A CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOTRANSFOBIA PELO STF. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE?

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10685703


Aline Zorek Buchmann,
Rita de Cássia Correa Vasconcelos


RESUMO

O presente artigo visa trazer à tona um debate bastante atual sobre o papel ativo do Poder Judiciário. Trazendo questões de omissão e mora do Poder legislativo, interpretação de princípios constitucionais, bem como as interferências do Judiciário em questões envolvendo a liberdade do cidadão. Os riscos do ativismo judicial no âmbito do Direito Penal estão diretamente atrelados ao princípio constitucional da Legalidade e Separação de Poderes. 

Palavras-chave: Ativismo Judicial; Princípio da Legalidade; Direito Penal; e Poder Judiciário.

INTRODUÇÃO

O constituinte de 1988 preocupou-se com a omissão passível de inviabilizar o exercício dos direitos e garantias constitucional, prevendo duas medidas que poderiam ser capazes de viabilizá-los, quais sejam, o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão.

Embora se trate de institutos processuais distintos, ambos podem ser acionados em hipótese de omissão legislativa. Existem posicionamentos doutrinários que procuram explicar as posturas do Judiciário frente a essa inércia do Legislativo. Contudo, além de não haver previsão legal para que o Supremo Tribunal Federal possa suprir a omissão, não se pode ignorar o princípio da separação dos poderes.

Por tal razão, havia e ainda há muito questionamento acerca da inocuidade de tais instrumentos processuais. Não obstante, algumas decisões proferidas tanto em sede de ADO quanto em sede de MI, numa tentativa de amenizar a ineficácia dos institutos, acabou trazendo uma discussão ainda mais relevante, qual seja, uma possível inconstitucionalidade nas decisões saneadoras de omissão e/ou até uma indevida postura ativista do Poder Judiciário no Poder Legislativo.

Fica, portanto, o STF em uma situação complicada. Se por um lado, deve garantir o exercício dos direitos e garantias fundamentais, por outro, não deve se imiscuir na atividade típica do Poder Legislativo, qual seja, a de legislar, violando, assim, o princípio da separação dos poderes.

A questão ganhou mais relevância na medida em que, no dia 13 de junho de 2019, o STF proferiu decisão na ação direta de inconstitucionalidade por omissão n° 26 e no mandado de injunção n° 4733, no sentido de enquadrar a homofobia e a transfobia nos diversos tipos penais definidos na Lei n° 7716/89, até que venha legislação autônoma, editada pelo Congresso Nacional, seja por considerar que as práticas homotransfóbicas qualificam-se como espécies do gênero racismo, seja, ainda, porque tais comportamentos ajustam-se ao conceito de atos de discriminação e de ofensa a direitos e liberdades fundamentais daqueles que compõe o grupo vulnerável LGTB+.

É, portanto, necessária uma análise pormenorizada da referida decisão, a fim de se chegar a uma conclusão acerca da sua inconstitucionalidade seja por ofensa aos princípios da separação de poderes e legalidade, seja por postura ativista indevida do Poder Judiciário.

Assim, este trabalho tem a pretensão de explanar a decisão proferida na ADO 26/DF de relatoria do Min. Celso de Mello e no MI 4733, de relatoria do Min. Edson Fachin. Nessa extensão, destacar as diferenças entre os institutos processuais da ação direta de inconstitucionalidade e do mandado de injunção, especialmente no que tange aos seus efeitos (erga omnes ou interpartes). Necessária a análise acerca das correntes doutrinárias que tratam da postura do judiciário frente à omissão legislativa, em sede de controle de constitucionalidade, bem como sobre a possível ofensa ao princípio da separação de poderes.

Em âmbito penal, pretende-se verificar possível afronta ao princípio da legalidade, da proibição da analogia in malam partem, e da possibilidade de utilizar da interpretação analógica, de modo a “salvar” a decisão.

Síntese da decisão proferida na ADO 26 e no MI 47331

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade por omissão proposta pelo Partido Popular Socialista – PPS em face de alegada inércia legislativa atribuída ao Congresso Nacional que – segundo sustenta a agremiação partidária – estaria frustrando a tramitação e a apreciação de proposições legislativas apresentadas com o objetivo de incriminar todas as formas de homofobia e transfobia. 

O Partido Popular Socialista – PPS, em sua longa e fundamentada petição inicial – após tecer relevantes considerações a respeito do tema concernente à pretensão de “criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente) das ofensas (individuais e coletivas), dos homicídios, das agressões e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima”, em face da existência, segundo sustenta, “da ordem constitucional de legislar relativa ao racismo (art. 5º, XLII) ou, subsidiariamente, às discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI) ou, ainda subsidiariamente, ao princípio da proporcionalidade na acepção de proibição de proteção deficiente (art. 5º, LIV, da CF/88)” –, requereu a procedência integral das ações.

A Presidência do Senado Federal prestou informações pugnando pela improcedência do pleito, “(…) resguardando-se a legalidade penal, a separação de poderes e a independência do Poder Legislativo, confirmando-se sua competência jurídico-política”.

