REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102502171748
Carlos Henrique A. Duarte
Abstract:
O presente artigo visa apresentar a ideia central apresentada pelo psiquiatra suíço Dr. Carl Gustav Jung em seus estudos sobre a formação da personalidade – o processo de individuação – e circunscrevê-la através da teoria geral das tensões apresentada pelo filósofo brasileiro Mario Ferreira dos Santos. Nesse sentido, explorar- se-á como a tensão individual entre ego e self se comporta como um processo de síntese diairética na formação da personalidade.
The present article summarizes the core idea brought by the Swiss psychiatrist Dr. Carl G. Jung on the formation of personality – the individuation process – and establishes a intersection between it’s inner dilemma and the theory of tensions formulated by the Brazilian philosopher Mario Ferreira dos Santos. As a result, therefore, it explores how the individual tension between ego and self behaves as a diairetic synthesis on one’s personality.
A Psicologia Analítica e o dinamismo do inconsciente:
A psicologia analítica desenvolvida no final do século XIX e início do século XX apresentou os estudos do Dr. Carl Gustav Jung como fundamento axiomático dos métodos que dela derivariam nos anos seguintes. Confrontando a visão estática e depositária do inconsciente apresentada pela psicanálise Freudiana, a “recém elaborada psicologia” o apresenta como um basilar dinâmico, que, devido ao constante confronto com o indivíduo, se reformula, adapta e o norteia em seu modus vivendi.1
Naturalmente, o entendimento do insconsciente como um elemento dinâmico intrínseco ao indivíduo vivente abrange muito além de traumas passados, frustrações sexuais e complexos alheios à vontade individual. A constante reformulação e readaptação do insconsciente ao longo da vida do individuo acaba por gerar e advir da tensão entre o ego – o eu individual entendido no sentido junguiano – e o self – a totalidade da psiquê a ser conquistada com o desenvolvimento da personalidade. Nesse sentido, sendo essa dinâmica tensional uma constante presente na vida individual, o modo como o indivíduo aceita, ou ignora – ou até mesmo se recusa – as experiências vividas ocasionará, respectivamente, a integração da psiquê, o surgimento de neuroses2 e os vícios comportamentais adaptativos.
O Processo de Individuação:
A relação ego-self dentro dos estudos realizados pelo Dr. Jung compõe uma dialética na qual a tensão entre esses dois elementos ocorre por meio da apresentação de mensagens simbólicas inerentes ao inconsciente coletivo -a serem desvendadas e explicitadas através da propedêutica clínica – e, da qual o individuo se encontra em um diedro formado pela aceitação da realidade (i.e. a incorporação do que o inconsciente o está apresentando) com a formação saudável da personalidade e o desenvolvimento da psiquê plena; e por sua negação (i.e. a abnegação do que lhe é apresentado pelo insconsciente e, consequentemente, do modo como aquilo deveria ser assimilado), o que ocasionará neuroses, fundamentará psicoses e desajustes diversos a uma psiquê desajustada e não realizada. Assim sendo, tal qual uma semente de um pinhão contém dentro de si toda a informação necessária para dar origem a um pinheiro, dependendo apenas das condições (intempéries, solo, minerais e etc.) para que o faça, a psiquê humana realizará sua totalidade uma vez que a mente do individuo incorporar a mensagem apresentada pelo seu inconsciente ao ego.3
Ora, em um contexto pós-moderno, em que a individualidade é preterida a uma generalidade comercial (por vezes até como instinto de sobrevivência), e o entendimento da fineza existente na psiquê humana cede espaço ao cientificismo fundamentalista-empírico, as pessoas acabam por perderem o contato com seu próprio inconsciente que, manifestando-se principalmente através dos sonhos, revela segredos, soluções de conflitos e, até mesmo, caminhos a serem seguidos por parte do indivíduo. De um modo panorâmico, estariam aí as raízes das obsessões e de outras condições de desajustes psiquiátricos banais na vida atual.
