A EFETIVIDADE DA PROTEÇÃO ÀS CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA NO BRASIL¹

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10084705


Káren Sabrícia de Oliveira Rocha²
Luiz Francisco de Oliveira³


RESUMO

No presente artigo é abordada a interseção entre os direitos da criança e do adolescente, a violência e os desafios associados. Examina como os direitos dessa população estão vulneráveis diante da violência e destaca os obstáculos enfrentados na garantia desses direitos. Aborda as várias formas de violência que afetam crianças e adolescentes. O artigo também aborda as dificuldades na implementação de políticas de prevenção e combate à violência, e como elas desafiam o sistema de proteção integral. Conclui enfatizando a necessidade de ações coordenadas, políticas públicas eficazes e conscientização para que mesmo diante das dificuldades seja assegurado um ambiente seguro e respeitoso para crianças e adolescentes brasileiros.

Palavras-chave: Direitos da criança e do adolescente; Violência; Desafios.

ABSTRACT

In this article the intersection between the rights of children and adolescents, violence and associated challenges is addressed. It examines how the rights of this population are vulnerable in the face of violence and highlights the obstacles faced in guaranteeing these rights. It addresses the different forms of violence that affect children and adolescents. The article also addresses the difficulties in implementing policies to prevent and combat violence and how they challenge the comprehensive protection system. It ends by emphasizing the need for coordinated actions, effective public policies and awareness so that, even in the face of difficulties, a safe and respectful environment can be guaranteed for Brazilian children and adolescents.

Keywords: Rights of children and adolescents; violence; Vulnerability.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por finalidade refletir acerca da efetividade da proteção às crianças e adolescentes em situação de violência no Brasil, que é uma questão multifacetada e de extrema relevância, que envolve a intersecção de histórico legislativo, atuação de órgãos fundamentais, reflexões sobre marcos legais e desafios em curso.

Este artigo examina a trajetória do histórico da legislação infanto-juvenil no Brasil, ressaltando a mudança de paradigma do assistencialismo para a proteção integral e analisa a atuação do Ministério Público e do Conselho Tutelar como pilares na defesa dos direitos da infância e adolescência. Ademais, reflete sobre o impacto do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), considerando seu papel na transformação do olhar da sociedade e do sistema legal.

Além disso, esta pesquisa explora os principais desafios enfrentados pelo Estado e pela sociedade na efetivação dos direitos da criança e do adolescente. A escassez de recursos, a coordenação inadequada entre instituições e a necessidade de uma conscientização mais ampla são questões que demandam abordagens coordenadas e esforços conjuntos para serem superadas.

No primeiro capítulo, será feita uma análise do histórico da legislação infanto-juvenil no Brasil, refletindo mudanças na abordagem dos seus direitos e na abrangência da proteção, sobretudo, após a entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

No segundo capítulo do presente artigo será analisada a atuação do Ministério Público e do Conselho Tutelar desempenhando papéis cruciais na salvaguarda desses direitos, atuando como defensores e garantidores das crianças e adolescentes.

No terceiro capítulo será feita uma reflexão sobre o advento do estatuto da criança e do adolescente e seus impactos após 33 anos de existência. Os avanços na promoção da proteção integral, bem como as áreas em que desafios persistentes precisam ser abordados. Por fim, no quarto capítulo, serão analisados esses principais desafios enfrentados pelo estado e pela sociedade na garantia e efetivação de direitos da criança e ao adolescente.

Em síntese, este artigo busca analisar a efetividade da proteção às crianças e adolescentes em situação de violência no Brasil, examinando os principais desafios atuais.

1 HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO INFANTO-JUVENIL NO BRASIL

A criança é pequena, é leve, é pouca coisa. É preciso inclinar-se na sua direção, abaixar-se. Pior ainda: a criança é fraca. Pode-se levantá-la, jogá-la no ar, fazê-la se sentar contra a sua vontade, interromper a sua corrida, frustrar o seu esforço. Se ela não obedece, temos força de sobra para impor a nossa vontade. […] Ela não tem direitos, o que ganha é fruto de nossa boa vontade. Assim, nossa relação com as crianças é corrompida pela miséria e pela dependência dos nossos favores materiais a que elas são condenadas. Menosprezamos a criança porque ela nada sabe, nada adivinha, nada presente. […] Na sua ingenuidade, deixa-se facilmente adormecer ou enganar, não percebe nada do que lhe ocultamos. […] Fraca, pequena, pobre, dependente, ela não passa de um cidadão em potencial. (KORCZAK, 1929).

