A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO TRABALHO NO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO: IMPACTOS NAS PRÁTICAS DE REINTEGRAÇÃO SOCIAL E RESSOCIALIZAÇÃO DOS DETENTOS

THE HISTORICAL EVOLUTION OF WORK IN THE BRAZILIAN PRISON SYSTEM: IMPACTS ON PRACTICES OF SOCIAL REINTEGRATION AND RESOCIALIZATION OF DETAINEES

REGISTRO DOI:10.69849/revistaft/pa10202408031634


Juliana Oliveira Eiró do Nascimento1
Elionay Wanderlan da Silva Lima2
Leonam Soares Progêno3


Resumo

O artigo estuda a evolução histórica do trabalho no sistema carcerário brasileiro, com foco nos impactos nas práticas de reintegração social e ressocialização dos detentos. Para tanto, o estudo aborda as origens do sistema penal e das instituições prisionais, identificando os principais marcos históricos e suas influências na formação do modelo carcerário atual. Além disso, analisa a evolução do direito penal no Brasil e a implementação das penas privativas de liberdade, destacando as mudanças legislativas e suas implicações na gestão carcerária ao longo do tempo. Por fim, examina o contexto atual das penas no Brasil, com foco nas práticas de ressocialização e reintegração social dos presos, avaliando a eficácia das políticas públicas e o respeito à dignidade da pessoa humana dentro do sistema carcerário. A pesquisa conclui que a complexidade da evolução do Direito Penal, enfatizando tanto as transformações históricas das penas quanto suas implicações sociais e humanitárias. A trajetória do sistema penal, influenciada por fatores econômicos, religiosos e filosóficos, revela avanços significativos, especialmente com a adoção de princípios humanitários e a busca pela ressocialização dos condenados, embora ainda enfrente desafios práticos como superlotação e condições degradantes nas prisões.. Utiliza-se o método hipotético-dedutivo, com abordagem qualitativa e, como procedimentos, análise bibliografia e documental. O estudo possui objetivos exploratórios e natureza teórica. 

Palavras-chave: Trabalho prisional. Ressocialização. Sistema carcerário brasileiro. Direitos humanos.

1 INTRODUÇÃO

O sistema carcerário brasileiro tem sido objeto de intensos debates e críticas ao longo dos anos, principalmente em relação às suas condições de superlotação, violência, e ineficácia na ressocialização dos detentos. Historicamente, as prisões foram concebidas como instituições de punição e isolamento, com pouca ênfase na reabilitação dos presos. No entanto, ao longo do tempo, a percepção sobre o papel das prisões começou a mudar, passando a incluir a função de reintegração social dos detentos.

A origem do sistema penal e das instituições prisionais remonta a épocas em que a punição física e a privação de liberdade eram os principais métodos utilizados para controlar a criminalidade. No Brasil, a evolução do direito penal e das penas privativas de liberdade passou por diversas fases, influenciadas por modelos europeus e norte-americanos, até chegar ao modelo atual, que ainda enfrenta muitos desafios para se tornar verdadeiramente eficaz e humanizado.

Nas últimas décadas, o trabalho prisional ganhou destaque como uma ferramenta potencialmente eficaz para a ressocialização dos presos. A Constituição Federal de 1988 e a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984) reforçaram a importância do trabalho como um direito e um dever do preso, visando sua reeducação e reintegração social. No entanto, a implementação dessas diretrizes enfrenta uma série de obstáculos práticos e estruturais.

O contexto atual das penas no Brasil revela uma complexa rede de desafios. As políticas públicas voltadas à ressocialização, embora bem-intencionadas, muitas vezes falham na execução, resultando em programas inconsistentes e insuficientes. Além disso, o trabalho prisional é frequentemente marcado por condições inadequadas, falta de formação profissional e remuneração justa, além da persistência de estigmas sociais que dificultam a reintegração dos ex-detentos na sociedade.

Diante dessa realidade, surge a necessidade de uma análise aprofundada da evolução histórica do trabalho no sistema carcerário brasileiro. Entender como as práticas passadas influenciam as políticas e práticas atuais é essencial para identificar lacunas, propor melhorias e, sobretudo, garantir que o sistema penal cumpra seu papel de forma justa e eficaz. Este estudo, portanto, busca contextualizar e esclarecer essas questões, fornecendo uma base sólida para discussões e desenvolvimentos futuros.

Nesse contexto, a presente pesquisa reúne informações com a finalidade de responder ao seguinte problema de pesquisa: Como a evolução histórica do trabalho no sistema carcerário brasileiro influenciou as práticas atuais de reintegração social e ressocialização dos detentos, considerando os aspectos legais, sociais e econômicos?

A hipótese é a de que a evolução histórica do trabalho no sistema carcerário brasileiro teve uma influência significativa na formação das práticas atuais de reintegração social e ressocialização dos detentos, onde práticas bem-implementadas de trabalho prisional estão associadas a menores taxas de reincidência e maior respeito à dignidade da pessoa humana.

O objetivo geral é analisar a evolução histórica do trabalho no sistema carcerário brasileiro e seus impactos nas práticas atuais de reintegração social e ressocialização dos detentos, considerando os aspectos legais, sociais e econômicos.

Para tanto, a pesquisa é estruturada em 5 itens, sendo o primeiro a introdução. O segundo investiga as origens do sistema penal e das instituições prisionais, identificando os principais marcos históricos e suas influências na formação do modelo carcerário atual. O terceiro analisa a evolução do direito penal no Brasil e a implementação das penas privativas de liberdade, destacando as mudanças legislativas e suas implicações na gestão carcerária ao longo do tempo. O quarto examinar o contexto atual das penas no Brasil, com foco nas práticas de ressocialização e reintegração social dos presos, avaliando a eficácia das políticas públicas e o respeito à dignidade da pessoa humana dentro do sistema carcerário. O quinto e último apresenta as considerações finais do estudo.

A análise do histórico do trabalho no sistema carcerário brasileiro e seus impactos nas práticas atuais de reintegração social e ressocialização dos detentos é de extrema relevância por diversos motivos jurídicos, sociais e econômicos.

Do ponto de vista jurídico, o estudo deste tema é fundamental para compreender a evolução das normas e legislações que regem o sistema penal e o trabalho prisional. A investigação das práticas históricas e contemporâneas permite identificar avanços e retrocessos, contribuindo para o aperfeiçoamento das políticas públicas voltadas à ressocialização dos detentos. Além disso, a análise crítica das legislações permite avaliar se estas estão em conformidade com os princípios constitucionais, especialmente no que tange à dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais.

Socialmente, o trabalho no sistema carcerário é um instrumento crucial para a reintegração dos detentos na sociedade. Este estudo visa lançar luz sobre as condições de trabalho dentro das prisões, as oportunidades oferecidas e os desafios enfrentados pelos presos. A ressocialização através do trabalho é um meio eficaz de reduzir a reincidência criminal, promovendo a reintegração social e diminuindo o estigma que acompanha os ex-detentos. Compreender as práticas históricas e atuais é essencial para desenvolver estratégias mais eficazes e humanizadas de ressocialização.

Economicamente, o trabalho prisional pode ter um impacto significativo tanto para os indivíduos quanto para a sociedade como um todo. Para os detentos, a oportunidade de trabalhar enquanto cumprem suas penas pode fornecer uma fonte de renda, ajudando no sustento de suas famílias e na construção de um futuro após a libertação. Para a sociedade, a implementação de programas de trabalho prisional pode contribuir para a redução dos custos associados à manutenção do sistema carcerário, além de promover a formação profissional e a empregabilidade dos detentos após o cumprimento da pena. Portanto, este estudo busca evidenciar os benefícios econômicos do trabalho prisional, ao mesmo tempo que aponta as necessidades de melhoria e investimentos necessários para tornar estas práticas mais eficientes e justas.

Utiliza-se o método hipotético-dedutivo, com abordagem qualitativa e, como procedimentos, análise bibliografia e documental. O estudo possui objetivos exploratórios e natureza teórica. 

2 A ORIGEM DO SISTEMA PENAL E DAS INSTITUIÇÕES PRISIONAIS

Compreender a evolução histórica do Direito Penal e compará-la com a situação atual é de grande importância. Isso porque as leis penais de hoje possuem raízes e relações estreitas com seus antecedentes, e estudar essa evolução nos ajuda a entender melhor os conceitos contemporâneos (Bitencourt, 2017).