A Câmara dos Deputados, por sua vez, manifestou-se no sentido de “(…) reafirmar a posição institucional desta Casa que, em 23 de novembro de 2006, aprovou o Projeto de Lei nº 5.003, de 2001, que ‘determina sanções às práticas discriminatórias em razão da orientação sexual das pessoas’, enviado em seguida à análise do Senado Federal”.

A Advogada-Geral da União em exercício, Maria Aparecida Araújo Siqueira, ao pronunciar-se nos autos, sustentou a improcedência da ação direta de inconstitucionalidade por omissão.

Foram admitidos, como “amici curiae”, manifestando-se de forma contrária ao acolhimento do pleito inicial: “Frente Parlamentar ‘ Mista’ da Família e Apoio à Vida ”, “Convenção Brasileira de Igrejas Evangélicas Irmãos Menonitas – COBIM ” e “Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE” e, de outro lado, pronunciando-se, favoravelmente , à pretensão de inconstitucionalidade, as seguintes entidades: “Grupo Dignidade – Pela Cidadania de Gays, Lésbicas e Transgêneros ”, “Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados – PSTU ”, “Conselho Federal de Psicologia, Associação Nacional de Travestis e Transsexuais – ANTRA ” , “Defensoria

Pública do Distrito Federal”, “Grupo Gay da Bahia – GGB”, “Associação de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – ABGLT ” e “Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual – GADVS”.

A Procuradoria-Geral da República, em fundamentada manifestação da lavra do eminente Chefe da Instituição, opinou pelo conhecimento parcial da ação direta e, nessa extensão, pela procedência do pedido na parte conhecida.

Em julgamento realizado no dia 13 de junho de 2009, acordaram os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro Dias Toffoli, por unanimidade de votos, em conhecer parcialmente da ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Por maioria e nessa extensão, julgá-la procedente, com eficácia geral e efeito vinculante, para:

a) reconhecer o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional na implementação da prestação legislativa destinada a cumprir o mandado de incriminação a que se referem os incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição, para efeito de proteção penal aos integrantes do grupo LGBTI+; 

b) declarar, em consequência, a existência de omissão normativa inconstitucional do Poder Legislativo da União; 

c) cientificar o Congresso Nacional, para os fins e efeitos a que se refere o art. 103, § 2º, da Constituição c/c o art. 12-H, “caput”, da Lei nº 9.868/99; 

d) dar interpretação conforme à Constituição, em face dos mandados constitucionais de criminalização inscritos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Carta Política, para enquadrar a homofobia e a transfobia, qualquer que seja a forma de sua manifestação, nos diversos tipos penais definidos na Lei nº 7.716/89, até que sobrevenha legislação autônoma, editada pelo Congresso Nacional, seja por considerar-se, nos termos deste voto, que as práticas homotransfóbicas qualificam-se como espécies do gênero racismo, na dimensão de racismo social consagrada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento plenário do HC 82.424/RS (caso Ellwanger), na medida em que tais condutas importam em atos de segregação que inferiorizam membros integrantes do grupo LGBTI + , em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero, seja, ainda, porque tais comportamentos de homotransfobia ajustam-se ao conceito de atos de discriminação e de ofensa a direitos e liberdades fundamentais daqueles que compõem o grupo vulnerável em questão; e 

e) declarar que os efeitos da interpretação conforme a que se refere a alínea “d” somente se aplicarão a partir da data em que se concluir o presente julgamento, nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli (Presidente), que julgavam parcialmente procedente a ação, e o Ministro Marco Aurélio, que a julgava improcedente. 

Em seguida, por maioria, fixaram-se as seguintes teses: 

1. Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”); 

2. A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero; 

3. O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito, vencido o Ministro Marco Aurélio, que não subscreveu as teses propostas.

O julgamento foi realizado em conjunto com o MI 4733, considerando a identidade dos pedidos, diferentes apenas os instrumentos processuais e os autores das ações, todos representados pelo mesmo advogado, Paulo Roberto Iotti Vechiatti, conforme consta dos relatórios dos Ministros Celso de Mello (ADO 26) e Edson Fachin (MI 4733).

Classificação quanto à eficácia das normas constitucionais

A primeira obra a tratar de forma sistematizada a questão da classificação das normas constitucionais quanto à eficácia foi publicada em 1967, sendo, ainda, a mais adotada no Brasil. Em monografia sobre o tema, José Afonso da Silva (2004) faz uma distinção entre normas constitucionais de eficácia plena, contida e limitada.

Conforme explica Marcelo Novelino (2017), as normas de eficácia plena possuem aplicabilidade direta e imediata por não dependerem de legislação posterior para sua inteira operatividade, estando aptas a produzir, desde sua entrada em vigor, seus efeitos essenciais. Por terem aplicabilidade integral, não sofrem restrições infraconstitucionais, embora admitam regulamentação. 

