuária de bens de utilização direta” (DINIZ, 2007, p. 106). Assim, os particulares possuíam a propriedade sobre o dinheiro, sobre sua casa, bens móveis, por exemplo. Entretanto, não eram proprietários dos bens de economia pública – água, meios de transporte, sociedades empresárias, etc. 

Nas economias capitalistas, por sua vez, poder-se-ia ser proprietário de tudo de forma absoluta. Porém, com o advento do Direito Canônico, principalmente com os expoentes Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, passou-se a obrigar os proprietários a cumprir a função social, obrigando-os a cumprir a função econômica do bem. (VENOSA, 2014).

2.2. CONCEITO DE PROPRIEDADE

Como já visto, o direito de propriedade é bastante mutável e varia muito conforme a cultura e o regime político da sociedade em que ele existe. Portanto, não há, em nosso ordenamento e em qualquer outro, um conceito de propriedade que seja universal, tendo, em cada sociedade, o seu próprio conceito.

No Brasil, onde tal matéria é regida pelo Código Civil Brasileiro, que é do ano de 2002, não há uma conceituação do direito de propriedade, mas se limita a enunciar os poderes do sujeito proprietário em seu art. 1.228.

O conceito de propriedade, tendo em vista que é um produto da sociedade, da cultura e do regime político, será necessariamente dinâmico, embora não seja aberto. Portanto, a garantia constitucional de propriedade deverá respeitar os parâmetros da legislação infraconstitucional, que a regulará, e, por conseguinte, estará submetida a um intenso processo de relativização, como, por exemplo, o respeito à função social da propriedade, que será tratada mais adiante. (GONÇALVES, 2012).

A conceituação é deveras difícil que Caio Mário da Silva Pereira (apud GONÇALVES, 2012, p. 229) afirma que a propriedade “mais se sente do que se define”. Todavia, podemos buscar algumas definições na doutrina.

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2009) afirmam que a propriedade é uma relação jurídica complexa, que é formada entre o titular de um bem e todas as demais pessoas, a coletividade.

Maria Helena Diniz (2007) também ressalta a dificuldade em conceituar a propriedade, mas afirma que a propriedade é o ápice do direito das coisas e abrange todos os gêneros de direitos reais. Afirma, ainda, que giram, ao redor da propriedade, todos os direitos reais sobre coisas alheias. Propriedade é o mais amplo direito do senhorio sobre uma determinada coisa, o direito sobre a coisa mais completa.

Tomando como base as disposições constantes no art. 1228, caput, do Código Civil, ela conceitua, de forma analítica, a propriedade “[…] como sendo o direito que a pessoa física ou jurídica tem, dentro dos limites normativos, de usar, gozar e dispor de um bem, […], bem como de reivindicá-lo de quem injustamente o detenha.”. (DINIZ, 2007, p. 113-114).

Sílvio de Salvo Venosa (2014) conceitua a propriedade de forma semelhante aos outros dois autores. Todavia, ressalta o dever da propriedade em cumprir a sua função social.

Cunha Gonçalves (apud GONÇALVES, 2012, p. 229), conceitua o direito de propriedade da seguinte forma:

O direito de propriedade é aquele que uma pessoa singular ou coletiva efetivamente exerce numa coisa determinada em regra perpetuamente, de modo normalmente absoluto, sempre exclusivo, e que todas as outras pessoas são obrigadas a respeitar.

2.2.1. PROPRIEDADE E DOMÍNIO

Importante, também, é diferenciar a propriedade do domínio. É impossível haver uma relação jurídica entre um sujeito e uma coisa, pois somente existe, propriamente, uma relação jurídica entre dois sujeitos.

Por conseguinte, a propriedade constitui uma relação jurídica entre um sujeito, que é o proprietário, e toda a coletividade, que seriam as demais pessoas que não são proprietárias daquele determinado bem. Para visualizar isso de forma clara, é preciso lembrar que a propriedade possui um caráter absoluto, que significa que somente uma pessoa poderá ser proprietária de um bem específico. O contrário não ocorre, todavia. Um sujeito pode ser dono de vários bens. No caso dos bens imóveis, por exemplo, nasce a titularidade com o registro do título no Registro de Imóveis competente, que tornará a propriedade pública e passará a ser exigível a toda coletividade.

A relação que o dono do bem possui com este, por sua vez, chama-se domínio. Então, o domínio é a relação de submissão direta do bem em relação ao seu titular, mediante o senhorio, pelo exercício das faculdades de usar, gozar, usufruir e dispor, descritas no art. 1.228, caput, do Código Civil vigente. 

Domínio é uma complementação do que consiste a propriedade, tendo em vista que esta se relaciona com a coletividade, e aquela se relaciona com o próprio bem. O domínio é instrumentalizado pelo direito de propriedade. É a titularidade do bem em si. Somente na propriedade plena, que será definida no próximo tópico, teremos o domínio nas mãos do titular do bem. (FARIAS e ROSENVALD, 2009).

Carlos Roberto Gonçalves (2012), fundamentando-se em Washington de Barros Monteiro, por sua vez, afirma que o domínio recai apenas com relação aos bens corpóreos. Significa sujeitar ou dominar, que se corresponde à ideia de senhor de um determinado bem. 

2.3 ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO DIREITO DE PROPRIEDADE

Como já visto, o Código Civil Brasileiro não conceitua a propriedade. Entretanto, em seu art. 1.228, explicita quais são os poderes dos proprietários, que são: usar; gozar; dispor; e reaver.

Quando todos esses elementos estiverem nas mãos de uma só pessoa, ela terá a chamada propriedade plena, que significa que essa pessoa poderá fazer o que quiser com o bem, ressalvando, é claro, as limitações impostas pela legislação, como, por exemplo, o bem social, a função social da propriedade e sua destinação econômica.

