REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7102635
Autora:
Rani Gomes Gedeon
Graduada na Universidade Federal do Maranhão
Pós graduada em Direitos Humanos pela Faculdade de Ciências e Tecnologias de Campos Gerais – FACICA
Analista Judiciária do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão
Domiciliada em São Luís/MA
Telefone: 98 982577200
Email: ranigedeon@hotmail.com
RESUMO
O presente artigo busca analisar a trajetória das principais leis e políticas públicas a respeito da discriminação racial, bem como os problemas enfrentados para uma melhor efetivação da legislação antirracismo, haja vista que, para compreender um importante lado do combate ao racismo, devemos fazer uma análise sobre as leis criadas para reprimí-lo. Ademais, neste trabalho, é ressaltado algumas definições para um melhor entendimento do ordenamento jurídico brasileiro nos casos de racismo.
Palavras –chave: Leis. Políticas públicas. Discriminação racial. Injúria racial. Racismo. Efetivação da legislação anti-racista.
1.INTRODUÇÃO
Nas inter-relações que vivemos, é muito comum encontrarmos práticas que hierarquizam, discriminam e mantém a população negra em situação de inferioridade ou desvantagem perante a população branca. E a sociedade brasileira não está livre do racismo, a cor pesa de modo perverso e ilegal no cotidiano das pessoas de pele mais escura, em especial entre jovens pobres das periferias, e a discriminação se manifesta de múltiplas formas, como por exemplo, durante uma conversa quando alguém faz comentários ou insinuações que ofendam pessoas por sua cor ou também pode ser manifestados em textos, propagandas, anúncios de emprego que preferem pessoas brancas.
Nessa perspectiva, como o Brasil é formado por diversas etnias, por vários povos provenientes de diversos locais do mundo, é especialmente importante para nós conhecer profundamente a legislação que trata sobre as questões étnico-raciais.
O legislador constituinte ofereceu proteção à igualdade entre todos os seres humanos ao definir que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades individuais” (art. 5º, inciso XLI, CF). Esse trato igualitário entre todos, base das democracias modernas, proíbe a prática de discriminações e preconceitos decorrentes de raça, cor, origem étnica, preferência religiosa e procedência nacional, o que constitui odiosa e histórica afronta ao princípio isonômico.
A Constituição Federal é mais enfática ao estabelecer em seu artigo 5º, inciso XLII, que: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão nos termos da Lei”. Entretanto, mesmo com implantação de legislação anti-racismo, existem aqueles que não sabem diferenciar determinadas atitudes como prática de crime de racismo ou não, e uma das maiores confusões que as pessoas podem cometer é confundir racismo e injúria racial.
No presente trabalho, é feito também uma análise histórica das legislações que tratavam das condutas que discriminavam o negro. Haja vista que o comportamento do homem, ao longo da história da humanidade, sempre foi diferenciado para alguns grupos, sobretudo na origem étnica. O racismo vem surgir como desculpa para o tratamento desigual dessa etnia. No Brasil, praticamente desde o início da articulação do movimento negro, as estratégias de combate ao racismo levaram em consideração o direito e, em especial, o direito como instrumento sancionatório.
Logo, para o direito penal brasileiro, a prática da discriminação e do preconceito por raça, etnia, cor, religião ou procedência nacional consiste em um delito previsto na Lei 7.716/89, alterada pela Lei 9.459/97. As referidas legislações foram promulgadas em consonância com o artigo 5º, inciso XLI, da Constituição Federal, que estabeleceu, como já supracitado, a prática do racismo como crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão.
Contudo, percebemos alguns problemas quanto à eficácia da lei anti-racismo no Brasil, haja vista que a impunidade nos casos de racismo reflete a brandura da legislação específica e a ineficácia de justiça criminal no país.
2.HISTÓRICO
A luta do povo negro no Brasil teve início no século XVI, quando eram capturados em suas terras na África, e, tal como animais, eram escravizados e trazidos para cá nos navios negreiros. No início da descoberta do Brasil, os portugueses escravizaram os índios; porém, por volta de 1550, os índios foram substituídos pelos africanos pelo fato de estes se adaptarem melhor ao tipo de trabalho pesado realizado na Colônia.
