A APLICABILIDADE DOS PRINCÍPIOS LIBERAIS EM FACE À FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10251109


Luana Soido Teixeira e Silva


1 INTRODUÇÃO  

É salutar que os princípios hodiernamente assumem um papel de grande relevância na codificação privada brasileira. Afirma-se, por vezes, que o Código Civil de 2002 seja um Código de Princípios. Isso devido também ao grande papel desempenhado pela Constituição da República Federativa de 1988, deveras principiológica, que irradiou-se por todo o ordenamento jurídico, embasando a constitucionalização do Direito Civil.   Nesse viés, é importante lembrar que os princípios, conforme disciplina Flávio Tartuce, “são regramentos básicos aplicáveis a um determinado instituto jurídico, no caso em questão, os contratos”1. Tais princípios são abstraídos das normas – implícita ou expressamente –, dos costumes, da doutrina, da jurisprudência e de aspectos políticos, econômicos e sociais.   

Nesse sentido, o presente artigo propõe-se a elucidar a aplicabilidade dos princípios liberais em face à função social dos contratos, buscando para isso esclarecer os princípios liberais dos contratos, bem como os princípios sociais, com ênfase na função social dos contratos.   

2 PRINCÍPIOS LIBERAIS DOS CONTRATOS   

2.1 AUTONOMIA PRIVADA   

O princípio da autonomia da vontade se alicerça na ampla liberdade contratual, existente desde o direito romano, no poder dos contratantes de disciplinar os seus interesses mediante acordo de vontades, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica. As partes possuem a faculdade de celebrar ou não contratos, sem qualquer interferência do Estado, bem como contratos nominados ou inominados.2  

Esse princípio teve seu apogeu após a Revolução Francesa, com predominância do individualismo e a pregação de liberdade em todos os âmbitos, inclusive contratual. A autonomia da vontade, dessa forma, serve como baliza para a celebração dos contratos atípicos, tendo-se em vista o poder de auto regulamentação dos interesses dos particulares.3  

A liberdade contratual é prevista no art. 421 do Código Civil, in verbis: “ a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”4. Preceitua ainda o art. 425: “é lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código”5.   

2.1 OBRIGATORIEDADE  DO PACTUADO – PACTA SUNT SERVANDA   

O princípio da obrigatoriedade do pactuado impõe que o contrato deverá ser cumprido entre as partes que o celebraram, consubstanciado na expressão pacta sunt servanda. Ou seja, quando os contratante celebram um contrato, estão adstritos a este, de modo que deverão cumprir com os compromissos assumidos, tal com se fosse lei entre as partes.6   

O pacta sunt servanda é salutar para os contratos isso porque, se as partes pudessem não cumprir aquilo que prometeram fazer, estaria estabelecido o caos. Fornece, assim, segurança jurídica nos negócios.7   

Possui, portanto, como fundamentos: a necessidade de segurança nos negócios e a intangibilidade ou imutabilidade do contrato.   

2.2 RELATIVIDADE DOS CONTRATOS – RES INTER ALIOS ACTA   

O princípio da relatividade dos contratos funda-se na ideia de que os efeitos do contrato só se produzem em relação às partes, àqueles que manifestam a sua vontade, vinculando-os ao seu conteúdo, não afetando terceiros nem seu patrimônio.   

Não obstante, essa visão clássica não foi adotada pelo Código Civil de 2002, que não concebe mais o contrato como instrumento de satisfação de interesses pessoais dos contraentes, mas lhe reconhece uma função social, como será aprofundado a posteriori.   

3 PRINCÍPIOS SOCIAIS DOS CONTRATOS: A FUNÇÃO SOCIAL   

3.1 BOA-FÉ OBJETIVA  

A boa-fé objetiva, ou, simplesmente, princípio da boa-fé, de incidência no Direito Civil pátrio no campo das obrigações, com irradiação de seu aproveitamento no direito contratual (inclusive nas fases pré e pós negocial) e na seara processual, volta seus olhos para o comportamento do indivíduo. Trata-se de uma confiança adjetivada.  

Sua previsão é expressa no Código Civil, in verbis: “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”10 e normativos do Código de Processo Civil de 2015, em seu art. 5º, que pode ser compreendido como cláusula geral.  

De acordo com a doutrinadores modernos, especializados em direito civil, a boafé objetiva, de origem no Direito Germânico, apresenta facetas, standards, funções ou, ainda, aspectos parcelares para a verificação do abuso do direito, são eles: a) venire contra factum proprium; b) supressio/surrectio; c) duty to mitigate the loss; d) substancial performance; e) exceptio doli; f) tu quoque.  