Já as normas constitucionais de eficácia contida são normas com aplicabilidade direta, imediata e possivelmente não integral, o que significa que, desde a sua entrada em vigor, necessitam de atuação legislativa no sentido de reduzir o seu alcance (NOVELINO, 2017).

Por fim, as normas constitucionais de eficácia limitada ou contida são as que interessam para o nosso estudo. São normas que possuem aplicabilidade indireta, mediata e reduzida, uma vez que necessitam de regulamentação ulterior que lhes desenvolva a eficácia. Tais normas possuem eficácia negativa, ou seja, não recepcionam a legislação anterior incompatível e impedem a edição de normas em sentido oposto aos seus comandos.

“O dever jurídico de legislar decorrente de tais normas é pouco eficaz, devido à inexistência de sanção específica e à impossibilidade de obrigar o legislador a criar leis”2. A discricionariedade do legislador se restringe ao momento de iniciativa, pois, havendo lei integrativa preexistente, não é admitida a sua revogação caso dela decorra um vácuo legislativo.

Aspectos gerais da ADO e do MI

É preciso ressaltar que, embora o STF tenha optado pelo julgamento conjunto da ADO 26 e do MI 4733, unidos pela mesma razão, a inércia do legislador quanto à criminalização da homotransfobia, os procedimentos da ADI e do MI são distintos entre si quanto à natureza processual, constitucional e política.

A violação de normas constitucionais pode ocorrer não apenas quando o Poder Público pratica condutas comissivas – inconstitucionalidade por ação – mas também em hipóteses nas quais deixa de agir conforme determina a Constituição – inconstitucionalidade por omissão.

Conforme Novelino (2017), para assegurar a supremacia constitucional nessas hipóteses, foram consagrados dois instrumentos: o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão.

A ADO trata-se de ação de controle concentrado de constitucionalidade, na qual a pretensão é deduzida em juízo mediante um processo constitucional objetivo. Possui a finalidade precípua de proteger a ordem constitucional objetiva, sobretudo, no tocante às normas de eficácia limitada. 

Por se tratar de uma das ações do controle de constitucionalidade concentrado, suas decisões serão dotadas de eficácia erga omnes e efeito vinculante3.

A ação direta de inconstitucionalidade por omissão permite a tutela dos direitos e garantias fundamentais mediante pedido dos legitimados pelo art. 103 da Constituição Federal, ampliando o objeto do processo objetivo. Por outro lado, a Constituição Federal permitiu que essa tutela se desse também mediante pedido do sujeito que não pode exercer o seu direito em razão de indevida omissão, considerando a ausência de norma regulamentadora em concreto.

Assim, o mandado de injunção é uma garantia constitucional concebida pelo constituinte brasileiro para assegurar o exercício de certos direitos, liberdades e prerrogativas inviabilizados por uma omissão inconstitucional (NOVELINO, 2017). Trata-se de ação de controle incidental de constitucionalidade, na qual a pretensão é deduzida em juízo mediante processo subjetivo, cujo cabimento pressupõe a impossibilidade de exercer um direito constitucionalmente assegurado em virtude de ausência de norma que regulamente a norma constitucional de eficácia limitada.

Analisando os artigos 5°, inciso LXXI, da CF4 e a Lei 13.300/16, bem como o artigo 103, §2°, da CF5 e a Lei 9.868/99, verifica-se que a finalidade do mandado de injunção é viabilizar o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania (controle concreto), ao passo que a finalidade da ação direta de inconstitucionalidade por omissão é tornar efetiva uma norma constitucional (controle abstrato).

Importante salientar que o art. 103, especificadamente seu §2°, da CF não criou uma nova ação de controle concentrado, apenas admitiu que na ação direta de inconstitucionalidade também se tutelasse a omissão normativa do Poder Público. A Lei 12.063/09 incluiu um capítulo na Lei 9.868/99, tratando expressamente da ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Antes, no entanto, já era possível o ingresso da ação, sendo aplicadas as regras procedimentais existentes para a ação direta de inconstitucionalidade por ação (NEVES, 2012).

Teorias concretista e não concretista

A doutrina adotada em caráter majoritário segue o modelo sistematizado por Alexandre de Moraes. Nessa classificação, os efeitos das decisões em mandado de injunção se dividem em duas teorias clássicas: a teoria não concretista e a teoria concretista; sendo que a segunda se subdivide em teoria concretista geral e concretista individual (direta e intermediária). De acordo com o posicionamento não concretista, em nome da harmonia e separação entre os poderes, o Judiciário não poderia suprir a omissão da norma faltante, tampouco determinar prazo para o legislador criar determinada lei. Desta forma, resta apenas a sentença declarar a mora legislativa. Critica-se essa posição por tornar os efeitos do mandado de injunção idênticos aos da ação direta de inconstitucionalidade, apesar de serem institutos diversos (MORAES, 2007).