O sentimento de superioridade dos brancos em relação aos negros era enraizado no Brasil-Colônia enquanto a coroa portuguesa obtinha lucros com o tráfico de escravos. O pensamento dos colonizadores brasileiros era comum ao dos europeus, ou seja, o de que o homem negro era como um bem a ser negociado, e não como um ser humano como eles. Eram tratados como simples mercadoria, os negros eram vendidos por meio e por tonelada. A própria forma como se comercializavam os negros africanos era reflexo de sua desumanização.
Os escravos negros eram aprisionados e submetidos a péssimas condições de trabalho, sendo explorados até o limite de suas forças, como se fossem máquinas. A vida útil do escravo adulto, em média, não passava de 10 anos, por causa da dureza dos trabalhos e da precariedade da alimentação; e seus filhos, desventuradamente, eram seus substitutos nesse infortúnio.
Entre os primeiros movimentos contra o tráfico escravagista esteve a pressão estrangeira, mais propriamente a que era feita pela Inglaterra, cuja preocupação – vale ressaltar – não era com o negro, pois este, igualmente, não era reconhecido como ser humano; o interesse era, na verdade, sustentado por motivos econômicos daquele momento histórico.
O Brasil não resistia às pressões dos ingleses e chegaram a um acordo para diminuição gradual do tráfico escravagista. Este, porém, era feito às escondidas, e não demorou muito para que os ingleses começassem a destruir os navios negreiros do Brasil, pois nosso país mostrava-se resistente à extinção do tráfico.
Nesse mesmo sentido, outro movimento que sinalizou o declínio da escravatura foi o Projeto de Lei do Ventre Livre, que estabelecia o início do estágio de evolução para um sistema de trabalho livre, sem prejudicar o sistema econômico agrário brasileiro.
O abolicionismo estava, de fato, crescendo e disseminando-se no Brasil. Foram 17 anos de lutas e perseguições entre a Lei do Ventre Livre e a Abolição. Enfim, a luta dos abolicionistas é vitoriosa e em 13 de maio de 1888 a Lei Áurea foi assinada pela Princesa Isabel: os negros estavam libertos. É bom lembrar que o Brasil foi o último país a acabar com a escravidão e, com a assinatura da Lei Áurea, os negros alcançaram a liberdade, mas não obtiveram direitos. Entretanto, a partir da liberdade, pequenas conquistas foram avançando lentamente, passo a passo.
No âmbito internacional, destaca-se como marco central do combate ao racismo a promulgação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, na qual restou consignado que “todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, opinião pública ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição”.
Foi por defender o princípio da igualdade que, em 1951, foi aprovado no Brasil o primeiro diploma a cuidar especificamente do preconceito e da discriminação racial – a Lei nº 1.390, de 3 de julho de 1951, denominada Lei Afonso Arinos, de autoria do então deputado federal pelo Estado de Minas Gerais, Afonso Arinos de Melo Franco.
Assim, com a promulgação da referida Lei, não havia mais como negar a existência do racismo. Todavia, tal diploma legislativo sofreu inúmeras críticas, vez que caracterizava as ações preconceituosas como meras contravenções penais, puníveis com 1 ano de prisão simples e com multas entre 15 dias a 3 meses, bem como suas condutas eram pouco abrangentes, o que gerava dificuldade na aplicação da Lei.
Nesta linha, a antiga Lei Afonso Arinos representou à sua época seu papel, que guarda extrema importância na História, porém, imperiosa era a promulgação de uma nova Lei, que representasse fielmente a realidade.
Em 1989 tivemos a Lei Caó que regulamenta o princípio constitucional para combater o racismo. Considerada um expressivo avanço jurídico e político, a denominada Lei Caó (por força do parlamentar Carlos Alberto Caó, autor do projeto de Lei na Câmara dos Deputados), ou ainda Lei “Antidiscriminação” ou Lei “Anti-preconceito”, veio para suprir as falhas que foram deixadas pela Lei Afonso Arinos.
A Lei Caó inovou ao caracterizar a prática de racismo como crime, em um cenário aonde este era considerado apenas uma contravenção penal, ensejando às pessoas que cometessem atos discriminatórios os benefícios da primariedade, do simples pagamento de multas etc., sem que, de fato, fossem condenadas e cumprissem pena em estabelecimentos carcerários. Ou seja, a prática do racismo vinha sendo estimulada de forma crescente, sem que o Estado, detentor de uma máquina policial-judiciária lenta e ineficiente viesse a punir os culpados.