Venire contra factum proprium é decorrência da “teoria dos atos própios”, consiste na quebra da confiança pela inovação, pela adoção de comportamento contraditório. Já supressio significa a modificação na situação jurídica como sinal negativo e a surrectio a modificação com sinal positivo. Duty to mitigate the loss é a necessidade de o credor diligenciar para reduzir seu próprio prejuízo. A substancial performance ou  adimplemento substancial é a função reativa que permite uma resistência do inadimplente em face do pleito de resolução contratual, quando estiver substancialmente quitado. Exceptio doli é conceituada como sendo a defesa do réu contra ações dolosas, contrárias à boa-fé. Por fim, tu quoque significa que a parte que tenha gerado violação a uma determinada norma não pode, posteriormente, extrair proveito desta situação.11   

3.2 EQUILÍBRIO DAS PRESTAÇÕES  

O presente princípio encontra-se presente no Código Civil de 2002, e possui como fundamentos a lesão e a revisão ou resolução do contrato por excessiva onerosidade superveniente, desempenhando papel de limite à rigidez do princípio da força obrigatória do contrato.12  

3.3 FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS  

O princípio da função social dos contratos revela-se como princípio  de ordem pública – art. 2.035, parágrafo único do Código Civil –, pelo qual o contrato deve ser necessariamente, interpretado e visualizado conforme o contexto da sociedade, através de uma finalidade coletiva. Serve como baliza para o já mencionado, princípio da força obrigatória das convenções (pacta sunt servanda).13    

À luz da personalização e constitucionalização do direito civil, afirma-se que a real função do contrato não é a segurança jurídica, mas sim atender os interesses da pessoa humana. Nesse contexto, Flávio Tartuce afirma que a função social dos contratos possui tanto eficácia interna (entre as partes) quanto externa (para além das partes).   

A eficácia interna da função social dos contratos é subdividida em: proteção dos vulneráveis contratuais, não somente prevista no direito consumerista mas também nos contratos civis comuns; vedação da onerosidade excessiva ou desequilíbrio contratual (efeito gangorra); proteção da dignidade humana e dos direitos da personalidade no contrato; nulidade de cláusulas anti sociais, tidas como abusivas e tendência de conservação contratual, sendo a extinção do contrato , a última medida a ser tomada, a ultima ratio.14     

Já a eficácia externa da função social do contrato apresenta dois aspectos principais: proteção dos direitos difusos e coletivos – função socioambiental do contrato – e a tutela externa do crédito, uma vez que há a possibilidade do contrato gerar efeitos perante terceiros ou de condutas de terceiros repercutirem no contrato.   

Nesse contexto, faz-se necessária a análise do art. 2.035, parágrafo único, do Código Civil, in verbis: “[…] nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.”15    

O comando trás três aspectos principais: o princípios da função social dos contratos é preceito de ordem pública; tal dispositivo legal coloca a função social dos contratos ao lado da função social da propriedade, dando fundamento constitucional à primeira; e, por fim, o diploma possibilita que a função social seja aplicada a um contrato celebrado na vigência do Código Civil de 1916 – retroatividade motivada ou justificada.   

4 A APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS   

Conforme delineado ao longo do presente artigo, os princípios contratuais subdividem-se doutrinariamente em liberais/clássicos e sociais/modernos. Não obstante, tal divisão mostra-se apenas no sentido literário, uma vez que hodiernamente há a aplicabilidade dos princípios liberais em face à função social dos contratos, não sendo esse excluído no âmbito prático/jurisprudencial.   

A título de exemplo, o Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1.200.105-AM, de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino,16 que admitiu a teoria do adimplemento substancial. Ou seja, por meio da teoria do adimplemento substancial, defende-se  que, se o adimplemento da obrigação foi muito próximo ao resultado final, a parte credora não terá direito de pedir a resolução do contrato porque isso violaria a boa-fé objetiva, já que seria iníquo. Assim, é respeitado o princípio da força obrigatória dos contratos, com a baliza do princípio da boa-fé.   

Ainda quando a preservação do pactuado, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1.509.933-SP, de relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, afirmou que   

RECURSO ESPECIAL. SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO. CONCORRÊNCIA PÚBLICA. AQUISIÇÃO DE IMÓVEL ADJUDICADO PELA CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. DESOCUPAÇÃO DE TERCEIRO. ÔNUS DO ADQUIRENTE. PREVISÃO EM CLÁUSULA CONTRATUAL. ABUSIVIDADE NÃO CONFIGURADA.  

1.Cinge-se a controvérsia ao saber se a cláusula contratual que impõe ao comprador a responsabilidade pela desocupação do imóvel que lhe é alienado pela CEF é abusiva ou não.  

2. A cláusula que transfere ao adquirente a responsabilidade pela desocupação de imóvel que esteja na posse de terceiros é comum em contrato de compra de bens de propriedade da Caixa Econômica Federal havidos por adjudicação, arrematação ou dação em pagamento. A oferta e a relação dos imóveis são divulgadas em editais de concorrência pública em que, mesmo diante dos riscos decorrentes da ocupação prévia por um terceiro não proprietário, os interessados optam pela compra desses bens, vendidos por valores reduzidos pela CEF .  

3. A oferta dos imóveis se dá por preço consideravelmente inferior ao valor real do bem, justamente pela situação peculiar que possa se encontrar, tanto no que se refere à preservação quanto à eventual ocupação por terceiros.  

4. Não havendo omissão sobre o fato de o bem estar ocupado por terceiro, não se afigura iníqua ou abusiva, não acarreta exagerada desvantagem para o adquirente nem cria situação de incompatibilidade com os postulados da boa-fé e da equidade a cláusula contratual que impõe ao adquirente o ônus pela desocupação do imóvel.  

5. A aquisição de imóvel pelo Sistema Financeiro da Habitação -SFH não afasta a liberdade de contratação e a força vinculante do contrato. O SFH tem regime jurídico próprio, de modo que há diversos mecanismos a fim de atender às suas peculiaridades. Assim, a estabilidade nas relações entre mutuários e agentes financeiros e o prestígio à segurança jurídica quanto às obrigações pactuadas são caminhos para manter a higidez do sistema e viabilizar que um maior número de pessoas possam adquirir um imóvel.  

6. A opção da CEF em levar o bem à hasta pública nas condições de ocupação e conservação em que se encontra está inserida e é compatível com as diretrizes do SFH e com a lógica do sistema financeiro, tendo em vista que além de impedir a permanência de imóveis em estoque, circunstância extremamente danosa ao SFH, pois bloqueia um valor expressivo de capital, cujo retorno deveria reverter para a carteira de crédito imobiliário, propiciando novas operações de crédito para famílias sem casa própria e gerar elevados custos de manutenção, também visa evitar a sua sujeição às severas restrições contidas na Circular do Banco Central nº 909, de 11/1/1985.  

7. Recurso especial não provido.17  

No presente julgado, respeita-se, como dito, o pacta sunt servanda bem como a baliza imposta pelo dever anexo do princípio da boa-fé, o duty to mitigate the lors.   

CONCLUSÃO   

Percebe-se, por fim, que, apesar da inserção da função social dos contratos, bem como outros princípios modernos dos contratos, balizados pela Constituição Federal de 1988, não houve a exclusão dos princípios clássicos dos contratos. Tais princípios permanecem vigentes, de aplicação jurisprudencial, como detalhado, contudo, com as balizas da função social.   

REFERÊNCIAS   

ARAUJO, Bruno. Funções Reativas ou Aspectos Parcelares da Boa-fé Objetiva na jurisprudência do STJ. Disponível em: https://blog.ebeji.com.br/funcoes-reativas-ouaspectos-parcelares-da-boa-fe-objetiva-na-jurisprudencia-do-stj/. Acesso em dez. 2017.   

BRASIL, Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. In.: Vade Mecum Saraiva. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.    

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 3: contratos e atos unilaterais. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.   

TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 5. ed. Rio de Janeiro: Método, 2015. p. 562-563.        

TERCEIRA TURMA, REsp 1.200.105-AM, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 19/6/2012. Disponível em: http://www.dizerodireito.com.br/2012/08/informativo-esquematizado-500-stj.html. Acesso em dez. 2017.    

TERCEIRA TURMA, REsp 1509933/SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva,  julgado em 04/10/2016, DJe 18/10/2016. Disponível em:   https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/1013c8b99e603831a d123eab4b27660f?categoria=4&subcategoria=40&assunto=152. Acesso em dez. 2017.    

TONELLI, Gustavo. Princípios contratuais clássicos e modernos. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41845/principios-contratuais-classicos-e-modernos. Acesso em dez. 2017.