A ESCRITA DE UMA MULHERZINHA NA UNIVERSIDADE

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7864987


Weslley da Silva Rodrigues¹
Shara Jane Holanda Costa Adad²


RESUMO

Este artigo é parte da minha dissertação e nasce de implicações pessoais e acadêmicas, tendo como base os trajetos e as performatividades de jovens gays nos contextos escolares. Objetivo geral analisar a percepção de si de jovens gays nas performatividades presentes nos trajetos escolares de resistências que problematizam os valores pré-estabelecidos e rompem com a invisibilidade na escola. O estudo tem como Abordagem a Sociopoética. O corpo gay é atravessado por cicatrizes, práticas e pedagogias da exclusão, seja na escola, seja fora dela, esse corpo está mais suscetível à violências na relação consigo mesmo, com a família e com outros; performatividades que problematizam os valores pré-estabelecidos; percepções de si.

Palavras-chave: performatividades; trajetos de resistências; jovens gays; contextos escolares. Sociopoética.

ESCRITA DE MULHERZINHA INCOMODA FAZENDO MANIFESTAÇÃO POLÍTICA.

Como fazer para iniciar? Não sei! A incerteza é o chão para qualquer pesquisador/a nessa vivência/experiência acadêmica, principalmente intensificado com o ensino remoto e o isolamento/distanciamento social – medidas preventivas para o enfrentamento da pandemia do COVID-19. Dessa forma, foi preciso cuidar dos familiares doentes. Adoecemos! Entramos em crise de ansiedade. Perdemos inúmeras vidas.

Os corpos passaram por mudanças. Ausência do convívio social foi doloroso. Um caminhar, no qual, se perde e se encontra neste andar. Por isso, precisamos rever as ações e as relações humanas, entender que há pessoas se recuperando de coisas sobre as quais não falam. Nem todos os corpos partem do mesmo ponto – isso é uma leitura transformadora de realidades.

A pandemia nos torce.  Para isso, precisamos transversalizar na produção escrita para problematizar práticas, modos e “reinventar” novos sentidos, co-criando com corresponsabilidade e o corpo inteiro – minha escrita é permeada de afetos, emoções e subjetividades. Estou falando a partir do meu lugar rompendo com o academicismo clássico e dominador que pouco se importa com as experiências dos corpos.

Escrever, para mim, é dançar. Algo que me dá prazer e me faz sentir vibrante. Porém, ao ouvir o discurso machista do meu orientador no período da graduação: “você escreve como uma mulherzinha. Cheio de emoção. Parece que estou lendo um poema. Seja técnico. O que a gente sente não importa para academia. É balela”. Esse comentário me bloqueou. Não foi fácil prosseguir na pesquisa. Mas resisti.

 Sou Especialista em Dança e Consciência Corporal e em Docência para o Ensino Superior. Ao escrever este texto passei por dificuldades e a fala do professor tornou-se um gatilho produtor de medo. E, dessa vez, a abordagem qualitativa me escolheu para trilhar com ela. O método da Sociopoética foi um encontro. Ele me autoriza a ser quem eu sou – e levando em conta os seus cinco princípios eu tenho certeza de produzir um potente estudo.

Desse modo, falando do meu lugar, compreendo que no caminhar existem as formas de “governabilidades” que implantam necropolíticas, as quais, podem ser caracterizadas como uma gestão política de morte que silenciam vozes e ditam corpos que podem viver – isto é, um conjunto de dispositivos e de técnicas que decidem quais corpos são matáveis e quais não são. Um reflexo disso é o número de 689 mil mortes pela Covid-19, conforme o Painel do Coranavírus Brasil de 2022. Atualizado em: 24/11/2022 às 12h34min. Acesso em: https://covid.saude.gov.br/.

 Assim, o andar incerto é um território com limites, porém um corpo tem as suas fronteiras. Lugar de comunicação, trocas e produção de outros mundos. Por isso, para pensar no início desse trajeto de pesquisa, foi necessário voltar-me ao meu corpo – minhas marcas/cicatrizes visíveis e invisíveis, a fala, a expressão corporal, o sentir, o dançar que vivem em mim, que produzem vida, arte, cultura e conhecimentos apoiado em minhas vivências e experiências.

