REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch10202509080641
Thais Helena Moura Fonseca Ribeiro1
Darlan Castro Ribeiro1
Orientador: Prof. Dr. Diogenes José Gusmão Coutinho2
Resumo
Este artigo investiga como a arte pode ser utilizada como uma poderosa ferramenta de inclusão no contexto educacional, especialmente na infância. O estudo analisa de que forma as práticas artísticas contribuem para a valorização da diversidade cultural e individual, favorecendo a construção de identidades, a convivência respeitosa e o desenvolvimento integral das crianças. A pesquisa ancora-se em referenciais teóricos da pedagogia, da psicologia do desenvolvimento e dos estudos culturais, discutindo experiências práticas e políticas públicas relacionadas à arte e inclusão.
Palavras-chave: Arte, Inclusão, Diversidade Cultural, Infância, Educação.
1. Introdução
A arte, em suas múltiplas linguagens, é uma das expressões mais potentes da humanidade. Desde tempos imemoriais, ela acompanha a trajetória do ser humano como forma de registrar, comunicar e ressignificar experiências, crenças e valores. No contexto educacional, em especial na infância, a arte assume um papel estratégico, pois além de favorecer o desenvolvimento cognitivo, motor e afetivo, também se apresenta como ferramenta de inclusão social, cultural e individual.
A infância constitui uma fase de intensas descobertas e de construção da identidade. Nela, a criança aprende a interagir com o mundo a partir de múltiplas linguagens (oral, corporal, visual, musical) e a arte se coloca como via privilegiada nesse processo. Segundo Vygotsky (1998), a aprendizagem ocorre em interação com o outro, mediada por elementos culturais, sendo a arte um desses mediadores fundamentais. Nesse sentido, a prática artística na escola não deve ser compreendida apenas como atividade complementar, mas como elemento essencial para promover a socialização e o respeito às diferenças.
A inclusão, por sua vez, é um princípio que atravessa a educação contemporânea, especialmente após a consolidação da perspectiva de direitos humanos e da valorização da diversidade. A Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015) reforça o compromisso do Estado e da sociedade em garantir às pessoas, desde a infância, oportunidades de participação plena e efetiva na vida social e cultural. A arte, nesse cenário, possibilita que crianças com diferentes origens, culturas e condições individuais expressem suas singularidades e, ao mesmo tempo, reconheçam e respeitem a alteridade.
Autores como Freire (1996) defendem que a educação deve ser um ato libertador, no qual o sujeito se reconheça como produtor de cultura. A arte, nesse sentido, é prática emancipatória, pois permite que as crianças, independentemente de suas condições sociais, físicas ou cognitivas, experimentem a criatividade e a autoria. Já Hernández (2000) complementa afirmando que a cultura visual e as práticas artísticas são espaços de transformação educativa, capazes de questionar padrões e ampliar horizontes.
Outro ponto relevante é que a diversidade cultural no Brasil é marcada por pluralidade étnica, religiosa e regional, e o espaço escolar tem papel determinante na valorização desse patrimônio. Moreira (2001) destaca que o multiculturalismo deve ser compreendido como oportunidade de diálogo e troca entre diferentes culturas, e a arte, nesse processo, torna-se uma linguagem universal de encontro.
Diante disso, o presente artigo busca investigar como a arte pode ser utilizada como ferramenta de inclusão e valorização da diversidade cultural e individual das crianças. Pretende-se discutir seus fundamentos teóricos, apontar práticas já consolidadas em escolas e projetos sociais, além de refletir sobre os desafios e potencialidades dessa abordagem. O objetivo central é compreender a arte não apenas como disciplina curricular, mas como instrumento de transformação social e de promoção da cidadania desde a infância.
2. Fundamentação teórica
2.1. A infância e o desenvolvimento integral
O processo de desenvolvimento infantil é marcado por descobertas, interações e aprendizagens que estruturam a formação da identidade da criança. Segundo Piaget (1978), a infância corresponde a um período em que as estruturas cognitivas se consolidam por meio da interação ativa com o ambiente, sendo essencial oferecer experiências diversificadas que favoreçam o aprendizado. A arte, nesse contexto, possibilita que a criança explore materiais, cores, formas, sons e movimentos, construindo significados próprios e ampliando suas capacidades de expressão.
