A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS

THE HORIZONTAL EFFECTIVENESS OF FUNDAMENTAL RIGHTS IN PRIVATE RELATIONS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202505231723


Renato Bernardo Vieira de Azevedo


RESUMO

O presente trabalho analisa a incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas, com ênfase na eficácia horizontal direta, tendo como ponto de partida um caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. A pesquisa parte da problematização sobre até que ponto os direitos fundamentais podem limitar a autonomia privada e garantir a proteção de indivíduos em situação de vulnerabilidade diante de particulares com maior poder econômico ou social. Utiliza-se abordagem qualitativa, com método dedutivo e técnica de análise documental, considerando doutrina, jurisprudência e legislação constitucional. A pesquisa demonstra que a evolução do conceito de direitos fundamentais levou ao reconhecimento de sua aplicação também entre particulares, especialmente em contextos de manifesta desigualdade. A análise do caso concreto e de julgados dos tribunais superiores evidencia uma tendência crescente na jurisprudência brasileira de afirmar a incidência direta dos direitos fundamentais em relações privadas, com base na dignidade da pessoa humana e na busca pela igualdade material. Conclui-se que, em determinadas situações, a aplicação direta dos direitos fundamentais é indispensável para garantir a justiça social e o pleno alcance dos objetivos constitucionais.

Palavras-chave: Direitos fundamentais. Eficácia horizontal. Relações privadas. Igualdade. Dignidade da pessoa humana.

1 INTRODUÇÃO

A evolução histórica dos direitos fundamentais, inicialmente concebidos como um conjunto de garantias individuais contra o arbítrio estatal, ampliou-se a ponto de questionar se tais direitos podem incidir também nas relações privadas. Em especial, verifica-se a necessidade de compreender a eficácia horizontal desses direitos, ou seja, sua aplicação entre particulares, quando está em jogo a proteção de indivíduos em condição de manifesta vulnerabilidade frente a agentes privados com elevado poder econômico ou social.

O tema da eficácia horizontal dos direitos fundamentais tem sido objeto de intensos debates doutrinários e jurisprudenciais, especialmente diante do fortalecimento do papel do Estado como promotor da justiça social. Em um contexto marcado pela crescente complexidade das relações privadas e pelo avanço de grandes grupos econômicos, surge a necessidade de repensar o alcance da proteção constitucional dos direitos fundamentais. A problematização central consiste em saber até que ponto tais direitos devem vincular os particulares e como isso se compatibiliza com a autonomia da vontade.

A relevância da pesquisa decorre da própria força normativa da Constituição Federal de 1988, que consagra valores como a dignidade da pessoa humana, a igualdade e a justiça social, exigindo uma releitura dos institutos clássicos do direito privado. A crescente produção doutrinária e jurisprudencial em torno do tema justifica sua escolha, sendo imprescindível compreender os limites e possibilidades da incidência dos direitos fundamentais nas relações entre particulares.

O objetivo deste trabalho é analisar a aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas, destacando os fundamentos teóricos da eficácia horizontal e examinando como os tribunais superiores vêm decidindo questões que envolvem o conflito entre a autonomia privada e a proteção dos direitos fundamentais. Ao final, será estudado um caso concreto que exemplifica a aplicação da eficácia horizontal dos direitos fundamentais pelo Poder Judiciário brasileiro.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA OU REVISÃO DA LITERATURA

Neste capítulo, buscaremos apresentar a fundamentação teórica que irá embasar a análise da Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais, tema central deste trabalho. Nosso objetivo é construir um referencial teórico sólido, levantando o que já se conhece sobre o assunto a partir de pesquisas publicadas, garantindo uma estruturação conceitual que sustentará o desenvolvimento da pesquisa.

2.1 O Alicerce Doutrinário: Daniel Sarmento e a Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais

A pedra angular de nossa abordagem reside na profunda análise da obra de Daniel Sarmento. Sua doutrina, amplamente reconhecida e debatida no cenário jurídico brasileiro, oferece os pilares conceituais para a compreensão da aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas. Exploraremos suas teses sobre a natureza desses direitos, a distinção entre suas diferentes formas de aplicação e os limites e possibilidades da sua horizontalização. Este referencial é crucial para delinear o escopo da Eficácia Horizontal no contexto do direito brasileiro, permitindo-nos compreender como a dignidade da pessoa humana e outros princípios fundamentais se projetam para além da esfera estatal.

2.2 A Gênese Histórica da Eficácia Horizontal: A Jurisprudência da Suprema Corte Alemã

Para um entendimento completo do tema, é imperativo contextualizar historicamente o surgimento da teoria da Eficácia Horizontal. Remontaremos à jurisprudência da Suprema Corte Alemã, que, pioneiramente, reconheceu a aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. Essa análise histórica não apenas ilumina as origens conceituais da teoria, mas também demonstra a evolução e a necessidade de adaptação dos ordenamentos jurídicos para garantir a proteção integral dos direitos em um cenário de crescentes relações privadas. A compreensão desse marco é fundamental para entender as bases sobre as quais a teoria se desenvolveu e influenciou outros sistemas jurídicos, incluindo o brasileiro.

2.3 Distinção entre Eficácia Direta e Indireta: Perspectivas Comparadas (EUA e Brasil)

Um dos pontos cruciais para aprofundar a discussão sobre a Eficácia Horizontal é a distinção entre as teorias da eficácia direta e eficácia indireta dos direitos fundamentais. Para tanto, faremos uma análise comparativa da jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos e do Brasil. A Suprema Corte americana, com sua abordagem tradicionalmente voltada para a aplicação vertical dos direitos, oferece um contraponto interessante à evolução da doutrina no Brasil, onde a Eficácia Horizontal tem ganhado crescente reconhecimento. Essa comparação permitirá identificar as diferentes abordagens adotadas por essas cortes em relação à aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, evidenciando as nuances e os desafios inerentes à proteção desses direitos em diversas jurisdições.