Em virtude disso, de antemão, peço a quem for ler/ouvir/apreciar este estudo – permita-se dançar de olhos vendados3. Siga o fluxo do movimento. Permita-se desnudar o corpo para uma experiência vívida, livre de julgamentos e sem a expectativa de ofertar soluções. Proponho, portanto, que se deixe fruir na produção coletiva do sentir-pensar a vibração de novos mundos, outras maneiras de problematizar o tema-gerador: o jovem gay.

Na ação de escrever esta dissertação, tendo como base as minhas vivências e experiências, sinto-me pesquisando com o corpo inteiro, olhando para o mundo – uma pesquisa encarnada, tão visceral, como se eu utilizasse um bisturi para dissecar e apresentar – meu corpo. Rabiscos em mim/nós. Pesquisar com/entre jovens gays é dar passagem de voz, por meio da qual, podem definir suas realidades e contar suas histórias, apresentar suas experiências distintas e outras perspectivas. Não quero enfatizar a dor. Mas sim, anular as amarras, violências e silêncios guardados comigo, com o outro e o mundo ao nosso redor.

Para isso, foi necessário conhecer a temática “juventudes” e seus atravessamentos. Nesse processo foi extremamente significativo participar do curso de Extensão Juventudes, Escola e Projetos de Vida na BNCC, pois estudar as juventudes é criar elos – a partir dela podemos fazer relações com a infância e a vida adulta, afinal, as/os jovens são a sociedade. Os coletivos juvenis contemporâneos são sujeitas/os de direito, seres políticos que produzem torções nos padrões culturais normativos, na sociedade, na política principalmente na educação.

 Por essa razão, como pensar escola e as/os estudantes sem conhecer suas diversidades, diferenças e vulnerabilidades? Essa pergunta me instiga. Afinal, nenhum/a docente em meu trajeto escolar buscou conhecer minha história – saber sequer um pouco sobre mim – as minhas vivências e experiências parecem não ter importância para escola.

Afirmo que não aprendi na escola, tampouco na Universidade (formação inicial), a escutar e cuidar das pessoas, principalmente a conhecer suas histórias de vida. Atualmente, me sinto; reaprendo a ser aluno e professor com o Programa de Pós-graduação em Educação, especialmente com auxílio de minha orientadora Professora Dra. Shara Jane Holanda Costa Adad.

 Reconhecer-me nessa dinâmica e interagir com as vivências e experiências no mestrado é uma transgressão – outra pedagogia. Uma pedagogia que faça pensar e inventar uma formação mais coletiva. Observo nas relações educacionais a existência de barreiras divisoras da educação assim como também da sociedade – uma delas é viver em bando. Semelhante a um imenso rizoma – uma planta, da qual, as raízes buscam nutrientes para a criação de novos ramos, estes propícios à troca de saberes e à interação dos pares com as diferenças.

 O modelo de formação utilizado na minha licenciatura em Educação Física me ensinou a servir ao capitalismo e a reproduzir o ideal de que é preciso superar todos os obstáculos, inclusive eu mesmo, para conseguir o “sucesso” – todavia não sei se me tornei uma máquina produtora desse formato. Mas havendo me tornado, estou empenhado em reaprender novos modos e práticas que possibilitem criar outra educação e novas pedagogias transformadoras de novos mundos, capazes de perceber as diversas formas de existências e de vir a ser.

A estrutura escolar vigente não se importa com todos os corpos, mas com a capacidade de produção oferecida por eles para o sistema – a educação enxerga/avalia esses corpos de forma numérica e conceitual; ensinando-os à/na individualidade, objetividade, competição e à/na exclusão e não para aprenderem a/na coletividade.

 Por isso, eu escolhi ser docente e fazer uma prática sensível diante do que está pré-estabelecido. Na verdade, meu corpo não é o padrão para a caixinha pedagógica – sou um jovem do interior, gay, gordo e empobrecido. Parafraseando a canção de Gloria Groove “E a bonequinha/ Tá cheia de graça/Ela não brinca/Ela pirraça/Ela é zika/Ela esculacha/A bonekinha/ Tá fora da caixa/”.

Aproveito para explicar que a “bonekinha” integra o quadro de docentes efetivas/os da Prefeitura Municipal de Teresina-Piauí, onde ministro os componentes curriculares de Educação Física, Dança e Teatro na Escola de Tempo Integral Marcílio Flávio Rangel para vinte e duas turmas do 1º ano ao 9º ano do ensino fundamental. 

Enfatizo que a gestão municipal indeferiu meu processo de afastamento para capacitação profissional. O sistema, por mais que dificulte a formação continuada de professoras/es, não foi capaz de impedir a realização do meu sonho de ser estudante do Programa de Pós-Graduação em Educação – UFPI.