Em seguida, essa lei foi modificada pela Lei nº 9.459 de 13 de maio de 1997, e expandiu significativamente seu alcance tipificado, já que nela está apontada, expressamente, a discriminação, acrescentando-se os crimes resultantes de preconceito ou discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Entretanto, não se definem precisamente as expressões nela contidas, como por exemplo, o que é raça e cor.
3. DEFINIÇÕES BÁSICAS ACERCCA DA LEGISLAÇÃO ANTIRRACISTA
O conceito legal de discriminação racial fora abordado primariamente durante a Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1965, realizada pela ONU e ratificada pelo Brasil em 1968. Em seu artigo 1º tem-se que a expressão “discriminação racial” significa toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública.
Sendo assim, em nossa Constituição Federal de 1988, foram aduzidos três artigos a respeito do racismo, conforme colacionados abaixo:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como:
III – a dignidade da pessoa humana;
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação;Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo;
A conquista da tipificação do crime contra o racismo foi um passo muito importante, principalmente em um país como o Brasil, marcado por grande diversidade cultural e no momento, por grandes segregações em função da raça.
Importante adentrar nesse tema e conhecer melhor a respeito da legislação adequada para os crimes racistas no Brasil, sendo necessário esclarecer primeiramente a adequação do crime nos casos de injúria racial ou de racismo propriamente dito.
O Racismo está previsto do artigo 20 da Lei nº 7.716/89 é diferente da injúria racial, implica em conduta discriminatória dirigida a um determinado grupo ou coletividade. Considerado mais grave pelo legislador, o crime de racismo é imprescritível e inafiançável, que se procede mediante ação penal pública incondicionada, cabendo também ao Ministério Público a legitimidade para processar o ofensor.
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Pena: reclusão de um a três anos e multa
Quanto a sua imprescritibilidade, estabelecido também na Constituição Federal, artigo 5°, inciso XLII, significa que não há um prazo de validade para o início da ação desde que ocorrido o incidente, no crime de racismo mesmo depois de 50 anos continuaria sendo crime, não acontecendo nenhuma causa de extinção de punibilidade. Importante frisar que apenas dois crimes em toda legislação brasileira são imprescritíveis, daí tira-se a importância a esta atribuição ao crime do racismo.
Necessário ainda ressaltar que sendo esse um crime inafiançável, não se admite pagamento de fiança para soltura do preso.
E em oposição ao crime por injúria racial, na ação penal pública incondicionada não se exige qualquer condição para que o Ministério Público possa iniciá-lo ou, mesmo, requisitar a instauração de inquérito policial. Pelo fato de não existir qualquer condição que impossibilite o início das investigações da polícia ou que impeça o Ministério Público de dar início à ação penal pelo oferecimento de denúncia, é que o art. 27 do Código de Processo Penal diz que qualquer pessoa do povo poderá provocar a iniciativa do Ministério Público. Na ação penal pública incondicionada o MP tem a obrigação de dar início a ação penal, independente de a vítima querer ou não.
Já a Injúria Racial está prevista no artigo 140, § 3º do Código Penal, se caracterizando como qualquer tipo de ofensa discriminatória onde o alvo, ou a vítima no caso, é uma pessoa ou grupo determinado de pessoas e caracteriza-se como uma ação pública condicionada à representação do ofendido, sendo o Ministério Público o detentor de sua titularidade. Na injúria racial, há uma atribuição negativa a uma pessoa, ofendendo a honra da vítima, ou seja, a sua própria autoestima.
§ 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:
Pena – reclusão de um a três anos e multa.
Necessário esclarecer que na ação pública condicionada à representação, a titularidade dessa modalidade de ação continua a ser do Ministério Público, mas depende de manifestação de vontade do interessado (vítima ou representante legal e Ministro da Justiça) para que possa desenvolver-se.
No crime de injúria racial, o réu pode responder em liberdade. Desde que paga a fiança, sua pena é menor, e a prescrição é a determinada pelo artigo109 , inciso IV, do CP (em 8 – oito – anos).
Vale lembrar que o objeto a ser protegido no crime de racismo é a Dignidade da Pessoa Humana, enquanto que no de injúria racial (ou injúria qualificada) protege-se a honra subjetiva da vítima.