3 METODOLOGIA

Este artigo explora a Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais, analisando como esses direitos se aplicam nas relações entre particulares, e não apenas nas relações entre o indivíduo e o Estado. Nossa metodologia se baseia em uma abordagem multifacetada, combinando a análise doutrinária com o estudo de casos práticos e a pesquisa comparativa de jurisprudência.

Iniciamos nossa investigação com um aprofundamento na obra do renomado jurista Daniel Sarmento, cuja doutrina oferece um arcabouço teórico robusto para compreender a aplicação dos direitos fundamentais em relações privadas. A partir de suas contribuições, examinamos os fundamentos e desdobramentos da eficácia horizontal no cenário jurídico brasileiro.

Para ilustrar a aplicação prática desses conceitos, realizamos um estudo de caso de uma jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. A análise dessa decisão nos permitiu observar como os tribunais brasileiros têm interpretado e aplicado a eficácia horizontal em situações concretas, revelando os desafios e nuances dessa doutrina na prática forense.

Além disso, nosso trabalho contextualiza historicamente o surgimento da teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, rastreando suas origens na jurisprudência da Suprema Corte Alemã. Essa abordagem histórica é crucial para compreender as bases conceituais e a evolução da teoria em diferentes sistemas jurídicos.

Por fim, estabelecemos uma distinção clara entre as teorias da eficácia direta e eficácia indireta dos direitos fundamentais. Para tanto, recorremos à análise da jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos e do Brasil, identificando as abordagens adotadas por essas cortes em relação à aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas e suas implicações para a proteção desses direitos.

Em suma, nossa metodologia integra a teoria e a prática, a pesquisa doutrinária e a análise jurisprudencial, com o objetivo de oferecer uma compreensão abrangente e crítica da eficácia horizontal dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro e em contextos internacionais.

4 RESULTADOS E DISCUSSÕES
4.1 O QUE É A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS?

A eficácia dos direitos fundamentais é um tema bastante debatido entre os juristas atualmente, afinal, até que ponto o estado pode interferir na vida privada das pessoas? É uma afronta a liberdade individual ou uma garantia contra os mais vulneráveis?

Em regra, sabemos que esta eficácia se restringe as relações entre ESTADO e PARTICULAR. Visto que os direitos fundamentais, principalmente os de primeira geração, foram criados tal qual uma norma protetiva contra as ABUSIVIDADES que o Estado cometia perante os seus “súditos”, estes podem ser exercidos toda vez em que o estado interfere nas liberdades individuais do ser humano. Como descrevem Mendes & Branco (2013, p. 175),A finalidade para a qual os direitos fundamentais foram inicialmente concebidos consistia, exatamente, em estabelecer um espaço de imunidade do indivíduo em face dos poderes estatais”.

Quando os direitos fundamentais surgiram no mundo jurídico, eram enxergados como aqueles ligados à liberdade, os chamados direitos de defesa, ou seja, direitos que exigem uma abstenção (tinham a característica da oponibilidade) do Estado. Os únicos destinatários dos direitos fundamentais eram os Poderes Públicos. Os direitos individuais eram direitos atribuídos as pessoas para que estas tivessem uma maior proteção contra os Poderes Públicos. Como a relação entre os particulares e os Poderes Públicos é de subordinação e não de coordenação, esta eficácia dos direitos fundamentais ficou conhecida como eficácia vertical, em razão desta relação estado-particular ser de subordinação. Esta é a eficácia clássica dos direitos fundamentais. Quando surgiram, estes possuíam apenas eficácia vertical, eram aplicados apenas a essa espécie de relação.

Com o passar dos anos, constatou-se que a opressão e a violência vinham não vinha somente do Estado, mas de outros particulares, visto que estes também abusavam de seus direitos, criando uma instabilidade e desigualdade material na relação.  Então, houve uma mudança na eficácia dos direitos fundamentais. Há instituições no mundo que tem um poder econômico muito maior do que muitos Estados. Então, a idéia de que não só o Estado é órgão opressor dos indivíduos, mas também outros particulares, o que fez com que surgisse a eficácia horizontal, aplicada nas relações privadas, onde os interesses antagônicos são entre particulares.

DANIEL SARMENTO7, em monografia sobre o tema diz que:

“O Estado e o Direito assuem novas funções promocionais e se consolida o entendimento de que os direitos fundamentais não devem limitar o seu raio de ação às relações políticas, entre governantes e governados, incidindo também em outros campos, como o mercado, as relações de trabalho e a família.”

Foi então que o superior tribunal alemão, no julgamento do caso Caso Luth, onde Eric Luth era crítico de cinema e conclamou os alemães a boicotarem um filme, dirigido por Veit Harlam, conhecido direitor da época do nazismo (dirigira, por exemplo, Jud Sub, filme-ícone da discriminação contra os judeus). Harlam e a distribuidora do filme ingressaram com uma ação cominatória contra Luth, alegando que o boicote atentava contra a ordem pública, o que era vedado pelo Código Civil da Alemanha.

Luth foi condenado nas instancias ordinárias, mas recorreu a Corte Constitucional. Ao fim, a queixa constitucional foi julgada procedente, pois o Tribunal entendeu que o direito fundamental a liberdade de expressão deveria prevalecer sobre a regra geral do Código Civil que protegia a ordem pública.