Para a corrente concretista geral, o Poder Judiciário poderia solucionar a omissão legislativa, regulamentando-a com efeitos erga omnes, ou seja, atribuindo ao judiciário um papel atípico de legislador positivo. Essa posição é pouco aceita na doutrina, pois como ressalvado pelo Ministro Moreira Alves, no julgamento do MI 10736, uma decisão com efeito erga omnes estaria o judiciário ocupando a função do legislativo, claramente incompatível com a separação de poderes.

A teoria concretista individual assegura ao Judiciário a possibilidade de criar a norma que regulamenta a omissão legislativa, mas condiciona os efeitos emanados da decisão apenas às partes integrantes do processo analisado. O exercício do direito conferido se viabiliza de maneira estrita e específica aos integrantes do caso, através do efeito interpartes (MORAES, 2007).

Para otimizar os efeitos da decisão judicial segundo essa teoria, Rodrigo Mazzei afirma que deverá haver adequação do polo passivo, de modo que seja incluída como litisconsorte a pessoa responsável pela efetivação do mandado, caso seja pessoa diversa da autoridade pública competente (MAZZEI, 2008).

Como salienta Sálvio de Figueiredo Teixeira citando Canotilho:

O mandado de injunção não tem por objecto uma pretensão a uma emanação, a cargo do juiz, de uma regulação legal complementadora com eficácia ‘erga omnes’. O mandado de injunção apenas viabiliza num caso concreto, o exercício de um direito ou liberdade constitucional perturbado pela falta parcial de lei regulamentadora. Se a sentença judicial pretendesse ser uma normação com valor de lei ela seria nula (inexistente) por usurpação de poderes7.

Essa espécie é ainda dividida em concretista individual direta e concretista individual intermediária. Pela primeira, o Poder Judiciário, imediatamente ao julgar procedente o mandado de injunção, implementa a eficácia da norma constitucional ao autor. Pela segunda, após julgar pela procedência do mandado de injunção, fixa ao Congresso Nacional o prazo de 120 dias para a elaboração da norma regulamentadora. Ao término desse prazo, se a inercia permanecer o Poder Judiciário deve fixar as condições necessárias ao exercício do direito por parte do autor (MORAES, 2007).

Evolução do entendimento do STF acerca da postura do Judiciário em hipótese de inércia legislativa

Ao contrário do que ocorre no mandado de injunção, por se tratar de processo coletivo, não há na ação direta de inconstitucionalidade por omissão busca por interesses privados. As ações do controle concentrado visam a defesa do interesse genérico da sociedade em relação à tutela da CF/88. Nessa lógica, pode-se considerar que o objetivo da ADO será o de apenas declarar a mora em legislar, ou seja, possibilitando decisões do STF tão somente no sentido da posição não concretista. Portanto, a natureza da decisão em sede de ADO é meramente declaratória.

Esse é o entendimento extraído do art. 103, §2°, da Constituição Federal, quando aduz que é cabível ação direta de inconstitucionalidade por omissão, admitindo-se que o Supremo Tribunal Federal, ao declarar a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, dê ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, tratando-se de órgão administrativo, para fazê-lo em 30 dias. 

Assim, em se tratando de inércia do Poder Legislativo ou mesmo no caso de órgão administrativo, não há previsão legal para que o STF possa suprir a omissão. A pergunta que se faz, então, é: a ADO não seria um mecanismo inócuo? Nesse sentido, a jurisprudência do STF, como forma de amenizar a ineficácia da ADO, contempla alguns julgados nos quais a decisão definitiva de mérito pela procedência da ação permaneceu adstrita à posição não concretista, mas foi estipulado prazo para legislar, mesmo em caso de omissões do Poder Legislativo (não apenas de órgãos administrativos).

Isso se deu no julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade por omissão n° 3.682, ADO n° 24 e ADO n° 25.

Quanto à omissão na ADI 3682, o STF declarou o estado de mora do Congresso Nacional e fixou lapso temporal de dezoito meses para que adotasse as providências legislativas necessárias ao cumprimento do dever constitucional imposto do art. 18, §4°, da Constituição Federal.

Já no mandado de injunção, o processo é subjetivo, por meio do qual é exercido controle de constitucionalidade concreto e por via incidental, tendo como escopo viabilizar o exercício dos direitos constitucionais por seus titulares. Antes da edição da lei de regência em 2016, utilizava-se a Lei do mandado de segurança para regrar o seu procedimento. Sem uma regulamentação específica, muitos debates acerca dos efeitos de uma decisão pela concessão da injunção ocorreram.

O mandado de injunção, consoante se extrai do art. 5°, inciso LXXI, da Constituição Federal, há de se suprir a falta de norma regulamentadora que obsta o exercício dos direitos e liberdades constitucionais, devendo a ordem de injunção propiciar o imediato exercício dos direitos obstados. Não obstante, o entendimento era no sentido de que o objeto do mandado de injunção circunscrevia-se à declaração da existência, ou não, de mora legislativa para a edição de norma regulamentadora específica, cuja consequência da constatação de tal mora era sua mera comunicação ao Poder Legislativo a fim de que fossem adotadas as providências necessárias para suprir a omissão legislativa, sem sequer ser fixado prazo para que o órgão legiferante ditasse a norma regulamentadora. 