As crianças e os adolescentes, ao longo de toda a história, têm ocupado a posição de maior vulnerabilidade na sociedade, sobretudo em razão de sua condição de pessoa ainda em formação, tanto física como mental. Considerando tamanha vulnerabilidade, aliados à falta de discernimento e de capacidade para se proteger, necessitam de uma proteção jurídica especial. No Brasil, a garantia, promoção e proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes passou por diversos avanços culturais e legislativos, e para melhor compreender esse cenário vale traçar uma breve retrospectiva do que como ocorreu esse processo.

Em 1927, foi sancionada a Lei de Assistência e Proteção aos Menores, conhecida como Código de Menores, representando avanços na proteção das crianças. A lei proibiu a “Roda dos Expostos” e tornou os jovens inimputáveis até os 18 anos. Em 1979 é promulgado um novo Código de Menores, baseando-se no mesmo paradigma do menor em situação irregular da legislação anterior, ou seja, abrangia aqueles que eram abandonados, vítimas de maus-tratos familiares e os privados de saúde ou educação.

Maciel explica que:

não era uma doutrina garantista, até porque não enunciava direitos, mas apenas predefinia situações e determinava uma atuação de resultados. Agia-se apenas na consequência e não na causa do problema, ‘apagando-se incêndios’ […] Era um Direito do Menor, ou seja, que agia sobre ele, como objeto de proteção e não como sujeito de direitos. Daí a grande dificuldade de, por exemplo, exigir do Poder Público construção de escolas, atendimento pré-natal, transporte escolar, direitos fundamentais que, por não encontrarem previsão no código menorista, não sendo titularizados por sujeitos de direitos – já que a esse tempo ainda não se reconhecia às crianças e adolescentes esse status –, esbarravam na ausência de tutela jurídica. (MACIEL, 2022, p.104).

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, houve a chamada constitucionalização do Direito da criança e do adolescente no Brasil, consolidando, assim, os princípios basilares para a sua proteção e garantia, especialmente quanto a deslegitimação e substituição da legislação menorista presente no Código de Menores de 1979 pela garantista que estabelece a prioridade absoluta da criança e do adolescente, conferindo-lhes o mesmo status de sujeitos de direitos em par de igualdade com os adultos, independentemente de sua situação social.

A doutrina da proteção integral acaba rompendo o padrão preestabelecido e absorve os valores insculpidos na Convenção dos Direitos da Criança. Pela primeira vez, crianças e adolescentes titularizam direitos fundamentais, como qualquer ser humano cuja dignidade é passível de proteção como valor em si. Passamos, dessa forma, a ter um Direito da Criança e do Adolescente amplo, abrangente, universal e, principalmente, exigível, em substituição ao Direito do Menor. (MACIEL, 2022).

A partir desse fenômeno passaram a estar em situação irregular os pais e responsáveis que não cumprem seus deveres do poder familiar e também o Estado se deixar de prestar aquilo que lhe é devido. A Constituição em seu artigo 227 estabelece como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BASIL, 1988).

Já com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), dois anos após a Constituição, foi instrumentalizada toda a Doutrina Jurídica da proteção Integral que corresponde a reconhecer que toda a legislação tem por finalidade proteger integralmente as crianças e adolescentes em suas necessidades específicas, decorrentes da sua idade, de seu desenvolvimento e de circunstâncias materiais, devendo ser concretizada por meio de políticas universais, de proteção ou socioeducativas. O sistema de proteção passou a ser centrado no melhor interesse da criança e do adolescente, consolidando três grandes princípios: a proteção integral, o respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e prioridade absoluta, estabelecendo que crianças e o adolescentes são sujeitos de direitos e não mais objetos da norma.

