A EXPERTISE DAS AGÊNCIAS REGULADORAS E SEUS REFLEXOS NAS DECISÕES JUDICIAIS DA CORTE CONSTITUCIONAL BRASILEIRA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8329948


Mikael Pinheiro de Oliveira[1] 
Sheila de Andrade Ferreira[2]


Resumo: O presente trabalho tem por finalidade demonstrar, em linhas gerais, a atividade normativa com grau expertise e especialização das Agências Reguladoras no

Brasil. Com destaque para os efeitos das normativas técnicas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) no julgamento de casos emblemáticos submetidos ao crivo do Supremo Tribunal Federal, quais sejam: a fosfoetanolamina sintética (“a tão propalada pílula do câncer”), o passaporte vacinal e a obrigatoriedade da vacinação de crianças e adolescentes contra a COVID-19, independentemente da convicção pessoal dos pais. O estudo contribui, ao mesmo tempo, para ratificar que o ato regulatório está atrelado a técnica e afastado de eventual vontade política ou de comoção social, sendo fundamento para as decisões judiciais da Corte Constitucional brasileira que ratifica a constitucionalidade da função normativa das agências, sendo adotado, nos casos analisados, o princípio da deferência.

Palavras-chave: Agências Reguladoras. Processo regulatório racional. Teoria processual administrativa da regulação. Expertise. Conteúdo técnico das normativas. Decisões judicias.

Abstract: The present work aims to demonstrate, in general terms, the normative activity with a degree of expertise and specialization of the Regulatory Agencies in Brazil. With emphasis on the effects of the technical regulations of the National Health Surveillance Agency (ANVISA) in the judgment of emblematic cases submitted to the scrutiny of the Federal Supreme Court, namely: synthetic phosphoethanolamine (“the much-vaunted cancer pill”), the vaccine passport and the mandatory vaccination of children and adolescents against COVID-19, regardless of the parents’ personal conviction. The study contributes, at the same time, to ratify that the regulatory act is linked to technique and away from any political will or social commotion, being the basis for the judicial decisions of the Brazilian Constitutional Court that ratifies the constitutionality of the normative function of the agencies, being adopted, in the analyzed cases, the principle of deference.

Keywords: Regulatory agencies. Racional regulatory process. Administrative procedural theory of regulation. Expertise. Technical content of the regulations. Judicial decisions.

1. Introdução

O presente trabalho buscar tratar da evolução da Regulação no Brasil numa perspectiva voltada para o poder normativo das Agências Reguladoras, que foram concebidas em meio a mudanças econômicas e políticas no país. Com a ascensão do Estado democrático de direito surge a necessidade de transferir serviços originalmente prestados pelo Estado a instituições privadas, ao passo em que esses serviços continuem sendo fiscalizados e regulamentados por parte do Estado, que o faz de forma indireta. 

Busca-se, inicialmente, investigar a Administração Pública Indireta, que é composta por entes (Autarquias, Fundações Públicas, Empresas Públicas e Sociedade de Economia Mista) que desempenham atividades administrativas e prestam serviços ao público em diversos setores da sociedade por meio da descentralização das competências do Estado, mantendo ligação com a Administração Pública Direta.  Esses entes da Administração Indireta possuem algumas características em comum, quais sejam: personalidade jurídica própria, patrimônio próprio, capacidade de autoadministração, lei específica para sua criação e finalidade pública. 

Ao longo do desenvolvimento dos capítulos traz elementos que possam contribuir nos debates sobre o padrão regulatório brasileiro voltado ao desenvolvimento da governança regulatória e sua importância na tomada de decisões judiciais paradigmáticas de modo a respeitar a excelência técnica de sua função “quaselegislativa”, a qual longe de violar a separação de poderes (Função do Poder Legislativo – competente para a edição de normas abstratas e gerais), desenvolve uma expertise própria, cuja densidade é acolhida em diversos julgados. 

A análise da descentralização das atividades do Estado é necessária para garantir maior eficiência na administração pública, uma vez que a atividade é transferida a pessoas jurídicas especializadas em determinados serviços públicos. As Agências Reguladoras, portanto, são destacadas no trabalho como um exemplo de ente que compõe a Administração Indireta, sendo elas consideradas autarquias de regime especial, tendo em vista que possuem uma maior liberdade perante a administração direta, bem como possuem regime legal diferenciado das autarquias comuns. 

As Agências, portanto, exercem papel essencial na administração indireta do Estado, garantindo que as atividades e os serviços de setores públicos e privados sejam ofertados de maneira que vise o interesse público, sem que haja prevalência pelo lucro, mas sim pela qualidade desses serviços. Nesse sentido, as Agências representam a própria modificação do Estado, que passa a ser um Estado regulador. Mas sua importância, principalmente no que diz respeito às suas funções regulatória e normativa, não se limita ao controle dessas atividades com a finalidade de garantir o atendimento ao interesse público e à qualidade do serviço prestado acima do lucro, mas também se encontra na influência que suas normativas técnicas podem exercer na justiça, especialmente no julgamento de casos emblemáticos pelo Supremo Tribunal Federal (STF). 

Diante desse contexto, o artigo tem por objetivo geral demonstrar, em linhas gerais, a importância da atividade normativa e reguladora, as quais possuem grau de expertise e especialização, das Agências Reguladoras brasileiras, com destaque para os efeitos que as normativas técnicas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), uma das Agências Reguladoras brasileiras, tiveram sobre julgamentos de casos emblemáticos submetidos ao crivo do Supremo Tribunal Federal (STF), mais

especificamente os casos sobre a fosfoetanolamina sintética (“pílula do câncer”) e sobre o passaporte vacinal e a obrigatoriedade de vacinação de crianças e adolescentes contra a COVID-19, independentemente da convicção pessoal dos pais.

Para isso, o artigo divide-se em três tópicos de desenvolvimento. No primeiro tópico apresenta-se, brevemente, a conjuntura da criação das Agências Reguladoras, bem como o seu papel normativo, evidenciando-se o enfoque técnico de suas decisões e sua importância para a fundamentação de julgados. No segundo tópico analisa-se o papel e a influência da expertise técnica da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) na fundamentação do STF em julgado sobre a distribuição da fosfoetanolamina sintética. E, por fim, no terceiro e último tópico de desenvolvimento avalia-se a utilização, pelo STF, das notas técnicas aduzidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) como fundamento para julgado sobre a obrigatoriedade da vacinação de crianças e adolescentes contra a COVID-19, cuja conclusão destaca o princípio da deferência do Poder Judiciário aos atos regulatórios dotados de entendimento técnico e expertise. 

2. O papel normativo das agências Reguladoras e o enfoque técnico das suas decisões.

A promulgação da Constituição Federal de 1988 provocou significativas mudanças estruturais no Brasil. Com a crescente necessidade de expansão dos mercados, bem como de expansão para o capital estrangeiro, a última década do século XX foi marcada por privatizações e desestatizações, pela busca por garantia de direitos sociais e políticos e pela democratização do Estado, o qual passava assumir, ao mesmo tempo, um caráter de Estado Regulador, atuando de maneira indireta em alguns setores. (SOUSA SEVERINO; DE CARVALHO, 2018)

Na atual conjuntura do Estado Regulador, a atuação pública não mais está atrelada primordialmente à prestação dos serviços públicos, como era típico até o final da década de 80, em períodos de regulação concentrada normativa. Se antes o Estado atuava – seja pela edição de normas, seja prestando ele mesmo o serviço – fortemente em razão do déficit da iniciativa privada para atender as demandas sociais, o contexto vigente a partir do final do século XX impõe outra lógica, na qual a expertise destaca-se para a produção de atos normativos (AGUILLAR, 1999).

Assim, o Estado Regulador passa a ter a necessidade de delegar a prestação de alguns serviços públicos para o âmbito privado.  Unindo essa nova lógica de atuação estatal à necessidade de desenvolver a economia e atrair mais capital, surge a necessidade de criar órgãos que desenvolvesse a função de regular esses serviços agora prestados por empresas privadas, exercendo controle sobre essas atividades para garantir a qualidade dos serviços prestados, bem como o atendimento ao interesse público e não privado (SOUSA SEVERINO; DE CARVALHO, 2018).

Trata-se de uma técnica de intervenção do Estado na estrutura econômica e social adotada pelo Brasil que é denominada intervenção intermediária, sendo esta uma das mais festejadas pelos defensores da regulação, cuja representação se dá pelas agências reguladoras. (CLARCK, 2009)

Nesse contexto, ganham realce as Agências Reguladoras, autarquias de regime especial, marcadas pelo conhecimento técnico e a especialização das suas atividades, necessários para regular realidades dinâmicas e particulares (ARANHA, 2014), as quais possuem as funções de regular, normatizar e fiscalizar, sendo as duas primeiras funções extremamente relevantes, uma vez que para que um órgão possa ser considerado como órgão regulador, ele deve, necessariamente, apresentar essa função de forma autônoma e independente. Ainda, em relação à essas funções, há preocupação em fundamentar as decisões das Agências com argumentos técnicos e motivados em dados, que sirvam para embasar suas decisões como também fundamentar providências em caso de eventual descumprimento, inclusive quando levadas ao Poder Judiciário. 

As atividades das Agências Reguladoras, que possuem por finalidade regular, fiscalizar e normatizar atividades econômicas desestatizadas. Nesse sentido, as agências não apenas elaboram regulamentos e normas disciplinadores para o setor em que atuam, mas também fiscalizam seu cumprimento. De modo que são responsáveis por controlar a prestação de serviços públicos, fiscalizar as atividades de fomento, bem como a exploração de atividades econômicas que possuem interesse coletivo. As agências foram criadas como um órgão técnico e especializado com o intuito de evitar que posições político-partidárias ou flutuações econômicas exerçam ingerências nas decisões técnicas. Por esse motivo, faz-se necessário ratificar a garantia da autonomia e independência do governo para a tomada de decisão e exercício de suas funções com o intuito de proteger o interesse público.

Dessa forma, impõe-se que o Estado Regulador acompanhe por impulso constitucional o imperioso controle do setor privado. Esta é, portanto, a nova função estatal, que se concentra nas suas atividades indelegáveis – defesa nacional, resolução de conflitos judiciais, seguridade, etc. – e controla e fiscaliza os serviços prestados pela iniciativa privada (FURTADO, 2013).

Destaca-se ainda que as políticas públicas setoriais enfrentam o desafio da velocidade das inovações tecnológicas. É necessário, assim, que a regulação para este público não seja estagnada, mas tenha como núcleo predominante o conhecimento e a especialização das matérias atreladas a cada tipo de agência reguladora. É crucial, portanto, estar concatenado na realidade que regulará, sob risco de produzir normas que não acompanhem as mutações globais daquele determinado produto ou serviço (ARANHA, 2014).

Ainda no período de regulação concentrada, característico da década de 30 em diante, já se identificava que o Poder Legislativo não era o mais indicado para editar normas técnicas, que se adequassem à dinâmica dos setores regulados. Por tal razão, há o protagonismo do Poder Executivo nesta tarefa, com a criação, naquela época, de conselhos econômicos (AGUILLAR, 1999). Com o fito de evitar qualquer questionamento acerca da constitucionalidade da outorga da função regulatórianormativa, a doutrina denomina esta competência como quase-legislative, sub- legislative ou administrative (GUERRA, 2015)

É possível observar que, a partir dos anos 1990, o Estado Regulador avança e com o advento da Lei nº 9.427, de 26 de dezembro de 1996, a qual cria a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, elege-se a instituição de órgãos com a natureza jurídica de autarquias em regime especial, marcadas pela autonomia administrativa, financeira e gerencial (FURTADO, 2013). Tais particularidades institucionais se justificam pelo serviço que as Agências entregam, qual seja: a regulação setorial baseada em expertise, apoiada em um corpo burocrático especializado no assunto que regula, o que é importantíssimo para trazer o fundamento técnico sobre o assunto regulado.

Nesse sentido, adota-se a forma autárquica especial para realizar a descentralização da regulação estatal, a qual passa a ser exercida por autoridade independente (a Agência Reguladora), que possui poderes típicos de Estado, controlando o exercício de serviços essenciais públicos e privados, gozando, para isso, de autonomia em relação ao governo e às empresas que regula, para que o desempenho de suas funções normativa, reguladora e fiscalizadora possa ser exercido. 