Esse foi o primeiro caso em que se decidiu pela aplicação dos direitos fundamentais também nas relações entre os particulares (drittwirkung, eficácia horizontal).

Com isso, surgiram várias teorias dissertando sobre a eficácia dos Direitos fundamentais, destacando-se a TEORIA DA INEFICÁCIA HORIZONTAL, da EFICÁCIA HORIZONTAL INDIRETA e da mais importante de todas, o norte deste trabalho, a EFICÁCIA HORIZONTAL DIRETA dos direitos fundamentais.

4.2 EFICÁCIA HORIZONTAL INDIRETA

Por esta teoria, como o próprio nome já diz, há uma ineficácia dos direitos fundamentais nas relações particular-particular. É uma teoria adotada fortemente no Direito Americano (jurisprudência e doutrina),  entende-se que os direitos fundamentais tem aplicação somente na relação Estado-Particular, a clássica eficácia vertical.

Essa teoria somente vigora até hoje pois o texto constitucional americano é o mesmo desde 1787 (está em vigor até os dias atuais). Nesta época, os direitos fundamentais garantidos eram direitos de primeira geração, ou seja, direitos de abstenção em que o Estado não poderia arbitrar dos seus cidadãos, direitos de defesa do indivíduo frente ao Estado.

Porém, mesmo nos EUA, criou-se uma teoria para “driblar” essa situação, a teoria do State Action, (Doutrina da ação estatal). Vejamos a explicação doutrinária para esta teoria:

Para Daniel Sarmento, esta teoria simplesmente nega de todas as formas a aplicação da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ou seja, os direitos fundamentais não se aplicariam de jeito algum nas relações entre particulares.

Porém, para Virgilio Afonso da Silva, a teoria da State Action não nega de forma alguma a aplicação dos direitos fundamentais entre particulares, mas tenta, de alguma forma, contornar a falta de regulamentação, sendo a finalidade da doutrina definir em que casos se poderia fazer a aplicação, mesmo que os direitos fundamentais, em regra, não se apliquem às relações entre particulares. O detalhe, segundo o doutrinador, é que não estamos nos referindo a uma doutrina que estabelece de forma sistemática as situações.

Nas palavras do constitucionalista Virgilio Afonso da Silva: “Tentar afastar a impossibilidade de aplicação definindo, ainda que de forma casuística e assistemática em que situações essa aplicação poderia ocorrer.”, essa a finalidade da Teoria da State Action.

Ainda nas palavras do autor: “A equiparação de determinados atos privados a atos estatais.”, é o artifício utilizado para aplicação da eficácia horizontal em determinados atos privados.

4.3 TEORIA DA EFICÁCIA INDIRETA OU MEDIATA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Por esta teoria, os direitos fundamentais podem ter aplicação na esfera privada, em duas vertentes:

Pela primeira vertente, há uma dimensão negativa ou proibitiva, que impede o legislador ordinário de violar os direitos fundamentais através dos comandos normativos. Ou seja, por exemplo, caso o legislador editasse uma lei que proibia o acesso de determinado grupo em uma universidade, esta norma não deveria ser aplicada, visto que violou o direito a igualdade, previsto no artigo 5 da Constituição Federal de 1988.

Já na segunda vertente, pela dimensão positiva, esta impõe ao um dever para o legislador implementar direitos fundamentais através dos comandos normativos. Porém, esta implementação terá de ser ponderada através dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, esta é a teoria que prevalece na Alemanha.

Podemos citar como exemplo o código de defesa do consumidor, a Assembleia Constituinte de 1988, em brilhante ideia, resolveu por bem ordenar o legislador a garantir os direitos dos consumidores através de lei ordinária. Vejamos:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;”

Ou seja, aplicando a teria da eficácia horizontal mediata e através de uma norma de eficácia limitada, o Constituinte de 1988 ordenou o legislador a garantir a defesa dos mais vulneráveis nas relações de consumo!

Tal eficácia foi efetivada reconhecendo a vulnerabilidade da parte mais frágil da relação (Consumidor). Assim é que, foi elaborado o Código de Defesa do Consumidor com o intuito de intervir nas relações de consumo para a proteção do sujeito mais vulnerável, desigual na relação com o fornecedor, de modo a manter o equilíbrio e a igualdade nas contratações.

Podemos citar mais exemplos deste tipo de normal, tal qual o Estatuto do Idoso, O Estatuto da Criança e do Adolescente que contém disposições importantes de proteção, fazendo efetivar na prática o princípio da igualdade material previsto na Constituição Federal, em seu artigo 5º, caput.

4.4 TEORIA DA EFICÁCIA DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Esta teoria, já explicitada de maneira breve nas páginas iniciais, surgiu na década de 50 na Alemanha. Por esta teoria que é o foco do presente estudo, a eficácia é vista de uma maneira mais ampliativa, analisando o texto constitucional e incidindo diretamente estes direitos sem necessitar de uma legislação infraconstitucional.

Ou seja, sempre que a atividade tiver um caráter público, os direitos fundamentais deveriam incidir nas relações privadas. Podemos ligar esse fenômeno a um princípio do Direito Administrativo, o da SUPRAMACIA DO INTERESSE PÚBLICO. Vejamos a lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em sua obra Direito Administrativo, ed. 30º, página 97:

“Com efeito, já em fins do século XIX começaram a surgir reações contra o individualismo jurídico, como decorrência das profundas transformações ocorridas nas ordens econômica, social e política, provocadas pelos próprios resultados funestos daquele individualismo exacerbado. O Estado teve que abandonar a sua posição passiva e começar a atuar no âmbito da atividade exclusivamente privada.

