A FORMAÇÃO DO CAMPO INTELECTUAL BRASILEIRO DURANTE A 1ª REPÚBLICA: DESVELANDO AS INTERAÇÕES ENTRE EXPERIÊNCIA SOCIAL E PODER¹

THE EMERGENCE OF THE BRAZILIAN INTELLECTUAL FIELD DURING THE 1ST REPUBLIC: UNVEILING THE INTERPLAY OF SOCIAL EXPERIENCE AND POWER

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202409140830


Filipe Rizzo Oliveira2


Resumo: Este artigo pretende acompanhar o período histórico de formação do Campo Intelectual brasileiro buscando uma percepção ampla das relações entre os domínios da literatura e o sistema de poder durante a 1ª República (1889-1930). Um período localizado entre o declínio da geração de 1870 e o surgimento do movimento Modernista, ao qual se é dado pouca atenção, embora apresente as condições históricas e sociais em meio das quais se constitui o campo intelectual sob cuja vigência ainda estamos vivendo.

Palavras-chave: Campo Intelectual; Primeira República; Modernismo.

Abstract: This article intends to explore the formative period of the Brazilian Intellectual Field during its 1st Republic (1889-1930), between the decline of the 1870’s generation and the onset of the Modernist movement, to understand the relationships between literature and the power system during its time, that played a crucial role in shaping the intellectual landscape that persists today.

Keywords: Brazilian Intellectual Field; First Brazilian Republic; Brazilian Modernist movement.

Este artigo pretende acompanhar o período histórico de formação do Campo Intelectual brasileiro, buscando uma percepção ampla das relações entre os domínios da experiência social e o sistema de poder durante a 1ª República (1889-1930). Um período localizado entre o declínio da geração de 1870 e o surgimento do movimento Modernista, ao qual se é dado pouca atenção, embora apresente as condições históricas e sociais em meio das quais se constitui o campo intelectual sob cuja vigência ainda estamos vivendo.

Sobre o Campo Literário

O Campo Literário, segundo o sociólogo e intérprete de Bourdieu, Sergio Miceli, pode ser estudado em duas frentes: enquanto espaço de negociação entre instituições, autoridades e instâncias; ou, enquanto prática e agentes, marcados a fundo pela história de que são procedentes. O campo como estrutura constitui um mundo social dotado de concentração de poder e capital, monopólios, relações de força e conflitos, resultado de uma luta concorrencial que leva as camadas dominadas a emular as maneiras das camadas dominantes, que por seu turno, aumentam as exigências a fim de voltar a atribuir-lhes um valor discriminativo. 

Nessa concepção, de um espaço moldado por constrições racionais, o campo impõe às trocas sociais regras que definem o sistema simbólico que lhe é inerente com a força de um constrangimento lógico e social, reconhecida pelos agentes como cheias de sentido e significação, cujo conhecimento adequado não dispensa o estudo da circunstância onde mergulha a obra, nem da sua função (Miceli, 2003).

Como um sistema vivo de obras agindo uma sobre as outras, e sobre os leitores, nem o campo ou a própria literatura são, pois, um ente fixo ante a qualquer público – nem este é passivo ou homogêneo. São dois fatores que atuam um sobre o outro, e aos quais se juntam autores, fator inicial desse processo de circulação literária, para configurar a tessitura da literatura atuando no tempo. 

Enquanto prática, o campo constitui um ponto de vista do qual se pode captar posições produtoras de visões, obras e opiniões, a que correspondem classes de agentes providos de propriedades distintivas, portadores de um habitus3, também socialmente constituído. Cada conduta deve adequar-se à “estrutura da personalidade” em relação a que ela se inscreve e adaptar cada comportamento à finalidade que ele deve atingir. Em outras palavras, cada escolha tem na verdade a função de ilustrar e validar a sua própria representação das disposições culturais ou das propriedades psicológicas que empregam.

O mesmo tema, a partir da ótica de Antonio Candido trás reflexões bastante similares. Segundo o teórico, para realizar-se uma análise crítica das obras executadas em dado campo cabe investigar os fatores que influíram em sua organização interna – individualizando-a – e levar em conta o elemento social como fator da própria construção artística, até chegar a uma interpretação estética que assimilou a dimensão social como fator de arte.

Em termos conceituais a teoria de Bourdieu buscou fundamentar-se nos elementos éticos das práticas sociais. Com a idealização e evolução do conceito de campo, o que terá acontecido ainda nos anos 1960, segundo Frota e Passiani (Frota, 2009), Bourdieu teria logrado “transcender a oposição entre objetivismo e subjetivismo”, preenchendo as lacunas do interacionismo e do estruturalismo. 

Ainda segundo Frota e Passiani, não se registra qualquer notícia sobre a recepção dos trabalhos de Bourdieu no mundo acadêmico da época, que se encontrava sob a influência do New Criticism 4, à exceção da linha sócio-histórica de Antônio Cândido que aparenta uma aproximação com as ideias do homólogo francês, embora apresente uma formulação de “sistema literário” próprio e independente.

Para o autor brasileiro, o campo literário depende em primeiro lugar da consciência desenvolvida pelo grupo. Essa consciência pode se manifestar de formas diversas dependendo do momento histórico (vocação, inspiração, dever social etc.), permitindo-lhes adotar papeis que lhes sirvam bem identificação enquanto membros de um segmento especial da sociedade.