A palavra “pena” vem do latim “poena” e está associada à ideia de “sanção aplicada como punição ou como reparação por uma ação julgada repreensível; castigo, condenação” (Oliveira, 2019, p. 31). Segundo Cunha (2021), o Direito Penal surgiu quase que simultaneamente à formação das sociedades humanas. No entanto, a criação de normas penais organizadas e humanizadas não ocorreu nesse período inicial. Na verdade, as punições primitivas eram caracterizadas pela crueldade e desumanidade.

Ao longo da história, diferentes métodos foram usados para punir os infratores. Desde 1939, Rusche e Kirchheimer (2004) observaram que a evolução das penas e do sistema penal não estava apenas ligada à necessidade de erradicar práticas criminosas. Tanto os sistemas penais quanto os tipos e a gradação das penas estavam relacionados ao sistema de produção da época. Os autores explicam que:

É evidente que a escravidão como forma de punição é impossível sem uma economia escravista, que a prisão com trabalho forçado é impossível sem a manufatura ou a indústria, que fianças para todas as classes da sociedade são impossíveis sem uma economia monetária. De outro lado, o desaparecimento de um dado sistema de produção faz com que a pena correspondente fique inaplicável somente um desenvolvimento específico das forças produtivas permite a introdução ou rejeição de penalidades correspondentes. […] Portanto, se numa econômica escravista verifica-se uma situação de escassez de oferta de escravos com a respectiva pressão da demanda, será difícil ignorar a escravidão como método punitivo […] (Rusche; Kirchheimer, 2004, p. 20-21).

Ao analisar essa evolução histórica das sanções, percebe-se que ela não ocorreu de maneira precisa e progressiva, com épocas, características e princípios bem definidos. No entanto, para fins didáticos, Bitencourt (2017) observa que a evolução do Direito Penal é geralmente dividida em três fases: (1) vingança divina, (2) vingança privada e (3) vingança pública.

Durante o período da vingança divina, Cunha (2021) explica que, devido à falta de conhecimento sobre as leis naturais, as sociedades acreditavam que fenômenos como trovões, chuvas e secas eram punições divinas, chamadas de “totem” (Bitencourt, 2017).

De acordo com Oliveira (2019), essa forte influência da religião resultou na atuação conjunta do Estado e da Igreja no exercício do poder. O autor explica que:

O Direito Penal foi altamente influenciado pela religiosidade já que havia uma cultura e crença de que se deveria reprimir o crime como uma satisfação aos deuses pela conduta delituosa realizada no meio social. Mais do que crime, as infrações eram consideradas pecados que deveriam sofrer uma intervenção divina. Interessante observar que foram os grupos religiosos que exerciam o poder de punir os incautos. […] Desse modo, por meio da religião, a pena passou a ser encarada como castigo e quem ousasse infringir as supostas ordens divinas sofria a condenação dos deuses (p. 34).

Nessa fase, as pessoas acreditavam que eram punidas por desagradar as divindades, o que era chamado de infração totêmica. A pena frequentemente envolvia a morte de quem cometia uma ação repreensível, sem qualquer noção de razoabilidade ou justiça, pois qualquer dano que a comunidade acreditasse ter sofrido podia resultar em uma pena de morte desproporcional (Bitencourt, 2017).

O Direito Penal dessa época era carregado de misticismo, sendo profundamente religioso e teocrático, com a crença de que era necessário punir a alma do criminoso pelo delito cometido. A punição era vista como delegada por divindades e aplicada pelos sacerdotes, frequentemente de maneira cruel, desumana e degradante, com o objetivo de causar o máximo de intimidação (Bitencourt, 2017).

Após a superação do período de intenso misticismo, Oliveira (2019) observa que a punição contra um infrator evoluiu para uma forma de vingança privada, sendo a própria vítima, sua família, ou grupo social os responsáveis por aplicar a sanção. Nessas situações, a punição muitas vezes era completamente desproporcional e poderia atingir até mesmo pessoas além do criminoso.

Bitencourt (2017) menciona que esse período foi marcado por guerras sangrentas, frequentemente motivadas por atos criminosos, e capazes de dizimar grandes grupos de pessoas. Para evitar a aniquilação de tribos inteiras, surgiu na Babilônia o Código de Hamurabi, que estabeleceu a “Lei do Talião.”

Cunha (2021) explica que essa legislação introduziu a ideia de que a punição deveria ser proporcional ao crime cometido. No entanto, apesar de ser um avanço comparado ao sistema anterior, essa abordagem ainda permitia penas cruéis e desumanas, diferenciando entre homens livres e escravos, com maior rigor aplicado aos escravos.

Segundo Rusche e Kirchheimer (2004), até a Alta Idade Média, a relação legal entre senhores feudais e servos também influenciava o sistema criminal, que servia para manter a hierarquia e a “ordem pública entre iguais em status e bens.” Sem um forte poder estatal, a Lei do Feudo e a pena pecuniária predominavam. A fiança era ajustada conforme o status social do infrator e da vítima, e aqueles que não podiam pagar eram sujeitos a castigos corporais, com o sistema penal afetando desproporcionalmente as classes mais baixas.

Com o gradual fortalecimento do poder estatal, a punição passou a ser administrada pelas autoridades competentes, mas as penas corporais continuaram a ser cruéis e desumanas, afetando também familiares e descendentes do condenado (Cunha, 2021).

Oliveira (2019) explica que a pena perdeu seu caráter sagrado e passou a ser imposta por uma autoridade pública em nome de Deus, como representante dos interesses da sociedade. As sanções eram aplicadas de maneira arbitrária pelo soberano, baseadas em atrocidades. Nesse período de vingança pública, surgiu o ius puniendi do Estado.

Rusche e Kirchheimer (2004) destacam que, até o século XV, os castigos corporais, como a mutilação, eram usados em casos graves como complemento à pena de fiança. Com o tempo, porém, essas punições se tornaram comuns, com juízes aplicando a pena de morte e outros castigos a qualquer um considerado perigoso para a sociedade.

A pena de morte ganhou um novo significado, com o objetivo de remover permanentemente da sociedade os indivíduos perigosos. No entanto, o processo para determinar quem deveria ser punido dava pouca atenção à verdadeira culpa ou inocência do acusado (Rusche; Kirchheimer, 2004).

Aqueles que escapavam da pena de morte enfrentavam mutilações severas, perdendo mãos, dedos, língua e até sendo castrados. Essas marcas permanentes dificultavam a reintegração ao mercado de trabalho, levando muitos a voltar ao crime (Rusche; Kirchheimer, 2004).

Foucault (1988) analisa esse longo período, que ele chama de sociedade de soberania, onde as punições eram baseadas em suplícios aplicados através da tortura e punição pública, frequentemente resultando na morte do condenado. A intensidade e duração da dor eram determinadas pela gravidade do crime, a pessoa do condenado e o status social da vítima. Sobreviventes carregavam cicatrizes indeléveis.

Bitencourt (2017) destaca que as leis em vigor eram extremamente cruéis, promovendo castigos corporais e a pena capital, com juízes arbitrariamente julgando de acordo com a condição social do réu. Até os criminalistas mais renomados defendiam um sistema repressivo rigoroso.

Sociedades que aplicavam essas formas de punição não enfrentavam escassez de mão de obra e, portanto, valorizavam pouco a vida humana (Rusche; Kirchheimer, 2004). No entanto, durante os séculos XVI e XVII, esse cenário começou a mudar com o aumento dos centros urbanos, a pobreza na Europa, o aumento da delinquência, a crise do feudalismo e o fortalecimento do capitalismo. A burguesia, necessitando de mão de obra, revisou os objetivos das penas (Mello, 2010).

Nesse período, surgiu a ideia de que o corpo torturado e exposto publicamente precisava deixar de ser o foco principal da punição penal (Foucault, 1988). Muitas obras começaram a promover a noção de humanização das penas (Oliveira, 2019). “Filósofos, moralistas e juristas dedicaram suas obras a criticar abertamente a legislação penal vigente, defendendo as liberdades individuais e exaltando a dignidade humana” (Bitencourt, 2017, p. 92).

Jeremy Bentham (2020), um filósofo utilitarista do século XVII, propôs o conceito do panóptico, ou casa de inspeção, um edifício circular onde as celas dos prisioneiros estavam dispostas em torno de um ponto central, evitando a comunicação entre eles. No centro, ficava a habitação do inspetor. As celas tinham grades finas e janelas para permitir a maior visibilidade possível, e portas que podiam ser abertas a qualquer momento pelo inspetor ou seus assistentes.

Com essa estrutura, e outros detalhes descritos por Bentham, seria possível manter uma vigilância constante pela “aparente onipresença do inspetor […], combinada com a extrema facilidade de sua real presença” (Bentham, 2020, p. 31). Bentham argumenta que essa sensação constante de vigilância atendia exatamente aos propósitos das prisões da época: custódia segura, reclusão, isolamento, trabalho forçado e instrução.

Embora essa proposta possa parecer contrária à dignidade humana à luz dos conceitos atuais, Oliveira (2019) esclarece que, para a época, o projeto de Bentham tinha relevância e benefícios. Os presos sairiam das masmorras escuras para ambientes mais iluminados e ventilados, com luz natural entrando nas prisões.

Cesare Beccaria (2015), um filósofo humanitário da segunda metade do século XVIII, também se opôs aos suplícios, num período em que os criminosos eram desumanizados. Ele criticou a falta de debates filosóficos para acabar com a crueldade da justiça penal e afirmou:

Se as luzes do nosso século já produziram algum resultado, estão longe de ter dissipado todos os preconceitos. Ninguém se levantou contra a barbárie das penas em uso nos nossos tribunais. Ninguém se ocupou em reformar a irregularidade dos processos criminais, uma parte da legislação tão importante quanto negligenciada em toda a Europa. Raramente se procurou destruir os fundamentos dos preconceitos acumulados por séculos. Poucas pessoas tentaram reprimir, pela força das verdades imutáveis, os tormentos atrozes que a barbárie infringe por crimes, sem provas, ou por delitos quiméricos (Beccaria, 2015, p. 20).

Beccaria (2015) apresentou vários princípios para a justiça penal, com o objetivo de garantir mais segurança e humanidade. Ele enfatizou que leis claras deveriam determinar as penas e que essas leis deveriam ser elaboradas por um legislador que representasse o povo. Segundo ele, os cidadãos só poderiam agir com segurança se soubessem previamente quais condutas eram crimes e as penas associadas. Além disso, as penas deveriam ser aplicadas por um juiz de forma correta.

Beccaria também argumentou que qualquer severidade excessiva seria supérflua e tirânica, e que a visão brutal da morte de um criminoso não era tão eficaz para prevenir crimes quanto a privação prolongada da liberdade. Apesar de algumas de suas propostas parecerem cruéis segundo os padrões modernos, elas eram consideradas humanitárias para a época, dada a brutalidade dos métodos punitivos então vigentes.

Com a chegada do Iluminismo, na segunda metade do século XVIII, começaram a surgir debates em toda parte defendendo a humanização das penas (Foucault, 1988). Esse movimento culminou na Revolução Francesa, com muitos grupos exigindo a reforma do sistema penal (Bitencourt, 2017). As punições cruéis se tornaram intoleráveis, levando à formulação de novas estratégias penais visando “[…] fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular, coextensiva à sociedade; não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade atenuada, mas com mais universalidade e necessidade” (Foucault, 1988, p. 81-82).

No final do século XVIII, surgiram as sociedades disciplinares, trazendo transformações institucionais à justiça penal. Os procedimentos foram regulamentados por códigos explícitos e as penas passaram a ter caráter corretivo, buscando a reeducação dos criminosos (Foucault, 1988).

Embora as repressões já não fossem tão diretas na integridade física dos criminosos, ainda havia violações mais sutis. O corpo do condenado se tornou um instrumento intermediário para a aplicação de novas formas de punição, como a prisão, servidão forçada, interdição de domicílios e trabalho forçado, onde o infrator sofria coação, deveres e obrigações (Foucault, 1988).

As prisões existiam antes da sistematização das leis penais, inicialmente para aprisionar temporariamente os que seriam castigados fisicamente. Porém, nas sociedades disciplinares, as prisões se tornaram a pena principal (Foucault, 1988). Foucault (1988) considera esse um marco importante, pois revelou a humanização dos condenados. Contudo, Rocha (2011) lembra que havia um interesse em dominar diversas fontes energéticas produtivas, atendendo às demandas da nova ordem capitalista.

Rocha (2011) argumenta que, sob o pretexto de um discurso humanitário, percebeu-se que os corpos dos criminosos eram uma fonte produtiva, sendo mais vantajoso mantê-los vivos e trabalhando do que descartá-los pela morte. Rusche e Kirchheimer (2004) defendem que “[…] essas mudanças não resultaram de considerações humanitárias, mas de um certo desenvolvimento econômico que revelava o valor potencial de uma massa de material humano à disposição das autoridades” (p. 43). A escassez de mão de obra, causada por pragas e guerras, contribuiu para essa mudança (Rusche; Kirchheimer, 2004).

Diversas medidas foram adotadas para enfrentar a escassez de mão de obra na época, como o estímulo à natalidade, a redução das punições para mães solteiras para evitar infanticídios, o incentivo ao trabalho infantil e ao trabalho forçado (Rusche; Kirchheimer, 2004). Paralelamente, surgiu a necessidade de abolir a morte e a tortura como formas de punição, deixando de lado as execuções públicas espetaculares (Foucault, 1988).

Nessa época, prevalecia a ética do labor, a ideia de que o trabalho árduo era essencial para uma vida meritória e para a manutenção da ordem social. Assim, reforçou-se a ideia de que o trabalho nas prisões era a forma ideal de corrigir os criminosos (Rusche; Kirchheimer, 2004).

Quando as prisões se tornaram a principal forma de pena, o trabalho foi introduzido nelas. O trabalho dos criminosos era visto como um meio de transformar indivíduos violentos em prisioneiros produtivos. As prisões passaram a ter um objetivo econômico, produzindo indivíduos conformados às normas da sociedade industrial (Foucault, 1988).

O trabalho também servia para satisfazer necessidades pessoais dos presos, tornando-os trabalhadores que reconheciam a importância moral do salário como condição de sobrevivência. A remuneração incentivava o gosto pelo trabalho, ajudava na educação financeira e promovia a poupança e previdência, funcionando como um motor de transformação pessoal e inclusão social (Foucault, 1988).

Nesse período, surgiram as casas correcionais, cujo objetivo era afastar os presos da decadência moral e desenvolver hábitos que os capacitassem a retornar ao convívio social. Na prática, a correção significava fazer os presos trabalharem (Rusche; Kirchheimer, 2004). “[Os] detentos eram colocados para trabalhar imediatamente, principalmente em atividades menos atraentes que provavelmente não seriam realizadas por trabalhadores livres” (Bauman, 1999, p. 117).

As primeiras prisões eram ligadas a instituições de correção manufatureiras, onde o objetivo não era restaurar os presos, mas explorar sua mão de obra. A duração do encarceramento era decidida pelos gestores, mantendo os mais talentosos presos pelo maior tempo possível. Em resumo, as celas panópticas eram fábricas de exploração de trabalho disciplinado (Rusche; Kirchheimer, 2004).

O trabalho nas prisões tinha por objetivo manter as relações de poder entre o corpo e a mente dos presos, transformando criminosos em produtores e gerando benefícios econômicos para os presídios, além de garantir hierarquia, supervisão e controle (Foucault, 1988).

Os presos trabalhavam em condições degradantes, com falta de iluminação e em ambientes insalubres. O trabalho forçado era uma punição em si. Enquanto a tortura e as execuções públicas desapareciam na maioria dos países, as práticas nas prisões continuavam a atingir indiretamente o corpo dos condenados (Rocha, 2011).

O trabalho forçado e penoso era aceitável para a sociedade da época, que concordava com a ideia de que os presídios abrigavam indivíduos que violavam leis e regulamentos. Havia a necessidade de aproveitar as energias humanas através do aprisionamento, transformando “máquinas desejáveis indóceis” em “máquinas energéticas produtivas” (Rocha, 2011).

Ao mesmo tempo, o isolamento dos presos impactava a sociedade como um todo. As condições de vida degradantes dos encarcerados funcionavam como um meio de garantir a ordem e coesão social, além de combater a ociosidade dos livres. Havia a noção de que era melhor aceitar condições precárias de trabalho do que sofrer com o trabalho forçado nas prisões (Oliveira, 2019).

Nesse momento, a punição afetava principalmente as classes mais baixas. No entanto, a burguesia começou a exigir uma definição mais específica do direito material e melhorias no processo penal, buscando maior proteção jurídica contra os abusos do poder público. O objetivo era limitar os poderes punitivos do Estado por meio de leis fixas e controle rígido (Rushe; Kirchheimer, 2004).

No século XVIII, a necessidade econômica começou a convergir com os princípios humanitários. As novas condições do mercado de trabalho e a migração de trabalhadores do campo para a cidade revolucionaram a organização da indústria. As casas de correção faliram porque o crescimento populacional nas cidades supriu a demanda por mão de obra, criando até um excedente de trabalhadores em busca de emprego (Rushe; Kirchheimer, 2004).

Nesse período, os trabalhadores não aceitavam mais qualquer condição para obter um emprego. Surgiu um grupo de operários que buscava direitos e proteção. Assim, a conquista do direito ao trabalho teve um impacto direto na abolição do trabalho prisional. As casas correcionais foram gradualmente substituídas por fábricas, que não exigiam um alto custo para manter a disciplina (Rushe; Kirchheimer, 2004).

No entanto, nas primeiras décadas do século XIX, as condições de vida dos trabalhadores deterioraram-se drasticamente, levando muitos pobres a cometer crimes, especialmente contra a propriedade. Isso fez com que as classes dominantes exigissem penas mais duras novamente, e a eficácia da prisão como pena começou a ser questionada, apesar das conquistas do Iluminismo ainda se manterem (Rushe; Kirchheimer, 2004).

Até mesmo o trabalho realizado pelos prisioneiros começou a ser criticado. As condições econômicas criaram grandes problemas de concorrência entre os produtos do trabalho prisional e os produtos do trabalho livre. A sociedade estava insatisfeita com essa situação, e as corporações impediam que prisioneiros fossem aceitos como aprendizes (Rushe; Kirchheimer, 2004).

Contudo, esses obstáculos não tiveram sucesso devido à evidente escassez de mão de obra da época e à maior qualidade dos produtos feitos nas prisões. Isso fez com que tanto trabalhadores quanto empregadores criticassem o trabalho prisional (Rushe; Kirchheimer, 2004).

As tentativas de impor penas mais severas também falharam, pois estudos sobre taxas de criminalidade e flutuações econômicas no final do século XIX demonstraram que o crime era um fenômeno social. Tornou-se necessário analisar as penas do ponto de vista do futuro infrator. Assim, os reformadores adotaram uma nova política para manter o maior número possível de criminosos fora da prisão, por meio da prevenção (Rushe; Kirchheimer, 2004).

No século XX, surgiram os Direitos Humanos de segunda dimensão, focados na igualdade, incluindo direitos econômicos, sociais e culturais. Com isso, nasceu o Estado de Bem-Estar Social, que tinha o dever constitucional de atuar positivamente por meio de políticas públicas e programas sociais para assegurar uma vida digna a todos, com direitos como educação e trabalho (Ramos, 2019).

No sistema prisional, apesar da resistência social em ver os presos como sujeitos de direitos, a pena e seus objetivos precisavam assumir um caráter humanitário. O sistema penitenciário não podia mais violar a dignidade humana que fundamentava os Direitos Humanos. O Estado passou a ter o dever de garantir direitos igualitários aos presos, visando à ressocialização dos indivíduos.

Assim, em síntese, pode-se concluir que A compreensão crítica da evolução histórica do Direito Penal revela como suas raízes antigas moldaram as práticas e conceitos contemporâneos. Inicialmente, as penas eram brutalmente aplicadas com base em crenças religiosas e misticismos, refletindo a severidade e a desumanidade das punições na fase de vingança divina.

Neste período, a falta de conhecimento sobre leis naturais levou sociedades a interpretar fenômenos naturais como punições divinas, resultando em práticas punitivas extremas e irracionais. Este contexto revela o quanto o Direito Penal estava entrelaçado com as concepções religiosas e culturais de cada época, indicando que a aplicação da pena não era apenas uma questão de justiça, mas também de controle social e ideológico (Bitencourt, 2017).

A transição da vingança divina para a vingança privada trouxe mudanças significativas, mas ainda mantinha características de desproporcionalidade e arbitrariedade. A Lei do Talião, com sua ideia de proporcionalidade, representou um avanço teórico, mas a realidade prática ainda era marcada pela violência e desigualdade. Neste estágio, a justiça era administrada pelas próprias vítimas ou suas famílias, perpetuando um ciclo de retribuição que frequentemente resultava em conflitos sangrentos e desmedidos. Isso evidencia como as primeiras tentativas de sistematizar a justiça penal ainda estavam longe de um verdadeiro conceito de equidade e racionalidade (Oliveira, 2019).

A evolução para a vingança pública e a institucionalização do ius puniendi estatal trouxe um novo patamar de organização e controle, embora ainda mantivesse práticas severas e cruéis. A emergência das sociedades disciplinares, com a introdução de prisões como forma predominante de punição, refletiu uma mudança paradigmática no tratamento dos criminosos. As prisões, inicialmente projetadas para isolar e punir através do trabalho forçado, revelaram uma nova dimensão de controle social, onde o objetivo não era apenas a retribuição, mas também a transformação e reeducação do indivíduo. Este período destaca o início de uma abordagem mais estruturada e sistemática da punição, ainda que carregada de desigualdades e arbitrariedades (Rushe; Kirchheimer, 2004).

Com a influência do Iluminismo e a crescente valorização dos direitos humanos, surgiram críticas significativas às práticas penais vigentes, promovendo a humanização das penas. Filósofos como Cesare Beccaria e Jeremy Bentham argumentaram contra a crueldade e arbitrariedade das punições, propondo sistemas mais justos e racionais.

Beccaria, em particular, enfatizou a necessidade de leis claras e proporcionais, aplicadas de maneira justa e transparente, enquanto Bentham introduziu o conceito do panóptico, visando uma vigilância eficiente e menos desumana. Estas ideias marcaram um avanço crucial na busca por um sistema penal mais justo e humano, refletindo um movimento em direção à proteção dos direitos individuais e à dignidade humana (Beccaria, 2015; Bentham, 2020).

A transformação das práticas punitivas continuou ao longo dos séculos XIX e XX, com a abolição gradual das penas corporais severas e a introdução de sistemas penitenciários focados na reabilitação e ressocialização dos presos. As mudanças econômicas e sociais, como o crescimento das cidades e a necessidade de mão de obra, influenciaram diretamente essas transformações, revelando a interdependência entre o sistema penal e as estruturas econômicas.

A criação do Estado de Bem-Estar Social e a emergência dos Direitos Humanos de segunda dimensão estabeleceram novos padrões para o tratamento dos criminosos, demandando um enfoque humanitário e igualitário nas políticas penais. Este contexto reforça a importância de entender a evolução histórica do Direito Penal para apreciar as conquistas contemporâneas e os desafios ainda presentes (Ramos, 2019).

Portanto, a análise crítica da evolução histórica do Direito Penal nos permite compreender melhor os fundamentos e as complexidades do sistema penal atual. Esta evolução demonstra como o Direito Penal tem sido moldado por fatores sociais, econômicos e culturais, e como a luta por justiça e dignidade continua a influenciar as práticas punitivas. A compreensão das raízes históricas e das transformações ao longo do tempo é essencial para promover um sistema penal que respeite os direitos humanos e assegure uma aplicação justa e equitativa da justiça. Esta análise também nos lembra que o progresso é contínuo e que a vigilância constante é necessária para garantir que as conquistas não sejam perdidas e que novos avanços sejam alcançados (Bitencourt, 2017).

3 A HISTÓRIA DO DIREITO PENAL E DAS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE NO BRASIL

Antes da chegada dos portugueses ao Brasil, as civilizações locais puniam aqueles considerados culpados por atos reprováveis com base em vingança privada. Essas punições eram frequentemente desproporcionais e desumanas, baseadas em normas consuetudinárias que eram passadas oralmente através das gerações e envoltas em misticismo (Bitencourt, 2017).

Após a chegada dos portugueses, o sistema penal brasileiro inicialmente seguiu as leis portuguesas e, posteriormente, foi moldado pelas leis brasileiras. Para fins didáticos, a evolução do sistema penal no Brasil após a chegada dos portugueses pode ser dividida em três períodos: (1) período colonial; (2) Código Criminal do Império; e (3) período republicano (Bitencourt, 2017).

Ao abordar a evolução penal no Brasil, é importante reconhecer a relação direta entre o sistema penal e a questão racial. Mesmo após o fim do regime escravocrata, o sistema penal brasileiro sempre foi usado para controlar e explorar a mão de obra dos ex-escravos (Flauzina, 2006).

Em 1500, com a descoberta do Brasil, vigorava no país o Direito Lusitano. Durante esse período, Bitencourt (2017, p. 99) explica que:

[…] havia uma inflação de leis e decretos reais destinados a solucionar casuísmos da nova colônia; acrescidos dos poderes que eram conferidos com as cartas de doação, criavam uma realidade jurídica muito particular. O arbítrio dos donatários, na prática, é que estatuía o Direito a ser aplicado, e, como cada um tinha um critério próprio, era catastrófico o regime jurídico do Brasil colônia.

Os colonizadores trouxeram guerras, massacres e epidemias, resultando na expropriação material e simbólica da cultura indígena e no genocídio desses povos. Simultaneamente, passaram a comercializar e explorar os negros durante o imperialismo comercial para enriquecer os impérios europeus e as elites dominantes. O discurso racista que desumanizava os povos negros sustentava a colonização e permitia atos de genocídio e tirania (Flauzina, 2006).

Os negros capturados eram submetidos a condições desumanas de controle do tempo, saberes e corpos, resultando em grupos de resistência que precisavam ser contidos. O trabalho forçado era essencial (Flauzina, 2006).

Para controlar e explorar a mão de obra dos negros, o sistema penal do mercantilismo colonial formou a estrutura punitiva do Brasil entre 1500 e 1822. Nesse período, a relação entre a casa grande e a senzala era a base do sistema penal, com os senhores exercendo poder punitivo desenfreado sobre seus escravos (Flauzina, 2006).

Formalmente, deveria ser aplicado o Livro V das Ordenações Filipinas, que incluía um amplo rol de condutas criminalizadas e penas cruéis, como açoite e amputação de membros. Não havia preocupação com a legalidade; o arbítrio dos julgadores prevalecia (Bitencourt, 2017).

As penas eram diversas e cruéis, incluindo espancamento e marcações com ferro em brasa. As regulamentações penais variavam de acordo com o status do infrator e da vítima, diferenciando entre nobres, mulheres, homens livres e escravos (Ferreira, 2009).

Por exemplo, o tratamento dos escravos e negros era pautado no racismo e na coisificação. O artigo 62 estabelecia que qualquer pessoa que encontrasse um escravo fugitivo e não reportasse ao senhor ou autoridade competente dentro de quinze dias seria punida por furto (Flauzina, 2006).

Oliveira (2019, p. 52-53) destaca que:

O Brasil, até 1830, não tinha um Código Penal próprio por ser ainda uma colônia portuguesa, submetia-se às Ordenações Filipinas, que em seu livro V trazia o rol de crimes e penas que seriam aplicados no Brasil. Eram previstas a pena de morte, degrado para as galés e outros lugares, penas corporais (como açoite, mutilação, queimaduras), confisco de bens e multa e ainda penas como humilhação pública do réu. Naquela época não existia a previsão do cerceamento e privação de liberdade, posto que as ordenações são do século XVII e os movimentos reformistas penitenciários começam só no fim do século seguinte […].

Duas dimensões do sistema penal devem ser consideradas. A primeira é a de uma máquina que investe no trabalho disciplinar, controlando a fuga e reprimindo a resistência dos quilombos através de regulação repressiva e tortura, simbolizando a inutilidade da resistência (Flauzina, 2006).

A segunda dimensão é a de que o sistema penal era visto como uma ferramenta que ia além da simples aplicação de punições formais, focando no controle e na gestão dos estilos de vida dos mais vulneráveis. Isso se dava por meio de um discurso de inferioridade, que levava os negros a internalizar e aceitar o trabalho escravo (Flauzina, 2006).

Após a independência, o Império continuou o projeto de controle e eliminação dos negros. A elite branca, prevendo a inevitável abolição da escravidão com a introdução de formas livres de trabalho, adotou estratégias para adiá-la. Não querendo dividir o poder com os negros libertos, as elites construíram estruturas para preparar o descarte desses indivíduos indesejáveis (Flauzina, 2006).

O sistema punitivo brasileiro começou a se formar efetivamente com a Constituição de 1824. Nesse momento, penas de tortura e outras formas cruéis foram parcialmente proibidas. A prisão passou a ser o foco, devendo estar em condições salubres e com separação dos réus de acordo com o tipo e circunstância do delito (Oliveira, 2019).

Havia a necessidade de criar um verdadeiro Código Penal para o país, resultando na sanção do Código Criminal pelo imperador D. Pedro I em 1830. Em 1832, foi elaborado o Código de Processo Penal brasileiro (Bitencourt, 2017).

No entanto, a Constituição de 1824 manteve a escravidão e rejeitou explicitamente a noção de cidadania para aqueles considerados mercadorias, perpetuando a lógica colonial (Flauzina, 2006). Com isso, os escravos continuaram a ser punidos com penas cruéis e degradantes (Oliveira, 2019).

Esse período foi marcado por uma enorme contradição de ideais. De um lado, influenciado pelo Iluminismo, havia o liberalismo; do outro, a escravidão ainda persistia no Brasil. A crise financeira causada pelos baixos preços do açúcar e do algodão gerou revoltas em todo o país (Flauzina, 2006).

A elite branca passou a conviver com o medo dos negros, vistos como inimigos irreconciliáveis. Essa insegurança impulsionou a transição do projeto liberal para o projeto policial, visando controlar os corpos e estilos de vida da população negra e implementar planos para sua eliminação (Flauzina, 2006).

O Código Penal do Império de 1830 foi crucial no processo de criminalização da época. Embora os escravos fossem tratados como objetos em outras áreas do direito, no direito penal eles eram considerados pessoas para sofrer sanções. Algumas garantias aos cidadãos não se estendiam aos escravos, como a proibição de penas cruéis (Flauzina, 2006).

Oliveira (2019, p. 53) explica que o Código Penal introduziu a pena de prisão no Brasil em duas formas: prisão simples e prisão com trabalho. Acompanhando os debates europeus, a pena de prisão passou a ter um papel predominante, mas a pena de morte ainda era mantida.

Seguindo o debate sobre sistemas prisionais, de 1850 a 1852, o Brasil inaugurou Casas de Correção no Rio de Janeiro e em São Paulo, baseadas nos parâmetros do panóptico de Jeremy Bentham. As penas fixadas pelo Código de 1830 eram principalmente prisões simples e com trabalho (Oliveira, 2019).

Para evitar a resistência dos negros nas cidades, o direito de ir e vir foi cada vez mais regulado. Cultos e expressões culturais africanas foram proibidos, considerados perturbadores da ordem pública e contrários aos bons costumes. Um arcabouço legal foi criado para controlar os movimentos das massas negras (Flauzina, 2006).

Em vez de promover ocupações para trabalho livre, o estado dificultou a integração social dos negros. No Império, o ócio foi criminalizado, exemplificado pela criminalização da vadiagem. No sistema imperial de penas, os escravos não se beneficiaram do Iluminismo no direito penal (Flauzina, 2006).

Além disso, havia uma política de branqueamento em andamento. Em 1850, começou-se a incentivar a imigração europeia como estratégia para substituir os trabalhadores negros por “mão de obra mais qualificada.” A intenção era clarear a população, acreditando que na mistura das raças a cor branca prevaleceria. Assim, procurava-se retardar o fim da escravidão até a chegada de um maior número de trabalhadores brancos (Flauzina, 2006).

As leis Eusébio de Queiroz, do Ventre Livre e dos Sexagenários foram simbólicas, projetadas para expandir a escravidão e criar uma imagem benevolente da aristocracia. Para completar o processo de arianização do Império, a Guerra do Paraguai reduziu a população negra em um milhão de pessoas (Flauzina, 2006).

Sem oportunidades de trabalho, a integração social dos negros no mercado de trabalho tornou-se inviável. O Império representou a sedimentação do racismo, desumanizando as pessoas e perpetuando a segregação e o extermínio através da violência (Flauzina, 2006).

O sistema consolidado pelo Império deveria garantir a transição para as prisões sem interrupções. Em 1889, o sistema penal manteve, na República, um forte controle sobre os negros. O sistema penal republicano foi amplamente baseado no racismo (Flauzina, 2006).

Nesse período, investir em mão de obra tornou-se fundamental à medida que o país dava os primeiros passos rumo à industrialização. No campo, buscou-se recrutar mão de obra imigrante para embranquecer e explorar o trabalho de homens livres em condições indignas. Nas cidades, a perseguição aos sem-teto tornou-se uma agenda importante de controle, fortalecendo a divisão entre brancos produtivos e negros ociosos e influenciando as práticas punitivas (Flauzina, 2006).

O medo dos brancos de perder o controle da população negra se intensificou após a abolição da escravidão, tornando-se a principal razão para ataques repressivos. Nesse contexto, foi promulgado o Código dos Estados Unidos do Brasil em 1890, que, sem mudanças substantivas, funcionava como base simbólica para o novo Código, mas com o mesmo objetivo de criminalizar os alvos preferenciais da República (Flauzina, 2006).

Esse código foi um dos piores, com falhas técnicas, desrespeito aos princípios contemporâneos dos diplomas estrangeiros e ignorando os avanços doutrinários (Bitencourt, 2017).

Bitencourt (2017, p. 101) explica que:

Os equívocos e deficiências do Código Republicano acabaram transformando-o em verdadeira colcha de retalhos, tamanha a quantidade de leis extravagantes que, finalmente, se concentraram na conhecida Consolidação das Leis Penais de Vicente Pirtagibe, promulgada em 1932.

O novo Código incluía várias espécies de prisão, algumas com trabalho forçado e outras disciplinares, cada uma em estabelecimentos distintos (Oliveira, 2019). A pena de prisão tornou-se a principal ferramenta de controle social e para garantir trabalhadores reservas dentro do capitalismo industrial (Flauzina, 2006).

O início do século XX foi marcado por condições precárias nas prisões brasileiras, com superlotação e falta de divisão entre presos condenados e provisórios, resultando em condições cruéis e degradantes (Oliveira, 2019).

A legislação voltou-se contra mendigos e sem-teto, utilizando a vigilância para limitar o movimento das massas negras, evitar associações e impedir respostas coletivas (Flauzina, 2006).

O objetivo era que esses “ociosos” fossem levados ao trabalho, reduzindo seu tempo de perambulação. Esse controle penal brutal tornou-se a base para um sistema punitivo que adotou um controle diferenciado para lidar com as peculiaridades dos grupos a serem administrados (Flauzina, 2006).

A República elaborou um sistema punitivo que não podia mais depender da escravidão para controlar os negros. A intervenção penal tornou-se notoriamente racista, mantendo o controle dos corpos herdado do império (Flauzina, 2006).

Na década de 1930, começaram a surgir mudanças no sistema, influenciadas pela noção de um Estado de bem-estar social. A elite dominante fortaleceu o discurso de harmonia entre brancos e negros para inviabilizar a integração social dos negros (Flauzina, 2006).

O desenvolvimento das normas de criminalização fortaleceu e legitimou essa ferramenta, contribuindo para a vitimização parcial dos negros brasileiros. O racismo tornou-se uma linha prioritária de canalização do controle social (Flauzina, 2006).

Ao discutir o racismo como raiz estrutural do sistema penal brasileiro, não se ignora o impacto em outros setores, como as massas brancas empobrecidas. Flauzina (2006) destaca que, além do arbítrio policial e de outros órgãos, é o racismo que controla o potencial de intervenção física.

O atual Código Penal surgiu em 1940, trazendo algumas inovações importantes, como a moderação do poder do Estado de punir (Oliveira, 2019). O Código passou por muitas reformas, com a principal em 1984, mantendo os pilares do código de 1940 (Flauzina, 2006).

Na década de 1990, a falta de políticas públicas para reduzir a repressão penal e a impotência do sistema em reduzir a violência levaram a sociedade a buscar a maximização das práticas punitivas, através do direito penal simbólico (Bitencourt, 2017).

Essa tendência foi reduzida com a Lei nº 9.099 de 1995, que criou os juizados especiais criminais, disciplinando a transação penal e a suspensão condicional do processo. Desde então, o sistema penal passou por avanços e retrocessos, nem sempre respeitando os poderes republicanos e os princípios constitucionais que limitam o poder estatal de punir (Bitencourt, 2017).

Com isso, em resumo, verifica-se que A chegada dos portugueses ao Brasil transformou o sistema de justiça local, impondo normas e penas que refletiam a lógica colonialista. A aplicação do Direito Lusitano, com suas leis e decretos reais, resultou em um regime jurídico marcado pelo arbítrio dos donatários, que frequentemente aplicavam penas desumanas e desproporcionais aos indígenas e negros escravizados. Este contexto histórico evidencia a implementação de um sistema penal que servia como instrumento de dominação e controle, alinhado aos interesses da elite colonial e ao projeto de exploração da nova colônia.

O sistema penal colonial não apenas perpetuava a desigualdade, mas também formalizava a desumanização dos povos indígenas e negros. As Ordenações Filipinas, com seu vasto rol de crimes e penas cruéis, exemplificam essa lógica. A falta de legalidade e a prevalência do arbítrio dos julgadores evidenciam um sistema que priorizava a punição severa e a manutenção da ordem colonial sobre qualquer princípio de justiça ou humanidade. A coisificação dos escravos e a brutalidade das penas aplicadas refletem a profundidade do racismo institucionalizado que caracterizava o período.

Com a independência do Brasil e a promulgação da Constituição de 1824, esperava-se uma mudança substancial no sistema penal. Contudo, a escravidão permaneceu, e as penas cruéis continuaram a ser aplicadas aos escravos. O Código Criminal de 1830, embora introduzisse a pena de prisão, não conseguiu abolir as práticas punitivas desumanas herdadas do período colonial. A contradição entre os ideais iluministas e a persistência da escravidão criou um ambiente de tensão e repressão, onde as elites buscavam manter seu poder e controle sobre a população negra.

A transição para a República não significou um rompimento com o passado colonial. O Código Penal de 1890 manteve muitas das características racistas e punitivas do sistema imperial. As políticas de controle social continuaram a direcionar suas forças contra os negros e pobres, perpetuando a exclusão e a marginalização. As prisões tornaram-se o principal instrumento de controle social, refletindo uma sociedade que ainda via os descendentes de escravos como uma ameaça a ser contida e disciplinada.

A evolução do sistema penal brasileiro ao longo do século XX continuou a ser marcada pela tensão entre a necessidade de modernização e a persistência de práticas racistas. O Código Penal de 1940 e suas subsequentes reformas tentaram moderar o poder punitivo do Estado, mas as práticas de controle social e repressão continuaram a impactar desproporcionalmente os negros e pobres. A criminalização da vadiagem e a vigilância sobre os movimentos negros são exemplos de como o sistema penal continuou a ser usado como ferramenta de controle social.

Atualmente, o sistema penal brasileiro enfrenta o desafio de superar seu legado colonial e racista. A criação dos juizados especiais criminais e a implementação de medidas alternativas à prisão são passos importantes, mas insuficientes para resolver as profundas desigualdades que ainda permeiam a sociedade. É crucial que o sistema penal seja reformado de maneira a respeitar os princípios republicanos e constitucionais, garantindo a justiça e a dignidade para todos os cidadãos, especialmente aqueles historicamente marginalizados.

4 O CONTEXTO ATUAL DA PENA NO BRASIL: A RESSOCIALIZAÇÃO DO PRESO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Após uma breve revisão histórica sobre o sistema penal, é importante analisar como a questão da pena se estabelece atualmente no Brasil. O objetivo é investigar de que maneira a sanção penal no país está relacionada à noção de dignidade da pessoa humana e à ressocialização dos condenados.

Primeiramente, é fundamental entender a ideia de dignidade da pessoa humana como um valor. Este exame será realizado de forma breve e restrita aos aspectos penais. No entanto, na última seção desta dissertação, ao abordar o trabalho decente, a dignidade será analisada de forma mais aprofundada, compreendida como a base desse tipo de trabalho.

Segundo Sarlet (2015), a dignidade humana deve ser vista como um atributo preexistente, ou seja, um valor que existe independentemente de ser previsto em normas ou de qualquer situação específica. O autor afirma que, por ser uma qualidade intrínseca a cada ser humano, todos merecem respeito e consideração de forma equitativa, tanto por parte do Estado quanto da sociedade.

Para garantir isso, é necessário assegurar um conjunto de direitos e estabelecer um complexo de deveres fundamentais que afastem todos os indivíduos de tratamentos degradantes e garantam condições de vida saudável. Somente assim é possível que todos participem ativamente em seu próprio destino (Sarlet, 2015).

De acordo com as lições de Kant, a dignidade deve ser compreendida como um atributo de todos os seres humanos racionais. No “reino dos fins,” tudo possui um preço ou uma dignidade. Considerando que o ser humano não pode ser substituído por outro de igual valor, ele não pode ter um preço, apenas dignidade humana (Kant, 2007).

Além disso, Kant (2007) explica que o ser humano é sempre um fim em si mesmo, significando que, dotados de racionalidade, os indivíduos são capazes de agir visando realizações pessoais. Isso impede que as pessoas sejam usadas como instrumentos para alcançar um fim, pois isso as trataria como objetos com preço, e não como seres humanos com dignidade.

Sarlet (2015) afirma que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 universalizou as lições de Kant sobre dignidade, estabelecendo que “[…] o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” (ONU, 1948, s.p.).

Além disso, outros documentos internacionais, como a Declaração dos Direitos e Deveres dos Americanos de 1948 e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, também afirmam explicitamente o direito à dignidade como uma qualidade intrínseca e sem discriminação.

A Constituição Federal de 1988 (CRFB/88), inspirada por esses documentos, consagra a dignidade como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1º, inciso III). Além disso, a Constituição estabelece um extenso rol de direitos fundamentais para garantir uma vida digna a todos os indivíduos (BRASIL, 1988).

Em resumo, a dignidade humana é atualmente entendida como um atributo inerente a todo ser humano, sendo central no ordenamento jurídico nacional e internacional. Diante disso, mesmo os criminosos condenados por crimes graves têm direito à dignidade de forma igualitária (Sarlet, 2015).

Devido a essa noção de dignidade como um valor universal, o Estado constitucional tem o dever de respeitar a dignidade humana ao punir criminosos, evitando punições cruéis, desumanas ou degradantes. Assim, tornou-se essencial abolir os métodos sancionatórios do passado e estabelecer novas formas de punição respeitando esse princípio.

Atualmente, há um arcabouço normativo robusto para proteger a dignidade e segurança dos encarcerados. As Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos, adotadas pela ONU em 1950, foram revisadas e, em 2015, passaram a se chamar Regras de Mandela (Bastos; Rebouças, 2018).

O Brasil participou ativamente na elaboração dessas regras, baseadas em instrumentos internacionais como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção contra Tortura. Portanto, o país tem o dever de assegurar dignidade, segurança, assistência e mecanismos de ressocialização, como trabalho e educação, para a população carcerária (Bastos; Rebouças, 2018).

As regras determinam, por exemplo, que a dignidade e segurança dos encarcerados devem ser respeitadas (Regra 1) e que os direitos devem ser garantidos de maneira igualitária, atendendo às necessidades individuais, especialmente dos mais vulneráveis (Regra 2) (CNJ, 2016a).

Além disso, as Regras enfatizam a importância da ressocialização. O artigo 4 dispõe que a prisão ou qualquer outra restrição de liberdade deve ter como objetivo principal proteger a sociedade do crime e reduzir a reincidência, oferecendo aos presos meios para sua reintegração na sociedade (CNJ, 2016a).

O diploma internacional destaca que os infratores devem ser incentivados a obedecer à lei e preparados para viver de forma autossuficiente após cumprirem suas penas. Para isso, os indivíduos devem ter a oportunidade de estudar, receber formação profissional e trabalhar, além de obter assistência moral, espiritual, de lazer e saúde enquanto estiverem sob supervisão do Estado.

Em consonância com este diploma, a Constituição Federal de 1988 (CRFB/88) estabelece, no artigo 5º, várias garantias que consolidam o Direito Constitucional Penal (Tavares, 2012). Estas garantias incluem que não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (inciso XXXI). A lei penal não pode retroagir, salvo para beneficiar o réu (inciso XL), e as penas não podem ultrapassar a pessoa do condenado (inciso XLV). Proíbe-se penas de morte (exceto em casos de guerra declarada, conforme artigo 84, XIX), trabalho forçado, banimento ou crueldade (inciso XLVII) (BRASIL, 1988).

Outras previsões constitucionais incluem a separação dos encarcerados por tipo de delito, idade e sexo (inciso XLVIII), o respeito à integridade física e moral do preso durante todo o cumprimento da pena (inciso XLIX), e a garantia de condições adequadas para que mulheres permaneçam com seus filhos durante o período de amamentação (inciso L) (BRASIL, 1988).

Isso significa que, quando alguém é condenado por cometer um crime, o Estado ganha o poder/dever de punir, conhecido como jus puniendi. Ao exercer esse poder, o Estado deve impor e executar uma pena que já esteja prevista em lei, seguindo os limites e princípios expressos e implícitos na CRFB/88. O jus puniendi deve estar vinculado ao conceito de dignidade (Greco, 2015).

Essa visão humanitária nem sempre existiu. Por muitos séculos, os criminosos não eram vistos como indivíduos dignos de respeito. No entanto, no século XX, a dignidade dos presos começou a receber maior proteção com a implementação do Diploma Internacional de Direitos Humanos de segunda dimensão, que inclui Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Com isso, o Estado de bem-estar social passou a ter o dever de atuar de maneira positiva, por meio de políticas públicas e programas sociais, para garantir direitos básicos a todas as pessoas, como educação, saúde e trabalho, promovendo uma vida digna. Assim, os objetivos da pena no Brasil tiveram que se distanciar daqueles observados durante grande parte da história do Direito Penal.

Para entender a finalidade atual da sanção penal, é importante examinar as teorias das penas, que explicam sua existência e a razão pela qual o Estado pune os indivíduos (Matos, 2019). Embora o objetivo deste trabalho não seja aprofundar-se no tema, apresentaremos uma breve exposição teórica sobre as teorias da pena no Brasil, mostrando sua ligação com a dignidade humana e a ressocialização dos presos.

De acordo com Bitencourt (2017), o Estado usa a pena como uma forma de controle social para proteger determinados bens jurídicos. Assim, quando se pensa em Direito Penal atualmente, a atenção se volta para os efeitos que esse ramo deve produzir tanto no infrator quanto na sociedade, justificando sua aplicação apenas pela necessidade.

Por isso, é importante entender o objetivo por trás da aplicação de uma pena pelo Estado ao condenar alguém criminalmente (Bitencourt, 2017). Existem três vertentes importantes sobre a função da pena: (1) absoluta; (2) relativa; e (3) unificadora.

A teoria absoluta relaciona-se com o fim retributivo da pena. Seus defensores afirmam que a punição imposta ao infrator deve ter o objetivo de retribuir o dano causado, alcançando um equilíbrio social (Roxin, 1997). Essa teoria vê a pena como um castigo que deve causar um mal ao infrator como meio de vingança ou retribuição pelo crime cometido.

Os estados absolutistas, onde moral, direito, religião e política estavam completamente misturados, são exemplos onde essa função da pena era mais evidente. Segundo Bitencourt (2017, p. 143):

Na pessoa do rei concentrava-se não só o Estado, mas também todo o poder legal e de justiça. A ideia que então se tinha da pena era a de ser um castigo com o qual se expiava o mal (pecado) cometido. De certa forma, no regime do Estado absolutista, impunha-se uma pena a quem, agindo contra o soberano, rebelava-se também, em sentido mais que figurado, contra o próprio Deus.

A teoria relativa, segundo Greco (2015), defende que a pena deve ter como objetivo único a prevenção de outros crimes. A punição deixa de ser um fim em si mesma e passa a ser um meio para evitar futuras infrações (Bitencourt, 2017).

A teoria relativa, ou preventiva, subdivide-se em: (1) prevenção geral, que se divide em negativa e positiva, e (2) prevenção especial, também dividida em negativa e positiva (Greco, 2015).

De forma geral, a prevenção geral direciona-se aos membros da sociedade (Bitencourt, 2017). A corrente negativa visa dissuadir os infratores de cometer novos crimes, pois a impunidade poderia estimular a reincidência. Por outro lado, indivíduos efetivamente punidos tendem a refletir antes de cometer novos crimes (Greco, 2015).

Essa teoria foi desenvolvida durante o surgimento das ideias iluministas, na transição do Estado absolutista para o Estado liberal. “A pena, conclui-se, apoia a razão do sujeito na luta contra os impulsos ou motivos que o pressionam a favor do delito e exerce uma coerção psicológica ante os motivos contrários ao ditame do Direito” (Bitencourt, 2017, p. 154).

No entanto, a teoria não considera que, em muitos casos, os indivíduos acreditam que não serão descobertos, o que pode ser uma motivação suficiente para infringir a lei. Por essa razão, a teoria não alcançou completamente os objetivos que defendia (Bitencourt, 2017).

Por outro lado, a prevenção geral positiva visa gerar um impacto na sociedade, criando um sentimento de confiança e segurança no sistema penal. Isso ocorre porque, mesmo quando há violação das normas, há uma solução para o desacordo social (Roxin, 1997).

A prevenção especial negativa tem como objetivo impedir novos crimes, afastando o infrator do convívio social. O isolamento social impede que o indivíduo viole novamente as normas penais (Greco, 2015). Essas correntes não são excludentes, mas podem ser complementares (Bitencourt, 2017).

Finalmente, a prevenção especial positiva se relaciona com a ressocialização, buscando reintegrar os indivíduos ao meio social sem reincidir. A pena deve educar o infrator para reduzir as chances de reincidência (Greco, 2015).

A teoria que se foca apenas na retribuição da pena é problemática, pois olha apenas para o passado, ignorando a prevenção do crime e os fatores que levam à sua ocorrência. Já as teorias relativas se preocupam em evitar futuras infrações, focando no futuro após o crime (Greco, 2015).

Os objetivos contemporâneos da pena no Brasil são estabelecidos no artigo 59 do Código Penal, que orienta o juiz a considerar o necessário para reprovar e prevenir a infração ao determinar a pena (Brasil, 1940).

Além disso, a Lei de Execução Penal (LEP) estipula, no artigo 1º, que a execução da pena deve proporcionar condições para a reintegração social do preso. O artigo 10 estabelece que o Estado deve garantir assistência aos reclusos para orientá-los na reinserção social e evitar a reincidência (Brasil, 1984).

Baseado nesses dispositivos, Greco (2015) explica que o legislador brasileiro adotou a teoria mista ou unificada da pena, que combina objetivos retributivos com a prevenção de novas infrações através de instrumentos ressocializadores durante o cumprimento da pena.

Portanto, a punição dos criminosos evoluiu de uma natureza cruel e degradante para uma natureza ressocializadora. A pena deve ir além da simples repressão, buscando restaurar os infratores e garantir sua inclusão social, sempre respeitando a dignidade humana (Greco, 2015).

Greco (2015) destaca que o trabalho é um dos instrumentos mais eficazes para a ressocialização, oferecendo benefícios psicológicos e sociais. “A experiência demonstra que, nas penitenciárias onde os presos não exercem qualquer atividade laborativa, o índice de tentativas de fuga é muito superior ao daquelas em que os internos atuam de forma produtiva, aprendendo e trabalhando em determinado ofício” (Greco, 2015, p. 574).

Como a dignidade é um valor absoluto e universal, ela deve ser respeitada mesmo quando o indivíduo está condenado e privado de liberdade (Sarlet, 2015). A execução das atividades laborais nas prisões deve respeitar a dignidade do preso, conforme as normas nacionais e internacionais.

Diante disso, o trabalho, que já desempenha um papel importante na formação de valores sociais contemporâneos, também proporciona educação e formação profissional aos presos, sendo um meio eficaz para reduzir ou eliminar as barreiras à inclusão social dos presos e egressos (Greco, 2015). Assim, é pertinente uma análise mais aprofundada do trabalho dos encarcerados no Brasil.

Diante do exposto, conclui-se de forma sintetizada que o entendimento da dignidade da pessoa humana como um valor absoluto e inerente é crucial para o sistema penal moderno. Conforme Sarlet (2015), a dignidade é um atributo preexistente e intrínseco a todos os seres humanos, exigindo respeito e consideração por parte do Estado e da sociedade. Esse conceito é central para evitar tratamentos degradantes e garantir condições de vida que permitam a participação ativa dos indivíduos em seu próprio destino.

A aplicação da pena deve refletir esse respeito à dignidade humana. A Constituição Federal de 1988 (CRFB/88) consagra a dignidade como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e estabelece um conjunto de direitos fundamentais para garantir uma vida digna a todos os indivíduos, inclusive aos condenados. Isso significa que, mesmo os criminosos condenados por crimes graves, têm direito à dignidade de forma igualitária, conforme os princípios constitucionais e os tratados internacionais ratificados pelo Brasil.

As Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos, revisadas e rebatizadas como Regras de Mandela em 2015, são um exemplo claro do compromisso internacional com a dignidade e a ressocialização dos presos. O Brasil, ao adotar essas regras, assume a responsabilidade de garantir dignidade, segurança, assistência e mecanismos de ressocialização para a população carcerária. Isso inclui oferecer oportunidades de educação, trabalho e formação profissional, essenciais para a reintegração social dos condenados.

O ordenamento jurídico brasileiro reflete essas diretrizes ao incorporar tanto objetivos retributivos quanto preventivos e ressocializadores na execução da pena. A Lei de Execução Penal (LEP) estipula que a pena deve proporcionar condições para a reintegração social do preso, destacando a importância da assistência e do apoio ao recluso para evitar a reincidência. Assim, o legislador brasileiro adota uma teoria mista ou unificada da pena, que combina a punição com a necessidade de prevenir novos crimes através da ressocialização.

A dignidade, portanto, deve ser um valor orientador em todas as fases do cumprimento da pena. A transformação da pena de uma natureza meramente punitiva para uma abordagem ressocializadora reflete uma evolução significativa no tratamento dos condenados. O trabalho prisional, em particular, é uma ferramenta poderosa para a ressocialização, promovendo benefícios psicológicos e sociais que auxiliam na reintegração dos presos à sociedade. Desta forma, é necessário aprofundar a análise sobre o trabalho dos encarcerados no Brasil, garantindo que suas atividades respeitem a dignidade humana e contribuam efetivamente para sua ressocialização.

5 CONCLUSÃO/CONSIDERAÇÕES FINAIS

As considerações finais críticas deste estudo visam destacar a complexidade e a importância da evolução do Direito Penal, abordando não apenas as mudanças históricas das penas, mas também as implicações sociais e humanitárias que essas transformações acarretam.

Primeiramente, é essencial reconhecer que a evolução do Direito Penal não foi linear nem uniforme. A passagem da vingança divina e privada para a vingança pública revela uma trajetória marcada por práticas inicialmente cruéis e desumanas, muitas vezes influenciadas por contextos religiosos e econômicos. A evolução dos métodos punitivos, como observado por Rusche e Kirchheimer (2004), foi fortemente influenciada pelo sistema de produção vigente em cada época, destacando a relação intrínseca entre economia e penalidade.

Ao longo do tempo, a transição para sistemas penais mais organizados e humanizados refletiu um avanço significativo, embora gradual, na tentativa de harmonizar a aplicação da pena com princípios de justiça e proporcionalidade. A introdução de ideias iluministas e o surgimento de filósofos como Bentham e Beccaria marcaram um ponto de inflexão, propondo reformas que visavam diminuir a crueldade das punições e enfatizar a importância da dignidade humana.

No contexto brasileiro, a trajetória histórica do sistema penal mostra uma adaptação e incorporação das influências coloniais e imperiais, passando por períodos de extrema violência e controle social, especialmente contra populações marginalizadas como negros e indígenas. A escravidão e o racismo estrutural tiveram um papel crucial na formação do sistema punitivo brasileiro, perpetuando desigualdades e injustiças que ainda hoje são perceptíveis.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Brasil passou a adotar uma abordagem mais humanitária e constitucionalista, onde a dignidade da pessoa humana tornou-se um valor central. Essa mudança refletiu-se na legislação penal e na execução penal, que agora busca equilibrar a retribuição com a ressocialização dos condenados. A adoção das Regras de Mandela pela ONU e a participação ativa do Brasil na sua elaboração reforçam o compromisso do país com a dignidade e os direitos humanos dos presos.

Contudo, a aplicação prática desses princípios ainda enfrenta desafios significativos. A superlotação das prisões, as condições degradantes e a falta de oportunidades reais de trabalho e educação para os presos são problemas persistentes que dificultam a efetiva ressocialização e reintegração dos condenados na sociedade.

Portanto, embora o arcabouço normativo atual represente um avanço significativo em relação aos períodos anteriores, é crucial que as políticas públicas e as práticas penitenciárias sejam constantemente revisadas e melhoradas para garantir que a dignidade humana seja plenamente respeitada e que a pena cumpra seu papel ressocializador de maneira eficaz.

Em suma, compreender a evolução histórica do Direito Penal é fundamental para apreciar os avanços e reconhecer os desafios ainda existentes. A trajetória do sistema penal, marcada por transformações significativas, nos alerta para a necessidade contínua de humanização e justiça na aplicação das penas, garantindo que o objetivo final do Direito Penal – a proteção da sociedade e a ressocialização dos infratores – seja alcançado de forma digna e eficaz.

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1Mestre em Direito, Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional – CESUPA. Professora graduação e pós-graduação CESUPA. Advogada Escritório André Eiró Advogados.
2Graduado em Direito pelo CESUPA. Assessor no Tribunal Regional Eleitoral do Pará.
3Graduado em Direito pela Faculdade Ideal. Servidor da Justiça Federal (Tribunal Regional Federal da 1ª Região) – Função de Oficial de Gabinete.