Se, por vontade do proprietário, houver um desmembramento desses elementos constitutivos de sua titularidade, haverá uma propriedade limitada do bem em questão. Um exemplo seria o caso do proprietário ter instaurado o usufruto para determinada pessoa, com o devido registro no Cartório de Registro de Imóveis. Tal instituto transfere os direitos de usar e gozar da coisa ao usufrutuário, permanecendo com o proprietário apenas as possibilidades de dispor e reaver o bem. (GONÇALVES, 2012).

2.3.1. DIREITO DE USAR

O direito de usar (jus utendi) é o primeiro elemento constitutivo do direito de propriedade, constante no art. 1.228 do Código Civil. Consiste no direito que o dono possui de servir-se da coisa da maneira que lhe for conveniente, excluindo os demais de uso semelhante.

Essa utilização, todavia, deve ser em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais, conforme se percebe pelo art. 1.228, §1º deste diploma. Deverá respeitar, portanto, conforme estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, o patrimônio histórico e cultural, sendo proibido, de acordo com o parágrafo segundo deste mesmo artigo, ações do proprietário que possuam a finalidade de prejudicar outrem.

O art. 1.412 desse mesmo Código assegura ao usuário o proveito dos frutos naturais da coisa, tendo em vista que não é lógico negá-los o que é fruto direto da coisa. Assim, se se concede a uma pessoa o direito de usar um terreno e lá consta uma macieira, é ilógico negar-lhe o direito de desfrutar de suas maçãs. (FARIAS e ROSENVALD, 2009).

Permite-se até mesmo o uso sem a utilização, tendo em vista que é aceitável o fato de um proprietário manter o bem viável para que seja usado, quando lhe for conveniente.  Assim, se uma pessoa é proprietário de uma casa de praia, não será obrigado que ela use a todo momento essa casa, bastando que ele a mantenha viável para que possa ser futuramente utilizado.

Assim, o direito de usar não se prescreve pela falta de uso. Entretanto, a posse prolongada de um terceiro de boa-fé, que cuidar do bem como se fosse seu, poderá extinguir o direito deste usuário. Como bem percebe Cristiano Chaves de Fatias e Nelson Rosenvald (2009), a falta de utilização do bem poderá ocasionar na perda da propriedade, em decorrência do uso de terceiro, o que é conhecido como usucapião, objeto de estudo do próximo capítulo.

Como se pode observar, o direito de usar um bem poderá transformar-se na obrigação de utilizá-lo, tendo em vista que seu domínio sobre a coisa poderá ser extinto pelo seu não uso, o que configura um uso antissocial.

2.3.2. DIREITO DE GOZAR

O direito de gozar ou usufruir (jus fruendi) é o poder de perceber os frutos naturais – também são percebidos por aqueles que possuem o direito único de usar – e civis do bem e de utilizar economicamente o que dela provier. (GONÇALVES, 2012).

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2009) acrescentam, no conceito dado por Carlos Roberto Gonçalves, que somente se considera como direito de gozar a utilização dos frutos que transcendem aos naturais, pois a utilização destes é faculdade do direito de usar e não do de gozar. Para que este direito fique configurado, é necessário que os frutos utilizados sejam industriais ou civis, como, por exemplo, o aluguel do imóvel.

Além de perceber os frutos da coisa, o direito de retirar os produtos da coisa também configura o jus fruendi. A principal distinção entre frutos e produtos é que os frutos não alteram a substância da coisa principal, mas a retirada do produto altera a substância do bem principal até o seu total esgotamento. Um exemplo de frutos é a maçã, gerada pela macieira, que periodicamente gerará outras maçãs. A lenha é um exemplo de produto, que, com a sua retirada da árvore, extinguirá o bem principal. Os produtos estão inseridos na categoria de bens acessórios, que, conforme determina o art. 92 do Código Civil, seguirão o bem principal.

2.3.3. DIREITO DE DISPOR

A faculdade de dispor da coisa (jus abutendi) consiste na possibilidade que o proprietário possui de alterar a própria substância, característica do bem. Segundo Carlos Roberto Gonçalves (2012), é o elemento constitutivo do direito de propriedade mais importante, pois mais parece dono a pessoa que dispõe da coisa do que a pessoa que apenas usa ou goza dela. A possibilidade de dispor pode ser subdividida em material ou jurídica.

A disposição material do bem é percebida com a utilização em si do bem. Pode ser configurada com o abandono do bem ou a sua destruição. Nessas duas hipóteses, o proprietário pratica atos físicos que consistem na perda da propriedade (art. 1.275, III e IV, CC). No caso de bens consumíveis, como, por exemplo, alimentos, o direito de disposição confunde-se com o direito de fruição.

A disposição jurídica, por sua vez, poderá ser total ou parcial. A total constitui uma mutação subjetiva do próprio direito de propriedade. Assim, quando houver uma disposição jurídica total de um determinado bem, alterar-se-á a própria titularidade do bem. Um exemplo claro disso é a alienação do bem, que, após, passará a ter um novo titular.

Já a disposição parcial acontece no momento em que são colocados ônus reais sobre o bem. Portanto, ocorrerá a disposição parcial quando o proprietário instituir determinado gravame sobre o bem de sua propriedade. A titularidade continua com o proprietário, mas ele, por disposição sua, abrirá mão de algum dos direitos da propriedade, seja o de uso ou o de gozo, por exemplo. As simples relações obrigacionais de locação, arrendamento ou de entrega do bem em comodato não constituirão disposição parcial do bem, pois não haverá a real transferência de algum dos direitos dominiais, mas apenas contraprestação de uma relação contratual.

Constituirá disposição parcial quando o proprietário der, em usufruto, o direito de uso, impossibilitando-o de obter exploração econômica da coisa, ou quando o proprietário puder usar e gozar do bem, mas, por uma cláusula de inalienabilidade, ficar impossibilitado de dispor da coisa, por exemplo. (FARIAS e ROSENVALD, 2009).