As formulações ideográficas da história literária ou da crítica de arte de perfil convencional tendem a considerar a obra literária como independente de fatores externos com base em uma ideia, refutada também por Bourdieu, da ideologia romântica do gênio criador. Para ele, persistem fatores externos de explicação, que dependem de um ponto de vista mais sociológico do que estético, necessários para a compreensão das suas formas concretas particulares – correntes, períodos, constantes estéticas. Preocupações similares sobre o dinamismo da obra e suas esferas de influência foram tratadas de forma independente por Antonio Candido:

[…] mesmo considerando-se o valor artístico algo de cunho metafísico só de modo sociológico é possível elucidá-lo nas suas formas concretas particulares – pois nas sociedades civilizadas a criação é iminentemente relação entre grupos criadores e grupos receptores de vários tipos (Candido, 2023, p. 93)

Candido afirma que o escritor é não apenas um indivíduo capaz de exprimir a sua originalidade, mas alguém desempenhando um papel social, detentor de uma posição restrita ao seu grupo e forçado a atender certas expectativas de público ou ordem financeira. Consequentemente, o conteúdo e a forma de sua obra dependerão em parte da dialética estabelecida nas inspirações individuais e a conformidade com o meio. 

Assim, sob tal ponto de vista, a produção da obra literária deveria ser inicialmente analisada tendo como referência a posição social do escritor e a recepção do público. Vários fatores são combinados, dependendo uns dos outros e determinando-se uns aos outros conforme a situação analisada. É deste modo é que se deveria considerá-los, relacione-os.

Destaca-se uma determinada visão da sociedade onde práticas levam sempre em consideração os laços de dependência que regulam as relações entre os indivíduos, e que são construídos, de diferentes formas, pelas estruturas do poder.

O vínculo entre a obra e o ambiente garante a primeira uma integridade que só poderá ser entendida fundindo texto e contexto. Os fatores externos importam, não como causa, nem como significado, mas como um elemento que desempenha papel concreto na constituição da própria estrutura tornando-se, portanto, interno. (Candido, 2023, p. 19)

Para ele, também, o caráter histórico de uma obra depende de sua estrutura literária, organizada formalmente através de representações mentais que por sua vez foram condicionadas pela sociedade em que a obra foi escrita. Em face, então, de uma estrutura que permanece esteticamente invariável, pode-se investigar as variações históricas da obra ou de sua função no tempo. 

Estas ideias adequam-se às do historiador francês Roger Chartier, para quem as representações do mundo social são esquemas intelectuais sempre determinados pelos interesses dos grupo que as forjam, que concebem essas imagens graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado, e produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas desconsiderados, e legitimar um projeto reformador ou mesmo justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. 

Por essas representações estarem sempre colocadas num campo de concorrências e de competições de poder e de dominação os esquemas geradores das classificações e das percepções, próprios de cada grupo ou meio, leva a considerar estas representações como as matrizes de discursos e de práticas diferenciadas que têm por objetivo a construção do mundo social, e como tal a definição contraditória das identidades – tanto a dos outros como a própria.

A noção de representação coletiva permite conciliar as imagens mentais com os esquemas interiorizados, as categorias incorporadas, que as geram e estruturam. Desta forma, pode pensar-se uma História Cultural do social que tome por objeto a compreensão das formas e dos motivos que, à revelia dos atores sociais, traduzem as suas posições e interesses e que descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse. (Chartier, 2022)

Afinal, a função do escritor depende das representações que os grupos elaboram em relação a ele, e não necessariamente ao seu próprio conceito. Esta função exprime o reconhecimento social da sua atividade, que deste modo se justifica socialmente.

A Formação do Campo

Dentro do campo literário a obra deve ser referenciada em relação à posição social do escritor e à formação do público. Desse modo, cada fator combinado acaba por determinar a construção do habitus como sistema de disposições socialmente constituídas de um grupo de agentes e as diversas categorias e grupos em busca da legitimidade institucional.

Não há literatura enquanto não houver congregação espiritual e formal, manifestando-se por meio de homens pertencentes a um grupo (ideal), segundo um estilo (mesmo inconsciente) enquanto não houver um sistema de valores que enforme a sua produção e dê sentido à sua atividade; enquanto não se estabelecer a continuidade (uma transmissão e uma herança) que significa integridade do espírito criador na dimensão do tempo. (Candido, 2023, p. 168)

O campo depende, fundamentalmente, da consciência grupal desenvolvida pelos atores que constituírem tal segmento particular da sociedade, manifestando-se dentro das possibilidades oferecidas, permitindo-lhes definir um papel específico que lhes garanta identificação e posição social. Disso decorrerá suas condições de existência e consequente profissionalização. Embora essa não seja essencial para a estruturação do grupo, há diversas formas diferentes de remuneração do trabalho intelectual como o mecenato, empregos públicos, prebendas etc. Em suma, o lugar do escritor na sociedade depende da representação que os grupos elaboraram em relação a ele e que não corresponde necessariamente à sua própria autoimagem.

À medida que a coletividade reconhece no criador uma personalidade bem definida, com o direito de se exprimir sem referência necessária às solicitações do meio maior será a autonomia da obra, em todo caso só se desenvolverá quando ela, não dependendo essencialmente de nenhum ato coletivo para ser criada e comunicada, ganha independente em relação às condições de produção.

Aí o trabalho artístico sobre a palavra (a composição) ganha tal requinte que mesmo quando a obra é escrita para ser executada adquire a singularidade e a aparência de coisa incondicionada […] que guarda um impacto suficiente para fazer sentir a pujança da sua “função total”. (Candido, 2023, p. 67-68)

O papel das formas de sociabilidade intelectual, e da sua relação com as instâncias de poder, na caracterização das diferentes etapas da literatura brasileira. Analisando os tipos de associação entre escritores, os valores específicos que os norteiam e a sua posição em face dos valores gerais e da organização da sociedade. 