Os dispositivos previstos no ECA têm por objetivo tutelar os direitos das crianças e dos adolescentes de forma exclusiva, definindo ações e procedimentos para manutenção e aprimoramento dos seus direitos, firmando o entendimento que as crianças e adolescentes, enquanto sujeitos de direitos, possuem os mesmos direitos fundamentais assegurados pela Constituição a todos os brasileiros, como direito à vida, à saúde, ao lazer, à dignidade, à cultura e à liberdade.

O artigo 3º do ECA dispõe o seguinte:

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem. (BRASIL, 1990).

Assim, a Doutrina da Proteção Integral tem como objetivo garantir os direitos fundamentais das crianças, visando a possibilitar seu pleno desenvolvimento. Isso, por sua vez, traduz o princípio da dignidade humana, promovendo a formação de crianças mais livres, felizes e saudáveis físico e mentalmente, preparando-as para uma integração plena na sociedade quando se tornarem adultos.

Além do ECA, é importante mencionar como avanço a Lei nº 13.010/2014, Lei Menino Bernardo, também conhecida como Lei da Palmada, que visa proibir o uso de castigos físicos ou tratamentos cruéis ou degradantes na educação de crianças e adolescentes. E também a Lei n. 13.431/2017, que estabelece o Sistema de Segurança e Proteção da Criança e adolescentes vítimas e testemunhas de violência. Ela normatiza e organiza o sistema, cria mecanismos para prevenir e coibir a violência e estabelece medidas de assistência e proteção. Foi regulamentada pelo Decreto n. 9.603/2018, que trouxe diretrizes mais específicas, incluindo fluxos para o atendimento da vítima, além da escuta especializada e do depoimento especial.

O Sistema de Segurança e Proteção da Criança visa dar pleno e devido cumprimento ao ECA e a Constituição, contando com alguns órgãos e entidades que compõem a política de atendimento, que é materializada por meio de conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais, conforme as linhas de ação e diretrizes preconizadas na própria lei (arts. 86 e s. do ECA), dos quais vale a pena destacar o Ministério Público e o Conselho Tutelar.

3 ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DO CONSELHO TUTELAR.

O Ministério Público, como instituição responsável pela fiscalização do cumprimento das leis e pela defesa dos interesses coletivos e individuais, exerce um papel fundamental na atuação judicial relacionada à criança e ao adolescente, e consiste no dever constitucional imposto ao Estado.

As suas atribuições judiciais são promover e acompanhar as ações socioeducativas, ações de alimentos, suspensão e destituição do poder familiar, nomeação e remoção de tutores, curadores e guardiães, inscrição de hipoteca legal e prestação de contas de tutores e curadores, a ação civil pública, as medidas judiciais cabíveis para o efetivo respeito dos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes. Impetrar mandado de segurança, mandado de injunção e habeas corpus, entre outras. Além disso, é obrigatória a intervenção do Ministério Público em todos os atos processuais e processos em curso na Vara da Infância e Juventude.

Em seu artigo 227, a Constituição Federal de 1988 preconiza que é dever do Estado, com absoluta prioridade, assegurar à criança e ao adolescente a proteção a todos os seus direitos (art. 227 da CRFB). Foi o Ministério Público eleito o grande ator na defesa destas pessoas em desenvolvimento, considerando-se a gama de atribuições que são conferidas à instituição, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. A atuação não se limita à aplicação do direito ao caso concreto, sendo muito mais ampla, pois o Promotor de Justiça da Infância e Juventude deve atuar na solução de problemas os mais diversos, muitas vezes apenas ouvindo, aconselhando, orientando pais e filhos. (MACIEL, 2022).

O Ministério Público também tem papel como fiscalizador da ordem jurídica. Dessa forma, está incumbido de apurar irregularidades em unidades de atendimento e infrações administrativas às normas de proteção previstas no ECA. Fora do âmbito judicial, o órgão pode exercer o papel de articulador dessas políticas por intermédio de diversos mecanismos. Como indutor de políticas públicas, por exemplo, garante que diversos atores e a sociedade civil sejam ouvidos, identificando problemas e propondo melhorias para o fluxo de serviços. Ainda, a emissão de recomendações pelo órgão, no que se refere à melhoria dos serviços oferecidos à população infantojuvenil, também funciona como mecanismo de proteção da infância e juventude e de seu melhor interesse.