2.3.4. DIREITO DE REIVINDICAR

Como bem afirma o art. 1.228 do Código Civil, o proprietário terá a possibilidade de reaver a coisa do poder de quem injustamente a possua ou a detenha. (GONÇALVES, 2012). Trata-se de um elemento externo do direito de propriedade, tendo em vista que consiste em obrigar terceiros a restituir o bem a quem de direito pertence. 

O quinto elemento constitutivo do direito de propriedade é a possibilidade de reivindicá-la (rei vindicatio) de quem injustamente a possua ou detenha, como consequência do seu direito de sequela, que é uma das grandes características dos direitos reais. (GONÇALVES, 2012).

Caio Mário (apud FARIAS E ROSENVALD, 2009) afirma que de nada adiantaria o direito de propriedade possui a possibilidade de usar, gozar ou usufruir e dispor, se não houve a possibilidade de reavê-la de alguém que a possuísse injustamente, ou a detivesse sem algum título.

As faculdades de usar, gozar ou usufruir e dispor relacionam-se à tutela do domínio, o que possibilita o exercício do dominus do dono sobre a coisa. Essa possibilidade de reivindicar o bem de sua propriedade, que, por algum motivo, deixou de sofrer o seu domínio, qualifica-se como a possibilidade conferida ao titular do bem em face de uma lesão ao seu direito subjetivo de propriedade por parte de qualquer pessoa que a obstrua. 

Dessa forma, a possibilidade de reivindicar o bem, que é exercido pela ação reivindicatória, é o produto do direito de sequela ao titular da propriedade como possibilidade de recuperar a posse obtida injustamente por outra pessoa. A ação reivindicatória é tradicionalmente conhecida como a ação a ser utilizada pelo proprietário que não possui a posse em face do possuidor que não possui a propriedade. Segunda a doutrina tradicional, para obter êxito, basta demonstrar o seu direito subjetivo à titularidade da propriedade. (FARIAS e ROSENVALD, 2009).

Para ser sujeito passivo desta ação, basta que a posse atacada seja aquela, mesmo obtida de forma pacífica, ainda que despida dos vícios do art. 1.200 do Código Civil, desamparada de causa jurídica suficiente de respaldar a atividade do possuidor. (FARIAS e ROSENVALD, 2009). Isso significa que, se Fulano ingressar no terreno de Beltrano, durante o dia, sem a utilização de força ou sem violar qualquer relação decorrente de contrato, não poderá ser sujeito passivo em ação possessória, pois não houve esbulho. Entretanto, poderá Beltrano – proprietário no exemplo supra – ingressar com ação reivindicatória, tendo em vista que a posse de Fulano não possui título que a determine.

Por conseguinte, fica claro que a finalidade de uma ação reivindicatória, em última análise da possibilidade de reivindicar sua propriedade, e a recuperação dos poderes de senhorio sobre o bem, e não o reconhecimento de que uma pessoa é a legítima proprietária. Dessa forma, ao obter êxito nessa ação, serão restabelecidos os seus direitos de usar e gozar do bem de sua propriedade.

Todavia, é diferente a situação do possuidor que obtém a sua posse em decorrência de relação contratual, consequente de uma relação jurídica obrigacional entre o possuidor e o proprietário. Dessa forma, para que se possa utilizar da ação reivindicatória, precisa-se, primeiro, discutir a validade do negócio jurídico, para tornar a posse justa em injusta, e, somente depois disso, poderá ajuizar a ação reivindicatória com o intuito de retornar a posse ao proprietário.

O caput do art. 1.228 do Código Civil inovou no ordenamento jurídico ao possibilitar que o detentor figure no polo passivo da ação reivindicatória. Assim, nada obstará que o proprietário ajuíze essa ação em face dos servidores da posse e daqueles que estejam no bem por meio de permissão ou tolerância, mas que se recusam a restituir o bem ao legítimo proprietário. (FARIAS e ROSENVALD, 2009).

Por fim, é impossível afirmar que o direito de reivindicar o bem de quem a injustamente a possua ou detenha é imprescritível, como consequência da perpetuidade do direito subjetivo. O direito de propriedade é, sim, perpétuo, mas deve respeitar a sua finalidade econômica e social, também chamada de função social da propriedade. Como já visto, ainda que o bem não seja usado com frequência, bastando que ele esteja à disposição do proprietário para eventuais utilizações, não se ferirá a sua função social. Caso a sua função social não seja observada, o proprietário perderá a propriedade para o possuidor, que a adquirirá pela usucapião, que será tratado no próximo capítulo, tendo em vista que este deu a adequada finalidade ao bem.

2.4 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
2.4.1. BREVE HISTÓRICO

Eros Roberto Grau (apud FARIAS e ROSENVALD, 2009), ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, sintetiza o caminho evolutivo da propriedade para a propriedade-função. Segundo ele, surgiu de uma revanche da Grécia sobre Roma, de uma vitória da filosofia sobre o direito. A propriedade deixou de possuir suas características absolutas e intangíveis para um direito que deve ser justificado diante de seu fim, serviços e funções, com base na concepção aristotélica.

Como já visto, a propriedade, nos primórdios da civilização, possuía um caráter individualista. Durante a Idade Média, havia uma dualidade de sujeitos. Existia o dono, que era o senhor feudal, eterno possuidor da coisa, e o seu servo, aquele que detinha os direitos de usar e usufruir da coisa, em troca, é claro, do devido pagamento ao senhor feudal. Existia, pelas normas e costumes da época, um sistema hereditário, que permitia que a propriedade jamais deixasse de pertencer àquela determinada família ou pessoa. (GONÇALVES, 2012).