A dialética:
Entendendo a relação existente entre dois entes que subsistem, pode-se estabelecer entre eles uma relação intrínseca recíproca, de tal modo que uma alteração (ainda que infinitesimal) em um ocasionará alterações significativas à relação outrora estabelecida. Aproveitando o escopo do presente artigo, podemos trazer, a titulo de ilustração, os estudos de Weber e Fechner no século XIX – Lei de Weber-Fechner 4- na qual as variações de um estimulo sensorial guardam relação exponencial com a percepção de um indivíduo. Desse modo, considerando as relações recíprocas existentes entre os dois componentes de uma díade, afirmamos que entre eles há uma relação dialética.
O entendimento da dialética, ironicamente, ocorre como uma constante na filosofia, tendo sido apresentado, em resumo, como: ferramenta de divisãoinvestigação do provável; lógica; método sintético; e método de concreção. Em todos esses entendimentos serão observadas relações investigativas das quais o observador, partindo da relação existente entre os elementos analisados, pondera a participação de cada um nela, e, daí observa o comportamento do seu resultante conforme a resposta de cada elemento. Longe do presente artigo estabelecer uma revisão histórica e precisa desse importante conceito filosófico, motivo pelo qual nos atentaremos apenas à última apresentação elencada.
A dialética tensionando a si mesma (A decadialética)
Conforme apresentamos anteriormente, de um modo intuitivo e até pueril, um individuo consegue perceber as relações dialéticas entre os objetos que o cercam, não sendo exagero que elas expressam a vitalidade da existência humana, quer externamente (os fluxos monetários do mercado, as relações diplomáticas e etc), quer, como abordaremos logo a seguir, internamente (a relação entre as glândulas hormonais, e o próprio desenvolvimento da personalidade em sua integralidade, por exemplo). As relações existentes entre sujeito-objeto extrapolam o mero aspecto formal (relacional direto) abrangendo o que prescinde a existência dessa relação (i.e. o que é indispensável à existência dessa relação).5 Assim, faz-se necessária uma análise existente, para além dos objetos em si, das relações existentes entre si, e das quais originam a própria tensão, ou seja, das tensões relacionais entre si. 6
O filósofo brasileiro, Mario Ferreira dos Santos, em sua magna obra enciclopédica enfrentando o referido problema estabelece – através de uma síntese fantástica dos métodos dialéticos explicitados ao longo da história da filosofia – um método dialético próprio denominado decadialética, no qual, partindo da relação sujeito-objeto, o estudioso poderá analisar as tensões inerentes à imprescindibilidade da própria existência. Conforme o próprio autor: “A decadialética (deka em grego quer dizer dez) é a dialética dos 10 campos de raciocínio. Esses dez campos combinam-se entre si, e tornam o raciocínio dialético complexo, heterogêneo, como a heterogeneidade da própria existência.” (SANTOS. Lógica e dialética. 2007).
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(SANTOS. Lógica e dialética. 2007 – pág 264 [s.l:s.n.]. )
Desse modo, por meio de uma sistematização das relações existentes entre sujeito- objeto, o observador poderá avaliar todos os elementos dos quais a existência daqueles deriva. De um modo esquemático, temos, apresentado pelo próprio autor:
Observa-se, assim, que, no concernente ao objeto, a tensão existente entre intensidade e extensidade estão intimamente ligadas à atualidade (entendida aqui como realização i.e. o ato) e à virtualidade (aquilo que poderá vir a ser i.e. potência). Quanto maior a intensidade de um ato (ou de uma potência), menor será a sua extensidade, não podendo existir um em plenitude e o outro em nulidade absoluta e/ou existirem ambos em plenitude ou ambos em nulidade.
Intensidade e Extensidade
Aproveitando o destaque apresentado anteriormente, e considerando a ideia introdutória e de abrir perspectivas acerca das integrações aqui propostas, limitamos a presente análise aos aspectos relacionados à extensidade e intensidade do conflito ego-self.