Wallon (1975) destaca que o desenvolvimento da criança é simultaneamente motor, afetivo e cognitivo, ou seja, integral. A arte, ao mobilizar emoção, movimento e pensamento, contribui diretamente para essa integralidade.
Para Vygotsky (1998), as experiências artísticas se inserem no conceito de mediação cultural, na qual a criança aprende em interação com outros sujeitos e com os instrumentos simbólicos da sociedade. Assim, a arte se apresenta como uma ponte entre a criança e o mundo, permitindo que ela compreenda e reelabore sua realidade.
Dessa forma, a infância não deve ser vista apenas como preparação para a vida adulta, mas como uma etapa rica em possibilidades criativas e de expressão singular. A escola, nesse sentido, assume papel crucial na oferta de vivências artísticas que respeitem os diferentes ritmos e modos de ser das crianças.
2.2. Arte e educação inclusiva
A noção de educação inclusiva fundamenta-se na garantia de que todos os estudantes, independentemente de suas condições físicas, cognitivas, sociais ou culturais, tenham acesso a uma aprendizagem de qualidade. A Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994) já havia estabelecido a importância de escolas inclusivas como espaços de acolhimento e participação. No Brasil, esse princípio é reforçado pela Constituição Federal de 1988, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996) e pela Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015).
A arte tem lugar privilegiado nesse processo, pois, conforme afirma Ostrower (2009), toda criança é criadora por natureza, e cabe à educação proporcionar meios para que essa criatividade se desenvolva de forma livre e significativa. No espaço da sala de aula, atividades artísticas podem se tornar estratégias de acessibilidade, uma vez que permitem múltiplas formas de expressão (seja pela pintura, pela música, pelo teatro ou pela dança) e não se restringem à linguagem verbal, muitas vezes excludente para crianças com deficiência ou dificuldades de aprendizagem.
Freire (1996) ressalta que ensinar não é apenas transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a construção ou a produção dele. Nesse sentido, a arte torna-se um instrumento de libertação, pois possibilita às crianças construírem sua própria narrativa e lugar no mundo, valorizando suas singularidades.
2.3. Diversidade cultural e individual
A diversidade cultural é um dos traços mais marcantes da sociedade contemporânea, e sua valorização no ambiente escolar é fundamental para a formação de sujeitos críticos e respeitosos. Moreira (2001) argumenta que o multiculturalismo deve ser compreendido como prática pedagógica que não apenas reconhece as diferenças, mas promove o diálogo intercultural. A arte se constitui, nesse contexto, como um espaço de encontro, permitindo que diferentes tradições, saberes e identidades se expressem e se valorizem mutuamente.
Hernández (2000) reforça que a cultura visual, presente em imagens, símbolos e práticas cotidianas, exerce forte influência na formação da identidade das crianças. Por isso, trabalhar com diferentes manifestações artísticas (indígenas, africanas, populares e contemporâneas) contribui para que as crianças compreendam a riqueza cultural do país e reconheçam a legitimidade de todas as expressões.
Além disso, a valorização da diversidade individual implica considerar as especificidades de cada criança: suas origens, seus modos de aprender, seus interesses e suas limitações. Nesse sentido, a arte abre espaço para que cada um se expresse de maneira única, sem a necessidade de comparações padronizadas. Como aponta Gardner (1994), as inteligências múltiplas, entre elas a musical, a espacial e a corporal, precisam ser reconhecidas e estimuladas, o que reforça o caráter inclusivo da prática artística.
3. A arte como linguagem de inclusão
A arte, em suas variadas linguagens, possibilita múltiplas formas de expressão, sendo capaz de ultrapassar barreiras sociais, cognitivas e culturais. Quando aplicada intencionalmente no contexto educacional, torna-se instrumento de inclusão e de valorização da diversidade. Cada manifestação artística (música, artes visuais, teatro ou literatura) oferece meios singulares para que as crianças se expressem, interajam e construam sentidos coletivos.
3.1. Música
A música é uma das linguagens mais acessíveis e universais da arte. Segundo Swanwick (2003), o contato com o som e o ritmo desenvolve a sensibilidade estética, amplia a criatividade e fortalece vínculos emocionais. Para crianças em situação de vulnerabilidade ou com deficiências, atividades musicais podem funcionar como mediadoras de inclusão, já que não exigem necessariamente o domínio da linguagem verbal.
