REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202411250303
Ligia Maria Moraes Hernandes,
Orientador: Prof. Rafael Pons Reis
RESUMO
A ausência da certidão de nascimento no Brasil configura um grave problema social, com impactos profundos na vida de milhões de brasileiros. Este estudo investiga as consequências da falta desse documento fundamental para o exercício da cidadania, analisando as dificuldades enfrentadas por essas pessoas no acesso a serviços básicos, direitos sociais e oportunidades.
A pesquisa revela que a falta de registro civil impede o acesso a serviços essenciais como saúde, educação e assistência social, além de dificultar a obtenção de documentos como RG e CPF. Isso resulta em exclusão social, vulnerabilidade e limitação de oportunidades no mercado de trabalho.
Para isso, foram analisados o ordenamento jurídico brasileiro, documentos, informações oficiais e as pesquisas da antropóloga Fernanda de Melo Escóssia sobre a certidão de nascimento. Além disso, o estudo apresenta as políticas públicas implementadas para combater o problema, como o Cadastro Único e o Programa Bolsa Família.
Conclui-se que a garantia do registro civil é fundamental para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Para alcançar esse objetivo, é necessário fortalecer as políticas públicas, investir em tecnologia, promover parcerias entre diferentes setores e intensificar as campanhas de conscientização sobre a importância do registro civil.
Palavras-chave: certidão de nascimento, direitos humanos, sub-registro, cidadania, políticas públicas.
INTRODUÇÃO
“Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil” foi o tema da redação do ENEM em 2021, bem como de livro e tese de doutorado da jornalista e antropóloga Fernanda Escóssia (2021)1. Segundo o IBGE, cerca de 2,7 milhões de brasileiros não têm certidão de nascimento – mais de 2% da população, normalmente em situação de vulnerabilidade social.
A falta da certidão de nascimento impacta muito na vida de uma pessoa. Sem esse documento, é praticamente impossível acessar serviços básicos como saúde e educação, obter outros documentos como RG e CPF, e comprovar a própria identidade. Isso resulta em exclusão social, dificuldades para conseguir emprego e maior vulnerabilidade a diversas situações de risco.
A certidão de nascimento é o primeiro passo para o exercício pleno da cidadania, garantindo direitos e oportunidades. A Declaração Universal dos Direitos Humanos2, em seu Artigo 6º, afirma que “todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei” (ONU, 1948). O documento prevê ainda direito à nacionalidade, igualdade, acesso à Justiça, à propriedade, à segurança social, ao trabalho, à instrução, à saúde, alimentação, entre tantos outros.
No Brasil, sem a certidão de nascimento, todos esses direitos, muitas vezes já difíceis de se garantir, são praticamente extintos, pois o sujeito sem registro passa a ser invisível para as instituições. Infelizmente, o problema do sub-registro, como é chamado, é uma realidade no país, embora, conforme veremos, venham se criando formas de combate-lo.
Temos como escopo geral do presente trabalho a análise do que é a certidão de nascimento e como ela pode contribuir para a garantia desses direitos básicos. Ainda, serão sugeridas ações para minimizar a falta deste registro.
A partir de levantamento bibliográfico, buscaremos apresentar as bases dos direitos humanos, seja em seu contexto histórico, área do direito e objetivos, articulando os conceitos propostos pelos autores. Para est, destacamos os livros A Era dos Direitos (2004), de Norberto Bobbio, e Direitos Humanos (2018), de Ricardo Castilho.
Seguidamente, será apresentado estudo, com base no ordenamento jurídico brasileiro, documentos, informações oficiais e na publicação Invisíveis: uma etnografia sobre identidade, direitos e cidadania nas trajetórias de brasileiros sem documento (2019), de Fernanda de Melo Escóssia, do que é a certidão de nascimento e qual sua importância no contexto do direito positivo, como ferramenta contributiva para a garantia dos direitos humanos no Brasil.
Com isso, surge a problemática: qual a amplitude da invisibilidade civil? Qual o perfil de quem enfrenta esse problema e quais as consequências? O levantamento será realizado com o auxílio de dados oficiais, matérias jornalísticas e dados do IBGE. Também serão pesquisadas as políticas públicas existentes hoje na busca de eliminar a invisibilidade civil no Brasil e suas dificuldades.