A essência dos conceitos de intensidade (I) e extensidade (E) dizem respeito à atualidade (A) – a ocorrência em ato, isto é, sendo no plano real -e à virtualidade (V) – a possibilidade de ocorrência, isto é, as coisas que são nas possibilidades – do objeto. Nesse sentido, da própria dialética tensional, temos que, a atualização – a realização do ato/ser no plano real – ocorre tão mais a sua virtualização – as possibilidades de realização do ato/ser no plano real – se limita. Ora, se a realização de um ato decorre da redução tensional das suas virtualizações, e suas intensidade e extensidade são inerentes àquela, o aumento – e consequente redução da contraparte – dessas tensões exigirá antes uma estabilização do ato. Ademais, uma vez fundamentadas sobre a atualizaçao (ou virtualização) tão maior a intensidade – os aspectos qualitativos referentes ao ato (ou à potência) – menor será a extensidade – os aspectos quantitativos referentes ao ato (ou à potência).8 Ilustramos, logicamente, a sequência acima descrita como:
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Partindo, assim, dessa relação, discutimos a seguir uma breve análise da tensão do ego e dos self.
Discussão e breve analítico exemplificativo
Conforme apresentamos anteriormente, o processo de individuação do indivíduo é resultado da interação e confrontação entre o ego e o self do indivíduo, cabendo a esse uma interpretação dos elementos existentes e simbolicamente apresentados pelo seu inconsciente de modo a incorporá-los à sua personalidade. Uma vez atingida a maturidade e totalidade da usa psiquê, temos a personalidade plena do indivíduo.
Partindo dessa recapitulação, à luz da análise dialética ferreiriana, podemos estabelecer, por meio de um exemplo, a importância da dialética existente entre extensividade- intensividade no processo de individuação. Consideremos um indivíduo em vigência de um quadro de neurose obsessiva. A presença de imagens invasivas, que “ruminam” na mente do paciente tornando-o incapaz de lidar com situações de estresse – ou até mesmo, privando-o de um convívio social adequado -encontra na evitação conjugada à hiper valorização do significado e, consequentemente, de repostas àquelas, sua expressão sintomática clássica. Da análise proposta pela escola de psicologia analítica, teríamos as intromissões das referidas imagens como uma expressão do inconsciente individual (por meio do simbolismo do inconsciente coletivo) de modo a comunicar ao paciente questões internas que necessitariam de devida atenção – paradoxalmente evitadas ao máximo por parte dele – de modo que, ao invés de negadas, sejam aceitas (de modo favorável e construtivo) à personalidade. Não há dúvidas que uma vez incorporadas ao encontro do self, o preenchimento da esfera da personalidade resolveria (ou atenuaria) o desconforto da obsessão e demais comportamentos a ela associadas.
Ademais, e eis aqui um confronto tensional, a valorização excessiva do ego -quer durante o processo terapêutico, quer durante o desenvolvimento psicológico -incorre no aumento da intensidade da autopercepção, de modo que, o eu outrora vítima de má assimilações e relutante a aceitação da realidade (e dos simbolismos universais apresentados pelo inconsciente coletivo) torna incapaz de sair de si mesmo. Cria-se, assim, o cenário perfeito para a deturpação da auto-imagem, que intensificada em si mesma, minimiza sua extensão. O indivíduo, na literalidade do egocentrismo, percebe-se demais e exterioriza-se minimamente, frutificando-se, assim, em mitomania, megalomania, síndromes persecutórias e, enfim, o destacamento do ego -já densificado – da realidade, isto é, nas psicoses.