Exemplos práticos incluem corais infantis, bandas escolares e projetos que adaptam instrumentos para crianças com limitações motoras. Além disso, a música possibilita o resgate da cultura local, por meio de cantigas de roda, maracatus, repentes ou cirandas, fortalecendo a identidade cultural da criança. Como destaca Louro (2010), a musicalização contribui para o desenvolvimento cognitivo, motor e afetivo, mas também para a convivência social baseada na cooperação e no respeito às diferenças.
3.2. Artes visuais
As artes visuais abrangem linguagens como pintura, desenho, colagem, fotografia e escultura. Para Barbosa (1998), a atividade artística visual deve ser compreendida como processo de construção cultural e não apenas como reprodução estética. No ambiente escolar, ao oferecer papel, tinta, argila e outros materiais, cria-se um espaço de expressão livre, no qual cada criança pode externalizar sentimentos e ideias de forma única.
Essa prática é especialmente importante para crianças que enfrentam dificuldades na comunicação verbal ou escrita. O desenho, por exemplo, pode se tornar um canal de expressão emocional e cultural. Projetos que trabalham com diferentes referências artísticas (indígenas, afro-brasileiras, contemporâneas) permitem ampliar a visão de mundo das crianças e combater estereótipos. Hernández (2000) argumenta que a cultura visual tem papel central na formação da identidade, e trabalhar criticamente essas imagens é caminho para uma educação mais inclusiva e democrática.
3.3. Teatro e expressão corporal
O teatro, por meio de jogos dramáticos e encenações, é uma ferramenta pedagógica poderosa para a inclusão. Segundo Spolin (2001), o jogo teatral permite que a criança explore papéis sociais, desenvolva empatia e aprenda a se relacionar com o outro em um ambiente lúdico. Ao vivenciar diferentes personagens, a criança amplia sua compreensão do mundo e exercita a imaginação, superando limites impostos pela realidade.
Na perspectiva da inclusão, o teatro possibilita que crianças com e sem deficiência participem juntas das atividades, adaptando papéis e expressões de acordo com suas condições. A expressão corporal, por sua vez, permite que o corpo se torne veículo de comunicação, favorecendo a integração de crianças surdas ou com dificuldades de fala, por exemplo. Além disso, a prática teatral contribui para o fortalecimento da autoestima e para a valorização das diferenças individuais.
3.4. Literatura e contação de histórias
A literatura é outro campo fértil para a inclusão, pois possibilita à criança o contato com narrativas, personagens e universos culturais diversos. Segundo Abramovich (1997), ouvir histórias é fundamental para a formação do imaginário e para a construção do gosto pela leitura. Quando a escolha das obras contempla diversidade de etnias, culturas, gêneros e realidades sociais, transmite-se à criança a mensagem de que todas as vozes são legítimas e merecem ser ouvidas.
A contação de histórias também pode ser utilizada como prática inclusiva: ao narrar lendas indígenas, mitos africanos, histórias locais ou contemporâneas, a escola promove o respeito à diversidade cultural. Para as crianças com deficiência visual, o uso de audiolivros ou livros em braile assegura o acesso igualitário à literatura. Já para aquelas com dificuldades de leitura, a dramatização de histórias ou o uso de recursos multimodais (imagens, vídeos, sons) amplia a acessibilidade.
Como observa Candido (2004), a literatura humaniza porque amplia o horizonte do indivíduo, tornando-o mais sensível às dores e alegrias do outro. Dessa forma, ela não apenas promove inclusão, mas contribui para a formação ética e estética das crianças.
4. Experiências e Práticas Inclusivas
A aplicação da arte como ferramenta de inclusão não se limita ao plano teórico: em diferentes contextos, projetos educacionais, políticas públicas e práticas docentes têm mostrado que o acesso à produção e à fruição artística é capaz de transformar a vida das crianças, promovendo respeito, diversidade e pertencimento.
