REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202411181350
Ana Carolina Baía Sacramento1
Carlos Alberto Valcácio dos Santos2
Samuel Silva Evanovich3
RESUMO
Este artigo explora como as falhas de percepção e memória de testemunhas e vítimas podem resultar em erros judiciais no sistema processual penal brasileiro. A pesquisa aborda os fatores que influenciam essas distorções, como o estresse, as condições ambientais e as características individuais, e como esses elementos comprometem a confiabilidade dos depoimentos. O estudo começa com uma discussão sobre a percepção da realidade e como o cérebro processa as informações sensoriais. Em seguida, são analisados os principais fatores que afetam a percepção, com destaque para a influência do estresse e das condições ambientais durante os crimes. Também é discutido o viés de confirmação que pode ocorrer nos processos de reconhecimento de suspeitos, além de uma análise crítica das práticas atuais de reconhecimento no Brasil. O artigo ainda avalia as limitações e os desafios das tecnologias de reconhecimento facial, que têm sido amplamente utilizadas, mas que ainda enfrentam problemas de precisão. Por fim, o estudo destaca a necessidade de reformar os procedimentos de reconhecimento e adotar práticas baseadas em evidências científicas, com o objetivo de minimizar condenações injustas e promover uma maior equidade no sistema de justiça. Ao final, são apresentadas propostas de melhoria que visam fortalecer a confiabilidade dos depoimentos e a eficiência dos processos penais, preservando os direitos dos envolvidos.
Palavras-chave: percepção, memória, erros judiciais, reconhecimento de suspeitos, psicologia jurídica.
ABSTRACT
This article explores how perception and memory failures of witnesses and victims can lead to judicial errors in the Brazilian criminal justice system. The research examines the factors that influence these distortions, such as stress, environmental conditions, and individual characteristics, and how these elements compromise the reliability of testimonies. The study begins with a discussion on the perception of reality and how the brain processes sensory information. It then analyzes the key factors that affect perception, focusing on the influence of stress and environmental conditions during criminal events. Confirmation bias in suspect recognition procedures is also discussed, alongside a critical analysis of current identification practices in Brazil. The article evaluates the limitations and challenges of facial recognition technologies, which have become increasingly used but still face issues of accuracy. Finally, the study emphasizes the need for procedural reforms in suspect recognition and the adoption of evidence-based practices to reduce wrongful convictions and promote fairness in the justice system. Recommendations are offered to improve the reliability of testimonies and the effectiveness of criminal procedures while safeguarding the rights of all involved parties.
Keywords: perception, memory, judicial errors, suspect identification, legal psychology.
1. INTRODUÇÃO
A percepção da realidade pelo ser humano é um processo complexo que envolve a integração de informações sensoriais, processamento cognitivo e influências culturais e pessoais. Nossos sentidos são os principais canais pelos quais percebemos o mundo ao nosso redor. Esses sentidos coletam dados do ambiente e os enviam ao cérebro para processamento e interpretação. O cérebro humano é um sistema extremamente eficiente de processamento de informações. Ele capta os estímulos sensoriais e os decodifica, formando uma imagem interna do ambiente que nos cerca. Essa imagem é moldada por três fatores principais: as experiências passadas, que influenciam como interpretamos novas informações; as expectativas, que afetam o que esperamos ver ou ouvir; e o contexto, que se refere ao ambiente e à situação em que estamos inseridos, ambos impactando diretamente nossa percepção. Como afirmam Fiorelli e Mangini (2024):
“O cérebro é o palco das funções mentais superiores; o que a mente comanda não ultrapassa os limites de funcionamento das estruturas cerebrais e as possibilidades dessas funções, por meio do processamento do que ali se encontra armazenado” (FIORELLI, José O.; MANGINI, Rosana Cathya Ragazzoni, 2024, p. 3).
Desta forma, nossa percepção da realidade não é uma reprodução exata do que ocorre ao nosso redor, mas uma construção influenciada por esses fatores (RUBIN, 1986, p. 145). No sistema judicial brasileiro, o reconhecimento de criminosos é uma etapa crucial para a resolução de crimes e a aplicação da justiça. Esse processo pode ocorrer de diferentes formas, como o reconhecimento pessoal, por fotografias, vídeos, voz ou pelo uso de tecnologia de reconhecimento facial (GOMES, 2018, p. 102). Todos esses métodos buscam garantir a identificação correta dos suspeitos, assegurando a observância dos direitos de todos os envolvidos.
Nessa dinâmica, o testemunho de vítimas e testemunhas ocupa um papel central. O testemunho é uma das principais fontes de prova no processo penal e pode influenciar significativamente as decisões dos juízes e jurados. A identificação correta de um suspeito pode levar à condenação de um criminoso ou à absolvição de um inocente. Para assegurar a confiabilidade desses testemunhos, o sistema judicial adota procedimentos rigorosos, como a “parada de reconhecimento”, em que o suspeito é colocado ao lado de outras pessoas com características físicas semelhantes, evitando influências indevidas. No entanto, mesmo com essas precauções, a percepção e a memória humanas são suscetíveis a erros (LOFTUS, 1996, p. 117).
Fatores como o estresse durante o crime, a influência de terceiros ou o simples passar do tempo podem distorcer as memórias, comprometendo a precisão dos depoimentos. Isso pode resultar em condenações injustas ou absolvições errôneas, enfraquecendo a integridade do sistema judicial. Como observam Fiorelli e Mangini (2024):
“A mente desenvolve mecanismos de defesa para eliminar o dano ao psiquismo; o habitual desaparece. […] Acaba invisível, como se fizesse parte do patrimônio” (FIORELLI, José O.; MANGINI, Rosana Cathya Ragazzoni, 2024, p. 162).
A partir dessas considerações, a questão central desta pesquisa é: como as falhas de percepção e memória podem distorcer depoimentos e, assim, provocar erros judiciais? O estudo das falhas de percepção e memória no contexto judicial é de extrema relevância, especialmente considerando a dependência significativa do sistema jurídico em relação aos testemunhos de vítimas e testemunhas. Pesquisas como as de Wells e Loftus (1994) e Cutler e Penrod (1995) revelam que erros de identificação têm levado a inúmeras condenações equivocadas. Um exemplo é o Projeto Inocência nos Estados Unidos, que já reverteu várias condenações injustas, muitas das quais baseadas em testemunhos oculares imprecisos (GARRETT, 2011). Esses casos destacam a fragilidade da memória humana, particularmente em situações de alta tensão ou estresse, onde a percepção e a recordação dos eventos são facilmente distorcidas.