Já o Conselho Tutelar é o órgão da esfera municipal dedicado à proteção e promoção dos direitos infanto-juvenis. O ECA o define como o órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta lei” possui o dever tanto de assistir tutelados quanto atuar administrativa e judicialmente nos casos em que há riscos à proteção integral. E consiste no dever constitucional imposto àfamília e à sociedade no mesmo patamar do Estado. (art. 131 da Lei n. 8.069/1990).

Suas atribuições são: primeiro, o atendimento da população infantojuvenil, nas hipóteses dos arts. 98 e 105, por meio da aplicação das medidas protetivas elencadas no art. 101, I a VII, da mesma lei; segundo, o atendimento e o aconselhamento aos pais ou responsável, por meio da aplicação das medidas previstas no art. 129, I a VII. Terceiro, a promoção da execução das suas decisões podendo, para tanto, requisitar serviços públicos nas áreas de saúde, educação, serviço social, previdência, trabalho e segurança, bem assim representar junto à autoridade judiciária nos casos de descumprimento injustificado de suas deliberações. Quarto, o encaminhamento ao Ministério Público de notícia de fato que constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da criança ou adolescente, ou, ainda, encaminhar à autoridade judiciária os casos de sua competência.

Além do atendimento de adolescentes em conflito com a lei, expedir notificação de algo que ocorreu, a representação, em nome da família, contra a violação dos direitos previstos no art. 220, § 3º, II, da CRFB/88, o oferecimento ao Ministério Público de representação, para efeito das ações de perda ou suspensão do poder familiar, promoção e o incentivo, na comunidade e nos grupos profissionais, de ações de divulgação e treinamento para o reconhecimento de sintomas de maus-tratos em crianças e adolescentes, e a aplicação de medidas em caso de castigo físico ou tratamento cruel ou degradante contra crianças ou adolescentes, como forma de correção, disciplina, educação ou outros.

Quem milita na seara da infância e do adolescente sabe que aplicar medida de proteção significa tomar providências, em nome da Constituição e do Estatuto, para que cesse a ameaça ou violação de direitos da criança e do adolescente. Daí por que, na qualidade de órgão responsável pela salvaguarda dos direitos infantojuvenis, no caso concreto, é o Conselho Tutelar, por excelência, quem deverá aplicar a maioria das medidas protetivas vislumbradas pelo legislador.” (MACIEL, 2022).

Considerando isso, é possível concluir que, para que os direitos e a cidadania de crianças e adolescentes sejam reconhecidos, é necessário a implementação de um sistema coordenado de políticas públicas, composto por programas e serviços que constituem uma rede de proteção completa que garanta seus direitos e atenda às suas necessidades fundamentais e específicas.

3 REFLEXÃO SOBRE O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E SEUS IMPACTOS

Quando se trata de efetividade da legislação, observa-se que o Brasil enfrenta inúmeros desafios. Mesmo após 33 anos da promulgação do ECA, o Estado e a sociedade continuam a enfrentar muitos obstáculos para garantir a efetiva proteção de crianças e adolescentes.

Para bem analisar esse fenômeno cumpre ponderar, inicialmente, que, de acordo com o art. 2º do ECA, considera-se criança, aquelas pessoas até doze anos de idade incompletos e adolescentes aqueles entre doze e dezoito anos de idade. Deve ser mencionado que a Lei n. 13.431/2017 define que as principais formas de violência são: física, psicológica e sexual. Também define a violência institucional como aquela praticada por instituições públicas ou conveniadas, incluindo a revitimização (BRASIL, 2017a).

A violência física é entendida como a ação infligida à criança ou ao adolescente que ofenda sua integridade ou saúde corporal ou que lhe cause sofrimento físico. A violência psicológica é qualquer conduta de discriminação, depreciação ou desrespeito mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, agressão verbal e xingamento, ridicularização, que possa comprometer seu desenvolvimento psíquico ou emocional, e a violência sexual é entendida como qualquer conduta que constranja a praticar ou presenciar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso, inclusive exposição do corpo em foto ou vídeo por meio eletrônico ou não.

Todos esses tipos de violência implicam em atos ou omissões exercidas pelos pais, parentes ou outros responsáveis, incluindo o Estado, causando transtornos físico, sexual e/ou psicológico à vítima. Como consequência dessas violências percebemos grandes falhas no poder/dever de proteção do adulto, da sociedade em geral e do Estado. No Brasil, a questão é tão grave que é considerada pelo Ministério da Saúde como um problema de saúde pública.