A autonomia dada às Agências Reguladoras visa afastar a regulação da pressão dos grupos de interesse econômicos (ou até mesmo troca de favores políticos (por meio de uma política de “carrots and sticks” (CROLEY, 2008)) – algo que aconteceria mais facilmente no bojo do Poder Legislativo ou do Poder Executivo. A vinculação – e não subordinação – à Administração Pública direta é chave da independência decisória das Agências, para que elas não estejam sujeitas às flutuações políticas (ARANHA, 2014; FURTADO, 2013). Situação esta importantíssima para a respeitabilidade, autonomia e cumprimento fiel da missão constitucional das agências reguladoras. Esta justificativa reforça a autonomia dada às Agências Reguladoras, vale dizer, afastar a regulação da pressão dos grupos de interesse – algo que aconteceria mais facilmente no bojo do Legislativo ou do Executivo ministerial. 

A teoria retro mencionada não é imune de críticas, nesse sentido cita-se CROLEY (2008, p. 25), que destaca que se as Agências não entregassem sua função pública, se não se preocupassem com o interesse público, não haveria casos de regulações contrárias ao interesse desses grupos poderosos, movimentadas por outros agentes sociais, não tão avantajados economicamente, como acadêmicos e cidadãos (CROLEY, 2008, p. 55). Um dos erros da teoria da escolha pública (“public choice theory”), segundo o autor, seria não considerar o processo de tomada de decisão das Agências Reguladoras. Ao analisar diversos casos, ele aponta que, se de fato esses órgãos fossem controlados pelos agentes regulados, o seu processo de tomada de decisão seria obscuro, uma mera chancela formal e distante de uma escolha tecnicamente respaldada e feita previamente. 

Assim, racionalizar o processo de tomada de decisão é o foco da teoria processual administrativa da regulação, baseado no conhecimento técnico e com vistas a tornar o processo decisório regulatório especializado e experto. Desse modo, ao se definir uma série de etapas procedimentais, busca-se garantir a prestação de um serviço neutro, transparente, voltado ao interesse público. Quebra-se, nessa linha, os pressupostos da teoria dos grupos de interesse, porque um processo de tomada de decisão notório estaria sujeito ao controle social (ARANHA, 2014; CROLEY, 2008). Não se trata, destarte, de um formalismo exacerbado, mas de se garantir o interesse público por meio da forma. Essa teoria caminha ao encontro do que é realizado nas Agências Reguladoras.

Sobre o tema, GUERRA (2015, p. 61) destaca que a Suprema Corte America vem deixando bem vincado, ao longo dos tempos, que as leis ao conferir função normativas às agências não podem, simplesmente, representar um cheque em branco (too vague); devem conter standarts e princípios claros (inteligble principle) que guiem as ações das agências. A inobservância dessa judicial rule representaria que o Congresso teria abdicado suas funções constitucionais. Quanto à constitucionalidade da função normativa das agências, diferenciando-a do Poder Legislativo, o jurista acrescenta que: “Para evitar qualquer questionamento sobre a constitucionalidade dessa outorga de função à agência, a competência para edição de normas regulatórias recebeu o nome de função quase-legislative, sub-legislative ou administative” (GUERRA, 2015, p. 61).

Nesse sentido, destacam-se as normativas da Agência Nacional de Vigilância

Sanitária (ANVISA), que é alvo de fundamentação para julgados paradigmáticos a serem analisados neste trabalho, quais sejam: a inconstitucionalidade da Lei nº 13.269/2016, que autorizou o uso da fosfoetanolamina sintética (“pílula do câncer”) por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna, o passaporte vacinal e a obrigatoriedade da vacinação para crianças e adolescentes independentemente da convicção pessoal dos pais. Tais decisões são exemplificativamente analisados e citados com a preocupação do Poder Judiciário em fundamentar sua decisão de maneira técnica, respeitando as conclusões da ANVISA e assegurar um processo de tomada de decisão de qualidade, especificamente no âmbito da regulamentação, formalizada pela participação e expertise técnica próprio das Agências Reguladoras. (COUTINHO, maio de 2018). 

Na publicação, “Boas Práticas Regulatórias: Guia para o Programa de Melhoria do Processo de Regulamentação da Anvisa” contém um guia, no qual a Agência apresenta um conjunto de medidas, estratégias e princípios voltados à melhoria da regulamentação sanitária. Para tanto, a participação dos agentes afetados, transparência, previsibilidade, legitimidade do processo decisório são diretrizes que se concretizam em medidas como Consultas Públicas, Agenda Regulatória e Análise de Impacto Regulatório, por exemplo. Desse modo, o objetivo é aumentar a credibilidade da política regulatória da ANVISA, bem como ampliar sua eficiência, fortalecendo a capacidade institucional para gestão em regulação (ANVISA, 2008). Concatenado com o quanto preceituado pela Teoria Processual Administrativa. 

Dessa maneira, as Agências Reguladoras asseguram sua autonomia decisória, voltada ao interesse público e marcada pela expertise, por meio de um processo de tomada de decisão definido. Válido transcrever as lições de Sérgio Guerra (2015, p. 61):

Quanto as limites da capacidade normativa atribuída pelo Poder Legislativo às agências, em muitos julgados, o Poder Judiciário tem aplicado caso a caso, um duplo teste conhecido como Chevron case, estruturado em duas etapas. A primeira etapa consiste em examinar se a lei trouxe os parâmetros mínimos necessários para que a agência a interprete e a densifique tecnicamente (step 1) sob o olhar do tribunal (the standart must be clear enough to be visible to the naked eye of the Court). Caso seja ultrapassada esta fase, e não tendo o Tribunal concluído que houve delegação de função normativa, passa-se para a segunda fase. No segundo passo (step2), os Tribunais têm adotado, na maioria dos casos, o denominado princípio da deferência. Por meio dessa visão, os tribunais seguem o entendimento de que não devem substituir as escolhas regulatórias substantivas por não terem a necessária expertise.      