Contudo, ao longo da história humana, conforme observamos nas expressões mitológicas gregas e nas grandes religiões, o indivíduo torna-se, tão mais dono de si quanto mais transcende a dimensão do seu ego. Contrário ao mecanismo acima apresentado, a capacidade de abdicação de si próprio, em detrimento de algo que vá além da esfera individual, carrega em si mesma o germe norteador da terapêutica. Uma vez direcionado a uma visão correta do que o inconsciente – individual e coletivo – lhe apresenta, o indivíduo o assimila, de modo a saciar uma demanda natural de seu desenvolvimento e, uma vez completado (preenchida a esfera), agora não mais o ego, mas uma personalidade realizada e plena será capaz de interagir para com os demais indivíduos e o meio social. Realiza-se, assim, a retirada do paciente outrora preso e vítima de si mesmo, tornando-o apto a uma percepção para além de si e, consequentemente, para além de suas próprias obsessões.7
Outro ponto a ser destacado, diz respeito às manifestações psicopatológica dos polos de tensão existentes entre o ego e o self. Conforme citamos acima, tão maior e densificado o ego, menor a percepção do indivíduo em relação às suas próprias demandas internas, e, caso persista, menor o seu contato com a realidade e o todo. De encontro a esse aumento, a relegação do ego e o aumento desenfreado do self e das pressões provenientes do inconsciente – coletivo e individual – obnubilam a auto-percepção de modo ao indivíduo não mais se enxerga como um determinante de um todo, mas sim como um infinitesimal diluído e submetido à totalidade que o submerge. Observamos, assim, a ocorrência das megalomanias e deturpações exageradas de autopercepções naqueles, e a inépcia, conformidade e embotamento total da personalidade desses. Imersos em um contexto social, a redução massificada do ego dos indivíduos que, na incapacidade ou na recusa de superar e desenvolver sua personalidade (i.e. ter a sua individuação); e o aumento desenfreado do ego de alguns indivíduos, que renegam os elementos coletivos do seu inconsciente e, consequentemente, ignoram as experiências e valores humanos universais, convergem ao domínio dessas estruturas sobre aquelas, ou seja, na estruturação de uma patologia macroscópica em nível social.
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Breve esquema ilustrativo da interdependência entre o ego e o self. Imersos no inconsciente (individual e coletivo), a assimilação dos elementos que o circundam torna o indivíduo propício a um desenvolvimento harmônico e equilibrado da personalidade.
Conclusão:
Desta mera análise dialética da tensão existente entre o ego e o self durante o processo de individuação, consideramos apenas os elementos intensivos e extensivos dentro de um quadro, conforme assinalado pela decadialética, amplo e suscetível à posteriores estudos e analises que cremos constituirem ferramentas e fundamentos essenciais no desenvolvimento de futuras terapêuticas à psicopatologia. Sustentamos, entretanto, que o fato de nos atermos e analisarmos uma escola dentro do universo da psicologia não traduz um totalitarismo científico, tampouco uma hierarquização das abordagens existentes; compreendemos nesse contexto a complexidade do todo psicopatológico e, exatamente por isso, propomos e reforçamos a análise decadialética como uma importante ferramenta, visto que em sua própria essência tal ciência visa abarcar não apenas a lógica interna dos processos, mas os fatores que determinam e se revelam indispensáveis à sua existência.
Notas e considerações:
- A esse respeito, através da leitura da subseção A Análise dos Sonhos (O Homem e seus símbolos) poderá o leitor entender a divergência da qual Dr. Jung optou por cindir-se dos paradigmas psicanalíticos até então vigentes. Nas palavras do próprio Dr. Jung (em ilustração, sem nenhuma pretensão de nossa parte em substituir a consulta à referida fonte): “Se tratarmos a análise como uma técnica mecânica, perde-se a personalidade psíquica da pessoa que sonha e o problema terapêutico fica reduzido a uma simples interrogação: qual das duas pessoas em jogo -o analista ou o sonhador – dominará a outra? (…) (EU) Desejava que o processo de cura nascesse da própria personalidade do paciente e não de sugestões minhas que teriam um efeito apenas passageiro.”.