Por fim, consubstanciados por todo o estudo e levantamentos, iremos propor novas e possíveis soluções para que a certidão de nascimento atinja a porcentagem total da população brasileira.
Com a produção do artigo, pretendemos aumentar a discussão sobre a importância da certidão de nascimento, trabalhar a transversalidade do tema com o dos Direitos Humanos e, como objetivo específico, levantar o contexto real da invisibilidade civil e propor soluções bem embasadas para o déficit no registro de nascimento no Brasil.
1 OS DIREITOS HUMANOS
A Declaração Universal dos Direitos Humanos3 foi promulgada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 e é o documento referencial dos direitos humanos em todo o mundo até os dias atuais. Em sentido amplo, precisamos ir milênios atrás para contextualizar o surgimento dessas ideias e, para isso, é necessário entender que os direitos e os deveres, hoje fundamentados em leis, surgem da necessidade de os seres humanos viverem em sociedade.
Ou seja, estamos trabalhando na fronteira de disciplinas como a Antropologia, a História Antiga, a Filosofia, a Política, a Sociologia e a Psicologia Social. De acordo com Ricardo Castilho, em Direitos Humanos (2018, p. 32), um dos fatores determinantes para analisar o nível de civilização de um povo é o quanto este grupo, coletivamente, consegue seguir regras. Inicialmente, parece um conceito simples. A vida em sociedade demanda coesão cultural para que exista entendimento entre os indivíduos e, a partir de então, os interesses individuais e coletivos sejam respeitados.
A primeira problemática surge quando os interesses de um indivíduo ou grupo não estão alinhados ou mesmo esbarram nos interesses de outros. Sigmund Freud condensa, no famigerado livro Totem e Tabu (1912-1913/2012, p. 216), o surgimento tanto dos interesses primitivos – que em sociedades complexas evoluem para os mais diversos interesses – quanto do pacto civilizatório por meio do mito do pai da horda. Ele nos conta, em apertada síntese, a história de um pai tirânico e violento que detém as fêmeas apenas para si e expulsa os filhos machos do bando quando atingem a idade adulta. Os filhos, marginalizados, organizam um ataque e praticam o parricídio.
Apesar da tirania do pai, existia a identificação. O pai era invejado e um exemplo, pois todos gostariam de estar em seu lugar. Mas esse genitor os punia. Daí a ambiguidade das relações humanas, definidas pelo amor e pelo ódio.
Surge também o pacto civilizatório, pois em pé de igualdade, os irmãos seriam rivais e não existiria qualquer organização entre as necessidades individuais e coletivas. Voltaria a se vigorar a força do mais forte, como no caso daquele pai. A proibição do incesto aparece como primeira lei ao lado de outro tabu, o de não matar, em vista do arrependimento do parricídio.
Esta pequena digressão, rasante no mito do pai da horda, nos ajuda a entender a necessidade da organização social, das leis e normas – mesmo as não escritas – a partir de uma perspectiva íntima do ser humano. Filósofos e teóricos como Charles de Montesquieau, Thomas Hobbes, John Locke, entre tantos outros, também traçaram teorias quanto ao surgimento e necessidade do Estado e das organizações sociais.
Embora não exista comprovação científica da veracidade da história de Moisés relatada no antigo testamento, Ricardo Castilho aponta que, culturalmente, está nela a origem escrita dos direitos humanos. “No Egito do ano 1250 antes de Cristo, consta que Moisés recebeu no monte Horeb os dez mandamentos que lhe foram entregues por Deus. Supõe-se ter sido o primeiro documento escrito, relacionado com direitos humanos” (2018, p. 35). Para Bobbio, a origem real está na era moderna, conforme veremos a seguir.
Considerando a necessidade de se organizar socialmente por meio de instituições e leis, para discutir os Direitos Humanos, é necessário considerarmos, primeiramente, o que é direito. O filósofo político Norberto Bobbio (2004, p. 10) destaca quatro formas de direito. Em apertada síntese, por origem e fundamento, podemos distinguir o direito em moral, natural, jurídico ou positivo. Os dois primeiros estão no campo das ideias e da cultura, os dois seguintes tratam das normas e leis que estabelecem o ordenamento jurídico de um país ou estado, normalmente embasados ou influenciados pelos anteriores.
Sejam os direitos escritos em forma de lei ou não, tratam-se de regras de convivência. “A palavra ‘direito’, no sentido de direito subjetivo (uma precisão supérflua em inglês, porque right tem somente o sentido de direito subjetivo) faz referência a um sistema normativo, seja ele chamado de moral ou natural, jurídico ou positivo” (2004, p. 10).
O que nos faz chegar aos direitos humanos. Existe todo um caminho histórico para se chegar nesta terminologia. Ricardo Castilho (2018, p. 47) argumenta que antes da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a igualdade, na prática, só existia no plano religioso. Podemos fazer uma alusão, neste sentido, à ideia de que o direito natural seria aquele atribuído por Deus – restringindo-nos ao campo teísta, o que não é o entendimento usual e contemporâneo de direito natural, cabe distinguir.
O caminho até o documento de 1948 foi longo. Alguns eventos foram determinantes. Para Bobbio (2004, p. 8), a partir de seu modelo jusnaturalista, as guerras de religião no início da Era Moderna, afirmam o direito de resistência à opressão, o direito de não ser oprimido e gozar de liberdades fundamentais. Corroboram em tal esteira os pensamentos do Iluminismo e os ideais que se destacam com a Revolução Francesa e o processo de independência dos Estados Unidos.
Castilho destaca como determinante para o direcionamento laico quanto a centralização do homem como o senhor de seu destino a divulgação do livro A origem das espécies por meio da seleção natural, ou a preservação das raças favorecidas na luta pela vida em 1859, por Charles Darwin. Com ele, o ser humano passa de uma criação de Deus para o resultado da evolução. O conceito influenciou filósofos existencialistas como Karl Theodor Jaspers, Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre, sobretudo na crença de que a espécie humana tem livre-arbítrio.
Ainda segundo o que Castilho nos apresenta, dois pontos são fundamentais quando discutimos a ideia de direitos humanos. Quanto a questão da pessoa humana, estamos nos afastando de qualquer diferenciação que segregue determinado grupo social, como no passado já aconteceu com as mulheres, com os escravizados ou qualquer tipo de casta. A expressão traz consigo um histórico de lutas, de forma que a coloca em sua perspectiva histórica, política, social e econômica, no desenvolvimento e transformação da civilização. “Os direitos humanos não foram dados, ou revelados, mas conquistados, e muitas vezes à custa de sacrifícios de vidas” (2018, p. 50).
Bobbio é mais cético. Para ele, os direitos humanos, enquanto ambientados no direito natural, estão longe de garantir o que pretendem, senão vejamos:
[…] a maior parte dos direitos sociais, os chamados direitos de segunda geração, que são exibidos brilhantemente em todas as declarações nacionais e internacionais, permaneceu no papel. O que dizer dos direitos de terceira e de quarta geração? A única coisa que até agora se pode dizer é que são expressão de aspirações ideais, às quais o nome de “direitos” serve unicamente para atribuir um título de nobreza. Proclamar o direito dos indivíduos, não importa em que parte do mundo se encontrem (os direitos do homem são por si mesmos universais), de viver num mundo não poluído não significa mais do que expressar a aspiração a obter uma futura legislação que imponha limites ao uso de substâncias poluentes. Mas uma coisa é proclamar esse direito, outra é desfrutá-lo efetivamente (BOBBIO, 2004, p. 11).
Dito isso, chegamos ao direito positivo, que nos fornece ferramentas pragmáticas para a efetivação dos direitos humanos. No Brasil, a Carta Magna4 é um exemplo de ordenamento jurídico embasado nos direitos humanos. É válido recorrer, novamente, ao Ricardo Castilho:
[…] a expressão direitos humanos tem sido utilizada pela doutrina para identificar, na ordem internacional, os direitos inerentes à pessoa humana. Por sua vez, direitos fundamentais são referidos quando se trata de ordenamentos jurídicos específicos, geralmente reconhecidos e positivados na constituição (CASTILHO, 2018, p. 51).
Aqui, conectamos a ideia dos direitos humanos com o recorte proposto para o presente trabalho, que é a análise da certidão de nascimento como ferramenta contributiva para a garantia dos direitos humanos no Brasil. De fato, Bobbio acerta quanto a dificuldade na garantia plena dos direitos humanos, mas eles servirão como um norte permanente na busca por melhores condições para a população mundial e brasileira.
2 A CERTIDÃO DE NASCIMENTO
A certidão de nascimento faz parte dos Registros Públicos determinados pela Lei nº 6.015, de 15 de dezembro de 1973,5 vigente, que determina, em seu artigo 50, que o registro de nascimento em território nacional deve ser feito em até 15 dias. O pai ou a mãe, isoladamente ou em conjunto, são os responsáveis pela ação, devendo levar os próprios documentos e a Declaração de Nascido Vido (DNV) do bebê – emitido pelo hospital – ao cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN). A mesma lei prevê as exceções à regra. Na falta de pai ou mãe, o artigo 52 determina que o registro deve ser feito, em ordem de prioridade, pelo parente maior de idade presente, pelos administradores de hospitais ou os médicos e parteiras que tiverem assistido o parto, ou, ainda, por pessoa idônea da casa em que tiver ocorrido o nascimento, quando fora da residência da mãe.
O prazo de 15 dias para registro pode ser ampliado, de acordo com o artigo 50 da Lei nº 6.015, em até três meses caso o cartório fique a mais de 30 km do local do parto ou da residência dos pais. Prorrogação igual é concedida quando é um dos demais responsáveis citados acima, que não pai ou mãe, que devem registrar o rebento. A primeira via da certidão de nascimento é gratuita, conforme artigo 30.
Na falta do DNV, e havendo motivo para duvidar da declaração de nascimento, o artigo 52 da lei, em seu § 1°, determina, ainda, que o oficial do cartório poderá verificar a existência do bebê indo à casa dos pais “ou exigir a atestação do médico ou parteira que tiver assistido o parto, ou o testemunho de duas pessoas que não forem os pais e tiverem visto o recém-nascido.”
Quando o registro é solicitado fora do prazo legal, o oficial pode recorrer ao Juiz as providências que forem cabíveis para esclarecimento do fato. Em todos os casos, estando tudo em ordem, o mesmo profissional deverá comunicar o registro ao Ministério da Economia e ao INSS pelo Sistema Nacional de Informações de Registro Civil (Sirc).
Cabe destacar que essa é a forma atual da lei sancionada em 1973, porém, ela chegou a este texto com diversas outras leis que a modificaram, como a Lei nº 9.534, de dezembro de 1997, a Lei nº 13.112, de 30 de março de 2015, e a Lei nº 13.846, de 18 de junho de 2019.
Com o registro, o próprio RCPN expede a certidão de nascimento. Podemos dizer que é a partir dele que o brasileiro passa a ser reconhecido como tal e ter direitos e deveres de cidadão, podendo adquirir outros documentos nacionais, como CPF e RG, que permitirão a entrada em políticas públicas como o Bolsa Família.
Fernanda Escóssia (2021, p. 11) aponta três ações governamentais importantes para o mapeamento do sub-registro e seu combate. Uma foi a criação do Cadastro Único em 2001, durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Ele foi criado para organizar os dados das famílias em situação de pobreza que poderiam participar dos programas sociais. As prefeituras, então responsáveis pelo cadastro, só poderiam fazê-lo para quem tivesse documento, devendo registrar as demais famílias em arquivos à parte e orientá-las em como obter os documentos necessários.
Já no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em outubro de 2023, foi feita a unificação dos programas de transferência de renda com a criação do Programa Bolsa Família (Escócia, 2021, p. 12). Apenas as famílias em que todos os membros tivessem registro de nascimento e CPF poderiam participar. As mulheres, maioria dos adultos sem registro, eram as titulares destes programas sociais. Estas foram duas formas de incentivar os registros e a documentação, para que os cidadãos pudessem ter acesso a tais direitos.
Durante o segundo governo de Lula, o governo federal publicou o Decreto 6.289 de 2007, criando o Compromisso Nacional pela Erradicação do Sub-Registro Civil de Nascimento e Ampliação do Acesso à Documentação Básica. O programa uniu governos federal, estaduais e municipais e criou estratégias para combater o sub-registro, como fortalecer a orientação sobre a documentação, a ampliação da rede de serviços de Registro Civil de Nascimento e o aperfeiçoamento de todo o sistema.
Tanto o Cadastro Único quanto o Bolsa Família, reinstituído pela Lei nº 14.601, de 19 de junho de 2023, e Compromisso Nacional pela Erradicação do Sub-Registro Civil de Nascimento e Ampliação do Acesso à Documentação Básica, atualizado pelo Decreto nº 10.063, de 14 de outubro de 2019, continuam em vigor.
A tese de doutorado de Fernanda Escóssia (2021) se debruçou na mobilização que resulta de dois projetos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ): a Justiça Itinerante e o Serviço de Promoção e Erradicação do Sub-registro de Nascimento e a Busca de Certidões (Sepec), este relacionado ao Compromisso Nacional supramencionado. No caso, trata-se de um ônibus azul e branco, chamado de “ônibus do sub-registro”, estacionado no pátio do Juizado da Infância e da Juventude, na Praça Onze, centro do Rio de Janeiro, uma vez por semana, às sextas-feiras, desde 2014. O local é especializado em registros fora do prazo e só atende quem busca a certidão de nascimento.
A partir de a pesquisa e do convívio com pessoas que buscavam seu primeiro documento, onde encontrou as mais variadas histórias, a antropóloga concluiu que a emissão da certidão de nascimento tardia tem uma finalidade imediata – normalmente relatavam a necessidade de entrar em um programa social –. Porém, há outras conquistas com o documento em mãos, conforme resume:
[…] resta comprovado que o registro de nascimento, para além de sua finalidade imediata – conseguir outro documento, uma vaga em escola, o Bolsa Família – é também um documento que permite o acesso a outros direitos. Facilita o acesso a políticas públicas, emprego formal e legibilidade, além de carregar consigo condições para os processos de recuperação dos laços familiares. Pode ser uma chave formal para que se tente garantir direitos e acesso a uma cidadania que, se em tese é universal, muitas vezes se realiza como diferenciada. (Escóssia, 2021, p. 111).
É possível, de forma alinhada com Escóssia, perceber que a certidão de nascimento quando obtida tardiamente acaba tendo êxitos para muito além do acesso a direitos básicos e programas sociais, incluindo efeitos psicológicos positivos, como a sensação de pertencimento e o reencontro com a própria história.
No ônibus do sub-registro, há uma escrivã do cartório da Justiça Itinerante e computadores ligados ao sistema do Tribunal de Justiça, ao banco de dados do Sepec e do Detran, o que ajuda a descobrir se o solicitante tem antecedentes criminais (Escóssia, 2021, p. 84). Em um segundo ambiente, três salas, cada uma com um juiz, onde são realizadas as audiências que concedem ou não o direito a certidão de nascimento. Há, ainda, representantes da Defensoria Pública e do Ministério Público.
Os motivos para a falta de registro relatados são os mais diversos, como a adoção informal, a falta de documentos dos próprios pais, ignorância, dificuldade de acesso a serviços básicos e educação e, em muitos casos pelo país, a própria distância dos cartórios. O que é observado como regra é a pobreza e a vulnerabilidade social das pessoas que são vítimas do sub-registro.
Entre os desafios encontrados por quem busca a certidão de nascimento tardia, está em comprovar que é quem diz ser. Por isso, a orientação é a de que o solicitante leve duas testemunhas e todos os documentos que ajudem na comprovação. A falta de conexão entre sistemas entre cartórios e instituições, sobretudo quando para a busca de documentos mais antigos, é outra dificuldade registrada.
Ações como a do ônibus da Praça Onze são realizadas em todo o país. Outra forma de reduzir o sub-registro é a emissão da certidão de nascimento no próprio hospital, muitos, como no caso da Fundação Santa Casa do Pará, possuindo um cartório dedicado a isso em suas dependências6.
Os últimos levantamentos do IBGE apontam que, em 2022, 2.574.556 crianças foram nascidas vivas com um percentual de sub-registro de 1,31%, o menor da série histórica realizada desde 2015. As regiões onde o problema se mantém maior são o Norte, com 5,14% de sub-registro, e Nordeste, com 1,66%, o que pode estar mais ligado à distância de cartórios. Estima-se que 98,93% dos nascimentos ocorreram em hospitais ou estabelecimentos de saúde, o que mostra que possibilitar o registro no próprio local pode ser um dos melhores caminhos para a solução do problema.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa demonstrou a crucial importância da certidão de nascimento como um documento que garante o acesso à cidadania plena no Brasil e aos chamados Direitos Humanos. Ao analisar o contexto histórico dos direitos humanos e o ordenamento jurídico brasileiro, evidenciamos como a falta desse registro impacta negativamente a vida de milhões de brasileiros, tornando-os invisíveis para o Estado e limitando seus direitos.
A pesquisa revelou a complexidade do problema do sub-registro, com diversas causas, como a pobreza, a distância dos cartórios, a falta de informação e a burocracia. No entanto, também identificamos diversas iniciativas governamentais e da sociedade civil que visam combater essa realidade.
A partir dos levantamentos, é possível propor diversas ações no sentido de reduzir a invisibilidade civil: o fortalecimento das políticas públicas já existentes, com foco na simplificação dos procedimentos e na descentralização dos serviços; o investimento em tecnologias de dados, informações e comunicação para agilizar os processos de registro e facilitar o acesso a essas políticas públicas; parcerias entre instituições de diferentes setores, como governo, sociedade civil e setor privado; o fortalecimento de campanhas de conscientização sobre a importância do registro civil e como obtê-lo; o detalhamento das pesquisas contínuas do sub-registro e do impacto das políticas públicas implementadas.
Em conclusão, a garantia do direito ao registro civil é um desafio que exige um esforço conjunto de todos os setores da sociedade. Ao garantir que todas as pessoas tenham acesso a esse documento fundamental, estamos contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e da garantia dos direitos humanos.
1 Escóssia, Fernanda de Melo. Invisíveis: uma etnografia sobre identidade, direitos e cidadania nas trajetórias de brasileiros sem documento. 2019, 147 fls. Tese (Doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil do Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas. Disponível em <https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/27459>. Acesso em: 22 out. 2023.
2 ONU – Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris: Assembleia Geral das Nações Unidas, 10 dez. 1948. Disponível em <https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos>. Acesso em 22 out. 2023.
3 ONU – Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris: Assembleia Geral das Nações Unidas, 10 dez. 1948. Disponível em <https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos>. Acesso em 22 out. 2023.
4 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 22 out. 2022.
5 BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6015compilada.htm>. Acesso em 22 out. 2022.
6 Samuel, Mota. Santa Casa dispõe de cartório exclusivo para registro de nascimento. Agência Pará, Belém, 11.04.2022. Saúde Pública. <https://agenciapara.com.br/noticia/36207/santa-casa-dispoe-de-cartorio-exclusivo-para-registro-de-nascimento>. Acesso em 22 out. 2023.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 22 out. 2023.
Brasil. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6015compilada.htm>. Acesso em 22 out. 2023.
Brasil. Lei nº 9.534, de 10 de dezembro de 1997. Dá nova redação ao art. 30 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que dispõe sobre os registros públicos; e dá outras providências. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9534.htm>. Acesso em 10 set. 2024.
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Brasil. Lei nº 13.846, de 18 de junho de 2019. Institui o Programa Especial para Análise de Benefícios com Indícios de Irregularidade; e dá outras providências. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13846.htm>. Acesso em 10 set. 2024.
Brasil. Lei nº 14.601, de 19 de junho de 2023. Institui o Programa Bolsa Família; e dá outras providências. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14601.htm>. Acesso em 10 set. 2024.
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