4.1. Projetos educacionais
Diversos projetos educacionais têm utilizado a arte como eixo estruturante da inclusão. O programa “Arte na Escola”, criado em 1989, é um exemplo de iniciativa que promove a formação de professores e a circulação de produções artísticas nas escolas públicas, buscando democratizar o acesso à cultura (FARIA, 2012). A proposta central é possibilitar que a arte seja vivida como experiência cotidiana, não apenas como atividade eventual, favorecendo a expressão de crianças de diferentes origens sociais.
Outro exemplo é o “Projeto Guri”, no estado de São Paulo, que oferece aulas de música para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Por meio da prática coletiva em corais, bandas e orquestras, o projeto contribui para a inclusão social, o fortalecimento da autoestima e a valorização da diversidade cultural (SOUZA, 2011).
Também se destacam iniciativas locais, como os ateliês de artes comunitários e as oficinas de teatro promovidas por ONGs, que funcionam como espaços de acolhimento para crianças em contextos de risco. Esses ambientes permitem que os pequenos tenham contato com linguagens artísticas diversas, ao mesmo tempo em que constroem relações de solidariedade e respeito.
4.2. Políticas públicas
No campo das políticas públicas, o Brasil avançou significativamente no reconhecimento da arte como direito e como instrumento pedagógico. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), homologada em 2017, estabelece a arte como uma das áreas de conhecimento obrigatórias da Educação Básica, contemplando quatro linguagens: artes visuais, música, teatro e dança. A BNCC ressalta que o ensino de arte deve promover a valorização das identidades culturais e a inclusão de todos os estudantes, reconhecendo a pluralidade de expressões (BRASIL, 2017).
Além disso, o Plano Nacional de Cultura (Lei nº 12.343/2010) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990) reforçam a importância de garantir às crianças o direito de acesso a bens culturais e às práticas artísticas. Tais dispositivos mostram que a arte não é apenas recurso pedagógico, mas também direito fundamental para a formação cidadã.
Programas do Ministério da Educação, como o “Mais Cultura nas Escolas”, também exemplificam esforços institucionais para integrar manifestações artísticas ao cotidiano escolar. Tais políticas buscam romper com a lógica de que a arte é um conteúdo periférico, afirmando-a como central na educação inclusiva.
4.3. Práticas docentes
A atuação do professor é determinante para que a arte cumpra seu papel de inclusão. Para Hernández (2000), o docente deve assumir-se como mediador cultural, capaz de propor experiências artísticas que valorizem a diversidade e estimulem a autoria das crianças. Isso significa planejar atividades que considerem as diferentes necessidades dos alunos, promovendo adaptações quando necessário.
Por exemplo, em uma oficina de artes visuais, o professor pode disponibilizar materiais táteis para crianças com deficiência visual, ou em uma roda de música, incentivar que cada aluno contribua com sons produzidos por instrumentos alternativos, mesmo que improvisados. O mais importante é que cada criança se perceba como participante legítima da atividade.
Segundo Freire (1996), a prática educativa deve ser dialógica, ou seja, deve considerar o saber da criança e criar um espaço de troca. Nesse sentido, quando o professor acolhe narrativas culturais diversas (histórias de famílias indígenas, afrodescendentes, imigrantes ou ribeirinhas) e as integra em atividades artísticas, contribui não apenas para a inclusão, mas também para a valorização da identidade de cada criança.
5. Benefícios da Arte na Inclusão
A inserção da arte como prática educativa inclusiva proporciona uma série de benefícios ao desenvolvimento integral das crianças. Além de ampliar competências cognitivas, motoras e emocionais, a arte contribui para a construção de vínculos sociais e para a valorização da diversidade cultural e individual.
5.1. Estímulo à criatividade e à imaginação
A criatividade é uma das dimensões mais valorizadas na infância, pois permite à criança elaborar novas formas de compreender e transformar a realidade. Segundo Ostrower (2009), criar é uma necessidade humana essencial, e a arte fornece os meios para que a imaginação se manifeste. Em ambientes inclusivos, esse estímulo é ainda mais importante, pois possibilita que cada criança produza de acordo com suas capacidades, sem comparações rígidas com padrões estabelecidos.
Projetos de pintura, teatro ou música, quando desenvolvidos em grupo, favorecem a experimentação e a liberdade criadora. Isso contribui para que a criança perceba que suas ideias são legítimas, fortalecendo a autoconfiança e a valorização de sua identidade.