Temos, assim, um exemplo claro de que, para além da esfera sexual e instintiva do ser humano, com a psicologia analítica passa-se à valorização da vontade individual e tentativa de anulação das prepotências e intervenções iatrogênicas outrora glamourizadas pela psicanálise. - O conceito de neurose é um dos pontos mais discordantes existentes na psicologia do século XX e XXI. Não é raro nos depararmos com conceitos que na realidade dizem respeito aos mecanismos das neuroses – quando não lemos confusões grotescas entre neurose, psicose e trauma – e não ao que essas o são em si. Por isso, elencamos, aqui, os autores de que lançamos mão e aos quais nosso texto vai ao encontro, uma vez que a definem ontologicamente. Daí, temos, da definição de David Zimmerman – “Os pacientes portadores de estruturas neuróticas caracterizam-se pelo fato de apresentarem algum grau de sofrimento e de desadaptação em alguma, ou mais de uma, área importante de sua vida sexual, familiar, profissional ou social, incluída, também, é evidente, o seu particular e permanente- mente predominante estado mental de bem ou mal- estar consigo próprio. No entanto, apesar de que o sofrimento e prejuízo, em alguns casos, possa alcançar níveis de gravidade, os indivíduos neuróticos sempre conservam uma razoável integração do self, além de uma boa capacidade de juízo crítico e de adaptação à realidade. Outra característica dos estados neuróticos é a de que os mecanismos defensivos utilizados pelo ego não são tão primitivos como, por exemplo, aqueles presentes nos estados psicóticos”.
Acrescentamos, ainda, as reflexões apresentadas por Wilfred Bion (em sua aula ministrada em Londres) onde associa o exemplo de um paciente esquizofrênico à existência daquilo que denominava como a Parte psicótica da personalidade e a parte não psicotica da personalidade que, a grosso modo, estariam ligada às psicoses e neuroses, respectivamente:
“I would make two modifications in Freud’s description to bring it into closer relation with the facts. I do not think, at least as touches those patients likely to be met with in analytic practice, that the ego is ever wholly withdrawn from reality. I would say that its contact with reality is masked by the dominance, in the patient’s mind and behaviour, of an omnipotent phantasy that is intended to destroy either reality or the awareness of it, and thus to achieve a state that is neither life nor death. Since contact with reality is never entirely lost, the phenomena which we are accustomed to associate with the neuroses are never absent and serve to complicate the analysis, when sufficient progress has been made, by their presence amidst psychotic material. On this fact, that the ego retains contact with reality, depends the existence of a non-psychotic personality parallel with, but obscured by, the psychotic personality.” (DIFFERENTIATION OF THE PSYCHOTIC FROM THE NON- PSYCHOTIC PERSONALITIES – by W.G. Bion).
Finalmente, considerando a análise filosófico-psicológica à qual nosso trabalho se propõe, elencamos, também, a reflexão filosófica apresentada pelo filósofo brasileiro Olavo de Carvalho – em suas aulas de Conceitos fundamentais da psicologia – à luz da definição apresentada pelo Dr. Juan Alfredo Cesar Muller: “A idéia de explicar a conduta humana, mesmo as condutas mais doentias, extravagantes e brutais, por instintos ou impulsos irracionais, é uma falsidade completa, cientificamente inaceitável. Onde quer que você veja isso, houve um engano, ainda que no restante da análise o sujeito esteja completamente certo. Lipot Szondi, por exemplo, parte da idéia de instintos, e essa idéia está completamente furada. Não são instintos mas são composições, complexos de imagens que você construiu a partir de instintos muito tênues. Mas o restante da análise dele é correta. A coisa vai funcionar subjetivamente “como se fossem” instintos, porque você não consegue resistir e é difícil trabalhar aquilo. Mas só é difícil trabalhar e dominar aquilo por causa da complexidade da rede simbólica que se torna um compactado denso e não-analisável. Mostrando, então, mais uma vez aquilo que dizia o meu falecido amigo Juan Alfredo Cesar Muller, que a neurose é uma mentira da qual você não se lembra mais. Essa mentira pode se tornar tão complexa que você precise de dez anos de análise só para desmontar aquilo. E, na verdade, isso se torna inviável, porque você pode ter construído vários desses complexos simbólicos, e se você passar dois anos analisando cada um, vai passar o resto da vida fazendo psicanálise”. E, reforçando o caráter de entulhamento apresentado como um loop de mentiras do indivíduo para consigo mesmo, acrescenta: “Mas os elementos que podem ser decisivos na sua conduta ao ponto de criar uma conduta compulsiva são todos conscientes. Então, você vai, conscientemente, colocando camuflagens, mudando os nomes das coisas, trocando os símbolos etc., até o ponto em que você mesmo não consiga mais reconhecer qual é o caminho das pedras. Esse é o processo de formação de uma neurose.