Em sede de MI, esse entendimento não concretista, mas com fixação de prazo, foi utilizado pela primeira vez no MI 283, onde foi estipulado um prazo de 45 dias para o Poder Legislativo, e mais 15 dias para a devida sanção presidencial, sob pena de se arbitrarem perdas e danos ao prejudicado através da via processual adequada.

Ocorre que, ultrapassados os prazos estabelecidos pelo Poder Judiciário e devido à permanente inércia do Poder Legislativo, o STF acabou mudando o seu entendimento, passando a admitir a posição concretista, como ocorreu no MI 284, que versava sob a mesma matéria do 283, admitindo, de pronto, a possibilidade de reparação econômica pelo impetrante prejudicado pela ausência da norma.

Em outubro de 2007, ao julgar os mandados de injunção de n. 670, 708 e 712, quanto à ausência de regulamentação da greve dos servidores públicos (Art. 37, VII, CF/88), a Corte de Cúpula do Judiciário brasileiro autorizou o exercício de greve, sob certas condições, mesmo sem a edição de lei específica.

Nesses mandados de injunção, o STF decidiu suprir a omissão por si, determinando que se aplicasse aos servidores públicos a lei de greve dos empregados privados, até que o Poder Legislativo editasse regulamento sobre o tema, representando um grande avanço na proteção dos direitos e liberdades constitucionais, que passaram a contar com um instrumento efetivo para lhes viabilizar a fruição.

A decisão não foi pacífica, posicionando-se alguns Ministros pela manutenção do entendimento anterior, por considerar que uma modificação como a que se aventava violaria o princípio da separação de poderes. Porém, a maioria decidiu privilegiar a eficácia dos direitos previstos na Constituição Federal em detrimento de uma rígida separação das funções do Estado.

Assim, a tese concretista (geral ou individual) passou a ser adotada somente após outubro de 2007, embora tal efeito era esperado desde a Constituinte. De acordo com Flávia Piovesan, essa é a teoria mais acertada, uma vez que o objetivo precípuo desse remédio constitucional é a concretização do direito subjetivo do cidadão, e não a defesa do ordenamento jurídico de maneira geral, o qual poderá ser regularizado através do controle concentrado de constitucionalidade, com a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (PIOVESAN, 2003).

A jurisprudência sobre a ADO e o MI vinha, de maneira geral, portanto, trilhando caminhos próprios.  

Decisão na ADO 26 e MI 4733

Não obstante, no julgamento da ADO 26 e do MI 4731, inovou mais uma vez ao adotar a posição não concretista nos itens a), b) e c)8 do dispositivo do referido acórdão e posição concretista geral nos demais itens (d) e e)).

Isso porque o Poder Judiciário solucionou a omissão legislativa, regulamentou a com efeitos erga omnes e efeitos ex nunc, ao enquadrar a homofobia e a transfobia, qualquer que seja a forma de sua manifestação, nos diversos tipos penais definidos na Lei 7.716/89. Assim, considerou que as práticas homotransfóbicas qualificam-se como espécie do gênero racismo, na medida em que tais condutas importam em atos de segregação que inferiorizam membros integrantes do grupo LGBTI+, em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero.

Por conta dessas decisões, muitos questionamentos a respeito de uma inconstitucionalidade e/ou de uma possível postura ativista indevida no Poder Legislativo têm sido levantados. 

Princípio da Separação dos Poderes

A Constituição Federal de 1988 traz o princípio da separação de poderes, já no seu art. 2°, inclusive protegendo-o no rol do art. 60, §4°, como cláusula pétrea. As primeiras bases de uma teoria da separação de poderes pode ser encontrada no pensamento de Aristóteles, quando da publicação da obra “Política” (FERNANDES, 2018).

Todavia, somente nos séculos XVII e XVIII começou a ser pensado, de forma racional, um sistema político-jurídico que possibilitasse uma eficaz contenção do exercício do poder. Com Montesquieu, vislumbrou-se a necessidade de interconectar as funções estatais, a fim de manter a autonomia e independência que lhes são típicas, nascendo daí a famosa teoria dos freios e contrapesos (FERNANDES, 2018).

A teoria de Montesquieu surgiu como vigorosa contraposição ao Absolutismo e se consolidou definitivamente na Revolução Francesa, mediante a inclusão, na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, da asserção de que um Estado cuja Constituição não consagrasse a teoria da separação de poderes era um Estado sem Constituição. Desde então, o princípio da separação de poderes passou a estar vinculado ao constitucionalismo, transformando-se, em praticamente todo o Ocidente, no cerne da estrutura organizacional do Estado (PAULO; ALEXANDRINO, 2016).