De acordo com os dados do Disque 100 – Disque Direitos Humanos, em 2019, foram registrados 86,8 mil casos de violação dos direitos de crianças e adolescentes, dos quais 11% se referem à violência sexual, da qual o serviço recebe por dia, 37 relatos. Em 73% dos casos, a violência sexual acontece na casa da própria vítima ou do agressor. Para a violação de negligência, a mãe figura como a suspeita em 56% das denúncias. Para a violência sexual, pais e padrastos representam 40% dos suspeitos nos registros. Enquanto na negligência a vítima é distribuída quase que igualitariamente entre sexo masculino, 47%, e sexo feminino, 53%, na violência sexual essa vítima é essencialmente do sexo feminino, sendo 82% do total.

Segundo o 16º Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, foram registrados em 2021 quase 20 mil casos de violência física e maus-tratos com vítimas entre 0 e 17 anos, e 62% dos crimes se concentram nas crianças de 0 a 9 anos e 91% das vítimas têm até 14 anos. De 2020 para 2021 observa-se um aumento no número de registros estupro de vulnerável, este número sobe de 43.427 para 45.994, sendo que, destes, 35.735, ou seja, 61,3%, foram cometidos contra meninas menores de 13 anos. O local da violência também permanece o mesmo: 76,5% dos estupros acontecem dentro de casa.

Em 2021, foram 7.908 registros de abandono de incapaz com vítimas de 0 a 17 anos no país, o que significou um crescimento de 11,1% em relação a 2020. A análise dos registros por idade indica que as maiores taxas estão nas faixas entre 5 e 9 anos. Já exploração sexual de crianças e adolescentes, foram registrados 733 casos em 2021 e 683 em 2020, crime este que possui uma das maiores taxas de subnotificação.

Para o Unicef, o Brasil de fato tem uma boa legislação de combate à violência contra crianças, mas em muitos locais a lei que garante os direitos das vítimas ainda não foi totalmente colocada em prática. Danilo Moura, Oficial de Monitoramento e Avaliação-Unicef Brasil, informa que há um trabalho muito grande a ser feito para garantir que os serviços tenham recursos humanos, financeiros e físicos para oferecer esse tipo de atendimento.

Os números acima colacionados demonstram a importância de garantir que o ECA e os demais dispositivos que protejam os direitos de crianças e adolescentes se façam valer plenamente.

4 OS PRINCIPAIS DESAFIOS ENFRENTADOS PELO ESTADO E PELA SOCIEDADE.

Diante de todo o exposto, é evidente que, apesar da abundância de instrumentos legais e da excelência da legislação, as evidências demonstram que a situação se afasta cada vez mais do ideal desejado de efetividade e garantia. Portanto, é imperativo identificar quais são as principais dificuldades e obstáculos enfrentados pelo Estado e pela sociedade na garantia e efetivação de direitos da criança e ao adolescente que precisam ser superados.

Em primeiro plano, no âmbito estatal, a falha na proteção das crianças está acima de tudo na prioridade de investimentos voltada ao pleno funcionamento dos Conselhos Tutelares. Inicialmente pelo fato de que não são todas as localidades do país que possuem ao menos uma unidade, ou seja, há uma falha na destinação de recursos para as políticas públicas voltadas à infância e à adolescência. Ademais, as instalações na maioria das vezes são em locais improvisados, precários e sem segurança. Os lugares que contam com a presença do órgão se deparam com a pouca quantidade de conselheiros frente a demanda de sua jurisdição. Além disso, os conselheiros enfrentam resistência por parte da sociedade e das famílias, que não por acaso, são os principais agentes responsáveis pelas violações. Os conselheiros muitas vezes necessitam de escolta policial e não são raras as vezes que sofrem agressões físicas, verbais e ameaças.