Ocorre que, na prática, essa diferenciação é bem difícil pelos doutrinadores e juristas. Uma parte defende que é necessário analisar a questão subjetiva, isto é, analisar se quando o agente proferiu aquelas expressões, ele estava querendo atingir aquele indivíduo do grupo étnico-racial ou se pretendia atingir toda a coletividade, todo o grupo ao qual faz parte a vítima. O problema está em avaliar exclusivamente esse critério, porque depende unicamente da pessoa que proferiu as expressões. No cotidiano, o que se vê é que o agressor, quando assume que proferiu as injúrias, justifica-se afirmando que as fez por mero dissabor do momento, mas que jamais se considera uma pessoa racista.
Outros levam em consideração o contexto objetivo em que foi pronunciada aquela expressão. Então se analisa o ambiente em que se deu a conduta, a pessoa que se pronunciou, a própria vítima, o histórico de conduta de cada envolvido, além da análise do próprio critério subjetivo para que se possa classificar a conduta como Injúria Racial ou Racismo.
Como será demonstrado adiante, essa dicotomia legal acaba por beneficiar o infrator de crime de racismo, tendo em vista que a maioria das condutas racistas no Brasil são classificadas como meras injúrias.
Imprescindível mencionar também a presença das punições contra o racismo em outras leis do ordenamento jurídico brasileiro.
Lei de Combate à Tortura – 9.455/97: Em seu artigo 1º, I, “c”, que dispõe: “Constitui crime de tortura: constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental, em razão de discriminação racial ou religiosa”. A pena para este crime é de Reclusão, de 2 a 8 anos;
Lei de Combate ao Genocídio – 2.889/56: Em seu artigo 1º tem-se que “quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional étnico, racial ou religioso” por morte, lesão grave ou outro tipo de violência. A pena para este crime é a mesma que a pena cominada para o homicídio qualificado, ou lesão corporal qualificada, etc;
Lei de Imprensa – 5.250/67: Seu artigo 14 tipifica como crime a propaganda de preconceitos de raça ou de classe, cominando pena de Detenção, de 1 a 4 anos.Tribunal Penal Internacional: Recentemente criado através do Estatuto de Roma, a lei que estabelece esse Tribunal e que também torna o Brasil submetido a ele, estabelece, em seu artigo 6º, sua competência para julgar crimes raciais.
Dessa forma, é importante conhecer a fundo essa questão como uma forma de resgatar a identidade do povo brasileiro. Quando se aborda o combate ao racismo e aplicação da legislação relativa, o que se quer é o reconhecimento dos negros como cidadãos comuns, com a punição e repressão dos agentes de racismo e a promoção da igualdade étnico-racial.
4. DIFICULDADES ENFRENTADAS NO BRASIL NA APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO ANTIRRACISMO
No que diz respeito à aplicação dessa legislação pelos Tribunais brasileiros, o sentimento mais comum tanto por parte de atores do movimento social como por parte de juristas parece ainda decorrer de uma interpretação negativa dos supostos avanços da legislação. No entanto, é preciso uma análise mais profunda para concluir a respeito da real efetividade da lei penal antirracista no Brasil.
Um estudo dos professores da universidade de São Paulo constatou, após a análise de 111 julgados proferidos por esta corte entre 1998 e 2007, que apenas 45 do total dos casos chegaram ao Tribunal após a prolação de sentença de mérito (condenatória ou absolutória) em primeira instância, o que seria o fluxo natural dos casos no Judiciário. E destes, houve mais condenações do que absolvições – 25 condenações em relação a 16 absolvições. As condenações foram, em sua grande maioria, pelas variações do crime de injúria (simples ou qualificada, com ou sem causas de aumento de pena). E fora encontrado apenas uma condenação pelo crime de racismo do art. 20, caput, da Lei nº 7.716/89 e uma condenação pelo art. 4º da mesma lei (negar ou obstar emprego).
Na mesma linha de estudos, uma pesquisa realizada na Universidade Federal do Pernambuco quantificou o número de ocorrências de discriminação racial registradas nas delegacias da região metropolitana no Recife e constatou que, nos últimos sete anos, dos 160 casos de racismo registrados nas delegacias, apenas 3% foram julgados por esse mérito. Mais de 80% sequer se transformaram em inquérito policial.
Um dos motivos pelo qual a maior parte dos julgados não obtiveram prosseguimento se dá devido à discordância do Tribunal sobre a qualificação jurídica do caso – racismo, injúria simples ou injúria qualificada. A diferença de regimes de processamento desses crimes envolvidos nas divergências acerca da qualificação jurídica dada aos casos (ação penal de iniciativa pública ou privada) determina uma situação bastante problemática: toda vez que a desclassificação de racismo para injúria racial ocorrer após o prazo de seis meses, terá já ocorrido a decadência do direito do ofendido de propor a ação penal por este. Ou, ainda, se esta decisão for proferida deixando pouco tempo para que o ofendido viabilize a queixa crime, esse será um fator relevante para aumentar a probabilidade desse mesmo desfecho ou, ao menos, dificultar a preparação da ação a ser proposta. Diz respeito, portanto, a ausência de formalidade requerida.
Isso ocorre, porque os legisladores, muitas vezes, conferem ao fato mais grave (racismo) uma tipificação menos gravosa (injúria racial). Como exemplo, do que está sendo afirmado podemos citar o caso de um cidadão negro que é impedido de entrar num clube. Indignado com o fato, ele reclama e se envolve numa discussão com a pessoa que proibiu a sua entrada. No furor do bate-boca, o infrator acaba por proferir uma injuria racial contra a vítima. Levado o caso à delegacia, a conduta racista (de impedir a entrada de um negro no clube) desaparece e só o que se evidencia no boletim de ocorrência, ou no processo judicial é a injúria racial. Tal situação revela uma distorção no modo de adequar o fato à norma. No caso, o desenvolvimento das investigações deveria apontar a ocorrência de duas condutas autônomas (racismo e injúria racial) ou somente o crime de racismo, aplicando-se o princípio da consunção.
A segunda causa mais relevante para a extinção precoce do processo foi a insuficiência de provas para embasar a acusação. É sabida a complicação de produção de provas a respeito deste tema, que muitas vezes são provocações orais e, quando em público, poucas ainda são as pessoas que se prestam para testemunhar do ocorrido. Discerne então, ao juízo de valor não agir tão criteriosamente a esse respeito, e analisar as partes no contexto real inseridas.
Outra dificuldade tem a ver com a influência que determinado comportamento social equivocado promove na atuação dos profissionais em determinado ambiente organizado. Os aplicadores do direito não atuam em conformidade com o ordenamento, pois, parte do princípio de que a discriminação racial não é algo tão relevante, ou que o racismo não deveria ensejar penalidade tão rigorosa, entendem que a pena de prisão seria muito vigorosa para um fato que julgam de menor importância.
Assim, certos profissionais ao atuarem em suas funções acabam também por reproduzir condutas reprováveis, eis que eivadas de vícios preconcebidos ou discriminatórios. De tal modo, ocorre a perpetuação de situações de injustiças cristalizadas historicamente e de difícil transformação. O Racismo tem forte conteúdo ideológico repercutindo nos pensamentos e ações.
Por outro lado, é importante voltar a atenção para a sociedade e não só para o Judiciário e Legislativo, e atentar-se que ainda são poucos o número de processos ajuizados. Grande parte da sociedade ainda é leiga quantos aos seus direitos decorrentes dos crimes de injuria racial ou racismo. E, além disto, as delegacias, muitas vezes, não incentivam a vítima a denunciar.
Portanto, ficou bem claro que a aplicação da lei é muito mais para os casos de injuria racial do que para casos de racismo da lei especial. Assim, a aplicabilidade é discutível e nos faz questionar a relevância dessas situações para a sociedade moderna, assim como a ausência de políticas públicas que as efetivem.
4.1. O CASO SIMONE ANDRÉ DINIZ
A discriminação racial no Brasil é um problema endêmico que permeia todas as suas instituições públicas e privadas. A decisão no caso Simone André Diniz, proferida pela Comissão Interamericana, representa um marco na luta contra a insensibilidade do judiciário às questões raciais no País e merece um destaque especial.
O fato originário da denúncia deu-se quando um anúncio publicitário para a vaga de empregada doméstica deixava clara a preferência por candidatas de cor branca. Assim, ao candidatar-se à vaga anunciada, Simone André Diniz foi recusada após informar aos anunciantes que era negra.
Apresentando os fatos à justiça brasileira, após o término do inquérito policial, foi encerrado com a justificativa de que as circunstâncias não revelavam elementos suficientes para a propositura da ação penal. Em resumo, no âmbito interno o caso foi arquivado após as investigações criminais, uma vez que, o órgão ministerial entendeu que não existiam provas suficientes para iniciar a ação penal e o juiz, compartilhando do mesmo entender do ministério público, confirmou o arquivamento do caso.