Tanto a Psicologia Jurídica quanto a Psicologia Cognitiva demonstram que a memória não é uma reprodução exata dos eventos vividos. Pelo contrário, ela é um processo dinâmico, constantemente reconstruído e suscetível a influências externas, como a formulação das perguntas por investigadores ou a interferência de terceiros (Loftus, 1996). Como enfatizam Fiorelli e Mangini (2024):
“A memória humana é um processo dinâmico e suscetível a influências externas, o que compromete sua confiabilidade quando utilizada como prova única ou principal em processos judiciais” (FIORELLI, José O.; MANGINI, Rosana Cathya Ragazzoni, 2024, p. 45).
No Brasil, embora o Código de Processo Penal preveja medidas para minimizar falhas perceptivas, como o reconhecimento pessoal com indivíduos de características semelhantes (art. 226, CPP), essas normas muitas vezes não são rigorosamente aplicadas, aumentando o risco de erros judiciais. Como observa Fiorelli (2024):
“O reconhecimento de suspeitos deve ser realizado com extrema cautela, levando em consideração as limitações cognitivas das testemunhas, a fim de evitar injustiças” (FIORELLI, José O.; MANGINI, Rosana Cathya Ragazzoni, 2024, p. 89).
Investigar as falhas de percepção e memória no contexto judicial é essencial para evitar que decisões equivocadas comprometam a justiça, sobretudo em casos onde o testemunho ocular é a principal prova. A necessidade de revisar as práticas processuais que envolvem o uso de testemunhos oculares no sistema de justiça brasileiro é urgente. Embora a memória e a percepção humanas sejam relativamente confiáveis em situações cotidianas, a Psicologia Jurídica mostra que, em contextos de estresse ou trauma, como durante um crime, essas capacidades podem ser profundamente afetadas, levando a distorções significativas (FIORELLI; MANGINI, 2024, p. 52).
A vulnerabilidade da memória humana é especialmente problemática no campo judicial, onde o testemunho de uma vítima ou testemunha pode ser decisivo para a condenação ou absolvição de um acusado. Como destacado por Loftus (1996):
“A memória humana é maleável e pode ser influenciada por fatores externos, como o contexto das perguntas ou a expectativa dos investigadores”, comprometendo sua precisão como ferramenta judicial.
No Brasil, a excessiva confiança em depoimentos oculares, muitas vezes sem consideração adequada às limitações cognitivas, representa um risco constante para a justiça. Portanto, este estudo justifica-se pela necessidade de aprofundar a compreensão dessas falhas e propor soluções que minimizem os riscos de erros judiciais. Como afirma Fiorelli (2024):
“É fundamental que o sistema jurídico incorpore descobertas da psicologia cognitiva para desenvolver procedimentos mais seguros no reconhecimento de suspeitos e na avaliação de depoimentos” (FIORELLI, José O.; MANGINI, Rosana Cathya Ragazzoni, 2024, p. 105).
A metodologia utilizada para este estudo será a revisão bibliográfica, com o objetivo de analisar casos e estudos que ilustram os efeitos dessas falhas no sistema judicial. O trabalho será desenvolvido em cinco capítulos: uma introdução e justificativa da pesquisa; uma discussão sobre a percepção e memória no contexto judicial; uma análise das práticas de reconhecimento no Brasil; uma avaliação do impacto das tecnologias de identificação; e, por fim, propostas de melhorias baseadas em evidências científicas.
O aprimoramento dessas práticas pode reduzir a incidência de condenações injustas, fortalecendo a confiança pública no sistema judicial.
2. FATORES QUE AFETAM A PERCEPÇÃO DE VÍTIMAS E TESTEMUNHAS
A percepção humana é um processo complexo e seletivo que envolve tanto a captação de estímulos sensoriais quanto sua interpretação pelo cérebro. Em situações de alta tensão, como em eventos criminais, esse processo se torna ainda mais vulnerável a influências externas e internas. Testemunhas e vítimas são frequentemente expostas a uma série de condições que podem distorcer sua percepção, levando a erros na lembrança dos eventos. Entre os fatores que afetam a percepção, destacam-se o estresse, as condições ambientais e as características pessoais, que, quando combinados, podem prejudicar significativamente a acurácia dos depoimentos prestados no processo penal.
Assim, é essencial que o sistema judicial compreenda as limitações dessas percepções, a fim de evitar erros judiciais baseados em informações imprecisas ou distorcidas. Far-se-á, portanto, a seguir, um breve cotejo das situações que poderiam influenciar a percepção e, consequentemente, afetar os aspectos relacionados à memória e à sua recuperação.
2.1 ESTRESSE E SUA INFLUÊNCIA NA PERCEPÇÃO
O estresse, quando intensificado por uma situação de risco, é um dos fatores mais determinantes na maneira como uma pessoa percebe e recorda um evento. Situações traumáticas, como ser vítima ou testemunha de um crime violento, desencadeiam uma resposta de “luta ou fuga”, que altera significativamente o processamento cognitivo (CHRISTIANSON, 1992, p. 48). Esse mecanismo biológico visa a garantir a sobrevivência imediata, ativando o sistema límbico — responsável pelas emoções e reações de defesa — em detrimento das funções corticais superiores, como o raciocínio lógico e a percepção detalhada (LEDOUX, 2000, p. 312). Assim, em momentos de estresse extremo, o cérebro prioriza o foco em aspectos centrais da ameaça, como a presença de uma arma, enquanto detalhes periféricos, como a aparência do agressor ou a configuração do ambiente, tendem a ser ignorados (DEFFENBACHER et al., 2004, p. 127).
Pesquisas demonstram que a intensidade do estresse durante o crime afeta diretamente o nível de precisão com que as testemunhas se lembram dos eventos. Este fenômeno, conhecido como o “efeito da arma”, é crucial para compreender o impacto do estresse em situações criminais, uma vez que ele ilustra como o cérebro prioriza a sobrevivência ao concentrar a atenção em elementos que representam ameaça direta, prejudicando a capacidade de observar outros detalhes essenciais para a investigação. Em situações de elevado estresse, a memória tende a ser seletiva, concentrando-se nos elementos que o cérebro considera mais relevantes para a sobrevivência (MORGAN et al., 2004). O “efeito da arma” (weapon focus effect) descreve como a presença de uma arma em uma cena de crime desvia a atenção do observador, resultando em uma menor capacidade de registrar e lembrar outros detalhes cruciais, como o rosto do agressor (LOFTUS, 1987, p. 240). Esse efeito é amplamente documentado em estudos de psicologia cognitiva e demonstra como, em situações de perigo iminente, a atenção humana é direcionada para o objeto da ameaça.