5.2. Desenvolvimento da autoestima e da autonomia
Outro benefício relevante é o fortalecimento da autoestima. Freire (1996) aponta que a prática educativa deve libertar e empoderar o sujeito. Nesse sentido, a arte permite que a criança se reconheça como autora, valorizando suas produções e percebendo que tem algo a oferecer ao grupo.
Quando suas expressões artísticas são respeitadas e expostas, seja em murais escolares, apresentações musicais ou peças teatrais, a criança vivencia o reconhecimento social. Essa experiência fortalece a autonomia, a segurança em se expressar e a valorização de sua singularidade.
5.3. Construção de vínculos afetivos e sociais
As atividades artísticas, sobretudo as coletivas, funcionam como espaços de cooperação. Vygotsky (1998) enfatiza que o desenvolvimento da criança ocorre na interação social mediada pela cultura, e a arte é uma dessas mediações. Ao participar de um coral, de uma roda de histórias ou de uma encenação, a criança aprende a ouvir, compartilhar e respeitar o espaço do outro.
Esse processo contribui para a formação de vínculos afetivos, fundamentais para a inclusão escolar. Crianças com deficiência ou em situação de vulnerabilidade, ao participarem de atividades artísticas coletivas, sentem-se parte do grupo e reconhecidas como sujeitos ativos.
5.4. Valorização da diversidade cultural
A arte também promove a valorização da diversidade cultural. Como destaca Moreira (2001), o multiculturalismo deve ser entendido como oportunidade de diálogo, não como mera coexistência de diferenças. Nesse sentido, trabalhar com músicas afro-brasileiras, lendas indígenas, literatura infantil que represente diferentes etnias ou coreografias regionais possibilita às crianças conhecerem outras culturas e respeitarem sua legitimidade.
Além disso, essa prática combate preconceitos e estereótipos, favorecendo a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. Hernández (2000) ressalta que a cultura visual pode reproduzir desigualdades, mas também pode ser espaço de transformação, desde que seja trabalhada criticamente em sala de aula.
5.5. Desenvolvimento cognitivo e motor
Por fim, a arte contribui significativamente para o desenvolvimento cognitivo e motor. Gardner (1994), ao propor a teoria das inteligências múltiplas, inclui a inteligência musical, espacial e corporal-cinestésica como fundamentais na aprendizagem. A criança que dança desenvolve coordenação motora; a que desenha aprimora a percepção espacial; a que toca um instrumento trabalha ritmo, concentração e memória.
Essas experiências não apenas enriquecem o aprendizado acadêmico, mas também ampliam as formas de comunicação da criança, favorecendo sua inclusão em diferentes contextos.
6. Desafios e Limitações
Apesar do potencial transformador da arte para promover inclusão e valorização da diversidade, sua implementação plena ainda encontra desafios significativos no ambiente escolar e nas políticas públicas. Esses entraves precisam ser analisados para que se construam caminhos mais efetivos de superação.
6.1. Formação insuficiente dos professores
Um dos principais desafios refere-se à formação docente. Muitos professores da Educação Básica não tiveram, em sua trajetória acadêmica, preparação adequada para trabalhar a arte de forma crítica, interdisciplinar e inclusiva. Segundo Barbosa (1998), a prática de arte na escola, por vezes, é reduzida a atividades mecânicas e descontextualizadas, sem aprofundamento cultural ou reflexivo.
Além disso, a ausência de formação continuada compromete a capacidade do educador em adaptar estratégias para atender às necessidades de crianças com deficiência ou em situação de vulnerabilidade social. Como destaca Hernández (2000), o professor precisa ser mediador cultural, o que exige não apenas domínio técnico, mas também sensibilidade para lidar com a diversidade.
6.2. Escassez de recursos materiais e infraestrutura
Outro desafio diz respeito à falta de materiais e infraestrutura. Muitas escolas públicas enfrentam carência de instrumentos musicais, tintas, papéis, livros e espaços adequados para a prática artística. Ostrower (2009) enfatiza que a criação artística requer acesso a meios materiais, e a ausência desses recursos limita a possibilidade de expressão plena das crianças.