A mensagem que deve ser destacada neste item, além da relevância do processo administrativo de tomada de decisão, é que a regulação baseada em domínio técnico é o objetivo natural das Agências Reguladoras. Motivo este que ensejou a autonomia que lhes é reservada por lei. A regulação que desconsidere esta relação, seja por meio da edição de normas, seja por meio de registro, não será legítima. Fácil perceber que este processo é marcado por várias diretrizes, tais como: transparência e previsibilidade.

Assim, o foco do presente trabalho é exatamente análise da experiência técnica necessária e fundamental para a tomada de decisões e edição de normativas pelas agências reguladoras, as quais também robustecerão os fundamentos das decisões judiciais.

3. O caso da fosfoetanolamina sintética e a posição do Supremo Tribunal Federal de destacar o crivo científico em contraposição ao apelo popular.

Criada pela Lei nº 9.782, de 26 de janeiro 1999, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) é uma autarquia sob regime especial, que tem sede e foro no Distrito Federal, e está presente em todo o território nacional por meio das coordenações de portos, aeroportos, fronteiras e recintos alfandegados. Tem por finalidade institucional promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e consumo de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos, fronteiras e recintos alfandegados.

 Assim, questões técnicas na área da saúde e medicina que dependem de aprimoramento de regulamentações que apontem as vantagens e desvantagens capazes de promover o bem-estar coletivo para promover a efetividade dos Direitos Fundamentais passam pela ANVISA, cujas normativas fomentam uma gestão responsiva e atrelada a tecnicidade dos seus atos regulatórios. 

A especialidade técnica das Agências Reguladoras é essencial para a atuação das referidas autarquias seja na atividade consultiva, seja na atividade regulatória. As suas ações se pautam em evidências, que são a base da melhor regulação. É necessário, portanto, se distanciar das meras opiniões recebidas, e se aproximar da informação objetiva coletada dos agentes envolvidos para reservar o aspecto técnico .

Em 2015, um composto à base da substância fosfoetanolamina sintética, desenvolvido por pesquisadores vinculados ao Instituto de Química de São Carlos, da Universidade       de     São     Paulo     –     USP      anunciava     ser     uma     cura     para qualquer tipo de câncer, o que o levou a ser conhecido como a “pílula do câncer”. Todavia, não havia pedidos de registro da substância na ANVISA, o que se afasta do procedimento regular para liberação e uso da citada substância. É cediço que qualquer produto que alegue possuir finalidades terapêuticas, seja profilática, curativa ou paliativa, é considerado medicamento e, para isso, o registro junto a ANVISA é uma exigência intransponível para ser fabricado e comercializado. 

Portanto, para a viabilização do processo de registro do produto é necessário que o requerente encaminhe à Agência Reguladora pedido devidamente instruído com estudos que evidenciem a segurança e a eficácia da substância – condição esta não cumprida pelos fabricantes do composto à base da fosfoetanolamina. A despeito disso, o então Ministério de Ciência, Tecnologia e  Inovação (MCTI) destinou um montante de dinheiro à realização de estudos sobre a eficácia da substância. Instituído um grupo de trabalho, com representantes do Ministério da Saúde, do MCTI, do Instituto Nacional do Câncer (INCA), da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) e da ANVISA, as análises apontaram que a fosfoetanolamina, embora segura, vez que não causa riscos à saúde, não é eficaz no tratamento do câncer, ao contrário do quanto propagado. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2015).

Entretanto, diversos pacientes diagnosticados com câncer, ansiando pela cura, judicializaram pedidos de acesso à referida substância. Ocorre que  desde 2014, o laboratório do Instituto de Química da USP havia sido fechado, após a aposentadoria do cientista responsável, e a fabricação da droga, suspensa. Liminares foram concedidas, impelindo a USP a fabricar e distribuir o composto (GAZETA DO POVO, 2017). Diante do apelo popular, um grupo de Deputados apresentou à Câmara o Projeto de Lei (PL) nº 4.639, de 2016, que permitia a produção, distribuição e prescrição da fosfoetanolamina sintética, independe de registro sanitário. Ignorando os parâmetros técnicos.

Na justificativa, os membros da Casa Legislativa argumentavam que baseado no princípio da autonomia  da vontade os        pacientes interessados  tinham direito ao tratamento, ainda que não houvesse comprovação da eficácia da substância, ignorando completamente o aspecto científico. O Senado Federal, por sua vez, considerando a quantidade de opiniões recebidas, que influenciaram diretamente a decisão dos senadores, já que a consulta pública do PLC 3/2016 teve 7.517 participantes com 98% de aprovação sobre a liberação do produto. Assim, o PLC 4639/2016 foi a quarta matéria apreciada naquele ano com mais quantidade de votos (COUTINHO, 2017). O referido projeto de lei foi, então, aprovado e tornou-se a Lei nº 13.269, de 13 de abril de 2016. 

Em maio do mesmo ano, o Supremo Tribunal Federal – STF[3] concedeu liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5501, proposta pela Associação Médica Brasileira – AMB, que suspendeu a eficácia da Lei nº 13.269, de 2016. No seu voto, o ministro relator Marco Aurélio, argumentou que a lei violava o dever constitucional do Estado em garantir a saúde da população, ao permitir a comercialização de uma substância sem comprovação de segurança e eficácia (STF, 2016). Utilizando-se dos próprios dados da ANVISA e da Comissão técnica interdisciplinar.

É inconstitucional a Lei nº 13.269/2016, que autorizou o uso da fosfoetanolamina sintética (“pílula do câncer”) por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna mesmo sem que existam estudos conclusivos sobre os efeitos colaterais em seres humanos e mesmo sem que haja registro sanitário da substância perante a ANVISA. Ante o postulado da separação de Poderes, o Congresso Nacional não pode autorizar, atuando de forma abstrata e genérica, a distribuição de medicamento. Compete à ANVISA permitir a distribuição de substâncias químicas, segundo protocolos cientificamente validados. 

O controle dos medicamentos fornecidos à população leva em conta a imprescindibilidade de aparato técnico especializado, supervisionado pelo Poder Executivo. O direito à saúde não será plenamente concretizado se o Estado deixar de cumprir a obrigação de assegurar a qualidade de droga mediante rigoroso crivo científico, apto a afastar desengano, charlatanismo e efeito prejudicial. (STF.

Plenário. ADI 5501/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 23/10/2020 – Informativo nº 996).

Deve-se destacar que a decisão do Corte Constitucional[4] baseou-se em argumentos de expertise, que demonstravam a total falta de eficácia da substância, vez que se tratava de uma preparação neutra quanto a efeitos farmacológicos, que jamais poderia ser ministrada em substituição de um medicamento ou tratamento. Na verdade, a fosfoetanolamina, aproximava-se de placebo com a finalidade de suscitar ou controlar as reações dos pacientes, geralmente de natureza psicológica, que considerava um elemento de conotação pautado na esperança dos pacientes pela cura do câncer. 

É cediço que a participação nas Agências Reguladoras tem caráter consultivo, não vinculante sobre a decisão dos seus órgãos máximos, preservando-se, assim, sua a autonomia decisória (DÍAZ BORDENAVE, 1985; PEREZ, 2004). As suas ações se pautam em evidências, que são a base da melhor regulação. É necessário, portanto, aproximar-se da informação objetiva coletada dos profissionais capacitados envolvidos. Logo, a expertise das Agências Reguladoras não pode ser ignorada no processo decisório e cada vez mais há julgados, nos quais os argumentos de ordem técnica caminham de mãos dadas com os fundamentos jurídicos para respaldar as decisões judiciais. 

Portanto, o papel da participação nas Agências Reguladoras se volta para a colheita dos subsídios e das evidências já mencionadas. Busca-se, então, levantar informações não analisadas antes e validar as já levantadas para que seja possível emitir uma Portaria ou ato capaz de respaldar a Administração Pública, inclusive quando levadas aos tribunais. Tornado o ato regulatório atrelado à técnica e afastado de eventual vontade política ou de comoção social, inclusive porque há meios previstos em lei para a consulta popular em maior ou menor grau, mas estes não vinculam a decisão final da Agência, apenas viabilizam uma discussão mais aprofundada do problema regulatório debatido.

Fácil perceber que as Agências Reguladoras cumprem um serviço público que é calcado na sua especialidade técnica e justificam sua autonomia. Aprimorando-se as manifestações científicas por meio da transparência de documentos preparatórios e conclusivos que vão subsidiar suas normativas e influenciar em eventuais decisões judiciais, vez que diretamente relacionadas ao interesse público. 

4. A posição do Supremo Tribunal Federal quanto a necessidade do passaporte vacinal e a obrigatoriedade da vacinação de crianças e adolescentes contra a COVID – 19: critérios técnicos acima do juízo de discricionariedade do Poder Executivo  

Com o intuito dar seguimento ao tema e corroborar a importância do técnica da regulação que prestigia dados técnicos e objetivos é válido destacar o julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 754-DF[5], ajuizada pelo Partido Rede Sustentabilidade, cujo relator foi o Ministro Ricardo Lewandowski, no qual a citada agremiação partidária questiona condutas do Governo Federal atinentes à política de vacinação contra a Covid-19, principalmente no que diz respeito ao passaporte vacinal e à obrigatoriedade de vacinação de crianças e adolescentes contra a Covid-19, independentemente da convicção pessoal dos pais.

Para analisar os temas levantados na referida ação, tem-se que o STF utilizou como base principal o argumento das notas técnicas aduzidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, tendo em vista que o tema é especialmente delicado porque os menores não têm autonomia, seja para rejeitar, seja para consentir com a vacinação. Assim, utilizou-se o consenso científico que demonstra que os riscos inerentes à opção de não vacinar são significativamente superiores àqueles postos pela vacinação, de modo a privilegiar a defesa da vida e da saúde dos menores, em prol não apenas desses sujeitos especialmente protegidos pela lei, mas também de toda a coletividade (devido a transmissibilidade da doença na sociedade).

Nesse passo, a Suprema Corte do país entendeu que constitui obrigação do Estado, inclusive à luz dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, proporcionar à toda a população indicada o acesso à vacina para prevenção da Covid-19, de forma universal e gratuita, em particular às crianças de 5 a 11anos de idade, potenciais vítimas e propagadoras da virose, notadamente porque já havia comprovação científica acerca de sua eficácia e segurança, como devidamente atestada pelo órgão governamental encarregado de tal mister, qual seja, a ANVISA.

Do exposto, fica claro a conclusão judicial de que, no tocante à vacinação, seja de adultos, seja de crianças, não podem prevalecer critérios pessoais, políticos ou ideológicos em detrimento de considerações científicas e análises estratégicas em saúde, segundo consta, expressamente, do art. 3°, § 1°, da Lei 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas que poderão ser adotadas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto pandêmico iniciado em 2019.

Salutar lembrar, a propósito, que o STF já ajustou que decisões administrativas relacionadas à proteção à vida, à saúde e ao meio ambiente devem observar standards, normas e critérios científicos e técnicos, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas (Nesse mesmo sentido: ADIs 6.421-MC/DF, 6.422-MC, 6.424-MC/DF, 6.425-MC/DF, 6.427-MC/DF, 6.428-MC/DF e 6.431-MC/DF, todas de relatoria do Ministro Roberto Barroso)

Fica evidente que aos agentes públicos cabe pautar as suas condutas pelos parâmetros estabelecidos na legislação aplicável, com proeminência para o rigoroso respeito às evidências científicas e às informações estratégicas em saúde, conforme determina o já citado art. 3°, §1°, da Lei 13.979/2020, cuja constitucionalidade o STF reconheceu no julgamento da ADI 6.343-MCRef/DF[6], de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes.

Vale ainda citar também asADI 6.586/DF[7] e 6.587/DF8, conhecidas e julgadas parcialmente procedentes para conferir interpretação conforme a Constituição ao art. 3º,

III, d, da Lei 13.979/2020, que estabeleceu que a vacinação compulsória não significa vacinação  forçada, por exigir sempre o consentimento do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e tenham como base ênfases técnicas e análises objetivas pertinentes que venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas; atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade, e sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente, respeitadas as respectivas esferas de competência tanto pela União como pelos Estados, Distrito Federal e Municípios.

Em suma, a Suprema Corte fixou entendimento de que as decisões das Agências Reguladoras são pilares a serem sopesadas nos casos inerentes as atividades que estas regulam. Sobre a matéria o STF já ponderou sobre o assunto no julgamento do Tema 1.103 de Repercussão Geral: 

É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações, ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico.

Vale ainda mencionar especificamente acerca da manifestação conclusiva da ANVISA, com exclusividade, nos termos da citada Lei 9.782/1999, pela aprovação e registro de fármacos no país, sendo, portanto, as suas manifestações vinculantes, quanto aos aspectos técnicos, para as ações governamentais na área da saúde. Nesse ínterim, é válido ressaltar trecho relevante do Parecer[8] da citada agência:

Com base na totalidade das evidências científicas disponíveis, incluindo dados de estudos adequados e bem controlados descritos na Seção 7 desta revisão, a vacina PfizerBioNTech COVID-19, quando administrada como uma série primária de 2 doses em crianças de 5 a 11 anos de idade, pode ser eficaz na prevenção de doenças graves ou potencialmente fatais ou condições que podem ser causadas pelo SARS-CoV-2. A eficácia da vacina foi inferida por immunobridging com base em uma comparação dos títulos de anticorpos neutralizantes de 50% do SARS-CoV-2, um mês após a dose 2 em participantes de 5-11 anos de idade, com aqueles de adultos jovens de 16 a 25 anos de idade, o mais clinicamente relevante subgrupo da população do estudo em que a VE foi demonstrada. Na análise de immunobridging planejada, a proporção de GMT dos títulos de anticorpos neutralizantes (crianças para adultos jovens) foi de 1,04% (IC de 95%: 0,93, 1,18) atendendo ao critério de sucesso (limite inferior do IC de 95% para a proporção de GMT> 0,67 e a estimativa pontual ≥1). Em uma análise descritiva de imunogenicidade, as taxas de resposta sorológica entre participantes sem evidência anterior de infecção por SARS-CoV-2 foram observadas em 99,2% por cento das crianças e 99,2% por cento dos adultos jovens, com uma diferença nas taxas de soroconversão de 0 (IC 95% -2,0 , 2,2), atendendo aos critérios de sucesso pré- especificados do limite inferior do IC de 95% para a diferença na resposta sorológica maior que -10%, os resultados de imunogenicidade foram consistentes entre os subgrupos demográficos. Análises descritivas de um subconjunto de participantes selecionados aleatoriamente (34 indivíduos vacinados com BNT162b2, 4 tratados com placebo) sem evidência de infecção até 1 mês após a dose 2 demonstraram que uma série primária de 10 μg induziu títulos neutralizantes de PRNT contra a cepa de referência e a variante Delta. (…) os dados fornecem evidências diretas convincentes de benefício clínico, além dos dados de immunobridging. Com base nos dados resumidos do estudo de eficácia           e nos benefícios e riscos descritos nessa revisão, os benefícios conhecidos e potenciais da vacina superam os riscos conhecidos e potenciais, quando usada para imunização ativa para prevenir COVID-19 causado por SARS-CoV-2 em indivíduos de 5 a 11 anos de idade. Os benefícios conhecidos e potenciais incluem a redução do risco de COVID-19 sintomático e sequelas graves associadas. Os benefícios potenciais incluem a prevenção de COVID- 19 em indivíduos com infecção prévia de SARS-CoV-2 redução da infecção assintomática por SARS-CoV-2 e redução da transmissão de SARSCoV-2. Os riscos conhecidos e potenciais incluem reações adversas locais e sistêmicas comuns (notadamente reações no local da injeção, fadiga, dor de cabeça, dor muscular, calafrios, febre e dor nas articulações), menos comumente linfadenopatia e reações de hipersensibilidade (por exemplo, erupção cutânea, prurido, urticária, angioedema) e, raramente, anafilaxia e miocardite / pericardite (com base na experiência em indivíduos vacinados com PfizerBioNTechCOVID-19 com 12 anos de idade ou mais). Os riscos que devem ser avaliados adicionalmente incluem a quantificação da taxa demiocardite/pericardite associada à vacina nessa faixa etária e a vigilância de outras reações adversas que podem se tornar aparentes com o uso mais disseminado da vacina e com maior duração de acompanhamento. Reconhecendo as incertezas atuais sobre benefícios e riscos, uma análise quantitativa usando suposições conservadoras prevê que os benefícios gerais da vacinação superam os riscos em crianças de 5 a 11 anos de idade. Assim, considerando todas as informações disponíveis até o momento, conclui-se que o benefício-risco é favorável. 

Portanto, com base nas evidências científicas acima destacadas e disponíveis no parecer técnico da ANVISA, assim como nos exemplos de outros países, e levando em consideração os riscos associados às doenças para as crianças e também para aqueles que com elas convivem, além do impacto na vacinação no retorno à frequência escolar presencial, a Anvisa autorizou e recomendou a utilização da Pfizer-BioNTech Covid-19 na imunização das crianças entre 5 e 11 anos, com as cautelas explicitadas. Fato este que corrobora a importância da normatização bem motivada e com conteúdo técnico-científico na formulação de atos dos órgãos reguladores em matérias inerentes a sua respectiva atuação, as quais servem de parâmetro crucial na fundamentação de decisões judiciais, quando a expertise deve prevalecer sobre aspectos pessoais, políticos e ideológicos.

5. Considerações Finais

No final do Século XX, outra lógica se impõe à atuação do Estado, que passa a ser visto como Estado Regulador. Em meio a mudanças estruturais significativas e a delegação do desenvolvimento de atividades e prestação de serviços públicos, antes exclusivos do Estado, para empresas privadas, as Agências Reguladoras, com a função de produção de atos normativos e regulatórios, são criadas com papel essencial na nova conjuntura.

Essas Agências são marcadas pela autonomia e independência em relação às empresas que fiscalizam e ao próprio governo, bem como pela especialização de suas atividades e pelo conhecimento técnico necessário para a regulação de setores específicos. Sua importância reside em suas funções de controle (regulatória, normativa e fiscalizatória) de atividades e serviços públicos e privados, garantindo a qualidade e a exatidão desses serviços, bem como que a finalidade do serviço seja o atendimento ao interesse público e às necessidades da sociedade e não puramente o lucro ou interesses privados, marcados por cunho ideológico e político. 

Por serem marcadas por expertise técnica, suas ações, decisões e atividades se pautam, necessariamente, em evidências e análise de dados colhidos, o que atrela seus atos à técnica, afastando eventuais interesses individuais, econômicos, políticos e/ou ideológicos. 

Nesse sentido, como demonstrado, as atividades exercidas pelas Agências também podem exercer influência na fundamentação de decisões judiciais, dado que os Tribunais buscam dar suporte técnico e científico às suas fundamentações sempre que possível, fato que torna as normativas técnicas aventadas pelas Agências ainda mais relevantes. Assim, como outrora mencionado, o Supremo Tribunal Federal determina que decisões administrativas que possuem relação com a proteção à vida, à saúde e ao meio ambiente, por exemplo, devem observar os padrões, as normas, as regulamentações, e os critérios técnicos e científicos estabelecidos por organizações e entidades nacional e internacionalmente reconhecidas, incluindo as Agências Reguladoras.

Diversas decisões judiciais já foram pautadas com base em normas técnicas ou decisões emitidas pelas Agências Reguladoras. Isso porque, as agências, com sua expertise e caráter técnico, são responsáveis pela própria arquitetura do ambiente regulado, pois, são elas que definem a forma que o serviço deve ser executado. Desse modo, nos casos em que o problema judicializado diz respeito a um serviço regulado por uma agência, a observância de suas decisões e normas se faz de grande importância quando do julgamento do caso, dado que, devido à sua expertise e tecnicidade, essas podem orientar o julgamento com maior objetividade, em prol do interesse público e do consumidor. A própria participação dessas agências nos processos judiciais como terceiro interessado (amicus curiae) poderia ser interessante para o resultado do julgamento. 

Demonstra-se, assim, a importância da atuação das Agências Reguladoras, mais especificamente de sua função reguladora e normativa, bem como a importância da observação dessas normas em processos em que o objeto seja a revisão de regras de regulação ou que tenha relação com o setor regulado pela agência. 

No presente artigo destacou-se dois casos de julgados emblemáticos em que as agências exerceram papel essencial na fundamentação da decisão judicial, quais sejam: o caso da ADI nº 5501 contra a Lei nº 13.269/2016, que permitia a produção, distribuição e prescrição da fosfoetanolamina sintética, independe de seu registro sanitário; e o caso da ADFP nº 754/DF, a qual questionava a vacinação obrigatória de crianças e adolescentes contra a COVID-19. 

No primeiro caso, conforme demonstrado, o Supremo Tribunal Federal, em liminar concedida na ADI suspendendo a eficácia da Lei, argumentou que a lei violava o dever constitucional do Estado de garantir a saúde da população ao permitir a comercialização de substância sem comprovação de eficácia e sem registro sanitário, utilizando-se, para fundamentar a decisão, dos dados da própria ANVISA. No segundo caso, em julgamento de Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 754-DF, o Supremo Tribunal Federal destacou a necessidade de que a vacinação prevalecesse sobre critérios pessoais, políticos e ideológicos, fundamentando sua decisão em notas técnicas, considerações científicas e análises estratégicas em saúde da ANVISA. 

Diante dos casos analisados, resta clara a importância da observância das decisões técnicas das Agências Reguladoras nos casos em que o objeto tem relação com o setor regulado, já que essas possuem expertise e capacidade técnica para a realização de estudos especializados e respaldados em dados. 

Referências

AGUILLAR, Fernando Herren. Controle Social de serviços públicos. São Paulo: Max Limonad, 1999.

ANVISA. PORTARIA Nº 1.577, DE 23 DE DEZEMBRO DE 2008. Disponível em:<https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2008/prt1577_23_12_2008.html>. Acesso em: 6 jun. 2022.

ANVISA. Boas Práticas Regulatórias – Guia para o Programa de Melhoria do Processo de Regulamentação da Anvisa, 2008. Disponível em: <http://portal.anvisa.gov.br/documents/33880/2125963/Guia+para+o+P rograma+de+Melhoria+do+Processo+de+Regulamenta%C3%A7%C3%A3o+da+Anvis a/c6d46467-74d4-4b39-89bd-c04493401c73>. Acesso em: 10 jun. 2022.

ANVISA. Portaria nº 422, de 16 de abril de 2008. Institui o Programa de Melhoria do Processo de Regulamentação no âmbito da Agência Nacional de Vigilância Sanitária e dá outras providências, abr 2008. 

ANVISA. Resolução da Diretoria Colegiada nº 10, de 22 de fevereiro de 2008. Proceder a reavaliação toxicológica dos produtos técnicos e formulados à base dos ingredientes ativos constantes do Anexo I e conforme o cronograma do Anexo II deste regulamento., fev 2008. 

ANVISA. Resolução da Diretoria Colegiada nº 48, de 7 de julho de 2008. Detalhar os procedimentos administrativos, para a reavaliação toxicológica de produtos técnicos e formulados à base de ingredientes ativos com alteração dos riscos à saúde humana., jul 2008.

ANVISA. Nota Técnica nº 56/2015/SUMED/ANVISA, 2015. Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/documents/33836/349757/NOTA+T%C3% 89CNICA+56+2015+-+SUMED+- +Esclarecimentos+sobre+a+fosfoetanolamina/4b34c204-8924-4b14- 939662224e7d1d8e>. Acesso em: 10 jun. 2022.

ANVISA. Nota técnica de reavaliação nº 01/2017 GGTOX/ANVISA, de 20 de janeiro de 2017, 2017. Disponível em:<http://portal.anvisa.gov.br/documents/10181/2922962/08.+Nota+T%C3%A9cnica+de+Reavalia%C3%A7%C3%A3o+01-2017+-+consolida%C3%A7%C3%A3o+contribui%C3%A7%C3%B5es+- +CP+1142015.pdf/b6b8d5eb-5273-47f5-88d2-2fd0954f837f>. Acesso em: 10 jun 2022.

ANVISA. Resolução-RE n ° 4.678, de 16/12/2021.Disponível em: <https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticiasanvisa/2021/copy_of_PPAM511anosPfizer2.pdf >. Diário Oficial de União n° 236-A, p. 16/12/2021. Acesso: 10 jun. 2022.

ARANHA, Marcio Iorio. Manual de Direito Regulatório. Coleford, UK: Laccademia Publishing, 2014.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Brasília, DF.

BRASIL. Lei nº 9.427, de 26 de dezembro de 1996. Brasília, DF.

BRASIL. Lei nº 9.782, de 26 de janeiro 1999. Brasília, DF.

BRASIL. Lei nº 13.269, de 13 de abril de 2016. Brasília, DF.

BRASIL. Lei 13.979/2020, de 06 de fevereiro de 2020. Brasília, DF.

CLARK, Giovani. A regulação e a Constituição brasileira de 1988. Revista de Direito Público da Economia, Belo Horizonte, v. 7, n. 26, abr. 2009. Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/29726>. Acesso em: 19.06.2022.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei nº 4.639/2016. Autoriza o uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna, 8 março 2016. Disponível em:<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codt eor=1440430&filename=Tramitacao-PL+4639/2016>. Acesso em: 10 jun. 2022.

CROLEY, Steven Paul. Regulation and Public Interest. Princeton: Princeton University Press, 2008.

COUTINHO, Raiane Liberal. Participação e expertise técnica nas Agências Reguladoras: a regulação deve se submeter à vontade da maioria? Revista de Direito Setorial e Regulatório, Brasília, v. 4, n. 1, p. 1-20, maio 2018. 

DÍAZ BORDENAVE, Juan. O que é participação?. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. Coleção Primeiros Passos.

EUROPEAN COMISSION. Tool #4. Evidence-based better regulation. Better regulation: guidelines and toolbox, 19 May 2015. Disponível em:<https://ec.europa.eu/info/sites/info/files/file_import/better-regulationtoolbox4_en_0.pdf>. Acesso em: 3 jun. 2022.

FURTADO, Lucas. Rocha. Curso de Direito Administrativo. 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2013.

GAZETA DO POVO. Fosfoetanolamina, o “caso que envergonhou a ciência brasileira”, 2017. Disponível em:<http://www.gazetadopovo.com.br/ideias/fosfoetanolamina-ocaso-queenvergonhou-aciencia-brasileira-d5wnxh6h28oop2z9b3xsg6v3w>. Acesso em: 10 jun. 2022.

GUERRA, Sérgio (Org.). In: Teoria do Estado Regulador. Aperfeiçoando a regulação brasileira por agências: quais as lições podem ser extraídas do sesquicentenário modelo norte-americano? Curitiba: Juruá, 2015, p.14-106.

PEREZ, Marcos Augusto, A Administração PúblicaDemocrática: Institutos de Participação Popular na Administração Pública, 1. ed.1. Reimp., São Paulo: EF, 2004

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Relatório de Atividades do Grupo de Trabalho sobre a Fosfoetanolamina, 22 dezembro 2015. Disponível em:<http://www.mctic.gov.br/mctic/export/sites/institucional/ciencia/SEPED/Saude/fosfoetanolamina/arquivos/22-12-2015-Relatorio-deAtividades-do-Grupo-deTrabalho-sobre-a-Fosfoetanolamina.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2022.

SOUSA SEVERINO, Mariana Rocha; DE CARVALHO, Ivan Lira. O papel das Agencias Reguladoras sobre a realização dos serviços públicos por particulares frente ao Estado Regulador. In: Revista Digital Constituição e Garantia de Direitos, v. 10, n. 1, p. 52-74, 2018. 

STF. STF suspende eficácia da lei que autoriza uso da fosfoetanolamina, 2016. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=3 17011>. Acesso em: 10 jun. 2022.

STF. ADI nº 6343 -DF. Rel. Min. Marco Aurélio. Julgamento em: 06.05.2020.

STF. ADI nº 6586 -DF. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Julgamento em: 17.12.2020. STF. ADI nº 6587 -DF. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Julgamento em: 17.12.2020.


[3] STF. Pleno. ADI 5501-DF. Rel. Min Marco Aurélio de Mello, j. 23.10.2020. 

[4] Destaque-se o Tema de Repercussão Geral de nº 1161-STF, RE 1165959-SP, Rel. Min. Marco Aurélio de Mello, j. 18.06.2021, que especifica os critérios de fornecimento de medicamento não registrado na ANVISA quando se mostrar imprescindível ao tratamento do paciente que assim enfrentou a questão: “Cabe ao Estado fornecer em termos excepcionais medicamentos que, embora não possua registro na ANVISA, tenha sua importação autorizada pela Agencia de Vigilância Sanitária desde que comprovada a a incapacidade econômica do paciente, a imprescindibilidade clínica do tratamento e a impossibilidade de substituição por similares, que constem das listas oficiais de dispensação de medicamentos e os protocolos de intervenção terapêutica do SUS” 

[5] STF. ADPF nº 754-DF. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Julgamento em: fev/2022.

[6] STF. ADI nº 6343 -DF. Rel. Min. Marco Aurélio. Julgamento em: 06.05.2020.

[7] STF. ADI nº 6586 -DF. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Julgamento em: 17.12.2020. 8 STF. ADI nº 6587 -DF. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Julgamento em: 17.12.2020.

[8] ANVISA. Parecer. Disponível em: <https://www.gov.br/anvisa/ptbr/assuntos/noticias-anvisa/2021/anvisadivulga-parecerescompletos-sobre-a-vacina-da-pfizer-para-criancas>. Acesso: 10 jun. 2022.


[1] Mestrando em Direito Constitucional pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade de Fortaleza- UNIFOR. Advogado.

[2] Doutoranda em Direito Constitucional pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade de Fortaleza- UNIFOR. Mestra em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL). Pós-Graduada em Direito Público, Direito de Família e Sucessões, Direito do Trabalho e Direito Previdenciário. Professora Universitária. Defensora Pública do Estado do Piauí e  Diretora Cível da capital.