Posteriormente, com a Revolução Francesa, gerada pela ampla insatisfação da população contra o seu regime absolutista, a propriedade passou a ser amplamente individualista. A partir do século XXI, todavia, começou a ser cada vez mais defendido o aspecto social. As encíclicas Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, e Quadragésimo Ano, do Papa Pio XI, influenciaram o nascimento desse aspecto, que culminou na chamada função social da propriedade.

A função social, como pré-requisito para a constituição da propriedade, segundo alguns doutrinadores, nasceu do criador do positivismo, Augusto Comte, ao falar que qualquer pessoa, em qualquer estado da humanidade, é um funcionário público, no sentido de que possui obrigações, de certa forma, definidas. Este paradigma certamente estende-se à propriedade, uma vez que o positivismo enxerga uma indispensável função social, destinada a formar e a administrar os capitais nos quais cada geração prepara os trabalhos da seguinte. (MALUF apud CHEMERIS, 2003).

Outros, contudo, defendem que o principal precursor do caráter social da propriedade seria Léon Duguit. Ele é considerado como o criador do pensamento de que os direitos só são justificados pelo caráter social que devem possuir e, assim, o proprietário deve agir como se fosse um funcionário, no que tange à gestão dos seus bens. (GONÇALVES, 2012).

Para Léon Duguit (apud GONÇALVES, 2012, p. 244-245),

A propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e tende a se tornar a função social do detentor da riqueza mobiliária e imobiliária; a propriedade implica para todo detentor de uma riqueza a obrigação de empregá-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social. Só o proprietário pode executar uma certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza geral utilizando a sua própria; a propriedade não é, de modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responder. (grifo do autor).

Sob a influência de Augusto Comte e de Léon Duguit, o nosso ordenamento jurídico, por meio da promulgação da Constituição Cidadã, incorporou os ideais da função social da propriedade, que podem ser claramente vistos no art. 5º, inciso XXIII da Constituição Federal de 1988 e no art. 1.228, §§1º e 2º do Código Civil de 2002.

2.4.2. DEFINIÇÃO E CARACTERÍSTICAS DA FUNÇÃO SOCIAL

Função social deriva do latim functio, que significa cumprir algo. Utiliza-se essa palavra para exprimir uma finalidade específica de um modelo jurídico, lei, princípio. Trata-se, na verdade, do papel a ser cumprido por um ordenamento jurídico. Quando se fala em função, logo se pensa para quê serve. (FARIAS e ROSENVALD, 2009).

Viveu-se, nos dois últimos séculos, um individualismo exacerbado. Isso deturpou de forma muito intensa o significado de um direito subjetivo, originando a concepção de que o particular poderia fazer o que quisesse com o que fosse seu. Essa consciência coletiva era incentivada pela ideologia dominante, fruto do capitalismo, que teve o seu boom com a Revolução Industrial. Daí, após a constatação desse equívoco, passou-se a inserir o princípio da função social do direito, tendo em vista que o direito deveria direcionar as ações da sociedade para um bem estar social.

Ao adotar o princípio da função social, inseriu-se, nos direitos subjetivos, a consciência de que as leis somente reconhecerão como corretas à persecução de um interesse individual que seja compatível com o interesse social e que com ele interaja. (FARIAS e ROSENVALD, 2009).

Norberto Bobbio, cientista político e filósofo italiano, descrevia a função social através da passagem de um direito repressivo para um direito promocional. Assim, enquanto o primeiro buscava aplicar condutas negativas a todos aqueles que praticassem uma conduta contrário aos interesses da maioria, o segundo procurava incentivar, mediante sanções positivas, capazes de estimular uma atividade, todas as condutas que fossem úteis à coletividade. (apud FARIAS e ROSENVALD, 2009).

O que se percebe é que a função social busca relativizar direitos antes tidos como absolutos. Não se pode mais, à luz desse princípio, utilizar algo de maneira egoísta e sem cumprir a sua finalidade. A conduta incentivada é aquela que promove o uso do bem com respeito à dignidade dos terceiros, que, a princípio, não possuem uma relação direta com a coisa, mas, ainda sim, sairiam lesados com o mau uso da coisa.

A função social da propriedade foi normatizada na Constituição Federal de 1988 e no Código Civil de 2002. O art. 1.228, §2º do Código Civil proíbe que o proprietário pratique atos com a única finalidade de prejudicar outrem. Surgiu com base nos precedentes franceses, consagrando a teoria dos atos emulativos e o abuso de direito da propriedade.

Segundo Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2009), esse dispositivo já nasceu ultrapassado, pois coloca o abuso de direito em uma situação de subjetividade, onde o ato emulativo necessitaria da prova do abuso de direito para ocorrer, o que é incompatível com a teoria finalista do art. 187 desse mesmo diploma legal, que configura o ato ilícito apenas no sentido objetivo. Outra crítica é no que diz respeito ao fato de não introduzir a função social, porque “vedação aos atos emulativos consiste na imposição de limites negativos e externos ao direito subjetivo da propriedade” (FARIAS e ROSENVALD, 2009, p. 202). Todavia, a função social da propriedade vai adiante, tendo em vista que estabelece limites internos e positivos aos direitos do proprietário.

Gustavo Tepedino (apud FARIAS e ROSENVALD, 2009) possui o mesmo entendimento. Afirma que os tais atos emulativos, que são atos realizados com o único intuito de lesar alguém ou o seu direito, sem nenhuma conexão com a finalidade do bem, são totalmente desnecessários no atual sistema legal, uma vez que a função social é um elemento interno do domínio. Assim, a propriedade deve submeter-se ao controle social de sua finalidade, que deve ter como fim último o bem estar social – como bem afirma a Constituição, muito antes do que com relação aos atos emulativos.

De toda sorte, a cláusula do abuso de direito, contida no art. 187 do Código Civil,é uma cláusula geral. Assim, se, em princípio, o uso é lícito, satisfazendo, assim, os seus fins econômicos e sociais, o exercício do seu direito de forma manifestamente excessiva com o intuito de lesar a finalidade para a qual foi criada poderá transformar o uso lícito em uso ilícito e, dessa forma, será considerada como abuso de direito.

Essa interpretação é dúbia, sendo inclusiva tratada pelo Conselho de Justiça Federal, que aprovou o Enunciado nº 49. Seguindo esse norte, deve-se desconsiderar o dolo, ou seja, a intenção para que se configure o abuso de direito no campo do direito de propriedade.

Nesse sentido, aquela máxima que afirma que tudo o que não fosse proibido é permitido ao particular fica vencida, uma vez que, ainda que seja proprietário do bem, não poderá utilizá-lo com o fim exclusivo de prejudicar terceiros, devendo dar um fim adequado ao bem, respeitando a finalidade para a qual aquele bem foi criado. Um particular, por exemplo, não poderá deixar sua casa trancada por toda a eternidade apenas com o propósito de valorizar as demais propriedades da região, diminuindo a oferta do mercado, sabendo que não tem o menor interesse de utilizá-la, vendê-la, alugá-la ou qualquer outro fim.

3. USUCAPIÃO ORDINÁRIA

Após discorrer sobre o direito de propriedade urbana e sua função social, explicitar-se-á a respeito das modalidades de usucapião, com ênfase nos tópicos mais polêmicos e não pacíficos. Em um primeiro momento, falar-se-á sobre a modalidade de usucapião ordinária. Já em um segundo momento, a modalidade extraordinária será tratada.

A usucapião ordinária é aquela descrita no art. 1.242 e em seu parágrafo único do Código Civil de 2002. Modalidade essa que difere da usucapião extraordinária, descrita no art. 1.238 do Código Civil, por uma série de motivos.

O lapso temporal, na modalidade ordinária, é de cinco ou dez anos, a depender do caso, que se poderá enquadrar no caput ou no parágrafo único do artigo supracitado. Já na modalidade extraordinária, esse interstício poderá ser de quinze ou de 10 anos, dependendo, também, da hipótese de enquadramento. (SALLES, 2010). Note-se a enorme diferença temporal entre as duas hipóteses.

Ainda diferenciando-as, a modalidade extraordinária dispensa a presença do justo título e da boa-fé, enquanto a usucapião ordinária torna indispensáveis esses requisitos, até porque, em razão da existência deles, o legislador diminuiu o tempo necessário para que se concretizasse.

A usucapião ordinária possui seis requisitos, quais sejam: 1º) posse (deve ser aquela mansa e pacífica); 2º) tempo (conforme determina o art. 1.242 do Código Civil, 10 ou 5 anos); 3º) animus domini (é a vontade de ter a coisa como dono); 4º) objeto hábil; 5º) justo título; e 6º) boa-fé.

A maior diferença entre a modalidade ordinária, que será aqui discutida, é a extraordinária está nesses dois últimos requisitos, que não existem nesta última modalidade de usucapião. Para a modalidade extraordinária, é indiferente a existência da boa-fé e do justo título.

3.1 JUSTO TÍTULO

Em uma definição completa, José Carlos de Moraes Salles (2010, p. 120) afirma:

Título é o fundamento de um determinado direito. É o ato ou fato de que resulta um direito ou uma obrigação. Por isso se diz que alguém é sucessor a título universal ou que figura numa relação a título de credor. No tocante à propriedade, título é o fato jurídico em virtude do qual se adquire ou se transfere essa mesma propriedade ou domínio. Como exemplo: podemos mencionar a venda, a troca, o legado e a dação em pagamento. (grifo do autor).

O art. 1.242 do Código Civil afirma que o título deva ser justo, que seria, portanto, ato ou fato com força suficiente para resultar no direito de transferência da propriedade. Ainda que esse conceito de justo título seja fácil de ser dissecado, há críticas quanto à sua qualificação dada pela norma legal, pois ela seria imprópria e um termo muito mais adequado seria o de ‘título hábil’, conforme ensinamentos de Orlando Gomes (apud SALES, 2010).

Daí, entretanto, poderia vir o questionamento: se o título é justo ou hábil, por que não transferiu efetivamente a propriedade? Esse título, na verdade, seria hábil apenas aparentemente. Estaria, assim, eivado de algum defeito que impediria a produção do resultado pretendido, qual seja a efetiva transferência, sendo, assim, ineficaz.

Sílvio de Salvo Venosa, ensina-nos que a lei:

[…] não se refere evidentemente ao documento perfeito e hábil para a transcrição. Se houvesse, não haveria necessidade de usucapir. O titulus ou justa causa do Direito Romano deve ser entendido não como qualquer instrumento ou documento que denote propriedade, mas como ‘a razão pela qual alguém recebeu a coisa do precedente possuidor’. (RIBEIRO apud VENOSA, 2014, p. 215).

Para que haja uma real concretude quanto ao que seria o justo título, faz-se necessário analisar o caso concreto. Somente no decorrer da ação é que se verificará se o título será justo ou não. Em regra, para que ele seja justo, deve-se levar em conta a possibilidade abstrata de transferir determinada propriedade. Essa noção está ligada diretamente com a boa-fé, que será tratada mais adiante.

O decurso de tempo, exigido pela norma, seria para que esse ato convalidado, sanando, assim, suas falhas e irregularidades, tendo em vista sua boa-fé, e possibilitasse ao possuidor a aquisição do bem.

Ainda na definição de justo título, Lenine Nequete (apud SALLES, 2010, p. 121) diz que justo título seria:

[…] todo ato formalmente adequado a transferir o domínio ou o direito real que se trata, mas que deixa de produzir tal efeito em virtude de não ser o transmitente senhor da coisa ou do direito, ou de faltar-lhe o poder legal de alienar. A aquisição a non domino é a hipótese mais frequente.