Ainda que alguns projetos sociais e políticas públicas procurem suprir essas carências, a desigualdade de acesso ainda é uma realidade. Enquanto algumas escolas urbanas conseguem implementar ateliês e oficinas, em regiões periféricas ou rurais os alunos permanecem sem acesso efetivo a experiências artísticas.
6.3. Preconceitos e estigmas culturais
O preconceito também constitui obstáculo à inclusão pela arte. Em muitos casos, manifestações culturais de grupos minoritários (como tradições afro-brasileiras, indígenas ou populares) são desvalorizadas, sendo vistas como “menos legítimas” que as produções de origem europeia. Essa hierarquização cultural reproduz desigualdades e impede que as crianças tenham contato com a pluralidade de expressões existentes no país (MOREIRA, 2001).
Além disso, crianças com deficiência muitas vezes enfrentam estigmas que dificultam sua plena participação nas atividades artísticas. A visão capacitista, que reduz o sujeito às suas limitações, ainda se faz presente em práticas escolares, restringindo as oportunidades de experimentação criativa.
6.4. Tempo reduzido na grade curricular
Outro fator limitador é a marginalização da arte no currículo escolar. Em diversas instituições, as aulas de arte ainda ocupam carga horária reduzida, em comparação às disciplinas consideradas “centrais”, como matemática e língua portuguesa. Para Vygotsky (1998), no entanto, as linguagens artísticas são mediadoras essenciais do desenvolvimento humano e não podem ser tratadas como secundárias.
Essa situação gera um paradoxo: ao mesmo tempo em que a BNCC (BRASIL, 2017) reconhece a arte como área obrigatória e fundamental, na prática, sua implementação continua a enfrentar resistências e subvalorização no planejamento escolar.
6.5. Dificuldade de articulação entre escola, família e comunidade
A inclusão pela arte requer diálogo entre escola, família e comunidade. No entanto, muitas vezes a prática artística fica restrita ao espaço escolar, sem articulação com o contexto cultural da criança. Para Freire (1996), a educação só é significativa quando considera a realidade e o repertório cultural do educando.
Quando a escola ignora as manifestações artísticas presentes no território (como danças populares, festas tradicionais ou saberes locais), perde a oportunidade de construir pontes de pertencimento e reconhecimento cultural. Essa falta de articulação limita o alcance inclusivo da arte.
7. Propostas e Recomendações
A superação das limitações na implementação da arte como ferramenta de inclusão exige ações integradas entre escola, poder público e sociedade civil. É necessário investir em políticas educacionais consistentes, formação docente qualificada e práticas pedagógicas inovadoras que coloquem a criança no centro do processo.
7.1. Formação e valorização dos professores
Uma das medidas mais urgentes é a ampliação da formação inicial e continuada dos professores em artes e inclusão. Segundo Hernández (2000), o docente deve ser mediador cultural, capaz de estimular a reflexão crítica por meio da arte. Para isso, é preciso: inserir disciplinas de artes e educação inclusiva nos cursos de licenciatura; ofertar cursos de capacitação continuada em metodologias ativas e acessíveis e; valorizar financeiramente e profissionalmente os professores que atuam em projetos artísticos inclusivos.
Com professores preparados, é possível transformar as práticas artísticas em experiências de acolhimento e diversidade, em vez de atividades meramente decorativas.
7.2. Fortalecimento das políticas públicas
A arte precisa ser compreendida como direito e como instrumento pedagógico essencial. Nesse sentido, recomenda-se: ampliar a carga horária destinada à arte no currículo escolar, conforme previsto na BNCC (BRASIL, 2017); fortalecer programas nacionais como o “Mais Cultura nas Escolas”; investir em projetos estaduais e municipais que promovam oficinas de música, teatro e artes visuais em parceria com artistas locais e; assegurar recursos financeiros específicos para materiais e infraestrutura.
Como defende Freire (1996), a educação deve ser um ato de liberdade. Para isso, o poder público precisa criar condições reais para que a arte seja acessível a todas as crianças.
7.3. Parcerias com a comunidade e valorização da cultura local
A escola não deve estar isolada do contexto cultural em que está inserida. Projetos pedagógicos podem integrar manifestações da comunidade, como danças populares, folguedos, artesanato, festas religiosas ou culinária típica. Essa aproximação reforça o sentimento de pertencimento das crianças e valoriza os saberes tradicionais.