Não é desproposital que Canotilho afirma que o princípio da separação dos poderes apresenta dupla dimensão. Se por um lado, traça a ordenação e organização dos poderes constituídos – dimensão positiva; por outro fixa limites e controles – dimensão negativa – em sua dinâmica com os demais (CANOTILHO, 2003).

A divisão rígida das funções estatais foi substituída, aos poucos, por uma divisão flexível, na qual cada poder termina por exercer, em certa medida, as três funções do Estado: uma em caráter predominante, e outras de natureza acessória. Esse modelo foi o adotado pela CF/88, de sorte que todos os poderes não exercem exclusivamente as funções estatais que lhe seriam típicas, mas também desempenham funções denominadas atípicas, isto é, assemelhadas às funções típicas de outros poderes (PAULO; ALEXANDRINO, 2016).

Alexandre de Moares filia-se à posição concretista individual intermediária, criada pelo Ministro Néri da Silva: “Parece-nos que inexiste incompatibilidade entre a adoção da posição concretista individual e a teoria da separação de poderes consagrada expressamente pelo art. 2° da Constituição Federal9”.

Segundo Moraes, a Constituição adotou a doutrina constitucional norteamericana do check and balances, pois previu diversas funções estatais para cada um dos Poderes e garantiu-lhes prerrogativas para o bom exercício delas. Dessa forma, o judiciário não estará regulamentando abstratamente a Constituição, pois não é sua função. Por outro lado, não estará deixando de exercer uma de suas funções precípuas, qual seja, o resguardo dos direitos e garantias fundamentais.

Como afirma Carlos Augusto Câmara Machado10, “Não se trata de pretensa usurpação da função legislativa pelo Poder Judiciário e, sim, de exercício de uma atribuição conferida constitucionalmente”.

Em sentido contrário, Volney Zamenhof12 afirmava que se o judiciário desse uma resposta mais concreta estaria infringindo a separação dos poderes. Segundo ele, 

“tem-se como certa a ineficácia do mandado de injunção, posto que trata-se de um instituto que exorbitou o lineamento das limitações dos Poderes, razão pela qual o Judiciário não tem a obrigação de intervir em atos de exclusiva competência do Legislativo e, além disso, o legislador constituinte originário – na tentativa de construir um instrumento que viesse a coibir a inércia de determinadas normas constitucionais, carentes de regulamentação – provocou a distorção da concepção da tripartição dos Poderes. (…)

Logo, diante destes argumentos e levando-se em consideração análises de decisões já proferidas pelo Judiciário, entende-se que o mandado de injunção é um instituto carente de eficácia social (…)”.

Por óbvio que o intérprete da Constituição Federal deve observar o princípio da separação de poderes, no qual não se usurpa atribuição de outro. Todavia, verificase que nessas situações, a própria CF previu mecanismos processuais para sanar essa problemática, eis que uma omissão legislativa inviabiliza a efetividade dos dispositivos normativos.

A jurisprudência do STF caminha no sentido de não trazer para si a atribuição de suprir omissões. Porém, se em suas decisões não houver a previsão de medidas mais incisivas, restarão desprovidas de efeitos práticos para solucionar a omissão.

Conclui-se, portanto, que a tese concretista, seja individual, seja intermediária, não afronta o princípio da separação de poderes. Ainda que afrontasse, deve sempre prevalecer a efetividade dos direitos e garantias constitucionais em detrimento de omissões legislativas injustificáveis. A decisão proferida e o direito penal

Como se não bastasse, outro empecilho deve ser discutido acerca dessa posição concretista adotada na ADO 26 e no MI 4731, qual seja, a afronta ao inciso XXXIX do art. 5° da Constituição Federal e art. 1° do Código Penal, ambos com a seguinte redação: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia previsão legal(CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988; CÓDIGO PENAL, 1940).

Segundo Juarez Cirino dos Santos11, o princípio da legalidade é o mais importante instrumento constitucional de proteção individual no moderno Estado Democrático de Direito porque proíbe: 

a) a retroatividade como criminalização ou agravação da pena de fato anterior; b) o costume como fundamento ou agravação de crimes e penas; c) a analogia como método de criminalização ou de punição de condutas, e d) a indeterminação dos tipos legais e das sanções penais.

A organização fundamental, portanto, do modelo de Estado composto a partir do modelo constitucional se dá através do postulado básico, qual seja, a submissão à regra da lei. Conforme Paulo Cesar Busato12, o princípio da legalidade condiciona a

atuação do Estado durante todo o processo criminal, impondo-lhe, antes de tudo, um limite formal que é a necessidade de pautar sua intervenção pelo procedimento legislativo. As exigências decorrentes do princípio da legalidade constituem um conjunto prévio de limites contrapostos à arbitrariedade do Estado.

É preciso relembrar que todo o sistema jurídico penal partilha dos mesmos princípios e das mesmas limitações em face das garantias fundamentais das pessoas. A garantia criminal proíbe que se possa imputar a um cidadão um fato não previsto em lei como crime ou contravenção pela lei penal. Cleber Masson13 trata da garantia da anterioridade, que decorre também do art. 5°, inciso XXXIX, da Constituição Federal, e do art. 1° do Código Penal, quando estabelecem que o crime e a pena devem estar definidos em lei prévia ao fato cuja punição se pretende. A Lei penal produz efeitos a partir da data em que entra em vigor, não se aplicando a comportamentos pretéritos, salvo se beneficiar o réu14.

Nesse sentido, Busato15:

Não é possível castigar alguém senão pela violação de uma norma contida em lei penal incriminadora. Mesmo diante da constatação concreta da existência de uma conduta socialmente desvalorada de modo tão grave que atinja as raias da intolerabilidade, para que haja a persecução pelo Poder Judiciário é imprescindível previa incriminação emanada do Poder Legislativo. Caso o fato não goze de previsão legal estrita, não poderá ser objeto de persecução em juízo. Essa é a base do princípio da separação dos poderes.

A CF/88, seguindo modelo de constituições europeias, estabelece mandados de criminalização implícitos ou expressos. Trata-se de hipóteses de obrigatória intervenção do legislativo. Os mandados de criminalização indicam matérias sobre as quais o legislativo não tem a faculdade de legislar, mas sim a obrigação, protegendo bens ou interesses de forma adequada e, dentro do possível, integral.

Nesse sentido, cite-se o inciso XLI do art. 5° (“a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”). Ainda, registre-se que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, previsto no

inciso IV do art. 3°, é a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Ocorre que, alguns dos mandados de criminalização já foram atendidos pelo legislador de forma satisfatória, a exemplo da Lei 13.260/16 que regulamentou o inciso XLIII do art. 5° da CF, para tipificar o terrorismo; outros de forma insuficiente; e vários ignorados.

Se levarmos em consideração tudo o que foi dito acerca do princípio da legalidade, a única conclusão que seria possível chegar é a de que a criminalização da homotransfobia é inconstitucional. Isso porque foi desrespeitado o princípio da separação dos poderes, da legalidade (anterioridade e irretroatividade), e do devido processo legal. Nesse ângulo, ponderou o Min. Celso de Mello, no julgamento da ADO 26, que o Poder Judiciário não possui função legislativa e passaria a desempenhar atribuição diversa da que lhe é devida, caso desse provimento ao pedido de criminalização. 

Por outra razão, mas no mesmo sentido, o Ministro Ricardo Lewandowski16 analisou o caso no âmbito da igualdade. Para ele, a luta pelo reconhecimento é um dos maiores motivos de contestação pelos direitos humanos dos grupos minoritários, de modo que assimilar a outras normas já existentes ou culturas não se trataria de gesto de igualdade.

A omissão parlamentar em cumprir o mandado de criminalização, nos casos de que ora se trata, pode ser compreendida como um fenômeno que, mais do que jurídico, é político: como explica Ran Hirschl, com a ascensão do conceito de supremacia constitucional em todo o mundo, os tribunais tornaram-se instituições sensíveis aos reclamos de grupos sistematicamente excluídos da esfera política, contando com o apoio – explícito ou implícito – dos atores políticos, os quais, ao transferir sua responsabilidade para as instituições judiciais, evitam sua responsabilização política por decisões impopulares”.

Também, podemos concluir pela inconstitucionalidade ao consideramos que o STF reconheceu uma omissão em matéria penal, equiparando a homofobia ao racismo, em uma clara analogia proibida pela Constituição Federal. Trata-se da analogia in malam partem, decorrente também do princípio da legalidade.

Por outro lado, Celso de Mello17 alegou também, em seu voto, que se o STF não resguardasse os princípios constitucionais, sanando a falha do legislativo, agiria de forma omissão, já que a necessidade de proteção nos atos da vida civil são normas supralegais conservadas na Carta Magna. Nesse aspecto, considerou:

Condutas contrárias à liberdade de orientação sexual possuem nítido caráter discriminatório e violador da dignidade do ser humano, em patente confronto com esse conjunto de normas constitucionais. A homofobia decorre da mesma intolerância que suscitou outros tipos de discriminação, como aqueles em razão de cor, procedência nacional, religião, etnia, classe e gênero.

Conclusão

É sabido que o Brasil é um país com grande número de casos de homofobia e homotransfobia se comparado com outros, em virtude de questões acerca da sexualidade e gênero, fato que acarretou muita luta dos grupos LGBT+ ao longo dos anos.

Não obstante, permanece a inércia do Legislativo na desobediência ao mandado constitucional de criminalização para o combate de quaisquer tipos de discriminação. Afastou-se da sua função típica de legislar, deixando de garantir um dos objetivos da Constituição Federal, conforme visto. 