Surge, assim, o seguinte questionamento: quais seriam as causas que levariam à ineficácia desse ato translativo? Com base nos ensinamentos de Orlando Gomes, pode-se dizer que são três causas que podem impedir a eficácia de um ato translativo do domínio: 1ª) a aquisição de quem não é o proprietário do bem, que é também chamada de aquisição a non domino; 2ª) a aquisição de quem é efetivamente do proprietário da coisa, mas o ato translativo é nulo de pleno direito ou no caso do transmitente não possuir o direito de dispor sobre o bem; e, por último, mas não menos importante 3ª) o erro na forma como foi adquirido. (SALLES, 2010).

O primeiro caso ocorre quando o adquirente de boa-fé tem total convicção de que a adquiriu do dono. Nesse caso, embora o título não seja o suficiente para possibilitar a transferência do bem, será o bastante para a aquisição mediante usucapião ordinária. Ressalte-se que o problema deve ser apenas quanto à falta de qualidade do dono.

Já no segundo caso, o título não será eficaz para a transferência do bem por conter nulidades, ainda que seja outorgado pelo proprietário de fato. As nulidades, como bem consagrado pela doutrina, podem ser absolutas ou relativas. Se no título translativo ocorrer a primeira, tendo em vista que são absolutas e, portanto, impossíveis de serem convalidadas, não se gerará a aquisição da propriedade com a usucapião ordinária, mas, tão somente, com a extraordinária. Se a hipótese for de nulidade relativa, já existirá a possibilidade de aquisição pela usucapião ordinária.

O terceiro caso, por sua vez, ocorrerá quando houver um erro na forma de aquisição da propriedade. Será, em princípio, ato nulo por defeito de forma. Entretanto, permite-se que o adquirente adquira a propriedade por meio da usucapião ordinária. Nas palavras de Orlando Gomes (apud SALLES, 2010, p. 122), “certo que a ninguém é lícito ignorar a lei, mas o erro de direito, como o erro de fato, devem ser considerados em pé de igualdade, porque, afinal, se convertem numa questão de boa-fé.”. Um exemplo dessa situação hipotética seria a aquisição de um bem por escritura privada, sendo que seria necessária a escritura pública.

Todavia, Sílvio de Salvo Venosa (2014) pensa de forma diversa, pois, segundo ele, os defeitos de um título que impossibilitem a sua eficácia só podem ser descobertos na análise do caso concreto. No entanto, deve-se levar em conta que o direito, em muitas ocasiões, protege a aparência, e a proteção à aparência da posse ocorre em prol da paz social.

Há, também, que se levar em conta, ao se determinar se o título é justo ou não, o art. 1.245 do Código Civil; ou seja, se, para o título ser justo, deve ele ter o registro do título translativo no Registro de Imóveis competente.

A doutrina é bastante divergente quanto a esse aspecto. Uma parte dela defende a posição de que o registro do ‘justo’ título no Registro de Imóveis não constitui requisito para aceitação e, consequentemente, provimento da ação judicial. Em contrapartida, outra parte da doutrina, que é a dominante, afirma que esse registro constitui requisito essencial.

 O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre assunto quando da decisão do RE 78881/GO: “Justo título para o efeito do que expressa o art. 551 do Código Civil é o instrumento hábil, formalizado e registrado, mas, bem se vê, que manifeste aquisição a non domino”. (RTJ 76/555).

José Carlos de Moraes Salles (2010, p. 125) defende a doutrina divergente à adotada pela Suprema Corte. Assim, explicita:

E o fazemos em consideração à circunstância de que a exigência de transcrição ou registro do título acarretaria a quase impossibilidade da utilização prática da usucapião ordinária prevista no art. 1.242 do vigente Código Civil (correspondente, parcialmente, ao art. 551 do Código anterior), com evidente desatenção ao espírito daquela norma, que é, exatamente, o de converter em situação de direito situações de fato, no tocante à posse, já de longa data constituídas (dez ou cinco anos, conforme o caso).

Nesse mesmo sentido está Pontes de Miranda (apud SALLES, 2010, p. 125, grifo do autor), que afirma: “se o título foi transcrito e houve boa-fé, se transferiu propriedade – portanto, é absurdo exigir-se para o usucapião título justo transcrito e boa-fé.”.

Após uma profunda análise, acredita-se que essa é a melhor doutrina. O Supremo defende a tese da necessidade de que o justo título seja formalizado e registrado. Se esse título foi hábil, formalizado e registrado, por que seria necessária a usucapião? Se o título preenche todos os requisitos necessários para a averbação no Registro de Imóveis, não se necessitaria de mais nada para que a propriedade seja transferida de forma completa e perfeita. Essas exigências do Supremo Tribunal Federal não fazem sentido, pois, se cumpridas, a propriedade seria transferida de forma legítima, não se necessitando do instituto da usucapião.

José Osório de Azevedo Júnior (1998, p. 79) afirma:

O fato de, por alguma razão, não ter sido registrado o compromisso não impede que seja ele havido como justo título, desde que exista aquela causa que torne evidente que o compromissário está possuindo a coisa como dono, o que deve acontecer praticamente na totalidade dos casos, pois essa causa é geralmente ínsita e natural ao compromisso.
Em relação à compra e venda e outros atos translativos- exigia-se antigamente, segundo muitos, para que o título fosse havido como justo, que estivesse revestido de todas as formalidades externas e estivesse transcrito no Registro de Imóveis […].

Essas questões não são pacíficas pela doutrina e pela jurisprudência. Em que pese a posição do autor não ser a majoritária, está crescendo e vem cada vez mais ganhando espaço jurisprudencial. Um julgado recente do Superior Tribunal de Justiça, publicado na RSTJ 88/101, trouxe orientação no sentido de ser prescindível o registro do título no Registro de Imóveis, para que seja considerado como justo e, portanto, permita a aquisição da propriedade por meio da usucapião ordinária.

3.2 BOA-FÉ

Clóvis (apud SALLES, 2010, p. 130), afirma que a boa-fé “é a crença, em que se acha o possuidor, de que a coisa possuída lhe pertence.”.

Esse instituto, que é mais um dos requisitos para aquisição da propriedade mediante usucapião ordinário, está descrito nos arts. 1.201 e 1.202 do Código Civil de 2002.

A verificação da boa-fé somente poderá ocorrer na análise do caso concreto. Assim, o julgador deverá avaliar as circunstâncias impostas pelo ordenamento jurídico, deduzindo-se o possuidor, tomando sempre como base o homem médio, reúne condições para conhecer a sua legitimidade ou ilegitimidade de relação com o bem.

É esperado do homem médio que, ao achar uma propriedade abandonada, investigue se ela possui proprietário. Não é esperado que, ao se deparar com essa situação, apenas entre e assente seu domicílio ali. Nesse sentido, Sílvio de Salvo Venosa (2014, p. 73) afirma que “Tão somente a atitude passiva do agente não pode caracterizar a boa-fé, porque é curial que o homem médio incumbe verificar ordinariamente se a coisa tem outro titular.”.

No que tange à posse, existem dois tipos de vícios: os objetivos; e os subjetivos. Os objetivos são aqueles contidos no art. 1.208 do CCquais sejam a violência, a clandestinidade e a precariedade. Já os subjetivos são aqueles que dizem respeito à consciência do possuidor. A má-fé é considerada um vício subjetivo, pois ele saberá que a coisa possuída é ilegítima, mas, mesmo assim, a conservará.

Se o agente tomar posse de um terreno ou de uma propriedade e não procurar saber se existe um dono ou alguém com uma posse melhor, não poderá ficar configurada a boa-fé, pois essa atitude passiva não a gera. Além disso, é dever do homem médio verificar se aquele bem possui proprietário.

O Supremo Tribunal Federal já deixou expresso que a:

boa-fé é o necessário complemento da justa causa […]. Faltando ao comprador a ignorância do vício que lhe impede a aquisição da propriedade, inutiliza-se a eficácia própria da posse titulada, e só a prescrição extraordinária poderá sanar esse defeito da aquisição. (RF 174/75).

Essa matéria, entretanto, não é pacífica na jurisprudência. O juiz Pedro Rodovalho Marcondes Chaves, por outro lado, em uma sentença publicada na RT 108/249, afirma que a boa-fé deve ser utilizada em favor daquele que detém a coisa com justo título. 

A boa-fé deve constar como requisito desde o início da posse e por toda a sua existência. Se, em algum momento, se perder a boa-fé, impossibilitar-se-á a usucapião ordinária. Sílvio de Salvo Venosa possui posicionamento nesse mesmo sentido.

Assim, resumindo, a boa-fé é a consciência de que a coisa que se encontra em sua posse é sua. Deve-se, também, ignorar vício ou qualquer obstáculo que possa vir a impedir a aquisição da coisa. Se o possuidor tiver justo título (com todas as características próprias dele, conforme já visto), presume-se sua boa-fé, que só poderá ser combatida se a parte contrária fizer prova. Ela deve permanecer durante todo o lapso temporal exigido para que haja a usucapião – se ela não existir durante todo o período, a aquisição da propriedade somente poderá ocorrer por meio da usucapião extraordinária. (SALLES, 2010).

3. O TEMPO DA USUCAPIÃO ORDINÁRIA

A modalidade de usucapião aqui tratada, qual seja a ordinária, descrita no art. 1.242 caput do Código Civil e em seu parágrafo único, fixa o prazo de 10 (dez) anos de posse contínua e incontestada para que o possuidor, mediante justo título e boa-fé, adquira a propriedade. Essa é a regra do caput.

Já o parágrafo único supracitado, diminui esse prazo para 5 (cinco) anos, se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelado posteriormente desde que os possuidores tiverem estabelecido sua moradia nesse imóvel ou realizado, nele, algum investimento econômico ou que possua relevância social. (VENOSA, 2014).

O que seriam esses “investimentos de interesse social e econômico”, constantes no parágrafo único do art. 1.242 do Código Civil? Tendo em vista que essa norma não é clara e suficiente para definir esse tema, faz-se necessária que a prova seja feita pela pessoa que tenha o interesse em adquirir o bem pela usucapião no caso concreto. Cabendo, assim, ao juiz da causa decidir. (SALLES, 2010).

CONCLUSÃO

Qualquer indivíduo que seja proprietário ou possuidor de um bem imóvel; ou, ainda, que pretenda usá-lo deve utilizar o bem visando aos seus interesses e aos da coletividade. 

A propriedade não possui uma definição dada pelo nosso Código Civil. Ele se limita a dizer quais são os direitos do proprietário: usar; gozar ou usufruir; dispor; e reaver. Para conceituar o direito de propriedade, devemos recorrer à doutrina. 

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2009) afirmam que a propriedade é uma relação jurídica complexa, formada entre o titular de um bem e todas as demais pessoas, a coletividade. Há, também, a relação de domínio que o proprietário exerce com relação ao bem. Não se pode falar em relação jurídica nesse caso, pois, para que ela ocorra, pressupõe necessariamente dois sujeitos.

Maria Helena Diniz (2007) afirma que a propriedade é o ápice do direito das coisas e abrange todos os gêneros de direitos reais. Afirma, ainda, que giram, ao redor da propriedade, todos os direitos reais sobre coisas alheias. Propriedade é o mais amplo direito do senhorio sobre uma determinada coisa, o direito sobre a coisa mais completa.