A Formação do Campo Literário Brasileiro

A fase da literatura brasileira associada ao período da 1ª República não costuma ocupar espaço de destaque nas reflexões acadêmicas da crítica literária, muito mais afeita às escolas que privilegiam as questões da identidade nacional, como o Romantismo e o Modernismo, frente aquelas de maior conformismo periférico e imitação consciente de categorias estrangeiras.

Antonio Candido, o sociólogo e crítico literário brasileiro, sugere, inclusive, a existência de uma dialética do localismo x o cosmopolitismo – atuante por meio da tensão entre o dado local (que se apresenta como substância da expressão) e os moldes herdados da tradição europeia (que se apresenta como forma de expressão) –, e fosse possível, uma “lei da evolução da nossa vida espiritual”, toda ela regida pela dialética do localismo e do cosmopolitismo, manifestada pelos modos mais diversos.

Os pré-modernistas ainda seriam deserdados das grandes causas políticas, como por exemplo a Independência para os românticos ou o abolicionismo e o movimento republicano para a geração naturalista, e presos a padrões estéticos “decadentistas”, formando um agrupamento de certo modo aristocrático em relação ao homem inculto”, aristocratismo este, a seu ver, “alienador” é marcado pela “pose”.

O Modernismo, de fato, marca uma ruptura política no campo intelectual brasileiro. Tendo surgido num momento de crise da hegemonia oligárquica, o movimento estruturou-se tendo como base a formação ganhou um grupo de intelectuais impactadas pelas cisões internas da burguesia paulista, não por acaso irrompendo nos mesmos anos das greves em São Paulo e Rio de Janeiro (1917, 1918, 1919 e 1920), das insurreições tenentistas, da reorganização política da igreja através dos núcleos de mobilização da intelectualidade leiga e da fundação do Partido Comunista (Miceli, 1977). Agiam os impulsos da vanguarda europeia e da industrialização, que rompeu o ritmo tradicional das cidades, levando ao nível da consciência literária inspirações populares reprimidas.

No campo artístico brasileiro, notadamente os jovens “avanguardistas” paulistas, empreendem um embate com as antigas correntes literárias dominantes em um esforço para exercer o que assumiam como seu verdadeiro papel social e artístico; para se pôr em dia com a evolução da arte nos grandes centros; para tomar conhecimentos das modernas tendências de pensamento. Outros tempos chegavam e com eles outros desejos estéticos, políticos e sociais. Outra sociedade se estruturava e outras artes dela nasceriam. Uma geração preparava-se para a mudança econômica e política e uma nota predominante marcaria sua ação: a de confiança no futuro e possibilidades do Brasil.

Em seu livro As revoltas modernistas na literatura, Otto Maria Carpeaux já indicava que “a literatura que em geral se chama modernismo” aparecerá entre 1905 e 1910, ficando incubada até 1918, quando crítica conservadora e público, finalmente, percebem as vanguardas artísticas. 

Tendo a revolução literária coincidido com importantes acontecimentos e modificações na estrutura política e social do mundo, nada parece mais natural ao autor do que a literatura ter reagido àqueles acontecimentos, seja refletindo-os, seja até antecipando-lhes os reflexos ideológicos. 

Mario da Silva Brito, um dos primeiros autores a escrever sobre os antecedentes do modernismo no Brasil, em História do Modernismo Brasileiro, relata o sentimento ufanista progredindo, ganhando corpo, influindo nas consciências e estimulando as elites culturais. Com eles vinham a arregimentação, a consciência de rebeldia, testemunhos de revolta e de coletividade em luta pela modernização. 

Esse movimento abalou os alicerces em que se assentava o poder da velha aristocracia rural. Sentindo o caminho aberto os intelectuais vão mudar de posição e acompanhar os rumos novos de seu mundo, de sua terra e de sua época e começar e ver e sentir o Brasil. 

Para Sérgio Miceli (2012) o impulso das atividades culturais do grupo modernista esteve desde o início atrelado ao dinamismo de agremiações políticas e de consórcios empresariais na imprensa e não deixaram de padecer as consequências de um estado de espírito gerado pelo nacionalismo exaltado. O “nacional-estrangeiro” condizente com o estado das relações de força e de sentido do artista brasileiro fábula uma história exótica e estereotipada do Brasil que são ingredientes de uma reconstrução histórico-social de um estendido processo de transformação.

Em Literatura e Sociedade, Antônio Candido defende que os modernos encontraram suas tendências estéticas, em grande parte, na agitação intelectual, no rompimento com as tendências tradicionais e na reinterpretação de sua representação social através da aceitação das componentes recalcadas da nacionalidade, trazendo ao nível da consciência literária inspirações populares reprimidas. 

De modo geral, o traço marcante do movimento – a ruptura com as formas tradicionais – decorreria, portanto, também por motivos políticos e sociais. Como a vanguarda é formada por pessoas que vão à frente, os artistas já não representam só a si mesmos, tornam-se mediadores entre o comando da opinião pública e os círculos políticos, como alardeia Menotti del Picchia no jornal Correio Paulistano, em 1921:

E vós – ó meus irmãos de sonho – que tínheis ontem a função pálida dos troveiros ironizados, hoje, messianicamente, encontrais vosso destino no apostolado do Verbo Novo, a afirmar, em páginas pesadas de eternidade, o esplendor e a glória do pensamento brasileiro. (Brito, 1971)

Cabe aqui, também, esclarecer os termos estudados e seus usos dentro do campo intelectual. A mudança operada no conceito de intelectual em fins do século XIX, a partir da contradição entre seu lugar social e histórico e de sua postura no contexto moderno, fez emergir o problema em torno da ideia de uma função prática para o artista e o campo constituiu-se em um lugar no qual se podia captar posições produtoras de visões, obras e tomadas de posição, a que correspondiam classes de agentes portadores de práticas distintas daquelas operadas pelas gerações precedentes.

Enquanto sistema, entretanto, a literatura Brasileira encontrou-se definitivamente estruturada já em finais do século XIX, não sendo possível falar em literatura autônoma anterior a esta data, seja pelas características das obras ou pelo número reduzido de autores, mas principalmente pela falta de articulação entre as obras, autores e leitores num sistema coerente. Foi nesse período que se desenvolveram as condições sociais favoráveis à profissionalização do trabalho intelectual e a constituição de um campo intelectual relativamente autônomo – o surgimento das editoras, a fundação de instituições letradas (como a Academia Brasileira de Letras) e o aumento do número de alfabetizados capazes de integrar um público leitor dão à literatura o status de produto.  

A virada do século trouxe consigo uma onda de esperança, de liberdade e participação política, da industrialização acelerada das grandes capitais brasileiras – principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, capital da Belle Époque nacional. 

A imagem do progresso como sinônimo de civilização se transforma na obsessão coletiva da nova burguesia. Em um ambiente que alternava entre a euforia de alguns setores da sociedade e a realidade social mais grave, os intelectuais brasileiros adotavam duas posições divergentes uns pregavam o progresso como solução para todos os problemas do país adotando os modelos culturais e artísticos europeus, principalmente franceses. 

Paralelamente, a cidade começava a se transformar em um espaço de contrastes, onde a modernidade e a tradição coexistiam. Enquanto avenidas largas e edifícios imponentes simbolizavam a aspiração de progresso e a inserção da cidade no contexto urbano moderno, muitos bairros mantinham uma estrutura e um ritmo de vida mais próximos do rural. As tradicionais festas de rua e a forte presença das culturas dos imigrantes contribuem para o dinamismo e a complexidade do espaço urbano onde observa-se uma estratificação social muito mais acentuada, seja pelo aparecimento de novos grupos ou pela sobreposição dessas novas camadas, recompostas quanto ao número, sua composição e aos padrões de comportamento.

Posta como núcleo irradiador das significações na nova sociedade em formação, a metrópole e seus efeitos desorientadores eliminaram as posições decisivas ligadas ao lastro cultural do século anterior com uma corrente de efeitos muito mais amplos do que os circunscritos aos limites da cidade. Toda uma série de hábitos físicos e sensoriais são incorporados como práticas da rotina cotidiana e adquirem um efeito sinérgico, que os integram a uma rede interativa de experiências centrais nos contextos social e cultural. Criando uma identidade e um novo estilo de vida.

Envolvidas por uma carga inédita de prestígio essa mentalidade surge como um modelo da elite, mas, na década de 1920 já está difundida pelos bairros de classe média e as periferias. A consagração máxima é ser moderno, o resto é passadismo e tem os dias contados.

O campo intelectual durante o modernismo brasileiro foi marcado pela formação de uma ampla rede de relacionamentos que contribuíram para a legitimação e consagração do movimento com as feições celebradas pela historiografia. Nesse contexto, uma relação ambígua se estabelecia, pois, ao mesmo tempo, escritores com afinidades intelectuais e dispersos em diversas regiões do país buscavam promover intensa circulação de ideias entre si, mas colocavam em choque interesses contraditórios.

À dinâmica social e econômica brasileira do início do século XX, portanto, é possível conferir uma função catalisadora do movimento modernista em nossa literatura. Esse período, notável em virtude da implantação de novas formas de organização política, alterações na constituição do quadro social do país – fomentadas pela abertura da nação à intensiva imigração – somadas ao célere processo de urbanização e industrialização vislumbrada, inflamou nesse grupo de artistas uma aversão quanto ao estado de apatia e estagnação em que as artes se encontravam. 

Em São Paulo a intelectualidade menos vinculada ao Estado resultaria em uma relativa independência dos intelectuais em relação ao poder estatal que somada ao processo de transição para a modernidade mais brusco que no Rio forçava uma acelerada adequação e a reinvenção de vários de seus costumes. O Rio de Janeiro, outro importantíssimo produtor cultural, se apresentava como uma cidade marcada pela função política e administrativa, era uma cidade pré-industrial e pré-burguesa e tomada mais por consumidores do que produtores, além de apresentar um elevado grau de dependência do poder público. 

O Rio não deixou de se tornar uma cidade cosmopolita, mas, ao mesmo tempo, se limitava a atuar como um centro importador e consumidor dos produtos da cultura europeia. Lá, a mescla cultural, num certo sentido, era impedida pela existência de uma cultura oficial, que inibia a formação de um modernismo mais potente – o que não quer dizer que não houvesse um movimento modernista carioca.