Ela não está no inconsciente. Não foi o inconsciente que fez nada disso. Vocês vejam que espécie de inversão psicótica que existe em atribuir essas coisas ao inconsciente. Se é mentira esquecida, quem foi que inventou a mentira? O seu inconsciente? Não. Se fosse o seu inconsciente que inventasse, então você não precisaria esquecer, porque já estaria esquecido. Isso quer dizer que, de certo modo, a consciência é a própria psique.”
Portanto, sintetizamos o conceito de neurose, em melhor proveito ao escopo deste artigo, como uma desadaptação individual frente a um estressor, resultante da assimilação inapropriada da experiência pelo ego. - Nas palavras de M.von Franz ( ainda em O Homem e seus símbolos) considerada uma das maiores discípulas de Carl Gustav Jung:
“Podemos exemplificar assim esta afirmativa: a semente de um pinheiro contém, em forma latente, a futura árvore; mas cada semente cai em determinado tempo, em um determinado lugar, no qual intervém um determinado número de fatores, como a qualidade do solo, a inclinação do terreno, a sua exposição ao sol e ao vento etc. A totalidade latente do pinheiro reage a estas circunstâncias evitando as pedras, inclinando-se em direção ao sol, modelando, em fim, o crescimento da árvore. É assim que um pinheiro começa, lentamente, a existir, estabelecendo sua totalidade e emergindo para o âmbito da realidade. Sem a árvore viva, a imagem do pinheiro é apenas uma possibilidade ou uma abstração. E a realização desta unicidade no indivíduo é o objetivo do processo de individuação.” - Os estudos de psicofísica em voga no século XIX buscaram o estabelecimento de relações naturais e empíricas entre os estímulos físicos, a percepção humana e as respostas psicológicas a eles produzidos. Dentro do pensamento norteador das referidas investigações, temos a negação valorativa do entendimento e da existência da psiquê, expressos no behaviorismo de Pavlov, na afirmação de inexistência da psiquê por Skinner, e no condicionamento dos experimentos de Thorndike. Nesse contexto, a lei de Weber-Fechner apresentou de modo equacionado a percepção dos estímulos em relação à quantidade que se incidia ao organismo em estudo. Matematicamente, temos P= k. ln(S) – ln (So), onde a percepção (P) do estilo responde em variação exponencial da variação dos estímulos (S e So).
- Entendendo que dentro do exemplo apresentado acabamos por plainar sobre o aspecto existencialista do processo terapêutico, entendemos como oportuno um breve esclarecimento acerca do mesmo. Partindo da precedência da existência para com a essência, a filosofia existencialista entende a existência individual como a genuína expressão do ser (daquilo que é), de modo que os elementos e fatores que a norteiam e circunscrevem também a determinam e condicionam. Nas palavras de M. Heidegger:
“É por isso que se deve procurar, na analítica existencial da presença, a ontologia fundamental de onde todas as demais podem originar-se. Em consequência, a presença possui um primado múltiplo frente a todos os outros entes: o primeiro é u m primado ôntico: a presença é u m ente determinado em seu ser pela existência. O segundo é um primado ontológico: com base em sua determinação da existência, a presença é em si mesma “ontológica”. Pertence à presença, de maneira igualmente originária, e enquanto constitutivo da compreensão da existência, uma compreensão do ser de todos os entes que não possuem o modo de ser d a presença. A presença tem, por conseguinte, um terceiro primado que é a condição ôntico-ontológica da possibilidade de todas as ontologias. Desse modo, a presença se mostra como o ente que, ontologicamente, deve ser o primeiro interrogado, antes de qualquer outro. A analítica existencial, por sua vez, possui, em última instância, raízes existenciárias, isto é, ônticas. Só existe a possibilidade de u m a abertura da existencialidade da existência, e com isso a possibilidade de se captar qualquer problemática ontológica suficientemente fundamentada, caso se assuma existenciariamente o próprio questionamento da investigação filosófica como uma possibilidade de ser da presença, sempre existente. Assim esclarece-se também o primado ôntico da questão do ser. “
Encontramos em Heidegger, Jaspers, Binswanger e Boss, os principais pilares da análise terapêutica originados dessa escola. - Complementando o apresentado na nota anterior, o ser enquanto existente naquilo que é – o Dasein – encontra-se determinado e submetido àquilo que o faz existir. Nesse sentido, Ludwig Binswanger descreve uma tipologia da existência do ser-no-mundo, composta em três aspectos (aqui observamos a influência cientifica nas filosofias presentes no século XIX na medida em que os termos a seguir apresentados confluem aos experimentos biológicos realizados por Von Uexküll):
- Umwelt – o mundo natural com o qual o individuo terá contato, isto é o seu ambiente “natural”;
- Mitwelt – o mundo de interação do indivíduo com os demais entes existentes;
- Eigenwelt – o mundo próprio da existência do ser enquanto existente, compreendendo principalmente a sua autopercepção e auto-interpretação.
Paralelamente, Karl Jaspers apresenta os determinantes da diferenciação da vida psíquica, que dialoga diretamente com a constituição concêntrica da tipologia acima apresentada. Nas palavras do próprio autor, em sua magna obra Psicopatologia Geral:
“Deve-se analisar o conceito de diferenciação. Em primeiro lugar, entende-se por diferenciação o aumento dos modos de vivência qualitativa. Em segundo lugar, a decomposição de modos de vivência confusos em vários outros claros em razão dos quais a totalidade da vivência se torna mais rica e profunda: um fenômeno uniforme de uma etapa inferior se analisa numa etapa superior; um impulso vago é determinado por conteúdos; o aumento da análise significa, ao mesmo tempo, aumento da clareza e consciência. Pressentimentos, sentimentos, pensamentos indeterminados se fazem claros, determinados e explícitos. Em oposição ao estado indiferenciado de inocência surgem na vida psíquica oposições diversificadas. Com isso, a diferenciação indica, em terceiro lugar, a análise e síntese da consciência objetiva. Crescem as possibilidades de pensar, aprender e relacionar- se, de distinguir e comparar. Em quarto lugar, diferenciação significa ter consciência de si mesmo na auto-reflexão [o desenvolvimento do eigenwelt (grifo nosso)]. Deve-se distinguir entre a diferenciação de fato vivida pelo sujeito mas que não precisa ser consciente, e a consciência da diferenciação, que se mostra na auto-observação. (…) Em quinto lugar, é decisivo para a compreensão de uma personalidade ter-se consciência do nível de diferenciação em que se encontra. Uma vez que à diferenciação se acrescentam ainda a força e a vivacidade, existem diferenças de níveis no tocante ao todo da personalidade(…)’’
Observa-se, assim, para além do escopo deste texto que, a tensão interna durante a individuação ocorre simultaneamente à influência de inúmeros elementos tensionais (internos e externos) para com a existência do indivíduo e, assim sendo, o isolamento totalitário (longe de incorrermos em julgamentos anacrônicos) de abordagens ante os quadros psicopatológicos, não esgotariam a compreensão de uma afecção individual. Explicitamos por meio dessa consideração que, embora delimitados os comparativos e a investigação do presente texto, não a visualizamos em nenhuma posição hierárquica em relação as demais metodologias e abordagens terapêuticas. Eis aí a nossa isenção de conflitos de interesse.