Além disso, o estresse elevado tem um impacto significativo na codificação da memória, comprometendo não apenas a recordação imediata dos eventos, mas também a sua recuperação posterior. Quando submetidas a altos níveis de estresse, as testemunhas podem experimentar um bloqueio cognitivo que afeta a formação de memórias claras e detalhadas (YUILLE; CUTSHALL, 1986). Isso resulta em lacunas no depoimento, e muitas vezes essas lacunas são preenchidas posteriormente com informações que podem não ser precisas, mas que foram reconstruídas com base em sugestões externas ou suposições inconscientes (CHRISTIANSON, 1992, p. 48). Esse fenômeno pode levar à criação de falsas memórias, que podem parecer convincentes, mas que na verdade distorcem os fatos ocorridos.
A literatura também sugere que o tempo decorrido entre o evento traumático e o momento do depoimento desempenha um papel crucial na exatidão das lembranças. Quanto maior o intervalo entre o evento e o relato, maior é a chance de que a memória seja influenciada por fatores externos, como informações divulgadas pela mídia, conversas com terceiros, ou até mesmo o próprio processo de sugestão involuntária por parte dos investigadores (LOFTUS, 1996, p. 118). Esse efeito pode ser agravado se a testemunha for exposta a informações incorretas, distorcendo ainda mais sua percepção original.
Outro aspecto importante que merece atenção é o fato de que o estresse não afeta todas as pessoas da mesma forma. Estudos mostram que características individuais, como resiliência psicológica e experiências passadas, influenciam o quanto uma pessoa é capaz de lidar com situações de estresse elevado (BONANNO, 2004). Testemunhas que já passaram por experiências traumáticas anteriores podem apresentar respostas de estresse exacerbadas, o que afeta ainda mais sua capacidade de registrar os detalhes de um crime de forma precisa. Da mesma forma, indivíduos com transtornos de ansiedade ou outros distúrbios psicológicos tendem a ser mais vulneráveis a distorções de memória em situações de alta tensão (PORTER; PEACE, 2007).
Portanto, é crucial que o sistema judicial leve em consideração o impacto do estresse na percepção e na memória das testemunhas. O reconhecimento dessas limitações cognitivas pode ajudar a diminuir o peso dado a depoimentos que, embora pareçam confiáveis, podem estar seriamente comprometidos. Técnicas mais cuidadosas de coleta de depoimentos, como o uso de perguntas neutras e a condução de procedimentos de reconhecimento de suspeitos sob condições controladas, são essenciais para minimizar o risco de erros judiciais. Além disso, a conscientização dos operadores do direito sobre esses fenômenos pode contribuir para uma abordagem mais crítica e cautelosa em relação à avaliação de depoimentos oculares, promovendo um processo judicial mais justo e preciso.
2.2 CONDIÇÕES AMBIENTAIS
Outro fator que afeta substancialmente a precisão da percepção das testemunhas e vítimas é o ambiente em que o crime ocorre. A qualidade das condições ambientais, como iluminação, clima, visibilidade e ruído, pode influenciar diretamente a capacidade de uma pessoa de processar as informações visuais e auditivas que recebe no momento do evento.
Entre as condições ambientais que afetam a percepção, a iluminação exerce um papel primordial, uma vez que a visão humana depende da luz para captar detalhes da cena. Em situações de baixa luminosidade, crimes ocorridos em ambientes com pouca luz ou à noite frequentemente resultam em relatos imprecisos, uma vez que a percepção visual é limitada. A diminuição da luz pode reduzir drasticamente a capacidade de identificação de suspeitos (LOFTUS, 1979, p. 93). Da mesma forma, a distância entre o observador e o evento influencia a qualidade da percepção: quanto maior a distância, menos detalhes visuais e auditivos a testemunha conseguirá captar, o que pode resultar em descrições vagamente precisas ou equivocadas (WELLS; OLSON, 2003, p. 281).
O clima também exerce influência direta sobre a percepção. Condições como neblina, chuva intensa ou mesmo vento forte podem dificultar a visibilidade, bem como distorcer sons, comprometendo a capacidade da testemunha de ouvir diálogos ou identificar ruídos específicos. Crimes ocorridos em ambientes externos e com condições climáticas adversas tendem a gerar relatos com uma margem maior de erro perceptivo (STEIN, 2010, p. 24).
Outro elemento ambiental relevante é o ruído. Quando um crime ocorre em um ambiente barulhento, a capacidade da testemunha de discernir corretamente diálogos ou identificar sons importantes, como tiros e/ou gritos, é prejudicada. O ruído pode interferir na atenção auditiva e, muitas vezes, distorcer o relato das testemunhas sobre o que foi ouvido no momento do crime (VRIJ, 2000, p. 151).
2.3 CARACTERÍSTICAS PESSOAIS
As características individuais das testemunhas ou vítimas também desempenham um papel crucial na forma como os eventos são percebidos e, posteriormente, recordados. A idade, o estado de saúde mental, o nível de atenção e até experiências passadas influenciam diretamente a qualidade da percepção (YARMEY, 2000, p. 75). Pesquisas mostram que crianças e idosos, por exemplo, são mais suscetíveis a falhas de memória, enquanto pessoas com distúrbios psicológicos, como ansiedade ou depressão, podem apresentar distorções em sua percepção de eventos (RUBIN; WETZLER; NEISSER, 1986, p. 145).
A idade é um fator determinante na precisão da memória. Estudos indicam que crianças e idosos tendem a ser mais vulneráveis a falhas de memória do que adultos jovens. A memória infantil é particularmente suscetível à sugestão. Crianças muitas vezes têm dificuldade em distinguir eventos reais de imaginários, e a forma como as perguntas são feitas pelos investigadores pode impactar drasticamente a maneira como elas recordam os fatos. Estudos mostram que crianças expostas a perguntas sugestivas tendem a preencher lacunas em sua memória com informações que podem não ser precisas, o que pode comprometer a veracidade de seu relato (CECI & BRUCK, 1993, p. 413). No caso de idosos, a memória episódica — responsável por armazenar eventos específicos — é uma das primeiras a declinar com a idade, o que pode comprometer a capacidade de fornecer um relato detalhado e preciso (HOLLAND & RABBIT, 1992, p. 23). Portanto, tanto crianças quanto idosos necessitam de cuidados especiais durante os processos de depoimentos, para evitar a contaminação ou distorção de suas memórias.
No caso de idosos, a memória episódica — responsável por armazenar eventos específicos — é uma das primeiras a declinar com a idade, o que pode comprometer a capacidade de fornecer um relato detalhado e preciso (HOLLAND & RABBIT, 1992, p. 23). Portanto, tanto crianças quanto idosos necessitam de cuidados especiais durante os processos de depoimentos, para evitar a contaminação ou distorção de suas memórias.
Outro aspecto relevante é o estado mental da testemunha ou vítima no momento do crime. Pessoas com transtornos psicológicos, como ansiedade ou depressão, podem apresentar percepções distorcidas dos eventos. Além disso, a capacidade de manter a atenção e se concentrar nos detalhes da cena pode ser prejudicada por condições como o Transtorno de Déficit de Atenção (TDAH), levando a relatos menos precisos (STEIN, 2010, p. 30).
Por fim, as experiências passadas e os preconceitos pessoais também desempenham um papel significativo na forma como a percepção é moldada. Por exemplo, uma pessoa que já foi vítima de um crime semelhante pode ter sua percepção influenciada por sua experiência anterior, introduzindo vieses no relato. Esse efeito pode ser agravado por preconceitos implícitos, como o preconceito racial. Diversos estudos indicam que testemunhas têm maior dificuldade em identificar corretamente membros de grupos étnicos diferentes do seu próprio, um fenômeno conhecido como “efeito de outra raça” (MEISSNER & BRIGHAM, 2001, p.33).
3. O VIÉS DE CONFIRMAÇÃO E SEU PAPEL NAS IDENTIFICAÇÕES OCULARES: COMO A TENDÊNCIA A CONFIRMAR EXPECTATIVAS AFETA O RECONHECIMENTO DE SUSPEITOS
O reconhecimento pode ser entendido como um processo que visa identificar pessoas ou objetos com os quais já tivemos experiências no passado. Trata-se de um tipo de cognição psicológica que busca relembrar vivências anteriores. Dessa forma, Carnelutti ressalta que reconhecer significa conhecer novamente algo que já foi conhecido anteriormente (CARNELUTTI, 1950, p. 33).
Tourinho Filho, em sua abordagem, define o reconhecimento como a análise e a subsequente confirmação de uma pessoa ou objeto. Nesse processo, ocorre uma comparação entre dois momentos: um ligado à percepção atual e outro relacionado a memórias passadas. A vítima de um crime tenta identificar semelhanças entre o que está armazenado em sua memória e o que está sendo apresentado para reconhecimento. Esse é um procedimento formal que envolve uma combinação de percepções, visando descrever e identificar o objeto (seja pessoa ou coisa) que foi vivenciado. (TOURINHO FILHO, 2010, p. 670).
Em síntese, pode-se afirmar que o reconhecimento se refere à recuperação de informações sobre eventos e situações anteriormente vividas. No entanto, cabe indagar até que ponto esse processo é influenciado pela tendência de priorizar dados que confirmem nossas próprias expectativas ou de terceiros. Entender e analisar essa dinâmica é essencial, especialmente para evitar distorções que possam prejudicar investigações e julgamentos.
3.1 A INFLUÊNCIA DAS DISTORÇÕES COGNITIVAS NO RECONHECIMENTO OCULAR
No contexto do viés de confirmação, as distorções cognitivas podem afetar de maneira significativa o viés de confirmação, impactando a precisão e a confiabilidade dos testemunhos em situações judiciais. Esses fenômenos são amplamente investigados nos estudos psicológicos e, devido à sua relevância e às implicações importantes para os depoimentos das testemunhas, serão detalhados a seguir.
Um dos principais efeitos é o efeito de desinformação, onde informações incorretas, introduzidas após um evento, podem distorcer as memórias das testemunhas. Isso é evidenciado nos estudos de Loftus (1996), que demonstraram que perguntas sugestivas podem levar testemunhas a recordar detalhes que nunca ocorreram, afetando sua percepção do evento original.
O foco seletivo é outra distorção relevante, onde as testemunhas concentram sua atenção em aspectos específicos do evento, frequentemente em detrimento de outros detalhes cruciais. Essa limitação pode levar a uma narrativa incompleta ou imprecisa do ocorrido, como discutido por Chabris e Simons (2010), que mostram como a atenção pode ser facilmente desviada em situações de alta carga emocional.
A confiança excessiva nas memórias é um fenômeno observado em muitas testemunhas, que podem relatar grande segurança em suas recordações, mesmo quando estas estão erradas. Estudos de Henkel (2007) revelam que essa confiança pode enganar investigadores e jurados, levando a julgamentos errôneos sobre a veracidade dos relatos. O reconhecimento errôneo durante procedimentos de identificação é uma preocupação significativa. Wells e Olson (2003) demonstram que fatores como similaridade física e preconceitos raciais podem influenciar a precisão das identificações, resultando em erros que comprometem investigações.
Além disso, o efeito de primazia e recência sugere que as testemunhas tendem a recordar melhor os primeiros e últimos detalhes apresentados em um relato. A pesquisa de Murdock (1962) fornece evidências sobre como a ordem de apresentação de informações pode afetar a memória, resultando em distorções nos testemunhos.
Assim, o reconhecimento pessoal por meio de reconhecimento visual é uma forma de prova que depende inteiramente da memória para recordar a dinâmica dos eventos, como a materialidade, a autoria e as circunstâncias do crime. Contudo, a memória humana é complexa e suscetível a várias influências, o que pode alterar a percepção das informações retidas. Essa vulnerabilidade pode impactar a formação da memória, levando a uma compreensão diferente da experiência vivida. Portanto, é essencial que as autoridades policiais e judiciais utilizem técnicas para reduzir os riscos de erros judiciários resultantes de condenações baseadas nesse tipo de reconhecimento, já que sua fragilidade probatória é evidente. No entanto, isso não deve ser visto como uma estratégia de política criminal, mas sim como uma condição necessária para a aplicação da lei. (STEIN, 2015, p. 25).
Diante disso, as distorções cognitivas exercem uma influência profunda sobre o reconhecimento ocular, comprometendo a precisão e a confiabilidade dos testemunhos em contextos judiciais. Fenômenos como o efeito de desinformação, o foco seletivo e a confiança excessiva nas memórias podem distorcer a percepção das testemunhas e levar a relatos imprecisos, com consequências significativas para a justiça.
3.2 FALSAS MEMÓRIAS NA IDENTIFICAÇÃO DE ACONTECIMENTOS
As falsas memórias na esfera criminal emergem como um tema crucial nas interações entre psicologia e direito, com implicações profundas para o sistema de justiça. Pesquisas feitas mostram como indivíduos podem recordar eventos que nunca realmente ocorreram, desafiando a noção de memória como um registro fiel da realidade. Este tópico explora como a sugestionabilidade e a influência de informações externas moldam nossas recordações, revelando a vulnerabilidade da memória humana e suas consequências para a veracidade dos testemunhos.
Pesquisadores europeus foram pioneiros na investigação desse fenômeno, buscando evidenciar que as pessoas podem lembrar de eventos que nunca realmente aconteceram. Sigmund Freud relacionou as falsas memórias à sua teoria da repressão, sugerindo que indivíduos evitam relembrar experiências desagradáveis, levando à criação de recordações distorcidas (STEIN, 2011, p. 25).
Estudos sobre falsas memórias giram em torno da sugestão de informações errôneas. Isso significa que não se trata de mentiras deliberadas, mas sim de declarações incorretas influenciadas por diversos fatores que afetam como as experiências são armazenadas. Em vez de criar algo totalmente novo ou mentiroso, a pessoa processa informações sob influência de elementos variados, resultando em uma afirmação falsa que é aceita como verdadeira (DI GESU, 2019, p. 128).
A sugestionabilidade que fundamenta as falsas memórias emerge da forma como o indivíduo recorda um fato vivido. As percepções podem ser alteradas no momento em que a informação é processada, comparando-se com o que foi lido, visto ou experimentado. Os teóricos que estudam o fenômeno defendem que essas influências são determinantes na criação de recordações falsas, resultantes da maneira como a informação foi entendida e armazenada (LOFTUS, 1997, s.p.).
É importante distinguir falsas memórias de mentiras. Enquanto as falsas memórias surgem de informações armazenadas que, sob influência, levam a pessoa a acreditar que está relatando algo verdadeiro, na mentira, o indivíduo tem plena consciência de que está distorcendo a realidade. A mentira tem a intenção de enganar, enquanto a falsa memória é um erro de recordação que pode comprometer a justiça (LOFTUS, 1997, s.p.).
Além disso, as falsas memórias podem ser classificadas em sugeridas ou espontâneas. As espontâneas surgem de uma interpretação errônea da informação, enquanto as sugeridas resultam de influências externas e internas. Exemplo disto é, uma pessoa que sofreu um roubo passa a ter uma ideia distorcida das características dos suspeitos devido a comentários de autoridades ou da mídia, isso ilustra como as sugestões podem moldar a memória (STEIN, 2015, p. 21).
Pesquisas mostram que as lembranças de testemunhas podem ser alteradas por informações que recebem após o ocorrido. Um exemplo notório é o “Efeito da Informação Sucinta”, que revela como informações imprecisas podem modificar a forma como alguém recorda um evento. O estudo realizado por Loftus e Palmer (1974) é emblemático nesse sentido, pois demonstrou que a escolha de verbos diferentes ao questionar sobre um acidente de carro afetava a percepção das testemunhas sobre a velocidade e a severidade da colisão.
Dessa forma, a memória humana é suscetível a manipulações, o que pode alterar a percepção que temos sobre os eventos. Assim, as falsas memórias podem surgir tanto por indução quanto pela recriação de lembranças, muitas vezes decorrentes de uma compreensão apressada dos acontecimentos.
3.3 TEORIA DAS FALSAS MEMÓRIAS E O EFEITO DA INFORMAÇÃO SUCINTA NO SISTEMA JUDICIAL BRASILEIRO
Como dito anteriormente, Loftus explica que a teoria da falsa memória revela que a memória humana não é um repositório estático, mas um processo dinâmico e suscetível a influências externas e com isso, o “efeito da informação sucinta” – que é uma das manifestações das falsas memórias – refere-se à influência que informações adicionais ou incorretas têm sobre o que uma pessoa recorda.
O efeito da Informação Sucinta refere-se ao fenômeno em que informações adicionais, apresentadas após um evento, que influenciam e distorcem a memória de um indivíduo sobre aquele evento. Esse conceito foi amplamente explorado por Elizabeth Loftus e seus colaboradores, que demonstraram como a forma como as perguntas são feitas pode alterar significativamente as recordações de testemunhas.
Loftus (2005) enfatiza que quando indivíduos são expostos a relatos imprecisos sobre um evento, essas informações podem ser aceitas como verdadeiras, distorcendo a recordação original. Dessa forma, informações divulgadas na internet podem exacerbar esse fenômeno, distorcendo a forma como os indivíduos lembram de eventos.
A internet é uma fonte abundante de informações, mas nem todas são precisas. Notícias falsas, boatos e informações distorcidas podem se espalhar rapidamente. Quando indivíduos leem ou assistem a relatos sobre um evento, essas informações podem influenciar suas memórias, levando a recordações que não são verdadeiras. Por exemplo, a testemunha pode ver um artigo que descreve um crime com detalhes que não observou, e, ao tentar recordar o evento, pode acabar incorporando esses detalhes falsos em sua memória, assim, sugerindo informações inverídicas.
Além disso, a quantidade de conteúdo disponível muitas vezes reforçam estereótipos e expectativas sociais. Fiske e Taylor (1991) e de Vargo (2017) mostram que discussões e comentários online podem influenciar a memória das pessoas, levando-as a aceitar informações não verificadas como verdadeiras. Expectativas moldam a forma como interpretamos informações, o que pode impactar a forma como as testemunhas percebem e interpretam eventos, visto que, se uma pessoa é exposta a narrativas que associam determinados comportamentos a certos grupos sociais, ela pode, inconscientemente, ajustar suas recordações de acordo com esses estereótipos, distorcendo a realidade do que realmente ocorreu.
Para o sistema judicial brasileiro, o efeito da informação sucinta tem relevantes implicações no que diz respeito à confiabilidade dos testemunhos oculares visto que, as memórias podem ser distorcidas por informações adicionais ou pela forma como as perguntas são feitas durante depoimentos em processos judiciais.
O Brasil possui um sistema de justiça que, em muitos casos, depende fortemente de depoimentos oculares. No entanto, a condução de interrogatórios muitas vezes não segue práticas rigorosas que poderiam minimizar o impacto do efeito da informação sucinta. A falta de protocolos adequados para a coleta de testemunhos pode levar a distorções na memória das testemunhas, contribuindo para erros judiciais (Kosslyn et al., 2015).
As consequências de falsas memórias no sistema judiciário brasileiro podem ser graves, resultando em condenações errôneas. Estudos indicam que uma significativa porcentagem de casos de inocentes condenados envolve testemunhos imprecisos (Ribeiro, 2019). Além disso, o impacto social e emocional para os indivíduos envolvidos é profundo, destacando a necessidade de reformas para garantir a justiça.
Nesse sentido, a teoria das falsas memórias e o efeito da informação sucinta revelam a fragilidade da memória humana, especialmente no contexto do sistema judicial brasileiro. A evidência de que informações adicionais podem distorcer recordações destaca a urgência de implementar protocolos rigorosos para a coleta de testemunhos. A dependência de depoimentos oculares, sem as devidas precauções, aumenta o risco de erros judiciais e condenações injustas, afetando não apenas os indivíduos diretamente envolvidos, mas também a confiança da sociedade no sistema de justiça.
4. AVALIAÇÃO DA EFICÁCIA DOS MÉTODOS UTILIZADOS NO RECONHECIMENTO DE CRIMINOSOS NO SISTEMA PROCESSUAL BRASILEIRO
Avaliar a eficácia dos métodos utilizados no reconhecimento de criminosos envolve uma análise profunda sobre as técnicas tradicionais, sua aplicação e as limitações impostas pelas falhas perceptivas e cognitivas das testemunhas e vítimas. O reconhecimento de suspeitos, seja por meio de lineup (parada de reconhecimento) ou seja a colocação ou apresentação de fotos ou pessoas semelhantes, lado a lado para que seja possível a comparação, ou por outros métodos, sempre foi considerado uma das formas mais diretas de vincular um indivíduo a um crime. No entanto, à luz da psicologia jurídica e dos avanços na compreensão das limitações da memória humana, é crucial questionar a confiabilidade dessas práticas.
O método tradicional de reconhecimento, conforme estabelecido pelo artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP), estipula que, sempre que possível, o suspeito deve ser colocado ao lado de outras pessoas com características físicas semelhantes. A testemunha deve, idealmente, descrever o suspeito antes de vê-lo no grupo, a fim de evitar influências externas. Apesar dessas diretrizes, a aplicação prática muitas vezes se afasta do modelo ideal. Isso ocorre devido à falta de rigor na observância dos procedimentos estabelecidos, o que pode levar a erros de identificação que, por sua vez, resultam em condenações injustas. Conforme ressalta Fiorelli (2024):
“o reconhecimento de suspeitos, apesar das regulamentações previstas no CPP, muitas vezes falha em proteger a neutralidade do processo, levando a identificações enviesadas e, consequentemente, a erros judiciais” (p. 105).
Uma das principais vulnerabilidades do processo de reconhecimento reside nas limitações inerentes à percepção humana. Testemunhas sob estresse intenso, como em situações de crimes violentos, estão suscetíveis a distorções perceptivas que podem comprometer a precisão do reconhecimento. Estudos de Loftus (1996), renomada especialista em memória e identificação ocular, mostram que testemunhas tendem a concentrar sua atenção em aspectos centrais do evento — como a presença de uma arma —, deixando de lado detalhes periféricos, como a aparência do suspeito. Esse fenômeno, conhecido como “efeito da arma”, pode ser determinante em casos criminais. A atenção focalizada em uma ameaça iminente faz com que elementos cruciais, como o rosto do criminoso, sejam pouco ou mal lembrados.
No contexto brasileiro, o uso do reconhecimento pessoal está ainda mais comprometido pela falta de padronização em sua aplicação. Não é incomum que o lineup seja conduzido de forma inadequada, com suspeitos que não apresentam semelhanças físicas reais entre si ou com uma condução que induz o reconhecimento do acusado. Esses procedimentos, muitas vezes realizados em delegacias sem o controle devido, comprometem a imparcialidade e violam as garantias processuais de que o reconhecimento deve ser objetivo e livre de pressões. Como afirma Gomes (2018):
“A forma como o reconhecimento de suspeitos é conduzido no Brasil ainda carece de mecanismos que evitem a contaminação dos depoimentos, seja pela sugestão direta dos agentes de segurança ou pela inadequação dos critérios de comparação” (p. 212).
Além das falhas perceptivas, outro desafio ao reconhecimento no Brasil envolve o impacto das influências externas no processo de memória. Estudos demonstram que a formulação de perguntas e a forma como os procedimentos de reconhecimento são conduzidos podem alterar a lembrança original de um evento. Loftus (1996) argumenta que a memória humana é maleável e suscetível a influências, o que compromete sua confiabilidade como prova única. Isso é especialmente preocupante no caso do reconhecimento de criminosos, onde a pressão para identificar um culpado pode levar a distorções na memória da testemunha, reforçando o risco de erros.
Além disso, a utilização de novas tecnologias, como o reconhecimento facial, tem levantado preocupações quanto à precisão e imparcialidade desse método. Embora a tecnologia de reconhecimento facial seja amplamente utilizada para identificar suspeitos em câmeras de segurança, estudos recentes apontam para falhas frequentes, especialmente no reconhecimento de pessoas de minorias raciais. No Brasil, onde o racismo estrutural ainda persiste, o uso dessas tecnologias sem o devido controle pode amplificar os vieses já presentes no sistema. Como observa Santos (2020):
“A implementação de tecnologias de reconhecimento facial no Brasil, sem uma revisão crítica de suas limitações e de seus vieses, pode exacerbar as desigualdades raciais no sistema de justiça criminal” (SANTOS, 2020, p.89).
Outro ponto crucial é o impacto de influências externas no processo de reconhecimento. A maneira como as perguntas são formuladas por policiais ou investigadores, assim como as instruções dadas às testemunhas, pode alterar suas memórias originais, distorcendo a verdade. Isso é particularmente preocupante no contexto brasileiro, onde o reconhecimento pessoal continua a ter grande peso nas decisões judiciais. Estudos de Fiorelli (2024) reforçam que, sem o treinamento adequado dos operadores do direito e das forças de segurança, os riscos de erros judiciais permanecem elevados:
“O sistema judicial brasileiro precisa incorporar de forma mais sistemática os avanços da psicologia cognitiva para que seus procedimentos processuais sejam mais robustos e justos” (FIORELLI, 2024, p. 115).
Assim, é imprescindível que os profissionais que lidam com o reconhecimento de suspeitos estejam cientes das limitações da percepção humana e da vulnerabilidade da memória a influências externas. Dependendo exclusivamente de testemunhos oculares como prova principal em um processo penal, o risco de condenações errôneas aumenta significativamente. Nesse contexto, a adoção de práticas mais seguras e baseadas em evidências científicas, como o reconhecimento por duplo-cego — em que o agente responsável pelo procedimento não sabe quem é o suspeito — tem se mostrado uma alternativa eficaz para reduzir influências externas. Esse procedimento evita que a testemunha seja orientada, mesmo que de maneira inconsciente, para reconhecer um determinado suspeito. Além disso, a gravação de todos os procedimentos de reconhecimento é uma medida essencial para garantir maior transparência e controle, protegendo tanto o acusado quanto a testemunha.
Os métodos tradicionais de reconhecimento de suspeitos no Brasil apresentam sérias limitações em sua aplicação prática, agravadas pelas falhas perceptivas e cognitivas inerentes ao ser humano. A falta de rigor na observância das diretrizes legais, a pressão emocional enfrentada pelas testemunhas e os vieses presentes em novas tecnologias como o reconhecimento facial comprometem a confiabilidade desses métodos. Reformas processuais que incorporem descobertas da psicologia cognitiva e jurídica são essenciais para aumentar a eficácia e a justiça dos procedimentos de reconhecimento, permitindo que o sistema judicial brasileiro minimize o risco de erros e assegure maior imparcialidade em suas decisões.
5. ANÁLISE DA CONFIABILIDADE DO RECONHECIMENTO FACIAL E OUTRAS TECNOLOGIAS DE IDENTIFICAÇÃO NO SISTEMA JUDICIAL BRASILEIRO
Com o advento das tecnologias de identificação, o reconhecimento facial se destacou como uma ferramenta moderna de auxílio às investigações criminais. Entretanto, a confiabilidade dessa técnica no sistema judicial brasileiro suscita importantes discussões, especialmente quanto à sua precisão e neutralidade. A aplicação do reconhecimento facial, que compara imagens capturadas em câmeras de segurança ou outros dispositivos com bases de dados, tem sido crescente no Brasil, mas apresenta limitações consideráveis que precisam ser observadas.
Estudos indicam que o reconhecimento facial não é infalível e, frequentemente, suas falhas se manifestam em contextos de identificação de pessoas pertencentes a minorias raciais. Diversos experimentos internacionais demonstraram que algoritmos de reconhecimento facial tendem a ser menos precisos ao identificar indivíduos de grupos raciais como negros, asiáticos ou latinos, o que suscita preocupações no Brasil, onde o racismo estrutural já compromete diversos aspectos do sistema de justiça. Como destaca Santos (2020):
“A utilização de tecnologias de reconhecimento facial no Brasil, sem uma análise crítica de suas falhas, pode perpetuar desigualdades raciais no sistema penal” (p. 89).
O contexto de aplicação dessa tecnologia é também um ponto crucial. A ausência de regulamentação específica que trate da utilização do reconhecimento facial no processo penal brasileiro gera uma zona cinzenta jurídica. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), promulgada em 2018, impõe limites gerais sobre o tratamento de dados pessoais, mas não aborda diretamente as especificidades do uso de tecnologias de vigilância e reconhecimento facial para fins de segurança pública. Dessa forma, muitas vezes, o uso dessas ferramentas ocorre sem o devido controle e sem um protocolo estabelecido, comprometendo a segurança jurídica do processo. A falta de parâmetros claros permite que a aplicação do reconhecimento facial ocorra de forma não padronizada, abrindo margem para erros de identificação.
Adicionalmente, estudos mostram que fatores ambientais podem afetar a eficácia do reconhecimento facial. A qualidade da iluminação, o ângulo das câmeras e o tempo de exposição das imagens capturadas são variáveis que interferem diretamente na precisão da correspondência facial. Em situações em que essas condições não são ideais, aumenta-se o risco de identificação equivocada, um problema que pode ser agravado pela pressa em resolver investigações criminais.
Em contraste, outras tecnologias de identificação, como o exame de DNA e a coleta de impressões digitais, demonstram maior confiabilidade quando comparadas ao reconhecimento facial. Ambas as técnicas estão mais consolidadas no sistema judicial brasileiro, com diretrizes específicas sobre sua coleta e uso, além de apresentarem maior precisão técnica. As amostras de DNA, por exemplo, podem fornecer resultados altamente confiáveis, quando utilizadas adequadamente, sem depender das condições ambientais que afetam o reconhecimento facial (INNOCENCE PROJECT, 2019, p. 22). No entanto, ainda que essas técnicas sejam mais precisas, seu uso depende da disponibilidade de provas biológicas ou digitais, o que nem sempre é possível (GOMES, 2018, p. 103).
A confiança depositada na tecnologia de reconhecimento facial, portanto, deve ser vista com cautela. Apesar de ser uma ferramenta tecnológica em constante desenvolvimento, suas falhas e a falta de regulamentação adequada no Brasil geram incertezas quanto à sua aplicação em processos judiciais. Isso levanta importantes questionamentos sobre a confiabilidade de seus resultados, especialmente quando considerados os impactos dessas tecnologias em decisões judiciais que podem determinar a liberdade ou a condenação de um indivíduo (SANTOS, 2020, p. 89; MARTINS, 2019, p. 48).
Conclui-se, então, que, no contexto do sistema judicial brasileiro, o reconhecimento facial, embora amplamente utilizado, ainda apresenta limitações significativas. Essas limitações não apenas colocam em risco a acuracidade das investigações criminais, mas também ampliam as desigualdades e os vieses existentes no sistema de justiça.
6. CONCLUSÃO
A percepção humana, embora vital para a dinâmica do sistema judicial, revela-se uma ferramenta imperfeita quando colocada sob pressão em situações de extrema tensão. Testemunhas e vítimas, que muitas vezes desempenham papeis centrais no andamento de investigações e processos judiciais, estão sujeitas a falhas cognitivas que podem comprometer seriamente a busca pela verdade. A confiança excessiva em depoimentos oculares como prova principal, sem uma análise crítica das limitações da memória e da percepção, tem produzido consequências trágicas. Erros judiciais decorrentes de falhas perceptivas são uma triste realidade, evidenciando as vulnerabilidades do processo penal. No Brasil, essa realidade tem se manifestado de maneira alarmante, com condenações equivocadas ganhando destaque nos meios de comunicação e expondo as lacunas do sistema.
Esses erros são, em sua essência, frutos da fragilidade inerente ao modo como o ser humano percebe e recorda eventos. A memória, longe de ser uma gravação precisa dos acontecimentos, é um processo dinâmico e reconstruído, muitas vezes influenciado por fatores externos, como o estresse, as condições ambientais, e até mesmo o tempo decorrido entre o evento e o depoimento. É nesse ponto que o processo judicial enfrenta um de seus maiores desafios: como confiar na acurácia de depoimentos que são tão suscetíveis a distorções?
Os métodos tradicionais de reconhecimento, como o lineup — a famosa parada de reconhecimento em que suspeitos são colocados lado a lado —, há muito tempo são utilizados como pilares no processo de identificação de criminosos. No entanto, já está claro que esses métodos, por si só, não são suficientes para assegurar a justiça. A dependência da memória humana, em particular em momentos de estresse elevado, prejudica a capacidade de reter informações de forma precisa. Estudos mostram que o estresse interfere diretamente no funcionamento cognitivo, limitando a atenção a detalhes periféricos e afetando negativamente a precisão dos relatos. Assim, métodos tradicionais como o lineup não conseguem mitigar essas influências cognitivas de maneira eficaz.
Para que a justiça possa se aproximar da verdade de forma mais precisa, torna-se urgente a implementação de práticas mais robustas e respaldadas por evidências científicas. O reconhecimento por duplo-cego, amplamente utilizado em países que já avançaram nessa discussão, é um exemplo de método eficaz para reduzir o viés e as influências externas no processo de identificação. Esse método, que impede que tanto o responsável pelo reconhecimento quanto a testemunha saibam quem é o suspeito, minimiza as possibilidades de manipulação, ainda que não intencional. Dessa forma, torna-se mais difícil que a testemunha seja induzida, ainda que inconscientemente, a escolher o suspeito errado.
Paralelamente, a tecnologia surge como uma aliada poderosa, mas também apresenta desafios que não podem ser ignorados. O uso crescente do reconhecimento facial no Brasil, por exemplo, demonstra tanto o potencial quanto os riscos que a inovação tecnológica traz ao sistema judicial. Se, por um lado, o reconhecimento facial tem a capacidade de cruzar dados de forma rápida e eficiente, por outro, ele também apresenta falhas preocupantes, especialmente no que se refere ao reconhecimento de pessoas de minorias raciais. Estudos internacionais já demonstraram que algoritmos de reconhecimento facial tendem a ser menos precisos ao identificar indivíduos negros ou de outras minorias, o que, no contexto brasileiro, pode exacerbar as desigualdades estruturais e levar a condenações injustas.
A ausência de regulamentação específica sobre o uso dessas tecnologias no âmbito do direito penal é outro ponto de fragilidade. Sem um controle rigoroso, há o risco de que essas ferramentas sejam aplicadas de forma indiscriminada, sem os devidos cuidados técnicos e jurídicos, potencializando as injustiças. É crucial que o Brasil, ao adotar novas tecnologias, também desenvolva diretrizes claras e padronizadas que garantam a imparcialidade e a precisão desses métodos.
Além das questões tecnológicas, o impacto social dos erros judiciais gerados por falhas de percepção e memória é devastador. Cada erro judicial representa não apenas a destruição da vida de um inocente, mas também uma grave falha sistêmica que mina a confiança pública nas instituições de justiça. A sociedade, ao ver o sistema judicial falhar em sua função mais básica — a de promover justiça de maneira equitativa e imparcial —, tende a questionar a legitimidade e a eficácia de suas instituições. Esse desgaste na confiança pública pode ter efeitos duradouros, enfraquecendo o pacto social que sustenta a ordem jurídica e promovendo um sentimento generalizado de insegurança e descrença.
Portanto, não se trata apenas de reformar o processo judicial por razões técnicas, mas de reconhecer a profundidade das consequências humanas, sociais e morais envolvidas. A modernização do sistema de justiça penal, com a adoção de práticas respaldadas por descobertas científicas e a incorporação de tecnologias de maneira ética e regulada, é uma necessidade que transcende o aspecto jurídico. Trata-se de um imperativo moral. O reconhecimento das limitações humanas, bem como das falhas das práticas processuais correntes, é o primeiro passo para a construção de um sistema mais justo e eficiente.
Diante dessa realidade, a reforma do processo penal brasileiro, com foco nas falhas perceptivas e na vulnerabilidade da memória humana, torna-se um caminho inevitável para que o país possa consolidar um sistema jurídico que realmente promova a justiça. Ignorar essas questões seria fechar os olhos para os avanços científicos e perpetuar um ciclo de injustiças que, em última instância, enfraquece a própria democracia.
Em última análise, é preciso que o direito e a ciência caminhem juntos. As descobertas da psicologia cognitiva oferecem ferramentas valiosas para aprimorar os procedimentos judiciais, minimizando as chances de erro e assegurando que as decisões tomadas nos tribunais sejam mais justas e precisas. O sistema judicial brasileiro deve estar preparado para incorporar essas inovações de maneira eficiente e ética, garantindo que os procedimentos de identificação e depoimento sejam conduzidos com a máxima imparcialidade.
Assim, é imprescindível que o sistema judicial brasileiro se ajuste às necessidades de uma justiça moderna, pautada não apenas na tradição, mas também nas descobertas científicas que podem aperfeiçoar os procedimentos legais. A integração de novas tecnologias, a revisão dos métodos de reconhecimento e depoimento, e o compromisso com uma abordagem mais técnica e imparcial são fundamentais para assegurar que o processo penal evolua de maneira justa e equitativa. Somente com uma postura proativa e aberta às inovações, o sistema poderá mitigar os riscos de erros judiciais e fortalecer a confiança da sociedade nas instituições que devem garantir a verdade e a justiça.
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1Graduanda do Curso de Direito do Estado do Pará (CESUPA).
2Mestre em Direito, Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional pelo Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA). Mediador judicial formado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará.
3Graduando do Curso de Direito do Estado do Pará (CESUPA).