Muitos atribuem esse contexto como um dos fatores da tentativa de renovação da intelectualidade ter-se dado em São Paulo. Manuel Bandeira, em correspondência com Mário de Andrade deixa transparecer a ideia das condições propícias para a renovação literária surgir por lá: 

O que há hoje é uma dispersão formidável de metrópole. Não há aqui esse aconchego que permite a província. Por isso mesmo reputo São Paulo um ambiente excepcionalmente propício para a cultura: perto do Rio e fora do Rio. (Mário de Andrade e Manoel Bandeira, p. 66. Carta de 3 de julho de 1922, in Machado, 2012)

Tal afirmação, contudo, deve ser posta com cuidado já que foi demonstrando que outras representações artísticas de cunho inovador aconteciam simultaneamente em outras partes do país, algumas até antecedendo as experiências paulistanas. Basta lembrar de nomes como Adolfo Caminha, Affonso Arinos, Euclides da Cunha e João do Rio, na literatura, ou Almeida Júnior, Eliseu Visconti e Arthur Timotheo da Costa, nas artes plásticas, que já haviam se lançado entre séculos, à busca pelo nacional e o autêntico, assim como ao exame da cidade e dos marginalizados. 

Isso, sem nem falar dos muitos criadores que o cânone modernista relegou ao status do regional ou, pior ainda, do pré-modernismo, ambas categorias muito discutíveis. Além de sustentar que a modernização artística teve início em 1913, críticos como Otto Maria Carpeaux ou Antonio Candido (2021 /2023)argumentavam que o movimento já despontava em outros pontos do Brasil.

Até quase às vésperas da Semana de Arte Moderna de São Paulo, conforme Marisa Lajolo (1980), a infraestrutura da vida cultural brasileira era bastante precária, mesmo na capital paulista. Lajolo conta que no ano de 1919 havia 35 livrarias no Brasil e grande parte das obras em circulação eram impressas em outros países. O distanciamento entre escritores e leitores antecede, portanto, questões estéticas. A quase inexistência de canais de circulação entre obra e público tornava-se o maior empecilho para a concretização de qualquer projeto literário nacional.

Porém, a partir da segunda década do século XX, a cidade de São Paulo passa por acentuadas mudanças que marcam, em definitivo, a sua entrada na modernidade. Importava-se um cosmopolitismo europeizado que abria as portas para um novo mundo, progressista, liberal, urbano e com perspectivas ilimitadas.

Constituindo um dos principais meios de expressão e informação, a efervescente imprensa paulistana espelha a renovação e a transformação da cidade, ampliando espaço e, consequentemente, o público leitor. Junte-se a isso a industrialização dos processos de composição e impressão que trouxeram inovações gráficas, rapidamente incorporadas pelos periódicos.

O jornalismo tornou-se um ofício compatível com o status de escritor. O que fora para os escritores românticos uma atividade e uma prática secundária torna-se a atividade regular de uma nova categoria de jornalistas profissionais, que lhes propiciava uma renda suplementar cada vez mais indispensável. Acompanhando o aparecimento de vários jornais na capital e na província, com a aplicação de novas técnicas de impressão, o crescimento das tiragens, a velocidade da distribuição e de novas seções de entretenimento ilustram um processo de expansão que eleva a imprensa ao status de grande empresa industrial.

Nesse contexto, coube à imprensa periódica um papel fundamental. Constituindo um dos principais meios de expressão e informação, a efervescente imprensa paulistana acompanha a renovação e vê surgir uma nova geração de intelectuais que vivenciam as fortes expectativas de transformação trazidas pela abolição e pela República, e engajam-se no processo de modernização e na criação de um novo jornalismo. Tanto no sentido de cobrar das autoridades locais a rápida urbanização da cidade e a implantação dos mesmos avanços que se verificavam na Europa, como enquanto agente direto e propagador da modernidade.

Em consonância com os novos tempos, os investimentos na área gráfica e editorial resultaram na invenção de máquinas cada vez mais rápidas e potentes. Consequentemente, os jornais e revistas contaram com uma melhor qualidade de impressão e uma gama maior de recursos gráficos (fotografias, caricaturas, charges, ilustrações e ornamentos sofisticados). Tantas inovações permitiram um aumento das tiragens, resultando no barateamento do preço final do impresso. E tudo isso para atender um número cada vez maior de leitores.

A modernização dos modos de produção da literatura brasileira, que acompanha o Modernismo, superou os acanhados mecanismos mercadológicos de uma concepção ultrapassada de casas editoriais, e imprimiu uma prática empresarial que incluía redes de distribuição, publicidade e o livro como mercadoria.

Antes disso, a situação que confinava a literatura nas estantes da burguesia esclarecida e dificultava o contato público/obra passava pela quase inexistência de canais disponíveis entre escritores e leitores para circulação do que se produzia. É neste cenário que a figura pioneira de Monteiro Lobato como editor mostra sua importância, seu papel na modernização da produção literária brasileira constituiu um verdadeiro projeto de âmbito nacional os esforços empregados tanto na produção do livro como com sua recepção –superando os tacanhos mecanismos de edição, inaugurando uma prática editorial que incluía a distribuição e a propaganda – uma clara demonstração modernidade e mesmo vanguarda da personagem a quem a tradição crítica insiste em rotular de pré-modernista.

A própria literatura infantil, onde também se destacou Lobato, é um formato historicamente moderno, que por si só sugere a maturidade da formação burguesa desses segmentos da população que já se estratificou em nichos diferenciados de consumidores.

Cândido defende a tese de que a literatura foi decisiva para formar uma consciência nacional e dar a conhecer os problemas da vida dos brasileiros devido a impossibilidade de formar em suas terras pesquisadores, técnicos ou filósofos. A literatura a seu modo gerou padrões que serviram para orientar e dar forma ao pensamento. Sendo em função destes que ela irá se desenvolver dando em troca recursos linguísticos e sociais para compreender o país. (Candido, 2023)

As principais figuras do campo literário durante as duas últimas décadas do século XIX, haviam desenvolvido apurado pensamento crítico de cunho nacionalista, como aliás em todos os países empenhados na consolidação de sua independência política, o “critério de nacionalidade” foi tomado como elemento fundamental de interpretação e qualificação obra o escritor.

Por não haver posições intelectuais realmente autônomas, as condições necessárias à produção intelectual, na Primeira República, vão depender quase totalmente do poder político das instituições e grupos dominantes. O recrutamento, os mecanismos de consagração atuam como modalidades com as quais a produção literária contribuiu para o trabalho de dominação – contribuição que assume formas mais complexas e dissimuladas num campo intelectual dotado de maior autonomia relativa, consequência das exigências postas pela diferenciação e sofisticação do próprio campo.

No curso da longa série de eventos e práticas pelas quais se apropriam do habitus de sua classe de origem, os agentes incorporam também os seus estereótipos. Aprendendo a valorizar certo tipo de trabalho ou carreira, e distingui-lo de um trabalho ou carreira relegada as posições dominadas que se associam a dissimulação das relações de força, cujo acesso está reservado aqueles em condição de dependência política ou econômica e tem como modelo os grandes mandarins dos fins do Império, mistura de grão senhor da burocracia, de diplomata, e de homem mundano; altos dirigentes políticos da oligarquia, bacharéis que devem tudo seu prestígio e autoridade aos cargos de governadores dos estados mais importantes e de presidente da nação.

Estes altos dirigentes políticos da oligarquia, bacharéis que devem tudo seu prestígio e autoridade aos cargos de governadores dos estados mais importantes e de presidente da nação e porta-vozes políticos das oligarquias dos estados menos importantes, espécie de coronéis treinados nos meios cosmopolitas da capital e fiadores autorizados do pacto de força entre as facções oligárquicas formam a primeira diversificação de papeis no âmbito do trabalho de dominação. Os integrantes desse grupo prefiguram um tipo novo de intelectual profissional, assalariado ou pequeno produtor independente, vivendo dos rendimentos que propiciam as diversas modalidades de sua produção. (Candido, 2023, p. 71)

Miceli, traça o tipo ideal deste novo grupo, a quem chama de “polígrafo anatoliano”, em referência à influência da cultura francesa na produção que desenvolveram:

[…] cronista e poeta, declamador, letrista, escritor de revistas de music hall, eminência parda na concessão dos prêmios de viagens do Salão de Artes Plásticas, astro dos salões mundanos e conferencista, acadêmico, dramaturgo, afora o rendoso emprego na administração da Ilha das Cobras, que perdeu com a revolução de 1930, a sinecura de inspetor escolar, assíduo colaborador das revistas ilustradas, e colunista social do Correio da Manhã. (Miceli, 1977, p. 78)

Essa geração de 1870, cujas figuras mais consagradas passaram a constituir os paradigmas da produção intelectual do país controlavam as principais instâncias de consagração como as principais editoras e a academia Brasileira de letras que eles mesmos fundaram em 1879; monopolizavam, também, o acesso às sinecuras mais importantes e especial as distribuídas aos integrantes do grupo que girava em torno de Rio Branco no Itamarati.

Sociedade e mercado de trabalho

Na metade do século XIX, livreiros importadores de grandes casas editoriais europeias e alguns editores fixaram-se na corte do Rio de Janeiro, distribuindo a produção literária estrangeira e editando alguns autores brasileiros da época, mas nesses anos as tiragens Eram reduzidas e vendiam se poucos de livros. De acordo com Koshiyama, os resultados de vendas de livros indicavam as restritas possibilidades de consumo no Brasil. E no início do século XX a situação permanecia desanimadora, com pontos de venda limitados e produção editorial circunscrita a livros didáticos e sobre a legislação brasileira. (Passiani, 2002, p. 252)

Já no censo do ano de 1900 a cidade de São Paulo tinha aproximadamente 240 mil habitantes5, tendo-se fixado como um importante centro político, indutor da incipiente indústria nacional onde a mão de obra escrava foi substituída apenas por levas de estrangeiros que chegam em profusão. Observa-se uma estratificação social muito mais acentuada, que seja pelo aparecimento de novos grupos ou pela sobreposição dessas novas camadas, recompostas quanto ao número, sua composição e aos padrões de comportamento.

O jornalismo tornou-se um ofício compatível com o status de escritor. O que for para alguns escritores românticos uma atividade e uma prática tolerada torna-se a atividade regular de uma nova categoria de jornalistas profissionais que lhes propiciava uma renda suplementar cada vez mais indispensável. Além do aparecimento de vários jornais na capital e na província, com a aplicação de novas técnicas de impressão, o crescimento das tiragens, a velocidade da distribuição e de novas seções de entretenimento ilustram um processo de expansão que eleva a imprensa ao status de grande empresa industrial.

Formou-se o público, a literatura não dependia mais Exclusivamente de suas ligações com o poder político, pois a literatura vista como um produto inserido em um mercado consumidor ativo deixa de ser uma manifestação restrita há um âmbito multifuncional ao mesmo tempo produtor e consumidor.

Nesse momento a literatura mostrava a função, não apenas de veículo, o porta-voz das ideias de mudança, mas o próprio instrumento das transformações, para justamente cumprir aquele que julgava-se ser o papel social do intelectual de produzir conhecimento e torná-lo acessível a um público sempre maior. “O público aparece como potencialidade do texto e não como mero receptor passivo da informação”. (Passiani, 2002, p. 249) 

A literatura se torna acentuadamente social manifestando-se nas atividades dos profissionais liberais, nas revistas, nos jornais, deixando de ser uma manifestação grupal para tornar-se uma manifestação da nova burguesia recém-formada que buscava sofisticação nos padrões “decadentistas” europeus. Vindo daí o ostensivo requinte da intelectualidade aristocrata e a palatável a atmosfera lisonjeira do período, expressão da conformidade com o bom senso definido segundo os padrões da classe dominante e dispersando-se a partir dela pela população.

Por outro lado, a expansão da imprensa modifica a relação que os produtores mantêm com suas obras na medida em que o sucesso do livro e a consagração do autor não são mais concedidos às obras raras de um produtor individual, mas sim aos grupos de produtores associados em empreendimentos intelectuais coletivos que tendem a se tornar ao mesmo tempo as principais instâncias de consagração, impondo ao produtor uma nova hierarquia de legitimidades no o encargo de selecionar e consagrar os novos aspirantes.

Tudo no livro foi aprimorado, a diagramação, ilustrações e qualidade do papel. As capas passaram a trazer ilustrações de famosos pintores brasileiros, como Di Cavalcanti e Anita Malfatti. Lobato ainda privilegiava os novos talentos e foi responsável pelo lançamento de Menotti del Picchia, Oswald de Andrade entre tantos outros.

Dessa forma criou-se um circuito que ultrapassa os limites da impressão das obras gerando condições que tornaram possível a circulação e consumo do bem cultural, em certo sentido desfazendo a aura que o cercava e definia como artigo de luxo, cujo usufruto era restrito a uma pequeníssima parcela da população. Inserir o livro nos moldes da produção e circulação de mercadorias típicas do sistema capitalista criava as condições necessárias para se estabelecer a relação entre obra e público, logo, para a circulação do texto literário e o consumo do livro.

Como editor, Monteiro Lobato, pôs em prática uma concepção moderna de literatura movida por uma concepção de que ela só ganha sentido na medida em que é aceita e consumida pelo público. E esta é somente aceita e consumida quando responde às necessidades e desejos desses leitores, e quando se coloca no mesmo nível de linguagem desse público. Despertando o caráter social e militante da literatura que se esboça, onde a recepção do texto constitui a preocupação basilar na atuação editorial e sua escrita.

Diálogos e Disputas

Para desvelar as relações entre a literatura e o poder durante a 1ª República, o texto traz logo à frente, uma citação de Monteiro Lobato, copiada de um outro artigo de autoria de Marisa Lajolo. Em seu recorte, Lajolo, consegue captar bem as indicações metodológicas propostas pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu em sua teoria sobre o Campo Intelectual, salientando a “natureza relacional das posições e de seus ocupantes” e o “mapeamento tenso e concatenação” dos valores que formam o cerne da concorrência entre os escritores ocupantes das diversas posições disponíveis em seu interior (Miceli, 2003, p. 67) 

Ao mesmo tempo eterniza (e, portanto, historiciza)6 um momento determinante da história brasileira, de formação de um espaço intelectual relativamente autônomo e influente também no campo político. “Mário é um grande crítico. Mário é notabilíssimo. Mário, pelo seu talento sem par […], tem o direito a tudo, até de meter o pau em […] mim.”7 (in Lajolo, 2008)

Ao expor a disputa dentro do campo, a autora também alcança o código ético que norteia o comportamento de Lobato, deixando transparecer um sistema literário bem mais complexo do que uma oposição binária em que se confrontam de um lado modernistas e de outro pré-modernistas. A passagem nos oferece o vislumbre de um regime moldado por constrições racionais da qual dependem, na perspectiva de Bourdieu, o caráter histórico de uma obra ou artista.

Retomando as evidências que demonstram a complexa relação entre Monteiro Lobato e Mário de Andrade encontramos alusões que se referem a um interessante momento de suas relações. De fato, um artigo publicado no jornal carioca A Manhã de 13 de maio de 1926, no qual Mário de Andrade, cheio de ironia mata Lobato (então bem vivo e morando no Rio de Janeiro), referindo-se ao “vislumbre gentil de seu talento e possiblidades” limitando-se a citar unicamente seu livro de estreia, quando o autor de Urupês já tinha se tornado um best-seller nacional (Lajolo, 2008, p. 156)

Em outro estudo, Enio Passiani vê o artigo de Mário de Andrade não como uma discordância estética, mas dentro de um ponto de vista dialético na disputa pela hegemonia no campo literário. Esta interpretação ganha mais sentido se lembrado que quando de sua publicação Lobato se encontrava falido e desempregado enquanto Mário dois anos após a Semana de Arte Moderna paulista desfrutava de um capital simbólico crescente.

O que mudou entre a publicação do primeiro artigo e o salvo conduto de Lobato das críticas de Andrade, é que ao contrário do que acontecia no início dos anos 1920 ao final da década seguinte, ambos já tinham suas posições consolidadas no cenário cultural brasileiro. Levando o editor à uma defesa movida pela solidariedade que, na cidade das letras, preside as relações inter pares, sempre que posições de poder não estejam ameaçadas. Ao cabo, essas trocas fazem parte da economia do sistema literário e seus rituais e possuem grande relevância na investigação das relações entre autores obras e público.

As batalhas por essa legitimação internamente começaram a surgir já nos anos 1920, marcados por dissidências e cisões. 