De acordo com Moreira (2001), o multiculturalismo só é significativo quando cria espaços de diálogo entre culturas, rompendo com hierarquizações. Assim, abrir as portas da escola para artistas locais e para a participação das famílias nas práticas artísticas é estratégia inclusiva de impacto.
7.4. Uso de tecnologias digitais para democratizar a arte
As tecnologias digitais oferecem novas possibilidades para a inclusão pela arte. Plataformas de audiolivros, aplicativos de composição musical, softwares de desenho e ferramentas de realidade aumentada permitem que crianças com diferentes condições participem de experiências criativas.
Segundo Kenski (2012), a tecnologia, quando utilizada de forma crítica, potencializa a aprendizagem e a inclusão, ampliando o acesso à conteúdos antes restritos. Dessa forma, integrar tecnologias às práticas artísticas pode reduzir desigualdades e tornar o processo mais acessível a todos.
7.5. Avaliação inclusiva e valorização do processo
Outro ponto essencial é a revisão das formas de avaliação em artes. Muitas vezes, as crianças são avaliadas pelo “produto final” (como um desenho “bem feito” ou uma peça “perfeita”), o que pode excluir aquelas que têm dificuldades motoras ou cognitivas.
De acordo com Ostrower (2009), a criação artística deve ser compreendida como processo, e não apenas como resultado. Assim, recomenda-se que a avaliação valorize o esforço, a participação e a criatividade de cada criança, respeitando suas singularidades.
8. Considerações Finais
A arte, em suas diferentes linguagens (música, artes visuais, teatro, literatura, dança), revela-se um caminho privilegiado para a inclusão educacional e social das crianças. Mais do que uma disciplina curricular, ela se configura como linguagem universal capaz de integrar, dar voz e valorizar a singularidade de cada sujeito.
Ao longo deste artigo, verificou-se que a arte contribui para o desenvolvimento integral da criança, favorecendo aspectos cognitivos, motores, emocionais e sociais (VYGOTSKY, 1998; PIAGET, 1978; WALLON, 1975).
Constatou-se também que a arte é um recurso de acessibilidade e emancipação, pois permite múltiplas formas de expressão, rompendo com as limitações impostas pela linguagem verbal ou pelos padrões hegemônicos de aprendizagem (FREIRE, 1996; OSTROWER, 2009).
Além disso, a arte possibilita a valorização da diversidade cultural. Ao incluir no currículo narrativas indígenas, afro-brasileiras, populares e contemporâneas, a escola cumpre seu papel de formar sujeitos críticos, capazes de reconhecer e respeitar a pluralidade cultural (MOREIRA, 2001; HERNÁNDEZ, 2000). Nesse sentido, a arte também atua como prática de cidadania, assegurando às crianças o direito de produzir e usufruir de bens culturais, conforme previsto em dispositivos legais como a Constituição Federal, a LDB e a Lei Brasileira de Inclusão.
Entretanto, os desafios persistem: a formação insuficiente dos professores, a escassez de recursos, os preconceitos culturais e a marginalização da arte no currículo ainda limitam seu pleno potencial como prática inclusiva. Tais obstáculos indicam que a promoção da arte como instrumento de inclusão requer investimentos em políticas públicas consistentes, formação docente contínua, diálogo com a comunidade e uso inovador das tecnologias digitais.
Assim, conclui-se que a arte é mais do que um conteúdo escolar: é instrumento de transformação social. Quando as crianças encontram, nas práticas artísticas, espaço para se expressar livremente e reconhecer o valor das diferenças, a escola cumpre sua função maior: formar cidadãos conscientes, criativos, empáticos e comprometidos com uma sociedade justa e inclusiva.
Como diria Paulo Freire (1996, p. 45), “não há saber mais ou saber menos, há saberes diferentes”. A arte, ao acolher essas diferenças, contribui para que a educação se torne de fato libertadora, permitindo às crianças não apenas aprender, mas também existir com dignidade e diversidade.
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1Mestrando(a) em Ciências da Educação (Christian Business School – EUA)
2Professor orientador (Christian Business School – EUA)