Com o advento do direito canônico, pelo menos no que tange ao nosso ordenamento jurídico, passou-se a condicionar aos proprietários o respeito e utilização adequada do imóvel, conforme determina o princípio da função social do bem. Assim, ainda que a propriedade seja perpétua e possua um caráter absoluto, que significa que somente uma pessoa poderá ser proprietária de um bem específico, deve-se buscar a paz social, utilizando-a de acordo com o seu fim, serviços e funções.

Na verdade, a função social busca relativizar direitos antes tidos como absolutos. Não se pode mais, à luz desse princípio, utilizar algo de maneira egoísta e sem cumprir a sua finalidade. Incentiva-se a conduta que promove o uso do bem com respeito à dignidade dos terceiros, que, a princípio, não possuem uma relação direta com o bem, mas, ainda assim, sairiam lesados com o mau uso da coisa.

A propriedade deve submeter-se ao controle social de sua finalidade, que deve ter como fim último o bem estar social. Assim, aquela máxima que afirma que tudo o que não for proibido é permitido ao dono fica vencida, pois, ainda que seja o titular do bem, não poderá utilizá-lo com o fim exclusivo de prejudicar outrem ou para simplesmente evitar que outro a utilize. 

A partir dessa noção, é possível correlacionar a função social da propriedade com a usucapião. Esta é forma de aquisição originária da propriedade pela posse contínua e prolongada de um imóvel durante o prazo legal estabelecido para cada uma de suas modalidades (ordinária; extraordinária; e especial). Além disso, há alguns outros requisitos legais, a depender de qual espécie de usucapião, que devem ser respeitados para que haja a aquisição por meio da prescrição aquisitiva. Um bem somente será passível de ter a sua titularidade adquirida por usucapião, se o seu proprietário estiver utilizando-o em desacordo com a sua função social.

A posse, por sua vez, possui relação com o estado de aparência, que significa sinais exteriores, superficialidades juridicamente relevantes. A teoria atualmente mais adequada para definir a posse é a Teoria Objetiva de Ihering. Segundo ela, será possuidor aquele que se comportar como dono e, agindo dessa forma, já estará incluído o animus. É, em outras palavras, a exterioridade ou visibilidade do domínio, relação jurídica entre um sujeito e um bem.

Para que um terceiro adquira a propriedade do imóvel por meio da prescrição aquisitiva, impõe-se que ele possua uma relação de posse com esse bem. Essa posse deverá respeitar aos ditames legais, ou seja, deverá ser mansa e pacífica por um tempo específico, que dependerá da espécie. 

Com isso, fica nítida a correlação entre os institutos da posse, da propriedade, da função social e da usucapião. Assim, para um terceiro adquirir o imóvel, precisa-se da posse mansa e pacífica. Para que isso ocorra, necessariamente o proprietário não estará utilizando sua propriedade em acordo com o que determina a função social. 

O proprietário que utiliza o seu imóvel, respeitando aos princípios que regem essa relação de domínio (relação do proprietário com o bem), jamais se preocupou com a possibilidade da perda de sua titularidade por meio da usucapião.

1Art. 309. O pagamento feito de boa-fé ao credor putativo é válido, ainda provado depois que não era credor.
2Art. 924. Regem o procedimento de manutenção e de reintegração de posse as normas da seção seguinte, quando intentado dentro de ano e dia da turbação ou do esbulho; passado esse prazo, será ordinário, não perdendo, contudo, o caráter possessório.
3Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.
[…]
Art. 1.198. Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas.Parágrafo único. Aquele que começou a comportar-se do modo como prescreve este artigo, em relação ao bem e à outra pessoa, presume-se detentor, até que prove o contrário.
[…]
Art. 1.208. Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade.
4Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.
Art. 1.197. A posse direta, de pessoa que tem a coisa em seu poder, temporariamente, em virtude de direito pessoal, ou real, não anula a indireta, de quem aquela foi havida, podendo o possuidor direto defender a sua posse contra o indireto.
Art. 1.198. Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas.Parágrafo único. Aquele que começou a comportar-se do modo como prescreve este artigo, em relação ao bem e à outra pessoa, presume-se detentor, até que prove o contrário.
Art. 1.199. Se duas ou mais pessoas possuírem coisa indivisa, poderá cada uma exercer sobre ela atos possessórios, contanto que não excluam os dos outros compossuidores.
Art. 1.200. É justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária.
Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa.Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção.
Art. 1.202. A posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente.
Art. 1.203. Salvo prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida.
5Art. 1.208. Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade.
6Gens ou genos eram um grupo de pessoas ou clãs que compartilhavam o mesmo nome de família. Pode ser caracterizado, também, um conjunto de famílias que se encontravam ligadas politicamente a uma autoridade comum, o pater gentis.
7O pai da família. Refere-se a um patriarca, sempre do sexo masculino, que possuía a jurisdição perante um determinado território. Era uma espécie de senhor feudal.
8Não há terra sem senhor.
9É um esboço do que viria a ser a função social da propriedade, que será tratada mais adiante.
10Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
§ 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.
§ 3o O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente.
§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
§ 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.
11Art. 1.200. É justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária.
12 Séculos V a XV d.c.
13Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] XXIII – a propriedade atenderá a sua função social.
14Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.§ 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.
15Entende-se, de forma pouco aprofundada, como sendo um direito dado pelo Estado ao particular para que desempenhe funções que tenham por finalidade atingir seus próprios interesses.
16Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
17A regra do art. 1.228, §2º, no novo Código Civil, interpreta-se restritivamente, em harmonia, com o princípio da função social da propriedade e com o disposto no art. 187 da mesma lei.
18Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.
19Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
20Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.
21Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa.Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção.
Art. 1.202. A posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente.
5Art. 1.208. Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade.
22Art. 1.208. Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade.

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