Observa-se que embora houvesse provas substanciais da prática de discriminação racial em razão da comprovação sobre a existência e a autoria da publicação de anúncio publicitário de cunho discriminatório a ação penal não foi instaurada.
Com efeito, denunciado o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, esta defendeu que houve a violação de direitos humanos, e, por consequência, foi reconhecida a denegação do acesso à justiça em relação à Simone André Diniz, vítima de preconceito racial.
Salienta-se que o arquivamento do presente caso em exame não é um fato isolado, pois essa circunstância espelha um padrão comportamental das autoridades brasileiras frente às denúncias de prática de crime de racismo. E, tal caso, reflete a ineficiência do ordenamento jurídico brasileiro que tolera a impunidade nos casos de discriminação racial, portanto a insuficiência na aplicação da atual legislação específica significa a continuidade da violação dos direitos humanos decorrentes do racismo.
5. CONCLUSÃO
Ao analisar as leis antirracismo do ordenamento jurídico brasileiro, verifica-se que, do ponto de vista técnico-jurídico, elas não são tão eficazes devido a alguns problemas enfrentados na produção dos seus efeitos. A problemática em questão encontra-se na herança cultural que a sociedade brasileira carrega, não basta que as leis sejam dinâmicas e atendam aos anseios de cada grupo racial, mas são necessárias políticas públicas e ações sociais que promovam reflexão e conscientização de que a cor da pele e as diferenças étnicas não diferenciam em nada a espécie humana. O pertinente seria afirmar que a prática cidadã decorrente dos princípios democráticos preconiza que qualquer indivíduo comprometido com a ética pública deveria exterminar o discurso sustentador do preconceito racial e aceitar como reprováveis as atitudes discriminatórias.
A decisão do caso Simone André Diniz, em termos gerais, apontou a cegueira racial na sociedade brasileira, ao demonstrar os obstáculos indiretos que um indivíduo enfrenta ao buscar um remédio judicial que sane a discriminação racial sofrida. O principal elemento que causa essa discriminação é a aplicação pelo judiciário, além da quase desconsiderável porcentagem de punições pelo crime de racismo no país.
Ao criticarmos a efetividade do Direito no caso da legislação antirracismo, pretendemos concluir que há obstáculos à efetivação de direitos e à aplicação dessas leis, que as instituições do sistema de justiça não funcionam adequadamente quando têm diante de si casos de racismo e que não vivemos em uma situação de igualdade racial em nosso país. Tal crítica nos parece importante justamente porque nos permite uma melhor compreensão dos diferentes entraves e possibilidades para um combate mais efetivo ao racismo.
Salienta-se que lei e a Constituição brasileira são os documentos que o Brasil se deu para combater o racismo de uma maneira clara e firme. A lei antirracismo não possui tantas lacunas, a questão mais grave é a aplicação dessa legislação; pois, na prática, é como se o problema da discriminação e do preconceito não se constituíssem um problema para o direito e para a justiça, nem para a sociedade, nem para o poder judiciário.
Desse modo, não devemos desistir de tentar conquistar a igualdade entre os grupos existentes em nosso multiétnico país, não podemos abandonar esta luta que, com dificuldades, já se vem estruturando há séculos.
Portanto, devemos almejar a dignidade de nossos irmãos negros, para que eles tenham um lugar de respeito na sociedade e para que sua cultura ocupe o espaço a que tem direito entre os demais grupos sociais, de forma cada vez mais expressiva e valorizada, com liberdade e, sobretudo, com igualdade. E o poder judiciário, precisa se posicionar de forma nítida contra a prática da discriminação racial demonstrando um compromisso com a garantia dos direitos constitucionais e reconhecendo a condição de humano e cidadão deste povo que tanto contribuiu e contribui com o país.
6.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GOMES, Cristina. Escravidão no Brasil. 2008. Disponível no site: www.infoescola.com/hitória/escravidãonobrasil. Acessado em 22 de junho de 2015.
DUARTE, Rebeca Oliveira. Prática de Racismo e aplicação da lei: contribuição à análise da legislação antidiscriminatória, 2003. Disponível em: http://www.lppuerj.net/olped/documentos/ppcor/0124.pdf. Acessado em 21 de junho de 2015.
CRUZ, Levy. Democracia Racial. 2002. Disponível em: http://www.fundaj.gov.br/tpd/128.html . Acessado em 26 de junho de 2015.