O direito deixou de ser apenas instrumento de garantia dos direitos do indivíduo e passou a ser visto como meio para consecução da justiça social, do bem comum, do bem-estar coletivo.

Em nome do primado do interesse público, inúmeras transformações ocorreram: houve uma ampliação das atividades assumidas pelo Estado para atender as necessidades coletivas, com a consequente ampliação do próprio conceito de serviço público. O mesmo ocorreu com o poder de polícia do Estado, que deixou de impor obrigações apenas negativas (não fazer) visando resguardar a ordem pública, e passou a impor obrigações positivas, além de ampliar o seu campo de atuação, que passou a abranger, além da ordem pública, também a ordem econômica e social. Surgem no plano constitucional, novos preceitos que revelam a interferência crescente do Estado na vida econômica e no direito de propriedade; assim são as normas que permitem a intervenção do Poder Público no funcionamento e na propriedade das empresas, as que condicionam o uso da propriedade ao bem-estar social, as que reservam para o Estado a propriedade e a exploração de determinados bens, como as minas e demais riquezas do subsolo, as que permitem a desapropriação para a justa distribuição da propriedade; cresce a preocupação com os interesses difusos, como o meio ambiente e o patrimônio histórico e artístico cultural.”

Pela lição supracitada, podemos concluir que o Estado após o individualismo do século XIX se preocupou mais em intervir na vida privada, visto que mesmo nesse âmbito podemos observar que as relações não são completamente “horizontais”, mas existe em muitos casos uma “supremacia” de uma parte em relação a outras, grandes empresas e multinacionais não estão em pé de igualdade com as ditas “pessoas comuns”, estas que trabalham 8 horas por dia, enfrentam o transporte público precário, não dispõe de um sistema de saúde que possa atender a suas necessidades. Por essas e outras razões, o Poder Público deve interferir para resguardar os preceitos fundamentais da Carta Magna de 1988. Podemos citar uma série de dispositivos Constitucionais que autorizam a intervenção do poder público para proteger os ditos vulneráveis nas relações jurídicas. Vejamos:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;

II – a cidadania

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V – o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.   (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015).

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

VII – redução das desigualdades regionais e sociais;

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

§ 4º – lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

Vivemos a época do Neoconstitucionalismo, a “livre iniciativa” e a liberdade das partes estão limitadas pelo ordenamento jurídico, salvaguardando a os mais vulneráveis dos arbítrios perpetrados pelo poder econômico, que cada vez mais buscar acumular capital e explorar as classes mais baixas, praticamente “impondo” regras em contratos de trabalho, planos de saúde, serviços essenciais a população e etc.

Ingo Wolfgang Sarlet brilhantemente faz referência a esta tese, como veremos:

“Primeiro, quando há relativa igualdade das partes figurantes da relação jurídica, caso em que deve prevalecer o princípio da liberdade para ambas, somente se admitindo eficácia direta dos direitos fundamentais na hipótese de lesão ou ameaça ao princípio da dignidade da pessoa humana ou aos direito aos direitos da personalidade.”

“Segundo: quando a relação privada ocorre entre um indivíduo (ou grupo de indivíduos) e os detentores de poder econômico ou social, caso em que, de acordo com o referido autor, há consenso para se admitir a aplicação da eficácia horizontal, pois tal relação privada assemelha-se àquela que se estabelece entre os particulares e o poder público (eficácia vertical).”

Para Sarlet, seria possível se identificar duas situações distintas a reclamar também soluções diversas, a saber:

  1. Relações entre particulares, em condições de relativa igualdade – nelas os direitos fundamentais possuiriam ao menos, uma eficácia mediata ou indireta, isto é, as normas de direito privado não poderiam contrariar o conteúdo dos direitos fundamentais, impondo-se uma interpretação das normas privadas infraconstitucionais conforme os parâmetros axiológicos contidos nas normas de direitos fundamentais, o que ocorre na aplicação de conceitos indeterminados e cláusulas gerais de direito privado. No entanto, aqui, aceitar-se-ia uma eficácia direta dos direitos fundamentais, nos casos de ameaça ou lesão a dignidade da pessoa humana.
  2. Relações manifestamente desiguais, aferidas entre particular e detentor de poder social – haveria relativo consenso de que se poderiam transportar diretamente, para este tipo de relação, os princípios da eficácia vinculante dos direitos fundamentais, pois se trata de relações desiguais de poder, sendo a vinculação equivalente a que se dá com os poderes públicos. (Revista de Direito do Trabalho, ano 33, outubro-dezembro 2007, Coordenação Nelson Mannrich).

Assim, podemos falar que a adoção de dois critérios: o critério do predomínio social ou econômico, e o critério da possível violação da dignidade da pessoa humana.

Pelo primeiro critério, o poder não estaria mais concentrado apenas no ente estatal, mas principalmente nas mega empresas ou grandes grupos de poderio econômico. Constituem uma ameaça aos direitos fundamentais, pois impedem a formação livre e consensual da vontade privada da parte mais fraca.

Já no segundo, o princípio da dignidade da pessoa humana é um núcleo inatingível e absoluto no nosso ordenamento jurídico. Toda vez em que este núcleo é atingido, os direitos fundamentais devem ter eficácia direta e imediata.

Com base nisso, os Tribunais brasileiros vem reiteradamente se posicionando sobre o tema e fazendo com que os direitos fundamentais tenham eficácia direta nas relações entre fortes grupos econômicos (planos de saúde, por exemplo), e protegendo os sujeitos mais vulneráveis da relação (usuários). Vejamos esse julgado:

“EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das Relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados (STF, RE 201819/RJ, Rei•. Mio•. Ellen Gracie, Rei. p/ o acórdão

Mio. Gilmar Mendes, j. ll/10/2005). >”

Tal justificativa não é em vão, principalmente em virtude das normas principiológicas contidas na nossa Carta Magna de 1988, tal qual a de intervenção do Estado na atividade econômica.

“A intervenção do Estado na atividade econômica encontra autorização constitucional quando tem por finalidade proteger o consumidor {STJ, MS 4138/DF, DJ 21/10/1996, Rel. Min. José Delgado).”

4.5 A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA JURISPRUDENCIA BRASILEIRA

Apesar de ser um tema bastante desenvolvido ao longo desses anos, a jurisprudência Brasileira ainda é tímida a respeito. Alguns julgados exaltam este instituto jurídico, porém em outros os tribunais ainda não vem permitindo a aplicação deste direito, apenas quando a própria legislação infraconstitucional o regulamenta. Vejamos:

TST – RECURSO DE REVISTA RR 2673006420035070003 267300-64.2003.5.07.0003 (TST)

Data de publicação: 24/05/2013

Ementa: CONSELHO REGIONAL DE ENGENHARIA, ARQUITETURA E AGRONOMIA NO CEARÁ. DISPENSA POR JUSTA CAUSA. INOBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOSFUNDAMENTAIS. A controvérsia dos autos cinge-se em saber se se aplica aos processos administrativos instaurados no âmbito dos conselhos de fiscalização profissional, para apuração de falta grave, os princípios do contraditório e da ampla defesa e do devido processo legal. A jurisprudência desta Corte superior já firmou o entendimento de que os conselhos regionais e federais de fiscalização do exercício profissional não possuem natureza autárquica em sentido estrito, ao contrário, são autarquias sui generis , dotadas de autonomia administrativa e financeira, não lhes sendo aplicáveis as normas relativas à administração interna das autarquias federais. Logo, esses conselhos profissionais, como é o caso do reclamado, são considerados entes paraestatais. Nesse contexto, verifica-se que não se lhes aplica a Lei nº 9.784 /99, que dispõe sobre normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta, já que não pertencem à Administração Pública. Entretanto, essa tese não afasta a necessária observância dos direitosfundamentais previstos na Constituição Federal , os quais protegem todos os brasileiros e estrangeiros, residentes aqui ou de passagem pelo território nacional. Com efeito, o artigo 5º , inciso LV , da Carta Magna assegura aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Esse dispositivo é aplicável não só aos processos judiciais, mas também aos processos administrativos, inclusive aos procedimentos instaurados fora do Poder público. Trata-se da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, reconhecida pela doutrina moderna, conferindo-lhes aplicabilidade no âmbito privado, de modo.

TJ-DF – Agravo de Instrumento AGI 20130020239909 DF 0024916-78.2013.8.07.0000 (TJ-DF)

Data de publicação: 27/01/2014

Ementa: DIREITO PROCESSUAL CIVIL, CONSTITUCIONAL E EMPRESARIAL. DESTITUIÇÃO DE SÓCIO. EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOSFUNDAMENTAIS. 1. A PEÇA RECURSAL UTILIZA DE ARGUMENTOS E FORMULA PEDIDOS QUE NÃO FORAM APRECIADOS ORIGINARIAMENTE, RAZÃO PELA QUAL HÁ INCOMPATIBILIDADE DIALÉTICA ENTRE DETERMINADOS ARGUMENTOS ELENCADOS NO AGRAVO DE INSTRUMENTO COM O EFEITO DEVOLUTIVO DA DECISÃO IMPUGNADA. A ANÁLISE DESTES PEDIDOS ACARRETARIA SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA, O QUE NÃO SE PODE ADMITIR. 2. A DESTITUIÇÃO DE ACIONISTA EM ASSEMBLEIA GERAL EXTRAORDINÁRIA – CUJO EDITAL CONVOCATÓRIO NÃO CONSAGRA HIPÓTESE DE DELIBERAÇÃO SOBRE ESTE TEMA – REVELA MALFERIMENTO À LSA , ASSIM COMO AO PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA. 3. RECURSO CONHECIDO PARCIALMENTE E, NA PARTE CONHECIDA, NÃO PROVIDO.

Podemos observar que na maioria dos casos, a jurisprudência vem adotando esta teoria para desconstituir decisões em processos administrativos que não respeitaram o contraditório e a ampla defesa.

Ressalta a importância deste princípio no âmbito da administração pública e nas relações privadas, ao ponto em que, quase e toda qualquer relação que envolve sócios de uma empresa ou um trabalhador, por exemplo, devem observar estes princípios constitucionais.

Observem este interessante caso, onde até nas relações condominiais, se aplicam os princípios do contraditório e ampla defesa para imposição de penalidades.

TJ-DF – Apelação Cível APC 20100112192574 (TJ-DF)

Data de publicação: 11/11/2015

Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CIVIL E CONSTITUCIONAL. AÇÃO ORDINÁRIA. DECLARAÇÃO DE NULIDADE E INEXIGIBILIDADE DE MULTAS CONDOMINIAIS. CONTRARRAZÕES. INTEMPESTIVIDADE. NÃO CONHECIMENTO. AGRAVO RETIDO NÃO CONHECIDO. VIOLAÇÃO DE NORMAS INTERNAS DO CONDOMÍNIO. IMPOSIÇÃO DE SANÇÃO PECUNIÁRIA EM DESFAVOR DO CONDÔMINO INFRATOR. AUSÊNCIA DE CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. NULIDADE. TEORIA DA EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOSFUNDAMENTAIS. APLICAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS TAMBÉM NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES PRIVADAS. 1. Não devem ser conhecidas as contrarrazões de apelação apresentadas fora do prazo de 15 dias previsto pela lei processual civil, porquanto intempestivas. 2. Não merece conhecimento, por inobservância do disposto no §1º do art. 523 do Código de Processo Civil, o agravo retido interposto pela parte autora. 3. Embora as entidades condominiais possuam autonomia para gerir seus interesses e sua organização (inclusive impondo sanções administrativas e pecuniárias aos seus condôminos), é certo que esse espectro de autonomia não é absoluto e comporta restrições orientadas, a fim de respeitar e prestigiar os direitos fundamentais encartados na Constituição Federal. 4. Por força da aplicação da teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, os direitos fundamentais não representam limitações única e exclusivamente oponíveis ao Estado, passando a alcançar, também, as relações privadas. 5. As relações privadas existentes entre condomínio e condôminos são também alcançadas pela eficácia horizontal dos direitos fundamentais, de forma que a imposição de penalidades contra condôminos, mesmo encontrando guarida legal, deve imperioso respeito às garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, da Constituição Federal). Não respeitadas tais garantias, as sanções impostas pelo condomínio padecem de nulidade. 6. Apelação conhecida e não provida. Agravo retido não conhecido….

Devemos salientar a importância desta teoria no âmbito das relações privadas que envolvem saúde. O direito a vida e a dignidade da pessoa humana devem estar acima de quaisquer cláusulas contratuais que restrinjam o usuário de planos de saúde deste direito, cuja finalidade do contrato deve ser sempre respeitada e se sobrepõe a cláusulas restritivas.

TJ-RJ – APELAÇÃO APL 00711026520098190001 RIO DE JANEIRO CAPITAL 48 VARA CIVEL (TJ-RJ)

Data de publicação: 08/11/2010

Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. OBRIGAÇÃO DE FAZER COM INDENIZATÓRIA. DIREITO DO CONSUMIDOR. PLANO DE SAÚDE. PRAZO DE CARÊNCIA. SITUAÇÃO DE EMERGÊNCIA. INTELIGÊNCIA DO ART. 12, INCISO V, ALÍNEA C, DA LEI Nº 9.656/98. RECUSA INJUSTIFICADA E ABUSIVA. DIREITOFUNDAMENTAL À SAÚDE E À VIDA. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. DANO MORAL CONFIGURADO. REPARACAO PATRIMONIAL QUE SE IMPÕE. O atendimento de emergência médica hospitalar, decorrente de contrato de plano de saúde válido, firmado pelas partes, não está condicionado a prazo de carência ou qualquer outra limitação temporal, quanto á sua duração. Comprovada a situação de emergência, mormente quando envolve petiz, com menos de um ano de vida, a negativa de tratamento pelo prazo necessário, mais do que mero inadimplemento contratual, configura prática desumana e cruel, que fulmina de morte os direitos fundamentais mais caros do Estado de Direito, e clama pela justa e efetiva reparação indenizatória. Incidência da súmula 302 do STJ. Conhecimento do recurso para dar-lhe provimento na forma do par.1-A, do artigo 557, do CPC

É acertada a jurisprudência deste sentido, tendo em vista que a Carta magna de 1988 prescreveu direitos e garantias fundamentais, alguns de caráter primordiais aos seres humanos e que só podem ser restringidos em caráter excepcional. Vejamos esse julgado do Supremo Tribunal Federal a respeito da primazia do direito a vida:

STJ – AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA AgRg no RMS 46373 RO 2014/0215587-4 (STJ)

Data de publicação: 23/04/2015

Ementa: PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO. MEDICAÇÃO INDICADA POR LAUDO MÉDICO PARTICULAR NÃO FORNECIDA PELO SUS. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA PARA VERIFICAR PERTINÊNCIA E EFICÁCIA DO REMÉDIO. IMPOSSIBILIDADE. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. PRECEDENTES DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. Com efeito, esta Corte Superior possui entendimento firmado no sentido de que as pessoas doentes, as quais não possuem disponibilidade financeira para custeio do tratamento, têm direito a receber os medicamentos do Estado em caso de comprovada necessidade, em razão da primazia do direito à vida e à saúde, nos termos da interpretação dos dispositivos constitucionais relacionados ao tema e da Lei 8.080/90. Nesse sentido: AgRg no AREsp 476.326/PI, Segunda Turma, Rel. Ministro Humberto Martins, DJe de 7.4.2014; AgRg no REsp 1.028.835/DF, Primeira Turma, Rel. Ministro Luiz Fux, DJe de 15.12.2008. 2. Efetivamente, nos caso dos autos, a Corte a quo não afastou o direitoao recebimento de medicamento, entretanto, não admitiu a utilização do mandado de segurança para discutir a referida pretensão por inexistência de direito líquido e certo decorrente de ausência de prova pré-constituída. 3. Assim, é incontroverso que o remédio pleiteado pelo recorrente é diverso dos medicamentos fornecidos pelo Estado para o tratamento da doença específica e não está relacionado nas portarias reguladoras do Sistema Único de Saúde. 4. Ademais, a utilização da medicação foi sugerida por laudo médico particular, sem a efetiva demonstração da eficácia do remédio em detrimento aos fornecidos pelo sistema estatal. Nesses casos, é de extrema importância submeter a referida prescrição médica ao efetivo contraditório, pois o direito à saúde prestado não significa a livre escolha de medicação e tratamento a ser custeado pelo ente público. 5. Tais considerações exigem, necessariamente, dilação probatória…

Vejamos que por essa linha de entendimento, o Superior Tribunal de Justiça utilizou o critério do predomínio social ou econômico, cujo teor explicitado no primeiro capítulo ressalta que o poder das grandes empresas e dos grandes centros econômicos impedem a formação livre e consensual da parte hipossuficiente.

Vale ressaltar sempre que a prestação de serviços de saúde é dever do Estado e os particulares exercem este na forma de delegação, em virtude disto, as cláusulas contratuais devem ser ponderadas usando os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, de Robert Alexy, buscando sempre a primazia do direito a vida e dos princípios constitucionais, dado o caráter público da matéria.

Podemos explicar esta teoria da seguinte forma: no direito, existem regras e princípios, conforme análise das mais diversas normas jurídicas.

A regra é imperativa, estabelece a regra um “tudo ou nada”, de maneira disjuntiva. Ou seja, se os fatos descritos em uma regra ocorrem, esta será aplicada, não haverá espaço para ponderações. Ocorrendo um conflito de regras, terá que se utilizar os critérios clássicos do direito para solução de antinomias (hierárquico, especialidade e cronológico)

Já quanto aos princípios, estes não se aplicam de maneira automática as relações jurídicas, visto que são instrumentos balizadores, estes tem uma dimensão que as regras não possuem: a dimensão do peso. Os princípios podem interferir-se entre si, e nesse caso, deve-se “resolver através levando em conta o peso de cada um.” (citação 100, Gilmar mendes).

Tomamos o exemplo explicitado por Gilmar Mendes, em sua obra Curso de Direito Constitucional Brasileiro “ilustração dessa teoria pode facilitar a sua compreensão. Figure -se o exemplo de um conflito entre o direito fundamental da liberdade de expressão com o direito fundamental à privacidade que ocorrerá se um jornalista desejar expor dados pessoais de alguém numa reportagem. Os dois direitos têm a índole de princípios, eles não se diferenciam hierarquicamente, nem constituem um a exceção do outro. Muito menos se há de cogitar resolver o atrito segundo um critério cronológico. O conflito, portanto, não se resolve com os critérios usuais de solução das antinomias. Ao contrário, terá que ser apurado, conforme o caso, qual dos dois direitos apresenta maior peso. Não seria impróprio, assim, considerar que, se o indivíduo retratado não vive uma situação pública relevante, a privacidade terá maior peso do que se ele é ator de algum fato de interesse público significativo, quando o interesse geral na matéria poderá ser arguido para emprestar maior peso à liberdade de expressão.”

Este tipo de ponderação é normalmente utilizada para verificar no caso concreto a possibilidade ou não da incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas. Vejamos:

TJ-SC – Apelação Cível AC 494909 SC 2007.049490-9 (TJ-SC)

Data de publicação: 13/12/2011

Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. PUBLICAÇÃO DE CARTA EDITORIAL EM PERIÓDICO COMUNITÁRIO DE DISTRIBUIÇÃO GRATUITA. JORNALISMO INFORMATIVO. ANIMUS INJURIANDI NÃO COMPROVADO. OFENSA À HONRA PESSOAL OU PROFISSIONAL NÃO CARACTERIZADA. PONDERAÇÃO DOS DIREITOSFUNDAMENTAIS DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DO DIREITO À HONRA. MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO E DO DIREITO DE INFORMAÇÃO. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO PROVIDO. É cediço nesta Corte e no Superior Tribunal de Justiça que o jornalismo informativo não dá ensejo ao dano moral, caso não demonstrada a deliberada intenção de injuriar, difamar ou caluniar a “vítima”. Mesmo por que, devem ser ponderados os direitos tutelados, quando se for sopesar a incidência dos direitos fundamentais da liberdade de expressão e do direito à honra e à imagem, principalmente ao tratar de responsabilidade civil. Mesmo porque a liberdade de imprensa é verdadeiro corolário de um Estado Democrático de Direito, mormente por ser uma das únicas ferramentas do cidadão contra os disparates que acontecem “em nome” da administração pública. Nas palavras do Ministro Março Aurélio, “a liberdade de expressão constitui-se em direitofundamental do cidadão, envolvendo o pensamento, a exposição de fatos atuais ou históricos e a crítica.” (STF, HC 83.125, j. Em 16-9-2003). “No que pertine à honra, a responsabilidade pelo dano cometido através da imprensa tem lugar tão-somente ante a ocorrência deliberada de injúria, difamação e calúnia, perfazendo-se imperioso demonstrar que o ofensor agiu com o intuito específico de agredir moralmente a vítima. Se a matéria jornalística se ateve a tecer críticas prudentes (animus criticandi) ou a narrar fatos de interesse coletivo (animus narrandi), está sob o pálio das ‘excludentes de ilicitude’ (art. 27 da Lei n. 5.250 /67), não se falando em responsabilização civil por ofensa à honra, mas em exercício regular do direito de informação. (REsp. n. 719.592/AL, Min. Jorge Scartezzini, DJ…

Encontrado em: Primeira Câmara de Direito Civil Apelação Cível n. , de Gaspar Apelação Cível AC 494909 SC 200

Porém, de forma mais clara e elaborada, o Supremo Tribunal Federal, liderando esse entendimento por Gilmar Mendes, consagrou a ideia de aplicação horizontal dos direitos fundamentais nas hipóteses de exclusão do associado de entidade do direito privado. Ressalta-se que nesses casos, dado o caráter público e geral da atividade, se justifica a aplicação do due of process law nas relações entre os particulares.

Vale ressaltar a opinião de Fernanda Mendonça dos Santos Figueiredo:

“Nesta seara, pode-se concluir que a autonomia privada, cujas limitações encontram-se na ordem jurídica, não pode ser exercida com prejuízo aos direitos e garantias de outros entes, mormente aqueles positivados em sede constitucional, vez que a autonomia de vontade não adjudica aos indivíduos, no âmbito de seu encontro e desempenho, a faculdade de violar ou ignorar as restrições impostas pela Carta Política, cuja eficácia e força normativa igualmente se impõem, aos entes privados, no domínio de suas relações particulares, em sede de liberdades fundamentais.”

Ressaltamos a posição do Supremo Tribunal Federal com relação ao limite da autonomia privada nas relações entre particulares:

A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais.”

Salientamos que a posição adotada pelo STF ressalta a aplicabilidade de forma DIRETA e IMEDIATA da ordem jurídico-constitucional, sem nenhuma restrição, de modo que as associações civis devem respeitar não só a legislação infraconstitucional, mas também a Constituição Brasileira diretamente. Interessante notar que tal posicionamento tem respaldo no argumento na teoria de Ingo Sarlet, tendo em vista que as associações detêm de um maior poder econômico que as pessoas naturais, ainda que estas não tenham fins lucrativos, de tal forma que, o princípio constitucional da igualdade material que trata “os desiguais de maneira desigual”, assim sendo, os indivíduos estão em uma posição relativamente abaixo dos grandes grupos econômicos.

Vejamos esse outro julgado do Supremo Tribunal Federal, cujo relator foi o Min. Gilmar Ferreira Mendes:

“2. “O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais.” (STF, RE 201819, Relator p/ Acórdão: Min. Gilmar Mendes, Segunda
Turma, DJ 27-10-2006).”

Pelo teor do voto, convenhamos ressaltar que o Ministro assegura a força normativa constitucional através da constituição em detrimento da autonomia privada, para ratificar a força normativa constitucional em todas as relações, sejam elas privadas ou públicas.

Vejamos que pela interpretação do voto, chegamos a conclusão que o STF tem adotado a violação do princípio da dignidade da pessoa humana como basilar para a aplicabilidade dos direitos fundamentais.

5 CONCLUSÃO

A análise da Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais, como demonstrado, transcende a mera discussão teórica, materializando-se na prática jurisdicional. A postura do Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro, particularmente sob a liderança do Ministro Gilmar Mendes, tem sido fundamental para consolidar a aplicação desses direitos nas relações entre particulares, especialmente em casos de exclusão de associados em entidades privadas. Essa evolução é notável ao se considerar a justificação da aplicação do due process of law nessas relações, evidenciando o reconhecimento da relevância pública e geral de certas atividades privadas.

A visão da pesquisadora Fernanda Mendonça dos Santos Figueiredo reforça essa compreensão, ao sublinhar que a autonomia privada, embora essencial, encontra seus limites na ordem jurídica e nos direitos e garantias fundamentais. A autonomia da vontade não pode ser um salvo-conduto para a violação de preceitos constitucionais, que se impõem com eficácia e força normativa também às relações entre particulares.

A jurisprudência do STF, conforme os julgados apresentados, ressalta a aplicabilidade direta e imediata da Constituição Federal, sem restrições, às associações civis. Essa posição se alinha à teoria de Ingo Sarlet, que aponta para a disparidade de poder entre as grandes organizações (mesmo sem fins lucrativos) e os indivíduos, justificando a intervenção judicial para assegurar o princípio constitucional da igualdade material. O Ministro Gilmar Mendes, em seus votos, consistentemente reafirma a força normativa constitucional em detrimento da autonomia privada, ratificando a abrangência da Constituição em todas as relações, sejam elas públicas ou privadas.

Ao compararmos a abordagem do STF com a Suprema Corte Alemã e a Suprema Corte dos Estados Unidos, observamos nuances importantes. Enquanto a Corte Alemã foi pioneira no reconhecimento da eficácia horizontal, pavimentando o caminho para a irradiação dos direitos fundamentais na esfera privada, a Suprema Corte dos EUA, tradicionalmente, tem uma visão mais restrita, focando majoritariamente na proteção dos direitos frente ao poder estatal. O STF brasileiro, por sua vez, tem demonstrado uma inclinação crescente para a aplicação direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas, ancorando essa intervenção na dignidade da pessoa humana como princípio basilar. Essa postura reflete um amadurecimento do direito constitucional brasileiro, que busca garantir a efetivação dos direitos fundamentais em todas as suas dimensões, superando a mera proteção contra o Estado e avançando para a tutela dos indivíduos nas complexas interações sociais.

REFERÊNCIAS

FIGUEIREDO, Fernanda Mendonça dos Santos. STF reconhece aplicação direta de direitos fundamentais às relações privadas. Conjur, 5 fev. 2009. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2009-fev-05/stf-reconhece-aplicacao-direta-direitos-fundamentais-relacoes-privadas/. Acesso em: 20 de maio 2025.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. 

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15ª edição. São Paulo: Saraiva. 2011.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 392-400

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. DIREITO ADMINISTRATIVO. 30 ed. Rio de Janeiro: EDITORA FORENSE LTDA,2017. P. 97

http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11648