Para esse passo inicial, utilizo o meu memorial produzido em 2021 na disciplina de Análise Institucional e Cartografias das Práticas Instituintes de Pesquisa em Psicologia cursada no Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Delta do Parnaíba – UFDPAR, no qual relato as minhas linhas/rabiscos: cruzadas, espiraladas e labirínticas de uma trajetória de vida e experiência artística com performatividades, criação e resistência de ser quem sou, mas que aprendeu também a silenciar seus desejos e prazeres conforme o modelo patriarcal – que estabelece o poder do homem “macho” nas relações sociais. E, posteriormente, fiz uso desse diário de itinerância, o qual se tornou uma espécie de figurino utilizado nesta dança.

Contudo, tais linhas/rabiscos tornam-se mais visíveis agora, tendo em vista a desconstrução lógica binária que, por muito tempo, me fez olhar as gays pessoas na perspectiva de inferioridade (vestígios do legado colonial). Quando o ideal de “homem” é contrariado, sucede-se um estranhamento o qual acarreta essa dualidade estrutural e delineia os caminhos marcados pelos interesses dominantes “não humanos”. Logo, necessitava me converter – vivia no pecado, à margem de não ter salvação. Consequentemente, foram edificados círculos labirínticos no meu mover – um corpo colonizado/colonizador, homofóbico – isso me faz questionar sobre o lugar de onde sou.

Essa ideia me faz refletir acerca das ações de invisibilidade que adormecem meu corpo como, por exemplo, nas muitas vezes que me senti incapaz de concluir algo em minha vida, seja por não acreditar na minha capacidade por achar que meu conhecimento é inferior se comparado às performances de professores e estudantes; seja pela tentativa da sociedade tentar naturalizar a ausência de pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, Intersexo, Assexual e o + é utilizado para incluir outros grupos e variações de sexualidade e gênero –LGBTQIA+ em lugar de destaque. Quantas vezes eu chorei conversando com Deus: “Senhor, por que eu sou assim”?

A ausência de representatividade LGBTQIA+ na minha trajetória social e escolar me despontencializou fisicamente e emocionalmente – passei a ter uma postura heteronormativa, insegura, pensativa e dispersa. Quando estiver em algum espaço e houver poucos do seu bando, incomode-se. É preciso se posicionar para que outros possam ocupar seus lugares, de ordem pública ou privada, a fim de garantir visibilidade, o acesso, a permanência e o respeito a todos e por todos.

Desde o início da minha trajetória, carrego as memórias que convivem e conviveram em meu corpo juntamente com um misto de alegria e dor. Então, opto por relatar essas duas vivências, pois ocultando uma e edificando outra, eu não seria capaz de abordar minha identificação de resistência cultural, relacionando-a à minha linha de educação diversidade/diferença e inclusão no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEd) da Universidade Federal do Piauí. Para possibilitar esse “link” ao passado, foram necessárias cinco tentativas até a tão sonhada aprovação do mestrado.

Antes de tudo, eu preciso gritar! Para isso, trago o trecho da canção “O que se cala” de Elza Soares:

O que se cala
“Mil nações moldaram minha cara
Minha voz uso pra dizer o que se cala
O meu país é meu lugar de fala”.

Aproveito, para por meio da música, defender meu lugar de fala e de outros corpos, os quais o sistema tenta silenciar e apagar mediante práticas, padrões e tantas outras formas de segregar, rotular e impedir o nosso andarilhar – meu corpo gay é uma afronta por onde ele passa. Nossa juventude quer gritar, quer falar! Se preciso for, ela irá vomitar. A luta pelo direito à Educação, Saúde, Cultura e o Bem viver deve ser incessante. Com o objetivo de ocupar as escolas, as Universidades, seus currículos, suas práticas e bibliografias – chega de tentar calar e invisibilizar corpos, histórias e experiências dos jovens gays.

Eu fui uma criança que não brincou. Mergulhado em repressões que me faziam invisibilizar meu ser, também absorvia preocupações do ambiente de insegurança construído pela relação conflituosa entre meus pais. Os meus primeiros brinquedos foram responsabilidade familiar e a preocupação em “ser alguém” – tive que crescer de forma precoce. Meu pai chegava em casa alcoolizado após dois ou três dias de farras. Minha mãe não tinha o direito de fazer qualquer reclamação.

Cresci acompanhando o sofrimento e ouvindo as lamentações da minha mãe. Passamos por muitas necessidades, seja pela falta de alimentação, seja pela ausência de afeto, respeito e cuidado. Meu pai operava a relação conjugal e familiar de forma machista – um “macho escroto” construído pelo patriarcado e treinado a pensar que a mulher é submissa ao homem – logo, ela deve aguentar as violências e abusos em silêncio, tudo em nome do compromisso selado no matrimônio para manter a família.

Como resultado, meu corpo passou por transformações, um dançar desencontrado que se constituiu mutante – um bicho camuflado, observador, silencioso e feroz ao se defender. Eu precisei me camuflar para me adaptar e subsistir às violências e preocupações na infância. Então, me questionava: como ter o meu pai na condição de referência/espelho? Manuel de Barros disse:

Quando eu nasci
o silêncio foi aumentado.
Meu pai sempre entendeu
Que eu era torto
Mas sempre me aprumou.
Passei anos me procurando por lugares nenhuns.
Até que não me achei – e fui salvo.
Às vezes caminhava como se fosse um bulbo. (Manuel de Barros)

A escola me ensinou que a palavra pai era sinônimo de herói/melhor amigo/protetor. Porém, percebo que a história, a cultura, a sexualidade e a escrita é uma invenção. Inclusive, a escrita dá sentidos, significados e expectativas às palavras que destoam da exatidão dos fatos, vivências e experiências – o que há de fato é um jogo de poder por meio do discurso. Quem pode falar? A palavra viva torna-se morta conforme o ditar dos interesses que circulam ao redor do dominador.

Contudo, para obter essa percepção, não foi preciso fazer leitura de livros ou estar em sala de aula, simplesmente bastou entrar na frente do meu pai, o qual estava com uma colher de pau na mão, para defender minha mãe de uma agressão física – Eu, criança de oito anos de idade. Pequeno. Indefeso.

Nesse trajeto de criança me indagava: se eu era o problema da minha família; Ou se a minha existência era o motivo para tanto sofrimento. Afinal, era nítida a indiferença que meu pai a mim dispensava. Sem ele, inventei um campo de fortaleza dentro de mim – uma armadura de proteção. Eu me fiz o meu próprio pai. Também pai de minha irmã. Um amigo leal da minha mãe. Assumi uma responsabilidade/papel que não me pertencia, que não deveria ser para um filho ou uma filha na infância ou na adolescência.

Quando ganhei uma bicicleta do meu pai, imaginei que seria uma forma de estarmos juntos. Um novo recomeçar. Porém, ocorreu algo que se torna fora da lógica: foi como ganhar alguma coisa, mas não a possuir completamente. Novamente, com ausência dele eu aprendi a andar de bicicleta. Quantas tentativas e quedas até eu conseguir me equilibrar e sair do lugar.

Ressalto que caí, caí e caí. Ralei os meus joelhos – chorei! Quantas vezes eu olhei para trás, (pare, respire e imagine). Esperei alguém me incentivar. Falar que a dor iria passar. “Filho, não desista! Estou Aqui!” Aprendi a secar sozinho as lágrimas que percorriam minha face e busquei ressignificar ausência do meu pai: ele realizava um trabalho braçal em decorrência do meu avô ter falecido quando meu pai era apenas um bebê; minha avó ficou viúva com treze filhos, não sendo capaz de possibilitar a eles a oportunidade de estudar. Sim, meu pai é analfabeto do mesmo modo que também seus pais não tiveram acesso ao estudo. Logo, diante desse contexto entendo ausência dele. Todavia, atualmente a nossa relação passou por boas mudanças e, aos poucos, estamos resgatando e construindo os vínculos entre pai e filho. Mas o patriarcado e o preconceito me impediram de ter uma infância e adolescência “felizes”.

Afirmo que minha vontade de aprender e me superar foram maiores do que as dificuldades que me forçavam a desistir. Peguei minha bicicleta e continuei o meu desafio em busca de mais conhecimento. Nessa fase da vida eu decidi olhar para o mundo como artista – “é um olhar para baixo que eu nasci tendo”. (Manoel de Barros).

Nesse universo, compreendo as juventudes como um dos seguimentos que são afetados por práticas e concepções as quais foram naturalizadas nas relações sociais e institucionais ao longo de nossa história e que ficam bem evidentes em nossas reminiscências. Apesar disso, o resultado foi uma metamorfose – transformação de vida4. E, nesse contexto, “a condição de ser afetado, é também o lugar onde algo estranho pode acontecer, onde a norma é rechaçada ou revisada, ou onde começam novas formulações de gênero” (BUTLER, 2014, p. 7, grifos nossos).

Assim, na maioria das vezes, as juventudes LGBTQIA+ são retratadas de maneira subalternizada ou então reduzida à condição de impuridade, revelando-se, dessa maneira, que os espaços na sociedade eram distribuídos a partir do pertencimento cis-heteropatriarcado de cada pessoa ou de cada grupo de pessoas. Dentro do universo das desigualdades, a juventude LGBTQIA+ tem sido um dos grupos que sofre os impactos desse processo que foi institucionalmente naturalizado por práticas, currículos e políticas públicas.

Ao analisar os diferentes recortes (etário, etnia, gênero), observo que há um retrato de como as práticas discriminatórias foram utilizadas para culpar essas comunidades pelo fracasso delas, por não aproveitarem as regalias oferecidas pelo sistema. “Muitas dessas imagens ilustravam os livros didáticos, outras circulavam de outras formas: cartazes, revistas, jornais, novelas e programas humorísticos” (OLIVEIRA, 2017, p. 21).

Nesses programas humorísticos, os “risos” tornaram-se “chacotas” – violências contra pessoas com deficiências, pretas, gordas, LGBTQIA+, isto é, que acabam repercutindo como sinônimos de desprezo, fraqueza, limitação e submissão, em uma sociedade colonizada como se as sexualidades e os “corpos diversos” fossem insanos, abjetos e anormais. Logo, sua participação deveria ser “cancelada” das relações com os espaços sociais e de “escolarização”. Isso reafirma a necessidade de compreender a sociedade enquanto constituída de corpos diversos5, logo, onde há resistência, há poder.

A comunidade LGBTQIA+ é um movimento político e social que defende as diversas sexualidades e formas de amar, bem como buscar mais representatividade e direitos para essa comunidade. O seu nome demonstra a sua luta por mais inclusão e respeito às diversidades/diferenças. Cada letra representa um grupo de pessoas que sofrem diferentes tipos de violência simplesmente pelo fato de não se adequarem àquilo que foi normatizado como sendo o “padrão” na sociedade.

A partir da identidade de gênero rememoro a experiência vivenciada em (2020) que me fez produzir o projeto inicial deste estudo. Enquanto docente da área de conhecimento da dança presenciei a violência e a discriminação de alguns professores/as e alunas/os e, inclusive, de uma pedagoga que riram de um jovem por seus “traços afeminados” ao pedir para ser tratado pelo gênero feminino. Nesse momento a pedagoga responde: “ainda não é tempo de você saber se é “menino” ou “menina”! Por isso, dê-se ao respeito!”.

Ou seja, uma reprodução linear das concepções religiosas/sexuais/generificadas de Damares Alves (2019), Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos do Governo Bolsonaro nas quais “menino veste azul e menina veste rosa”. Comprovando-se, então, a violência imposta às crianças/jovens gays em contextos escolares.

Esse fato foi exposto na sala de professoras/es com tom de “riso”. Ratificando que a sociedade contemporânea se constituiu sob um processo heteronormativo6, sendo a educação disciplinar uma das instâncias pedagógicas da educação básica. Ressalto que alguns colegas de trabalho acharam isso muito engraçado! Esse riso foi o mote para que eu fizesse uma reflexão, sobretudo, se a expressão “dar-se ao respeito” significaria o silenciar de corpos. Em vista disso, o “poder” controla e disciplina minuciosamente os corpos e não precisa de um espaço fechado para funcionar e atingir a/o sujeita/o.

Por isso, saliento que foi difícil permanecer na minha trajetória escolar. Agradeço aos meus pais: uma mulher com o ensino fundamental, merendeira escolar e um homem analfabeto, carpinteiro, cujos pais também não tiveram oportunidade de estudar – uma benzedeira e um vaqueiro; meus avós maternos eram um agricultor rural e uma dona do lar; e à minha madrinha, irmã de minha mãe, uma empregada doméstica não alfabetizada. Até o exato momento eu sou o único da minha família que tem um curso superior.

Aproveito para agradecer por ter participado de programas como: Programa de Transporte Escolar Municipal Gratuito – Vai e Volta; usuário do Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem Adolescente), para o qual, posteriormente, retornei com formação superior e tive a oportunidade de atuar na coordenação, mas com outra nomenclatura: Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos de 15 a 17 anos (SCFV). 

Esse é meu lugar – um jovem nascido no dia 24 de fevereiro de 1992 na zona rural de Piripiri-Piauí, que segundo (ABRAMO, 1997, grifo nosso) “as juventudes presentes nessa fase histórica se configuram como uma categoria social, formada por símbolos contemporâneos e marcada pelo resgate de valores à sombra dos valores adultos”.

No entanto, através da dança comecei a reivindicar direitos e ocupação de espaços, sejam eles a escola, os programas sociais, a universidade, a rua, inclusive, na produção dos conhecimentos – a violência, invisibilidade e os silenciamentos de corpos nos incentivaram a estudar e pesquisar para a educação, diversidades/diferença.

A dança foi minha fuga! Um encontro com a potência do meu corpo. A possibilidade de pertencimento na educação com/entre jovens, o fazer artístico desvalorizado pelas instituições, sobretudo, a escola, mas que nos trouxe a realização acadêmica e profissional.

Destarte, o mover-se é o meu novo ciclo com o ingresso no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Piauí – UFPI, na linha de educação diversidades/diferença e inclusão. Mas, foi no habitar do Núcleo de Estudos e Pesquisas em “Educação, Gênero e Cidadania” – NEPEGECI e o Observatório das Juventudes e Violências na Escola – OBJUVE, onde suscitou em mim o sentimento de estar vivo!

Ou seja, estar vivo, isto é, reimaginar o mundo em cada gesto, palavra, relação com o outro, modo de existir – toda vez que a vida assim o exigir. (ROLNIK, 2018, p. 195). Principalmente, por estar descontruindo um corpo marcado com/entres sociopoetas, afetos e poéticas, aproveitando para expressar a importância do NEPEGECI e do OBJUVE nesse caminhar.

Investigo as/os jovens estudantes porque, normalmente, elas/es têm expressivo potencial criador pois apresentam novas concepções culturais, sociais e políticas; e provocam a sociedade no que diz respeito aos desafios do mundo globalizado. Por conseguinte, as juventudes propõem diferentes formas de ver, entender e se relacionar com a vida. Seja por meio das redes sociais, produções musicais, danças, dublagem de vídeos; seja por meio de outras técnicas que possibilitam encontros, modos, linguagem e comunicação.

Desse modo, levantamos como problema de pesquisa:

O que os jovens gays pensam sobre si e quais são as performatividades presentes nos trajetos de resistências que problematizam os valores pré-estabelecidos e rompem com a invisibilidade nos contextos escolares? 

O problema teve como desdobramento as seguintes questões:

a) Qual a percepção de si de jovens gays nas performatividades presentes nos trajetos escolares de resistências que problematizam os valores pré-estabelecidos e rompem com a invisibilidade na escola? b) De que maneira as performatividades de jovens gays presentes nos trajetos escolares de resistências que problematizam os valores pré-estabelecidos e rompem com a invisibilidade na escola?

Com efeito, o objetivo geral é: analisar a percepção de si de jovens gays nas performatividades presentes nos trajetos escolares de resistências que problematizam os valores pré-estabelecidos e rompem com a invisibilidade na escola. Os objetivos específicos: Identificar a percepção de si de jovens gays nas performatividades presentes nos trajetos escolares que produzem resistências aos valores pré-estabelecidos nos contextos escolares, conhecer a percepção de si de jovens gays nas performatividades presentes nos trajetos que problematizam a invisibilidade nos contextos escolares.

Em vista disso, o interesse pelo aprofundamento no estudo desta temática recai sobre a importância na construção social da identidade, em especial, de jovens como atores sociais criativos, no consumo cultural e nos movimentos sociais – isto é: no caráter distintivo das culturas juvenis locais num mundo globalizado. Assim sendo, o assunto em estudo sobre os jovens gays contribuirá significativamente para fomentar reflexões sobre a representação das diferenças; romper com os valores pré-estabelecidos e modos de invisibilizar, silenciar e matar pessoas LGBTQIA+ quando não as desconsideram vidas que importam.

Como diz (BUTLER, 2014) se algumas vidas não são percebidas como vida, “a dimensão ética é o que nos permite exercer a liberdade e resistir” como poesia. Logo, reconhecer as multiplicidades é romper com tecnologias que fazem morrer – não é só o Estado que aplica a injustiça, indiferença e a violência, mas também o sujeito. Portanto, Lugomes afirma ser a tarefa descolonial: “a necessidade de mostrar as contribuições epistemológicas produzidas por sujeitos que habitam o fora do pensamento patriarcal colonial moderno”. (LUGONES, 2019, p. 371).

Assim, Heloísa Hollanda com o livro Explosão Feminista lançado em 2018, pondera:

A existência de uma nova geração política, na qual se incluem as feministas, com estratégias próprias, criando formas de organização desconhecidas para mim, autônomas, desprezando a mediação representativa, horizontal, sem lideranças e protagonismos, baseadas em narrativas de si, de experiências pessoais que ecoam coletivas, valorizando mais a ética do que a ideologia, mais a insurgência do que a revolução. Enfim, outra geração. (HOLLANDA, 2018, p. 12, grifo nosso).

No destaque: “enfim, outra geração” pode sintetizar a potência das juventudes contemporâneas diante dos enfrentamentos, desafios e padrões pré-estabelecidos pela sociedade, fazendo uma comparação da sua geração feminista jovem.  Neste estudo optei por utilizar a palavra juventudes (no plural), no intuito de dar maior visibilidade às diversidades/diferenças desse grupo, rompendo, pois, com as recorrentes homogeneizações de jovens em documentos, leis e políticas públicas. De acordo Juarez Dayrell:

Construir uma noção de juventude na perspectiva da diversidade implica, em primeiro lugar, considerá-la não mais presa a critérios rígidos, mas sim como parte de um processo de crescimento mais totalizante, que ganha contornos específicos no conjunto das experiências vivenciadas pelos indivíduos no seu contexto social. Significa não entender a juventude como uma etapa com um fim predeterminado, muito menos como um momento de preparação que será superado com o chegar da vida adulta. (DAYRELL, 2003, p. 42).

Em decorrência da homogeneização de jovens, os contextos escolares revelam situações, procedimentos pedagógicos e curriculares estreitamente vinculados a processos sociais. Por meio destes, desdobram-se e aprofundam-se a produção de diferenças, distinções e clivagens sociais que, entre outras coisas, interferem, tanto na formação e desempenho escolar quanto no “corpovida”, graças aos enunciados dominantes de “sucesso” e de “fracasso” escolar. Esses enunciados atribuem culpabilidade às famílias ao mesmo tempo em que retiram a responsabilidade do Estado referente à garantia da qualidade da educação, equidade, diversidades, além de capturar e governar a potência desestabilizadora da diferença.

Por isso, quando falamos das diferenças na Educação, precisamos ter cuidado para não querermos administrá-la, pois isso significa capturar, desativar e governar a potência desestabilizadora da diferença. E como entender essas duas palavras–diversidade e diferença–no seio da discussão da democracia, da justiça social e da inclusão na Educação? As palavras diferença, diversidade e tolerância na Educação, por vezes tão gastas que perdem seu potencial de possibilitar outros modos de educar, são incorporadas nas discussões educacionais, mas trazem poucas mudanças.  (ADAD; NASCIMENTO; MARTINS, 2020, p. 3).

Advogo que a articulação social da diferença, na perspectiva das chamadas “minorias”, é um todo complexo em processo de negociação e de resistência à heteronormatividade, que tem por objeto o juvenil em criação e surge em momentos de transformação histórica sendo, portanto, merecedora de pesquisa e análises cada vez mais aprofundadas.

Penso, ainda, que esta pesquisa se faz importante para que aconteça uma reflexão sobre estratégias de como manter o homossexual no ambiente escolar; e um currículo que dê passagem às pessoas LGBTQIA+, a fim de que consigam chegar ao final da educação básica e; descortinem novas perspectivas e inserções educativas.

A propósito, meu interesse em fazer essa investigação na escola Unidade Escolar Cassiana Rocha nasce da minha própria experiência por ocupar esse espaço ao longo de anos, experimentando a escola não apenas como um local de aprendizagem e diversidade de corpos, mas também um ambiente de práticas discriminatórias e violências em formas diversas.

A finalidade da cartografia do mapa chão é andarilhar o percurso das diversidades de corpos, agenciamentos de afetos, processos de criação e de resistências nas práticas educativas com/entre jovens como produção de novos conceitos e novas maneiras de problematizar na contemporaneidade.

 A pesquisa foi realizada em escola pública, a Unidade Escolar Cassiana Rocha, com jovens estudantes gays, do 2º ano do ensino médio e com idade de 18 anos, na cidade de Piripiri, Piauí, Brasil. O grupo-pesquisador é composto por co-pesquisadores indígenas, quilombolas e brancos.  Utilizei o formulário de inscrição para a identificação da orientação sexual gay e etnia dos participantes que será descrita no capítulo metodológico.

Para a concretização deste estudo, ancoro-me no Método da Sociopoética, abordagem filosófica de pesquisa grupal que percebe e valoriza os saberes populares e acadêmicos iguais em direitos e que utiliza de dispositivos artísticos para pesquisar com o corpo inteiro e produzir coletivamente outros pensamentos, confetos (conceitos + afetos), problemas e personagens conceituais (GAUTHIER, 2012; ADAD, 2014).

Ao ler este estudo, espero que as/os leitoras/es possam dançar com seus corpos por meio de duções (são os vários movimentos oculares do/a leitor/a ao atribuir plurissignificação ao texto), da escrita performática, imagens, poemas e músicas de artistas gays. Digo que esta pesquisa está repleto de dispositivos artísticos, novas práticas, outros pensamentos, confetos e, acima de tudo, resistências. Ao escrever cada linha estou performando e produzindo, juntamente com os jovens, o meu corpo-giz. Ou seja, este texto é o produto do compartilhamento de experiências vivenciadas por mim, bem como, pelo/com o grupo-pesquisador.

REFERÊNCIAS

ABRAMO, Helena Wendel. Jovens e cidadania: a tematização da juventude na ação social e no debate político contemporâneo. São Paulo, 1997. 20 p.

ADAD, SJHC; NASCIMENTO, LCP do; MARTINS, LR Aprendizados em educação e as diferenças – resistência ao heteroterrorismo cultural: que só os beijos tapam a boca. Investigação, Sociedade e Desenvolvimento, [S. l.], v. 9, n. 8, pág. e614985928, 2020. DOI: 10.33448/rsd-v9i8. 5928.

Disponível em: https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/5928. Acesso em: 6 fev. 2023.

BARROS, Manoel de. O guardador de águas. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.

BUTLER, Judith. Repensar la vulnerabilidad y la resistencia. XV Simpósio de la Asociación Internacional de Filósofas, Madri, 2014.

DAMARES: “Menino veste Azul e menina veste Rosa”. Uma Nova Era? Youtube (22 nov. 2021). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6myjrue81U&fbclid=IwAR22l0QRbA5j_Y_28t5EJWJSffRXHT0Lnxdm4QGLvJrD0Wx7-3Jetna99E. Acesso em: 22 nov. 2021.

DAYRELL, Juarez. O jovem como sujeito social. Revista. Brasileira Educação, Rio de Janeiro, n. 24, p. 40-52, dic. 2003.  

GAUTHIER J. Notícias do rodapé do nascimento da sociopoética. Mimeografado, 2003.

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³A modernidade nos deixou prejuízos para o nosso enxergar.
4O prefixo “trans” – que seja entendido por “jovens gays”, emerge e se destaca como uma categoria subversiva por instaurar, diante das normas estabelecidas, fatores que possibilitam novas vivências e tensionam toda a cena do contexto social, posicionando suas ações e refutando a “heteronorma” ou qualquer imposição social preestabelecida. Assim, o sufixo “formação” – a criação e resistências no processo de formação.  A palavra “vida” nesse contexto deve ser compreendida “vida-arte”, experiências de juventudes que tentam transformar realidades por meio da arte.
5Corpos diversos: corpos não normativo-dissonantes.
6Processo heteronormativo: é a ideia de que apenas relacionamentos heterossexuais – isto é, entre pessoas de sexos opostos – são considerados corretos ou normais.

¹Mestre em Educação (UFPI), Professor Efetivo da Prefeitura Municipal de Teresina – Piauí, membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em “Educação, Gênero e Cidadania” – NEPEGECI e o Observatório das Juventudes e Violências na Escola – OBJUVE. E-mail: Weslley_rodrigues02@hotmail.com; Universidade Federal do Piauí –UFPI; https://orcid.org/0000-0002-4831-4290
²Doutora em Educação, Professora Associada da Universidade Federal do Piauí – UFPI, Integra o Programa de Pós-Graduação em Educação/UFPI, Coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas em “Educação, Gênero e Cidadania” – NEPEGECI e o Observatório das Juventudes e Violências na Escola – OBJUVE. E-mail: shara_pi@hotmail.com; Universidade Federal do Piauí –UFPI; https://orcid.org/0000-0001-7711-6325