Das disputas pela liderança do grupo, que tinham em Mário e Oswald seus maiores competidores, pode-se medir as diferenças de trajetórias entre o primo pobre e o homem sem profissão, enfim, entre dois agentes díspares ombreados no interior da fração cultivada da elite paulista, até o rompimento da amizade, em 1929. Tal enfoque revela as feições que caracterizaram as relações de interdependência entre as lideranças intelectuais do modernismo paulista, o que permite divisar as constrições e as disputas em que esses jovens estavam imersos.

Outros grupos se formavam então –o encabeçado por Mário de Andrade, o Movimento Pau-Brasil, o Grupo da Anta ou a tentativa de Graça Aranha chefiar o Modernismo, por exemplo – e enfrentaram-se na tentativa de fazer prevalecer as ideias de um grupo sobre o outro. Nesse sentido, as disputas revelam estratégias de difusão de projetos, busca por definição de preceitos que regem a nova forma do “fazer literário”.

Chartier defende que nas lutas de representações, onde o que está em jogo é a ordenação, logo a hierarquização da própria estrutura social. (Chartier, 2002, p. 23)

Conclusão 

Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção socioeconômico, político e cultural, circunscrito por determinações próprias e submetido a imposições, ligados a privilégios, cada qual com sua peculiaridade. Toda interpretação histórica depende de um sistema de referência, o qual por sua vez adota uma filosofia também particular que infiltrando se do trabalho do historiador o organiza mesmo a sua revelia por meio de escolhas que lhes são anteriores.

Todavia, ainda trata-se de considerar uma situação histórica específica e, consequentemente, de pôr à prova um corpo de hipóteses por meio de dados empíricos e factuais. Detectar funcionamentos diferentes da mesma forma social no interior de sociedades distintas colocando em contraste as formas e os funcionamentos sociais.

Bourdieu propõe o conceito de campo, que salienta as relações desses domínios, no intuito de nomear essa nova amplitude de perspectivas sobre a sucessão de experimentos históricos e como modelo de interpretação dos fatores sociais de uma dada cena cultural, onde o que está em jogo é a própria hierarquização da estrutura social.

No Brasil, o campo só poderá formar-se durante a 1ª República, quando se desenvolverem as condições sociais favoráveis à profissionalização do trabalho intelectual e sua autonomia em relação ao poder político. Até a primeira metade do século XX surgiram significativas mudanças no panorama cultural brasileiro, principalmente a ampliação relativa dos públicos, o desenvolvimento da indústria editorial, o aumento das possibilidades de remuneração específica.

A partir de 1922 o escritor escapa a posição tradicionalmente definida de “ornamento da sociedade” e as consequentes retribuições, para definir um papel mais liberto, mesmo não se afastando na maioria dos casos da participação na vida e aspiração nacionais.

O que mudou não foi somente a identidade dos dominadores, mas a própria forma do equilíbrio das tensões entre os grupos e as cadeias de interdependência entre os indivíduos. Com a estética modernista, todo o padrão de sociedade associado à República Velha foi banido das esferas intelectuais ou políticas detentoras dos (novos) discursos de poder.


3Bourdieu refuta o trabalho da consciência e elegia o habitus como princípio unificador e gerador de todas as práticas. O artigo definia o habitus como “o produto da interiorização das estruturas objetivas”, lugar geométrico de uma determinação, a qual plasma o futuro objetivo e as esperanças subjetivas, amarrando quaisquer práticas no âmbito de uma carreira ajustada às estruturas objetivas (Miceli, 2003, p.65).
4Teoria de crítica literária norte-americana que insistiu no valor intrínseco de uma obra de arte e focou a atenção na obra literária como uma unidade independente de significado. Opunha-se à prática crítica de trazer dados históricos ou biográficos para a interpretação de uma obra. (New Criticism, in Britannica, The Editors of Encyclopaedia. Encyclopedia Britannica, 22 fev. 2018. Disponível em: https://www.britannica.com/art/New-Criticism. Acesso em: 15 ago. 2023).
5Fonte: Histórico Demográfico do Município de São Paulo. Censo de 1900. Prefeitura de São Paulo. Disponível em: http://smul.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/1900.php. Acesso em: 17 ago. 2023.
6Das discussões a respeito das modernas concepções da história e do tempo, defendemos neste ensaio aquela defendida por François Hartog e seus regimes de historicidade: “Entendidos como uma expressão da experiência temporal, regimes não marcam meramente o tempo de forma neutra, mas antes organizam o passado como uma sequência de estruturas. Trata-se de um enquadramento acadêmico da experiência do tempo, que, em contrapartida, conforme nossos modos de discorrer acerca de e de vivenciar nosso próprio tempo”. HARTOG, François. Regime de Historicidade [Time, History and the writing of History – KVHAA Konferenser 37: 95-113 Stockholm 1996]. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dh/heros/excerpta/hartog/hartog.html>
7Trecho um pouco mais completo da carta destinada ao escritor Flávio de Campos (1903-1947), para contextualização: “Mário é um grande crítico. Mário é notabilíssimo. Mário, pelo seu talento sem par no analista criticista, tem o direito a tudo, até de meter o pau em você e em mim. Eu tenho levado pancadinhas dele. Certa vez, chegou a publicar o meu necrológio. Matou-me e enterrou-me. Em vez de revidar, conformei-me, e sem mudar minha opinião sobre ele. Ainda esta semana cortei um pedaço de artigo dele sobre a nossa língua, ótimo. Mário é grande. Tem direito até de nos matar à moda dele […]”. NUNES, Cassiano (Org.). Monteiro Lobato vivo. Rio de Janeiro: MPM Propaganda/ Record, 1986.

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1O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES)
2Mestrando em História Cultural pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO).