A ATUAÇÃO DO ESTADO NA PROTEÇÃO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA VELHICE

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ma10202401290911


Weider Silva Pinheiro
Fernanda Soares Rosa
Ana Carolinne da Silva
Sinara Gonçalves Borges
Cássia Roberta Silva de Araújo


Resumo: A inversão da pirâmide etária é um dos principais problemas a serem resolvidos pelos Estados pós-modernos, seja no que diz respeito à seguridade social, à produção de riquezas e outras problemáticas sociais. As mudanças nas dinâmicas de consumo, produção e de comunicação, aceleradas especialmente pelo acesso ao mundo virtual e o surgimento das possibilidades mais recentes de uso da Inteligência Artificial, impactam diretamente a maneira pela qual as pessoas interagem e acabam por tornar a população idosa vítimas em potencial de atos de golpistas e aproveitadores, considerando-se haver um desconhecimento dos mecanismos de funcionamento de ambientes virtuais. Sendo a proteção à velhice e à dignidade da pessoa humana responsabilidades do Estado, a vulnerabilidade desse recorte populacional se torna um problema Estatal, ao mesmo tempo que ações de proteção virtual a essas pessoas possam esbarrar em questões relacionadas à liberdade individual e de escolha, e de exercício de cidadania. A proteção aos idosos online deve perpassar tanto a educação tecnológica, juntamente da fiscalização e regulamentação das instituições financeiras, que deveriam assumir maiores cuidados para com seus clientes nessa faixa etária, e principalmente para as grandes empresas de tecnologia, que hospedam sites e comercializam de forma direta plataformas de interação social que são pretensamente gratuitas, mas que coletam dados demográficos e de comportamento digital, político e de consumo, pois assim como se responsabiliza uma montadora de automóveis por eventual acidente provocado por algum erro de projeto, deve-se responsabilizar objetivamente as grandes empresas de tecnologia pela vulnerabilidade no oferecimento de seus serviços.

Palavras-chave: Hermenêutica Jurídica; Direito do Idoso; Ambientes Virtuais; Capacidade Volitiva.

Abstract: The inversion of the age pyramid is one of the main problems to be solved by postmodern States, whether in terms of social security, wealth production or other social issues. Changes in the dynamics of consumption, production and communication, accelerated especially by access to the virtual world and the emergence of the most recent possibilities for using Artificial Intelligence, directly impact the way in which people interact and end up making the elderly population potential victims of acts by scammers and profiteers, considering that there is a lack of knowledge about the mechanisms of how virtual environments work. Since the protection of old age and human dignity are responsibilities of the State, the vulnerability of this segment of the population becomes a State problem, at the same time that actions to protect these people virtually may come up against issues related to individual freedom and choice, and the exercise of citizenship. Protecting the elderly online must encompass both technological education, together with the supervision and regulation of financial institutions, which should take greater care with their customers in this age group, and especially for large technology companies, which host websites and directly market social interaction platforms that are supposedly free, but which collect demographic and digital, political and consumer behavior data, because just as a car manufacturer is held responsible for any accident caused by a design error, large technology companies must be held objectively responsible for the vulnerability in the provision of their services.

Keywords: Legal Hermeneutics; Elderly Rights; Virtual Environments; Volitional Capacity.

INTRODUÇÃO

A inversão da pirâmide etária, além de se constituir como um dos principais problemas a serem resolvidos pelos Estados pós-modernos, tanto na questão da seguridade social quanto na questão da produção de riquezas em si, também traz consigo uma série de problemáticas sociais, primeiro quanto à qualidade de vida destes idosos, e depois de sua vulnerabilidade ante os novos meios de comunicação social (Silva; Silva, 2024).

Fonseca comenta:

Ao invés de ser “um problema”, o envelhecimento da população constitui um feliz ponto de chegada do desenvolvimento humano. Viver mais tempo é fruto de conquistas diversas sob o ponto de vista médico, tecnológico e social. Todavia, a existência de um número cada vez mais elevado de idosos saudáveis e ativos constitui igualmente um desafio para as comunidades, sejam elas urbanas ou rurais (Fonseca, 2020, p. 24).

Há diversos fatores que podem ser elencados como causas deste envelhecimento populacional, mas seguramente, devido a análise histórica, podemos considerar assertivamente como sendo um dos resultados da produção industrial e dos avanços tecnológicos, principalmente aqueles atrelados à medicina e aos cuidados com a saúde, constatados a partir dos anos de 1950, em que, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), já em 2025, a população mundial praticamente se iguala em números entre crianças e idosos:

Gráfico 1: População mundial por grupos etários – 1950-2100

Fonte: Alves, 2024 (Dados retirados de UN Population Division, World Population Prospects 2024).

Obviamente que a inversão da pirâmide etária não se dá apenas em virtude da maior longevidade da população, mas também devido a baixa natalidade que, na verdade, possuem o mesmo nascedouro: de um lado, os seres humanos conseguem viver por mais tempo, enquanto que de outro, precisam cada vez de mais tempo para organizar os aspectos financeiros e existências de sua vida, o que gera a postergação e até mesmo sublimação da constituição de famílias e produção de filhos (Silva; Silva, 2024).

A sociedade contemporânea tem à sua frente, então, o aumento das populações idosas, o decréscimo das populações mais jovens, ao mesmo tempo em que as dinâmicas de consumo, produção e de comunicação se alteram em velocidade cada vez maior, impactando diretamente a maneira pela qual as pessoas interagem, tanto nos aspectos negociais, com implicações em sua capacidade volitiva, quanto nos aspectos afetivos — posto que, por óbvio, com a maior longevidade também aumenta o desamparo, ainda mais para idosos que tiveram poucos ou nenhum filho.

Tal quadro faz com que os idosos se tornem vítimas em potencial, tanto de atos de golpistas e aproveitadores, que se utilizam da Rede Mundial de Computadores, amplificada pelo uso cada vez mais corrente de Inteligência Artificial, para aplicar golpes — na maioria dos casos de espectro financeiro — e até abusos e extravagâncias de empresas de planos de saúde e instituições financeiras, que oferecem empréstimos facilitados ancorados nas pensões e aposentadorias, e ainda pelas empresas de jogos e apostas online, que acabam por se aproveitar, direta ou indiretamente, do tempo ocioso dessa população para levá-los à dependência. Tais vulnerabilidades são corroboradas por Pedroso, Duarte Júnior e Oliveira (2021, p. 2):

De acordo com Minayo e Souza, a vulnerabilidade social e etária torna os idosos mais expostos à ocorrência das violências, e estas podem se manifestar de forma: (a) estrutural, aquela que ocorre pela desigualdade social e é naturalizada nas manifestações de pobreza, de miséria e de discriminação; (b) interpessoal nas formas de comunicação e de interação cotidiana e (c) institucional, na aplicação ou omissão na gestão das políticas sociais pelo Estado e pelas instituições de assistência, maneira privilegiada de reprodução das relações assimétricas de poder, de domínio, de menosprezo e de discriminação.

Logo, a vulnerabilidade desse recorte populacional se torna um problema Estatal na medida em que a proteção à velhice e à dignidade da pessoa humana compõe a responsabilidade do Estado, figurando como princípio constitucional e derivativo do próprio pacto social estabelecido entre Estado e indivíduo, tal qual se pode ver no artigo 230 da Constituição Federal de 1988:

Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida (Brasil, 1988, art. 230).

Notemos que, em primeiro lugar, a família figura como responsável pelo dever de amparo e cuidado dos idosos, depois a sociedade, e por fim o Estado — o que transforma, na verdade, o Estado como responsável subsidiário deste amparo.

Outro elemento do referido artigo é o direito à vida. Ora, obviamente que ao Estado cabe a segurança à vida como elemento biológico, ou seja, nas implicações decorrentes de sua vida biológica, como alimento e saúde, mas há que se perguntar então quanto à qualidade dessa vida, ancorada no princípio da dignidade da pessoa humana, posto que vida digna é diferente de vida per si.

Neste sentido, o viver com dignidade na velhice impõe ao Estado a criação de mecanismos de proteção e defesa que, de outra sorte, tragam em seu escopo de atuação a atualidade que acompanha os mecanismos pelos quais atuam as eventuais ameaças à segurança e à vida digna destes indivíduos.

Ante o atual cenário de desenvolvimento tecnológico, a atuação do Estado frente às populações idosas não mais é suficiente ao oferecimento de gratuidade para serviços públicos e celeridade em procedimentos, mas sim de uma atuação mais direta na criação de mecanismos e instrumentos que levem em conta o atual modelo de existência humana baseada amplamente no existir online, onde, na verdade, tem se dado a maior parte destas ameaças ao viver digno das populações mais idosas — obviamente figurando essas modalidades de agressão e golpes como um incremento a uma situação de vulnerabilidade já existente e, de certa forma, convencional.

Em outras palavras, ainda que consideremos o caráter monolítico das mudanças jurídicas e políticas, lentas por sua própria natureza, é preciso repensar o modelo de atuação e proteção do Estado de Bem Estar Social, modelo ainda em vigência, para que sua atuação possa melhor se adequar à velocidade de modificação social trazida pelas novas tecnologias de comunicação:

Essa análise detida dos mecanismos de controle e poder que eram característicos da modernidade e que tiveram uma nova roupagem na sociedade pós-moderna de ascensão tecnológica demonstra a importância de compreender a forma como os mecanismos de controle e poder se desenvolveram e desenvolvem no seio social, de forma a que não passem despercebidos especialmente no âmbito do direitos, sob pena quer que, se esquecidos ou invisibilizados, acabem por conduzir a uma contínua e duradoura violação à direitos, sem que mecanismos jurídicos de contenção sejam criados, ampliados ou aperfeiçoados para minimizar os efeitos dessas violações (Siqueira; Souza, 2024, p. 857).

Dessa maneira então, mais do que simples elencar de vulnerabilidades ou modalidades de riscos que atuem ou mirem objetivamente nessa parcela da sociedade, urge repensar o próprio modelo de proteção em sua base, o que leva necessariamente, à discussão sobre liberdade e sobre limites de atuação do Estado à liberdade de escolha e de livre consentimento.

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA ERA VIRTUAL

O princípio da dignidade da pessoa humana surgiu no contexto da necessidade de se proteger os indivíduos do poder da atuação do próprio Estado, ao mesmo tempo em que reconhece o Estado como responsável pela defesa dessa mesma dignidade individual que ele mesmo não pode transgredir. Nas palavras de Moreira:

O princípio da dignidade da pessoa humana começou por ser tomado, portanto, na sua dimensão negativa, ou de defesa: enquanto princípio que fundamenta a defesa de um indivíduo contra as atuações arbitrárias do Estado, que sejam injustamente violadoras da sua liberdade. Mas ele possui também uma dimensão positiva, ou prestativa: trata-se de um princípio que sustenta o direito que um cidadão possui a receber do Estado certas prestações que lhe assegurem uma existência condigna, isto é, o seu direito a ver estadualmente assegurados os seus direitos sociais (Moreira, 2023, p. 12).

É, de certa forma, o princípio da dignidade da pessoa humana o que dá alicerce e fundamento aos direitos fundamentais, pois aloca o indivíduo como o destinatário direto da atuação estatal e também social, e neste sentido, viver com dignidade é justamente o fundamento basilar da sociedade de direitos.

Isso posto, resta observar que o termo dignidade, já há muito não significa o mesmo que dizer sobre acesso a informações pessoais ou a alimentação, lazer, educação, saúde e segurança, mas também da capacidade e possibilidade que os indivíduos busquem a sua existência feliz e plena naquilo que reconhece como bom para si mesmo.

É esta análise que traz a problemática da proteção dos idosos no atual modelo de interação social, mediada por mecanismos virtuais e de Inteligência Artificial que conseguem não apenas realizar o processamento de dados em uma velocidade assombrosa, como também a simulação de interações reais, levando, em especial os mais idosos, que naturalmente não cresceram com estes meios tecnológicos, ao erro derivado muitas vezes da não compreensão tecnológica:

E os constantes progressos científicos que se têm realizado na nossa época – que podem beneficiar a humanidade e que são dignos de louvor – colocam muitos desafios aos juristas dos dias de hoje, trazendo o personalismo jurídico para o centro das discussões. Porque, de facto, para que a dignidade de cada ser humano seja respeitada, os avanços científicos precisam de ser acompanhados de igualmente grandes avanços éticos e jurídicos (Moreira, 2023, p. 15).

De sorte então que este princípio, quando justaposto ao atual modelo de interação social virtual, se ancorado com maior ênfase à liberdade individual e de escolha, para as populações idosas, pode gerar discrepâncias com repercussões sociais fáticas, prejudicando justamente o princípio decorrente da dignidade da pessoa humana, que é o princípio da igualdade que tem, em seu escopo, a máxima de que a igualdade só pode ser alcançada na medida em que trata os desiguais na proporção de suas desigualdades:

Há algumas vozes na doutrina que consideram que o comando jurídico correspondente ao princípio da dignidade da pessoa humana deve poder estar sujeito a eventuais metamorfoses e que, portanto, a manutenção da relativa imprecisão do conteúdo deste princípio é desejável. Acreditam que um eventual preenchimento fixo do conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana violaria o princípio da igualdade, e levaria a que aquilo que determinados indivíduos – influenciados pelas suas próprias crenças filosóficas, religiosas ou políticas – tomam por bem fosse imposto a todos os outros (Moreira, 2023, p. 24).

De outra sorte, a não regulação das mídias e até mesmo do acesso dos idosos aos meios digitais, notadamente em relação a possibilidade de acesso facilitado à empréstimos e demais transações financeiras, conversação com golpistas através de meios digitais e registros em plataformas de jogos online, amparado no princípio da vontade pessoal de cada indivíduo, derivado do princípio da dignidade da pessoa humana, distorce, na prática, o princípio da igualdade que cabe ao Estado fornecer aos desiguais.

Obviamente que não estamos a afirmar que o idoso, pelo simples fato de o ser, seja incapaz de tomar as próprias decisões. No entanto, é certo que estes idosos são os mais afetados pelas rápidas mudanças de interação social derivadas pela virtualização dessas mesmas relações, e que tal afetação gera, ou possibilita, uma fragilidade ocasional ou uma situação de desigualdade quanto à compreensão, quer seja de possibilidade de atuação antes os novos meios digitais, quer seja quanto a própria dinâmica alterada de interação trazida por estes novos meios de comunicação.

É essa incompreensão natural que acaba por impor a estes idosos a bolhas, que tendem a reforçar comportamentos nocivos ou mesmo expor potenciais vítimas a seus potenciais agressores, em virtude da maneira pela qual estes sistemas computacionais são geridos, através do recolhimento e monitoramento dos comportamentos online:

A tomada de consciência sobre o potencial lesivo da excessiva monitorização da sua atividade online pode levar o titular dos dados a alterar o seu comportamento, designadamente autolimitando a sua liberdade de expressão (chilling effect) (Costa, 2021, p. 46).

O que se está afirmando aqui é que a atuação Estatal de proteção ao idoso não pode se restringir somente aos aspectos físicos, notadamente porque este mesmo idoso já vive também no meio virtual, sem no entanto, muitas vezes, ter o conhecimento necessário para compreender os eventuais resultados práticos que suas ações online podem trazer para suas vidas, gerando, nessa mesma existência online, uma situação de ausência de atuação estatal para salvaguarda desses mesmos direitos dos idosos em relação a fruição digna de seus dias e sua procura pela felicidade com dignidade.

Não se pode desconhecer que, curiosamente, o meio ambiente virtual apresenta facetas muito singulares, vez que as suas dimensões não se circunscrevem ao espaço e tampouco ao tempo. Outro aspecto relevante encontra-se diretamente relacionado com a capacidade de avanço e de incremento da tecnologia e, dessa maneira, deve ser considerada a impermanência desse ambiente, pois constantemente se altera o próprio conceito de dados pessoais, sobretudo quando se analisa as condições e os graus de identificabilidade que mudam rapidamente em razão de novos modos de armazenamento, de tratamento e de reidentificação dos dados (Sarlet; Ruaro, 2021, p. 83).

Neste sentido, se ressalta a iniciativa ainda tímida da legislação nacional quanto a proteção de dados que, obliquamente, e ainda vacante, trata também da proteção à pessoa em ambiente virtual, no artigo 2º da Lei nº 13.709/18, Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD):

Art. 2º A disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos:
[…]
II – A autodeterminação informativa;
[…]
VI – Os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.
(Brasil, 2018, art. 2°).

Notemos que a lei traz ao escopo da proteção de dados, a autodeterminação informativa, e, tal conceito de autodeterminação só é possível se a pessoa possui, de antemão aos atos praticados online, ainda que por livre iniciativa e consentimento, o conhecimento acerca dos mecanismos e usos da ferramenta em si — logo, não podendo esta autodeterminação ser presumida pela mera manifestação da livre vontade.

Neste sentido, no universo online, o que subsiste não é à vontade livremente exercida, ao menos de forma tácita, presumida, por aqueles não nativos ao ambiente virtual com todas as suas características inerentes, dentre elas justamente o caráter mutatis mutandis, em que, não apenas as ferramentas, mas também as formas de relacionamento se modificam em tempo muito mais acelerado do que estes idosos se acostumaram ao longo de suas vidas.

Ainda há a referência ao livre desenvolvimento da personalidade, que pode ser, ainda, uma maneira de se considerar a existência de dois sujeitos de Direitos num mesmo indivíduo detentor, este sim, dos Direitos e da tutela do Estado, posto que há, sobremaneira, a divisão, ao menos quanto à compreensão, logo ao não entendimento, da atuação física, registrada no mundo real, e a atuação deste mesmo indivíduo no mundo virtual, através de personas e avatares.

Em seguida, a pressuposição de haver o exercício de cidadania também no meio virtual, mas, igualmente a cidadania só pode ser exercida se há, na pessoa do cidadão, a capacidade de compreender as regras sociais, os mecanismos de interação e as legislações pertinentes — o que, no mundo físico é expresso pela figura do inimputável por exemplo, ou ainda pela capacidade jurídica, o que acaba faltando no ambiente virtual, não apenas enquanto conceito, mas principalmente enquanto prática.

Tal fato gera, não apenas o termo, mas a sensação de que a Internet seja “uma terra sem Lei”.

Desta forma, importante analisar se a tutela dos direitos da personalidade, que visam proteger os indivíduos e sua dignidade, são, nesse contexto, eficazes na proteção da liberdade das pessoas, especificamente no que tange a autonomia dos indivíduos no meio digital, diante dos novos mecanismos de psicopoder, o que se buscará investigar a partir de então (Siqueira; Souza, 2024, p. 858).

Ainda na LGPD, no artigo 7º encontramos a necessidade de se proteger os usuários digitais, que na verdade se trata de quase todas as pessoas, também os idosos, forçosamente, sabendo eles usarem ou não os meios digitais, pois aqui trata-se essencialmente de acesso, de potenciais abusos e golpes financeiros:

Art. 7º O tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses:
[…]
X – Proteção do crédito, inclusive quanto ao disposto na legislação pertinente.
(Brasil, 2018, art. 7°, inc. X).

Obviamente que, numa primeira análise, estaríamos falando de uma possível redução da liberdade desses idosos, tanto a liberdade de fazer acordos quanto a liberdade de gastar seus dinheiros como bem lhes aprouver. No entanto, a nosso ver, não seria este o caso, uma vez que estes possíveis cuidados, quanto à atuação dos idosos no universo online, seria, na verdade, um próprio desdobramento desse Direito de liberdade amparado na dignidade da pessoa humana e no princípio da igualdade.

O ROUBO NA ERA VIRTUAL

A sociedade se modifica de acordo com os instrumentos e tecnologias que cria. De forma sistêmica, as invenções humanas são aplicadas no cotidiano e acabam por modificar o próprio cotidiano no qual foram inseridas originalmente. Neste sentido, os aparelhos celulares modificaram a maneira de se relacionar e de se fazer negócios, da mesma maneira que o automóvel mudou a estrutura física das cidades.

Partindo desse entendimento, seria óbvio se pensar que também as Redes Sociais, a Internet e a Inteligência Artificial, compreendidos como ferramentas tecnológicas, trariam significativas mudanças de estilo de vida e de comportamento social.

E como um construto, o Direito, sendo o ramo das ciências que visa a pacificação das relações humanas através da regulamentação dessas mesmas condutas, ainda que não exaurientes, deve se modificar, mais ou menos em compasso com as modificações surgidas pelo incremento tecnológico adotado pela sociedade.

Regular a Internet, ou as grandes empresas de tecnologia não se deve confundir com a limitação da liberdade individual ou comercial, muito pelo contrário, pois, hermeneuticamente, situa-se no mesmo escopo normativo legal que a regulamentação dos espaços de trânsito ou de controle aéreo.

Da mesma maneira que seria impossível se falar em uma legislação que regulasse o uso e a venda de veículos automotores antes que estes veículos tivessem sido incorporados no dia a dia, é óbvio que a legislação que acompanha o uso e a comercialização dos diversos serviços de compartilhamento e publicação online só pode surgir após a inserção desses meios (Gonçalves, 2021).

É claro que, não olvidando do caráter naturalmente moroso da modificação e adequação legislativa aos meios práticos, tanto das relações quanto dos comportamentos, também é óbvio o entendimento que esses novos meios, ainda que não totalmente regulados, possuem o condão de, ao modificar o comportamento das pessoas, modificar também o comportamento daqueles mal intencionados (Vitorio, 2021).

Decerto que o crime não veio acompanhado da tecnologia, e nem seria nosso intuito criminalizar a tecnologia em si, mas é claro que ao modificar a maneira pela qual as pessoas se comunicam e interagem, esses novos usos modificariam igualmente a maneira pela qual se aplicam os golpes e se praticam os roubos (Teixeira, 2022).

Conhecimento comum a afirmação de que um golpista ou criminoso, como um estelionatário, busca por vítimas, senão vulneráveis e frágeis, ao menos em uma situação de vulnerabilidade, ainda que essa vulnerabilidade se dê essencialmente e às vezes, unicamente no ambiente virtual, onde o desconhecido da habitualidade aos novos meios de comunicação geram justamente essa situação de vulnerabilidade ocasional, que atinge em grande medida, os idosos e as crianças (Kadoya et al., 2021).

Ocorre então que, em sua maioria, os crimes cometidos no mundo virtual possuem também a característica de serem supranacionais, o que impossibilita ou ao menos dificulta enormemente a capacidade de persecução penal desses transgressores, tal qual tem ocorrido em diversas localidades do Brasil e ganhado cada vez mais espaço nos noticiários, como no caso recente da aposentada de Ribeirão Preto que, ao ser convencida, através do uso de Inteligência Artificial e aplicativos de mensagens rápidas, de que conversava e até estava a iniciar relação amorosa com o bilionário Elon Musk — relação essa que a fez perder a quantia de trinta e cinco mil reais e que nem de longe se trata de um ponto fora da curva nos últimos anos:

Figura 1: Reportagem sobre senhora enganada por golpistas na internet

Fonte: Cidade Alerta Interior SP, 2025.

A reportagem acima citada mostra ainda que a senhora, apesar de já ter compreendido se tratar de um golpe, continua a acreditar que o golpista é realmente Elon Musk, posto que o viu em vídeos-chamadas, querendo inclusive acionar o bilionário na justiça para que ele devolva seu dinheiro ou entregue os bens a ela prometidos em troca dos valores financeiros enviados — frise-se, valores voluntariamente enviados por ela, mediante fraude, mas que amparada pelo véu de realidade proporcionado pelas mídias digitais e Inteligência Artificial, se tornaram tão verossímeis que a fizeram crer piamente estar mantendo um relacionamento real (Cidade Alerta Interior SP, 2025).

Situações como essa exigem então que a proteção dada aos idosos em ambiente virtual se dê em duas frentes, a primeira, claro, na prevenção por meio de informativos e campanhas de educação tecnológica, e através justamente da fiscalização e regulamentação por parte do Estado das instituições financeiras, que deveriam assumir maiores cuidados para com seus clientes nessa faixa etária, e principalmente para as grandes empresas de tecnologia, que hospedam sites e comercializam de forma direta plataformas de interação social que são pretensamente gratuitas, mas que coletam dados demográficos e de comportamento digital, político e de consumo (Ramalho Terceiro, 2002; Lima, 2019).

CONCLUSÃO

O que deve ser presumido no comportamento online não é capacidade civil, mas a incapacidade ocasional, ainda mais em se tratando de idosos que, em muitos casos se veem e se sentem solitários e que buscam pela felicidade, e que muitas vezes desejam estabelecer relações interpessoais online.

O dever do Estado em fornecer proteção a essas pessoas, em direção aos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, perpassa a materialidade física e deve também alcançar os espaços cibernéticos.

Neste sentido é que, assim como se responsabiliza uma montadora de automóveis por eventual acidente provocado por algum erro de projeto, deve-se responsabilizar objetivamente as grandes empresas de tecnologia pela vulnerabilidade no oferecimento de seus serviços, posto que a liberdade irrestrita para se criar contas falsas, ou mesmo de conversar com pessoas ao redor do mundo de forma indiscriminada, e ainda no oferecimento e franqueamento de entrada em sites e aplicativos de apostas, na realidade tolhe a liberdade alheia ao possibilitar o engano e, na verdade, promover a aproximação de potenciais criminosos com suas vítimas.

A regulamentação das mídias digitais, através da regulamentação e responsabilização subsidiária das grandes empresas de tecnologia, pode ser um importante passo na defesa de direitos das populações idosas em suas atividades na internet.

Essa regulamentação é, na verdade, parte essencial do Estado de Direito Democrático, uma vez que ao resguardar e promover o acesso à informação de qualidade, por meio das empresas aos usuários, se estaria de fato resguardando a liberdade do consumidor ao mesmo tempo que criando um ambiente mais saudável e legalmente constituído no mundo virtual, com o espelhamento dos princípios constitucionais vigentes do mundo real.

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