- A capacidade do índivíduo em superar a si mesmo é uma constante na história universal, e um tema recorrente nas grandes religiões. Percebemos, por exemplo, que desde sua condenação, Sócrates, em defesa de algo maior que si – a verdade – esteve disposto a se sacrificar (ainda que sob pena injusta e oferta de fuga). Platão e Aristóteles, assim como aquele, também enxergavam no corpo uma prisão voltada à expiação da alma, e entendiam como essencial o desenvolvimento das virtudes e renegação dos vícios.
No tocante às grandes religiões, o exemplo de maior aplicação e simbolismo dentro do presente ensaio é expresso na figura de Cristo. Nesse sentido, os próprios estudos soteriológicos desenvolvidos dentro da teologia e da antropologia trazem em si a relação do ser humano com o arquétipo de sua redenção. Nas palavras do próprio professor Mário Ferreira dos Santos em aula ministrada: “Pode-se afirmar, ademais, que também a psicologia profunda alcança um máximo de clareza por meio de uma antropologia que deixa espaço para uma doutrina de salvação pessoal. Sem soteriologia, a meta, inclusive no estado da psicologia profunda, permanece cheia em si mesma de contradições e necessitada de aclaração. Como podia ser de outro modo em teoria, quando na prática da própria vida humana a progressiva personalização sem relação com um salvador permanece incompleta e obscura? O completo desenvolvimento da vida humana marcha na direção da libertação que se consegue quando se renuncia aos direitos do ego por amor a alguém. Capacidade de amor, significa, sempre, vencimento do ego. De forma que a própria realização e o próprio enriquecimento marcham no caminho do vencimento do eu. Por outra parte, tampouco, deve entrar em função demasiadamente próxima, as limitações da superação do eu. Não podemos educar o lactante para ser altruísta por meio de normas éticas. Devemos fortalecer, em primeiro lugar, o eu que vai crescendo, mas devemos também aprender a superar o ego, e isto sucede unicamente quando se encontra uma unidade cada vez maior como o tu.
Todas as grandes religiões sabem que se é mais pessoa quanto mais se está unido com uma força transubjetiva. A mera técnica da própria realização sem que se aspire à união com uma essência transubjetiva, conduz ao fortalecimento do ego que leva em si mesmo cada vez mais sinais narcisistas.’’ - Reforçamos que a delimitação dos aspectos de atualidade/virtualidade e intensidade/extensidade do objeto são propositais ao escopo deste artigo. Entendemos que, ainda eivados de uma demonstração lógica e panorâmica, esclarecimentos e detalhes maiores sobre tais tensões são imperiosas, motivo pelo qual expomos a seguinte explicação ferreiriana:
“O que é em ato tem intensidade e extensidade, as quais podem ser reais ou abstratas.
Se o que é um ato é um corpo, a antinomia entre intensidade e extensidade é contemporânea e irredutível, além de necessária. Se o que está em ato é uma abstração, como uma ideia, temos, então, uma intensidade e uma extensidade também contemporâneas e complementares, em abstrato, pois como já vimos, um pensamento exige ser pensado e, portanto, o ato de pensar.
Por ser heterogênea, a intensidade tem suas oposições inerentes, imanentes (e a extensidade homogênea), que variam segundo as alterações do que a contém, pois as alterações, por serem qualitativas, são intensistas. Então temos aqui o 5) Campo das oposições da intensidade e da extensidade nas atualizações. Essas atualizações são ainda de número indeterminado e quando qualitativas (intensidade) ou quando quantitativas (extensidade), têm ações recíprocas que já estudamos, quando tratamos das passagens da quantidade para a qualidade e vice-versa, da reciprocidade, etc.” - A esse respeito, incluímos o conceito da psiquê à ontologia do indivíduo humano de tal sorte que o exemplo citado de desequilíbrio a nível social já fora descrito por Constantin Noica em seu livro As seis doenças do espírito contemporâneo.
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Bacharel em Medicina – Universidade Federal de Goiás