Ao STF, restavam cinco saídas: 1. Reconhecer a omissão do Legislativo (posição não concretista); 2. Reconhecer a omissão do Legislativo e impor prazo para a criação da norma (posição não concretista mas com imposição de prazo para saneamento da omissão); 3. Reconhecer a mora do Legislativo e impor prazo para o saneamento da omissão e, somente em caso de persistente inércia, ultrapassado o prazo, poderia reconhecer o direito garantido às partes do processo (posição concretista intermediária); 4. Reconhecer a omissão do Legislativo e criar a norma que regulamenta a omissão, mas condicionando os efeitos emanados apenas às partes integrantes do processo (posição concretista individual). 5. Reconhecer a omissão do legislativo e solucionar a omissão, regulamentando-o com efeitos erga omnes (posição concretista geral).

Diante do reconhecimento da omissão e inércia do legislativo em casos anteriores, e inércia ainda persistente, mesmo após a imposição de prazo para legislar, não restou outra alternativa ao STF senão adotar uma posição concretista. Ainda, considerando a impetração não somente do mandado de injução, mas também da ação direta de inconstitucionalidade, essa decisão não poderia possuir efeitos apenas interpartes. Dessa forma, escolheu a última opção.

No entanto, para que esta decisão não esteja acobertada pela inconstitucionalidade, deve-se adotar as seguintes premissas. Primeiro, que a posição concretista não ofende o princípio da separação dos poderes, eis que consagrada a doutrina do check and balance, que garante uma interdependência e harmonia entre eles; considerando ainda a ponderação que deve ser realizada entre um princípio constitucional e os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana. Segundo, que não há ofensa ao princípio da legalidade, pois o tipo penal é prévio, anterior e não retroage à conduta, eis que previsto na Lei 7716/89. Terceiro, que não se trata de analogia in malam partem, mas sim de interpretação analógica, espécie de interpretação permitida pelo ordenamento jurídico brasileiro, considerando a impossibilidade de esgotamento de todas as hipóteses estarem expressamente previstas em lei.

Essa é, portanto, a única forma de defendermos a constitucionalidade da decisão proferida na ADO 26 e MI 4733. E, conclui-se que, por tudo que foi exposto, não resta outra alternativa.


1Íntegra do acórdão proferido na ADC 26 e no MI 4733 disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754019240. Acesso em: 10/06/22.

2NOVELINO, Marcelo. Curso de Direito Constitucional. Salvador: JusPodivm, 2017.

3Lei n. 9.868/99. Art. 28, parágrafo único: A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.

4Conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.

5Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.

6STF Mandado de Injunção 107-3. Relatoria Min. Moreira Alves, Diário da Justiça, Seção I, 21 de setembro de 1990.

7TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. As garantias do cidadão na justiça. São Paulo: Saraiva, 1993.

8a) reconhecer o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional na implementação da prestação legislativa destinada a cumprir o mandado de incriminação a que se referem os incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição, para efeito de proteção penal aos integrantes do grupo LGBTI +; 
b) declarar, em consequência, a existência de omissão normativa inconstitucional do Poder Legislativo da União; 
c) cientificar o Congresso Nacional, para os fins e efeitos a que se refere o art. 103, § 2º, da Constituição c/c o art. 12-H, “caput”, da Lei nº 9.868/99; 

9d) dar interpretação conforme à Constituição, em face dos mandados constitucionais de incriminação inscritos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Carta Política, para enquadrar a homofobia e a transfobia, qualquer que seja a forma de sua manifestação, nos diversos tipos penais definidos na Lei nº 7.716/89, até que sobrevenha legislação autônoma, editada pelo Congresso Nacional, seja por considerar-se, nos termos deste voto, que as práticas homotransfóbicas qualificam-se como espécies do gênero racismo, na dimensão de racismo social consagrada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento plenário do HC 82.424/RS (caso Ellwanger), na medida em que tais condutas importam em atos de segregação que inferiorizam membros integrantes do grupo LGBTI + , em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero, seja , ainda, porque tais comportamentos de homotransfobia ajustam-se ao conceito de atos de discriminação e de ofensa a direitos e liberdades fundamentais daqueles que compõem o grupo vulnerável em questão; 
e) declarar que os efeitos da interpretação conforme a que se refere a alínea “ d” somente se aplicarão a partir da data em que se concluir o presente julgamento, nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli (Presidente), que julgavam parcialmente procedente a ação, e o Ministro Marco Aurélio, que a julgava improcedente. 

10MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2007.

11MACHADO, Carlos Augusto Alcântara. Mandado de Injunção. São Paulo, Atlas, 2004. p. 122.

12SILVA, Volney Zamenhof de Oliveira. Lineamentos do mandado de injunção. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 95.

13SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 22.

14BUSATO, Paulo Cesar. Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2017. p. 24/25.

15MASSON, Cleber. Direito Penal Parte Geral. Rio de Janeiro: Método, 2017. p. 27.

16Constituição Federal. Art. 5, inciso XL.

17BUSATO, Paulo Cesar. Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2017. p. 36.

18Íntegra do acórdão disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754019240. Acesso em: 10/07/22.

19Íntegra do acórdão disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754019240. Acesso em: 10/07/22.


REFERÊNCIAS

Acórdão proferido na ADC 26  e no MI 4733   disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754019240.

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