Ainda no que se refere ao Estado, outro grande desafio é o acesso de crianças e adolescentes à educação e saúde. Os municípios devem garantir a disponibilidade de creches e escolas bem como postos de saúde com pessoal qualificado para o atendimento da população infanto-juvenil, visto que é inegável a importância das escolas e da saúde municipal como elemento estratégico fundamental para o enfrentamento, conscientização, prevenção, identificação e denuncia de abusos, principalmente maus tratos e estupro de vulnerável por serem preponderantemente intrafamiliar. Segundo o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos 2019-2022, o relato dos professores é tão importante que eles possuem um número de telefone específico para mandar as denúncias, o 1510. Sem contar que, em um país continental e subdesenvolvido como o Brasil, a territorialidade e as desigualdades intensificam a vulnerabilidade e os abusos contra crianças que muitas vezes são salvas pela ação de seus professores.

Em segundo plano, no que envolve a sociedade e a família a subnotificação é o principal desafio. Cerca de 80% dos casos ocorrem dentro do ambiente familiar e isso implica no medo das vítimas de denunciar em virtude das ameaças. Além disso, é também um ambiente propício e reservado para submeter as vítimas a todos os tipos de violência sem que haja interferências.

A inércia da sociedade em geral é o fator determinante para a subnotificação. Apesar da Lei n. 13.431/2017 dispor que qualquer pessoa que tome conhecimento de situação de violência contra criança ou adolescente deve comunicar o fato imediatamente às autoridades competentes (BRASIL, 2017a), em regra, quando se tem conhecimento de situações de violência doméstica/intrafamiliar, o silêncio se instala. As pessoas não querem se envolver, tanto por medo quanto pela ideia de que não devem se intrometer em questões familiares. Geralmente esses crimes só chegam ao conhecimento das autoridades quando já foram extrapolados todos os limites ao ponto de não ser possível escondê-los.

Portanto, o conjunto desses obstáculos e as falhas na atuação do estado e da sociedade tem contribuído para que as crianças e também os adolescentes permaneçam vulneráveis e submetidos a diversos tipos de violência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em um cenário em que a proteção das crianças e adolescentes em situação de violência no Brasil é uma questão premente, a análise dos temas abordados neste artigo revela a complexidade e a importância da garantia efetiva dos direitos dessa parcela vulnerável da sociedade. O histórico da legislação infanto-juvenil demonstra a evolução na percepção dos direitos desses indivíduos, passando de uma visão assistencialista para uma abordagem que reconhece sua dignidade e proteção integral.

A atuação do Ministério Público e do Conselho Tutelar emerge como um pilar na proteção desses direitos. Essas instituições desempenham papéis cruciais na defesa e garantia dos interesses das crianças e adolescentes, atuando como agentes que investigam, protegem, orientam e encaminham, visando a assegurar seu bem-estar diante de situações de vulnerabilidade e violência.

O advento do Estatuto da Criança e do Adolescente representou um marco transformador, possibilitando a promoção de uma nova cultura de respeito aos direitos desses jovens. Após 33 anos de sua promulgação, é inegável que o ECA gerou impactos positivos, mas também se mostrou suscetível a desafios persistentes.

Os principais desafios enfrentados pelo Estado e pela sociedade na garantia e efetivação dos direitos das crianças e adolescentes não podem ser ignorados. A escassez de recursos, a falta de coordenação entre os órgãos, a conscientização insuficiente e a inércia dos civis impõem barreiras que devem ser superadas de forma colaborativa e dedicada.

Por todo o exposto, é possível concluir que a questão da efetividade da proteção à infância e adolescência em situação de violência no Brasil requer uma abordagem multidisciplinar, que envolva ações integradas do Estado, da sociedade civil e das instituições. Ao reconhecer a evolução legislativa, a atuação ativa de órgãos de proteção, o impacto do ECA e os desafios atuais, é possível traçar um caminho rumo a um ambiente mais seguro e propício ao desenvolvimento integral das crianças e adolescentes, assegurando-lhes o pleno exercício de seus direitos e a construção de um futuro mais digno e justo.

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¹Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Estadual do Tocantins – UNITINS, Campus Universitário de Palmas, como parte dos requisitos para a obtenção do grau de Bacharel em Direito.
²Acadêmica do Curso de Bacharel em Direito da Universidade Estadual do Tocantins – UNITINS.
³Mestre em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela Universidade Federal do Tocantins (UFT/ESMAT). Doutorando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Tocantins. Professor da Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS).