REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202501170723
João Pedro Vieira Farah
RESUMO
Entre os remédios constitucionais previstos na legislação brasileira, a ação popular se destaca pela sua forte ligação com o princípio essencial da cidadania, sendo uma forma de exercício da soberania popular. Originária do Direito Romano, surgiu como um instrumento jurídico para proteger a moralidade administrativa, sendo reintegrada na primeira Constituição brasileira em 1824, após mais de mil anos de obscuridade. Ao longo do tempo, evoluiu para também proteger direitos difusos e coletivos, como a preservação do meio ambiente e do patrimônio cultural. Após uma análise detalhada das características e da história da ação popular. A problemática central é o impacto real da ação popular, questionando como o cidadão brasileiro médio utiliza esse mecanismo constitucional, se seu uso é difundido e eficaz, e quais as razões socioculturais que podem explicar a baixa penetração desse dispositivo entre as camadas populares. A conclusão alcançada é que, embora a ação popular possua plena eficácia jurídica, sua efetivação social ainda é limitada, evidenciada pela baixa quantidade de ações desse tipo propostas ao Judiciário.
Palavras-chave: Ação Popular. Cidadania. Eficácia social. Impacto Real.
INTRODUÇÃO
No topo da hierarquia do ordenamento jurídico nacional está a Constituição de 1988, de onde se origina toda a normatividade do Direito brasileiro e a legitimidade do Estado. Para garantir essa normatividade, a Constituição estabelece mecanismos chamados de remédios constitucionais, que têm como objetivo evitar violações aos direitos e garantias por ela estabelecidos. Entre esses remédios está o instrumento da ação popular, foco principal de estudo deste artigo, que questiona o aparente baixo uso desse poderoso instituto.
Portanto, este trabalho acadêmico tem como objetivo analisar a origem do instituto da ação popular (que remonta ao Direito Romano), as razões para sua inclusão no texto constitucional e nas leis brasileiras, sua conexão com o princípio fundamental da cidadania, e por fim, sua eficácia prática como meio de proteção de direitos difusos e coletivos.
Questiona-se e explora-se as razões intrínsecas à própria constituição desse recurso frente ao ethos da população brasileira, bem como sua baixa utilização pelo seu destinatário principal, o povo. O ponto central do artigo é discutir o impacto real deste instrumento, apresentando um conceito de eficácia normativa já estabelecido na doutrina, mas também considerando uma definição mais vinculada às implicações teóricas e aos pressupostos lógicos de existência no ordenamento jurídico.
A noção de eficácia que adotamos prioriza a avaliação do impacto da norma na sociedade, ou seja, suas implicações práticas. A importância do tema reside no fato de que a ação popular foi incluída na Constituição como um instrumento para o exercício da soberania popular e, consequentemente, da cidadania, o que é essencial para fortalecer a ainda jovem democracia brasileira.
O Estado Democrático de Direito depende da participação firme e contínua do povo para não se tornar apenas um conceito vazio, pois o povo é o seu elemento vital e núcleo essencial.
O artigo está organizado em duas partes distintas. A primeira aborda a ação popular em detalhes, desde suas origens romanas até sua adoção no Direito brasileiro. A segunda parte discute o conceito de eficácia social e examina a efetividade real desse instituto, focando especificamente em seu impacto prático, que é o cerne da análise realizada no artigo.
A metodologia utilizada baseia-se em uma abordagem qualitativa e exploratória, que busca fundamentar o estudo da origem da ação popular e suas complexidades por meio de referências teóricas. Além disso, sustenta a tese sobre a eficácia social desse instituto. Para isso, foi consultada uma ampla bibliografia composta por livros, artigos científicos, monografias e legislação, tanto nacional quanto estrangeira.
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DIREITOS FUNDAMENTAIS
O artigo 5º, considerado o mais importante entre todos os dispositivos constitucionais, contém os direitos e garantias fundamentais. Esses direitos são essenciais para a proteção da vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade, que são os pilares da dignidade humana. A dignidade da pessoa humana é a base do Estado Democrático de Direito, cuja construção e implementação são os objetivos principais do ordenamento jurídico brasileiro e de sua Constituição. O artigo 5º também prevê o instituto da ação popular, conforme descrito a seguir.
(…) Art. 5º […] LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência; (BRASIL, 1988)
A dignidade da pessoa humana refere-se à qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o torna merecedor de respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade. Isso envolve um conjunto de direitos e deveres fundamentais que protegem a pessoa contra atos degradantes e desumanos, asseguram condições mínimas para uma vida saudável e promovem sua participação ativa e responsável na sociedade.
O conceito de Melo (2013), destaca os direitos e deveres fundamentais como concretizações desse princípio e revela a conexão íntima entre a dignidade humana e o princípio da cidadania. De acordo com o art. 1º da Constituição brasileira, a cidadania, juntamente com a soberania, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, e o pluralismo político, é um pilar do Estado Democrático de Direito. Esses princípios são interdependentes, com várias normas constitucionais sendo guiadas por mais de um deles. Entre essas normas está a previsão da ação popular no art. 5º, LXXIII, que se relaciona profundamente com o princípio da cidadania.
O pleno exercício da cidadania pelo povo é essencial para a existência verdadeira de uma democracia. Esse regime depende do apoio e da soberania popular, o que significa que um Estado que adote o princípio democrático, mas cujos cidadãos não participem da vida política, não é realmente uma democracia, mas apenas uma imitação.
Democracia e cidadania surgiram na civilização grega, onde a formação das cidades-estado permitiu a participação ativa dos cidadãos na governança, contrastando com as monarquias absolutas do Egito, Mesopotâmia e Pérsia. De acordo com Melo (2013), a cultura de escravização entre os gregos incutiu um alto valor à liberdade, levando à criação das cidades-estado para protegê-la.
Além dos gregos, os romanos também contribuíram significativamente para o conceito de cidadania. Durante o Império Romano, o édito de Caracala em 212 reconheceu a cidadania como direito de todos os homens livres no império. Para os romanos, o cidadão era aquele que podia invocar a proteção das leis e estava sujeito a elas, possuindo tanto direitos quanto deveres.
Inserção da ação popular no direito brasileiro
A moderna concepção de cidadania, que combina a participação popular na administração pública e a sujeição a direitos e deveres, é influenciada tanto pelo conceito grego de participação popular na governança quanto pelo conceito romano de equilíbrio entre direitos e deveres.
Esse conceito evoluiu também com as mudanças socioculturais da modernidade. A queda do Ancien Régime na França em 1789 simbolizou a rejeição ao absolutismo, o triunfo dos ideais liberais e a revitalização das noções de republicanismo, democracia e cidadania.
Esse fervor cruzou o Atlântico e influenciou os príncipes portugueses, refugiados no Brasil devido ao avanço napoleônico. Em 1822, após a chegada da família real ao Brasil e alguns conflitos, a independência foi declarada, e o país se tornou uma monarquia sob o comando do príncipe liberal português Pedro. Em 1824, foi promulgada a primeira Constituição brasileira, influenciada pelo liberalismo, mas ainda com traços despóticos, como o Poder Moderador, uma vez que foi outorgada sem participação popular.
A Constituição também previa o instrumento da ação popular. O dispositivo constitucional dizia: “Art. 157. Por suborno, peita, peculato, e concussão haverá contra eles ação popular, que poderá ser intentada dentro de ano e dia pelo próprio queixoso, ou por qualquer do Povo” (BRASIL, 1824).
Antes de mais nada, é importante fazer uma digressão sobre como um antigo instituto do Direito Romano foi incorporado na primeira constituição do Brasil (e em todas as subsequentes, exceto nas de 1891 e 1937). A região da Lusitânia, onde se formou o reino de Portugal, foi intensamente colonizada e influenciada pelos romanos, permitindo que o sistema jurídico romano criasse raízes ali.
Após a queda do Império Romano do Ocidente, a Península Ibérica passou por ocupações visigóticas e árabes, com apenas as regiões ao norte mantendo algum grau de independência. Após intensas agitações políticas, sociais e militares, Portugal emergiu como nação independente por volta do século XII. As Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, códigos jurídicos em vigor em Portugal e suas colônias, foram adaptações do direito romano e canônico à realidade portuguesa.
No entanto, o absolutismo monárquico impediu a recepção do instituto da actio popularis durante a Idade Média e Moderna, que só foi reintegrado como instrumento legalmente reconhecido após as revoluções liberais. A primeira Constituição portuguesa, criada após a Revolução do Porto, já formalizou a ação popular, com uma redação muito semelhante à do dispositivo brasileiro. Naturalmente, observa-se uma grande convergência entre os estágios iniciais do direito brasileiro e o direito português, já que este último regeu o primeiro durante mais de três séculos de colonização.
Constitucionalização da ação popular
Observa-se no dispositivo constitucional de 1824 utilizou uma abordagem moralizante em relação à função jurisdicional, limitando o alvo da ação popular a membros do Poder Judiciário acusados de corrupção. Essa restrição abrangia apenas uma pequena parte do que é protegido por este instituto atualmente e tinha uma natureza penal comum à antiga actio popularis.
Em 1891, com a queda da monarquia e a promulgação da primeira constituição republicana, a ação popular foi removida do ordenamento jurídico. A doutrina dominante da época, especialmente defendida por Clóvis Bevilácqua (1940 apud Clementoni, 2016), argumentava que tal instrumento era desnecessário, considerando-o arcaico e incompatível com a legislação brasileira, que supostamente já protegia qualquer situação que pudesse ser objeto de uma ação popular.
No entanto, após o colapso da República Velha, caracterizada por um regime político fortemente oligárquico e autoritário, foi promulgada em 1934 uma nova Constituição, fortemente influenciada pelo novo paradigma do Estado Social de Direito. Assim, a ação popular foi reintegrada na então Lei Maior, com a seguinte redação: “Art. 113, n° 38: Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a declaração de nulidade ou anulação dos atos lesivos ao patrimônio da União, dos Estados ou dos Municípios.
O regime varguista novamente removeu esse remédio processual dos textos legais. Com o advento da democracia em 1946, a nova Constituição reintroduziu a ação popular, que permaneceu no ordenamento jurídico brasileiro desde então, mesmo durante os anos de chumbo da ditadura cívico-militar. Em 1988, a Constituição Cidadã fortaleceu ainda mais esse dispositivo constitucional histórico.
Além de proteger contra atos lesivos ao patrimônio público (pois a tutela do interesse público é, afinal, o núcleo essencial da ação popular moderna), houve uma ampliação significativa da legitimidade de ação do cidadão. Agora, além de pleitear a anulação de ofensas patrimoniais, o cidadão pode também contestar atos lesivos a entidades estatais, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.
AÇÃO POPULAR COMO DIREITO POLÍTICO
Como mencionado antes, o conceito de cidadania é duplo e inclui tanto a participação popular quanto a obrigação de cumprir direitos e deveres. Isso é claramente demonstrado pelos direitos políticos, que são as normas e garantias estabelecidas pela Constituição para o exercício da soberania popular e, consequentemente, da própria cidadania.
É o conjunto de regras que disciplina as formas de atuação da soberania popular, conforme preleciona o caput do art. 14 da Constituição Federal. São direitos públicos subjetivos que investem o indivíduo no status activae civitatis, permitindo-lhe o exercício concreto da liberdade de participação nos negócios políticos do Estado, de maneira a conferir os atributos da cidadania (MORAES, 2003, p. 232)
Naturalmente, o ajuizamento da ação popular é também considerado um direito político, pois representa uma forma de participação popular e um dos desdobramentos jurisdicionais do princípio da cidadania. Esse entendimento é corroborado pela doutrina predominante, que admite, como exceção à teoria das incapacidades, que um indivíduo com idade entre dezesseis e dezoito anos, alistado eleitoralmente, possa ajuizar ação popular sem a necessidade de assistência, que normalmente é exigida para que os relativamente incapazes possam litigar em juízo.
Em resumo, conforme amplamente demonstrado nesta seção, a ação popular é um instituto jurídico de caráter constitucional, sustentado pelos princípios da democracia e cidadania. Ela serve como um instrumento para a defesa do interesse público e para o exercício ativo dos direitos políticos pelo cidadão. Após o detalhamento do conceito de ação popular e suas implicações históricas e principiológicas no ordenamento jurídico nacional, passamos agora a analisar seu real impacto como remédio constitucional na vida dos cidadãos brasileiros.
Afinal, a ação popular não deve apenas existir nas leis, mas deve cumprir sua missão de garantir a influência direta do povo na política, conforme estipulado na Constituição da República: “Art. 1 (…) Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (BRASIL, 1988).
Assim, conclui-se que a ação popular, como qualquer norma constitucional, precisa ter eficácia social, tema a ser discutido na próxima seção do artigo. A problemática central deste estudo envolve a existência e a extensão dessa eficácia na utilização desse instrumento pelo povo.
Democracia direta e democracia representativa
A ação popular, como já amplamente discutido, é um meio de exercício da cidadania e da soberania popular. Na verdade, é um dos poucos meios diretos de participação popular disponíveis dentro do princípio representativo que prevalece no regime democrático brasileiro, assim como em outras democracias modernas. Diferente da democracia ateniense clássica, as repúblicas modernas, surgidas após o Iluminismo e as revoluções do final do século XVIII, baseiam-se na delegação do poder popular a representantes eleitos, que o exercem em nome do povo.
James Madison, no décimo artigo do “Federalista” (2001), justifica a necessidade deste princípio argumentando que a criação de uma “democracia pura” (ou democracia direta) é inviável em territórios extensos e populosos como as nações contemporâneas, além do risco de que uma facção majoritária tome o poder e oprima tiranicamente as minorias.
Esse pressuposto teórico é amplamente aceito como um dos alicerces do Estado moderno, o que naturalmente limita a participação popular na gestão estatal. No entanto, apesar de ser menos comum, o princípio da democracia direta também é respaldado pela Constituição brasileira, conforme o dispositivo transcrito: “Art. 1º (…) Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (BRASIL, 1988).
A Constituição também aborda esse tema no Art. 14: “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante (…) iniciativa popular (…)” (BRASIL, 1988).
Embora a ação popular não seja explicitamente mencionada nesses dispositivos, ela é considerada pela doutrina como um dos meios de exercício da democracia direta. Portanto, a plena eficácia social da ação popular é uma forma de aprimorar o mandamento constitucional, e sua ausência impede a aplicação plena da Constituição, o que dificulta a consolidação do Estado Democrático de Direito.
IMPACTO REAL DA AÇÃO POPULAR E SOLUÇÕES PARA A EFETIVAÇÃO PLENA DA AÇÃO POPULAR
Este artigo tem como objetivo principal, conforme já mencionado, discutir criticamente o impacto real da ação popular, sendo este ponto o clímax da argumentação teórica do trabalho. Para maximizar esse impacto, a Constituição de 1988 fez concessões específicas, como se vê no Art. 5º, inciso LXXIII: “(…) ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência” (BRASIL, 1988).
A citação acima refere-se à parte final do dispositivo constitucional que prevê a ação popular, mencionada na primeira seção. Ao analisar esse trecho à luz da realidade social brasileira, percebe-se que o Poder Constituinte buscou incentivar o ajuizamento de ações populares pela população em geral, isentando o autor de qualquer custo, mesmo que perca a ação, salvo em casos de má-fé.
Isso é particularmente relevante, considerando que grande parte da população brasileira era (e ainda é) economicamente desfavorecida. Não faria sentido existir uma norma jurídica destinada a aumentar a participação popular sem proporcionar condições mínimas para que os cidadãos mais necessitados pudessem exercê-la.
Quanto à evolução constitucional, foi a primeira vez que essa regra foi incluída no instituto da ação popular, contribuindo para que a atual Constituição seja conhecida como a “Constituição Cidadã”.
Ainda assim, embora a plena eficácia jurídica desse instrumento não seja questionável, é necessário investigar a extensão de sua eficácia social. Apesar de sua existência ser inegável, com numerosos casos na jurisprudência de indivíduos que ajuizaram tais ações, parece razoável afirmar que essa eficácia ainda não alcançou sua plenitude.
Há uma vasta gama de atos lesivos que a ação popular se propõe a impugnar, incluindo tanto atos comissivos quanto omissivos, conforme estabelecido no art. 6º da Lei Nº 4717, que regula a ação popular de acordo com a Constituição.
Como é amplamente sabido, há constantes violações contra o meio ambiente, o patrimônio histórico e cultural, a moralidade administrativa e outros bens jurídicos protegidos pelo instituto, muitas vezes devido a omissões da Administração Pública, que deve ser o polo passivo na litigância.
Frequentemente, a Administração Pública e seus responsáveis permanecem impunes, resultando em prejuízo ao interesse público. Um instrumento tão poderoso como a ação popular seria de grande utilidade se fosse utilizado com mais frequência nessas situações, e sua ausência questiona a plena eficácia social do instrumento.
Como exemplo, estatísticas do Cadastro Nacional de Ações Coletivas (CACOL), um dos painéis do Conselho Nacional de Justiça, mostram que atualmente tramitam apenas cerca de doze mil ações populares nas esferas estadual e federal. Considerando as dimensões continentais do Brasil e sua grande população, fica evidente a baixa adesão a esse recurso processual.
As únicas explicações plausíveis para a situação descrita (ou seja, a imperfeição da eficácia normativa) estão no campo da Sociologia, uma disciplina valiosa para compreender a realidade fática do Direito. Um ponto a ser destacado é que a maioria dos legitimados ativos para propor a ação popular desconhece ou não se interessa pelo instituto, desperdiçando assim um útil instrumento de tutela de direitos difusos e exercício da cidadania. Isso indica uma deficiência na cultura jurídica da maior parte da população, o que dificulta a efetivação dos direitos constitucionalmente adquiridos.
Uma das explicações para a problemática mencionada é que, historicamente, o cidadão brasileiro médio foi excluído da oportunidade de frequentar o ensino superior, que tradicionalmente era reservado às classes mais abastadas. Embora políticas sociais mais recentes, implementadas após a ascensão de lideranças progressistas ao poder, tenham tido algum sucesso em inserir pessoas das classes populares no ambiente universitário, este ainda é predominantemente elitista e tecnicista, especialmente em cursos de maior prestígio, como o de Direito.
Dessa forma, tanto o conhecimento quanto a prática jurídica se distanciam das massas populares, que desenvolvem até certo receio do Poder Judiciário, visto como uma ferramenta lenta, opressiva e inacessível. Portanto, conclui-se que no cerne do cidadão comum predomina a vontade individual, enquanto o interesse coletivo frequentemente fica em segundo plano e, quando considerado, é subordinado ao interesse particular.
Esse contexto se revela pouco propício para alcançar a plena eficácia social de instrumentos jurídicos de ação coletiva, como a ação popular. Afinal, a defesa de direitos difusos e coletivos geralmente não traz benefícios diretos para o cidadão que a propõe, servindo principalmente ao interesse social e majoritário. Por isso, o processo de iniciar uma ação popular é visto como custoso e pouco atraente.
No entanto, é importante notar que a sociedade brasileira passou por significativas transformações morais desde os tempos em que Holanda desenvolveu sua teoria, datada dos anos trinta. É relevante lembrar das grandes mobilizações em massa em defesa dos direitos humanos e pela restauração da democracia durante os anos sombrios do regime militar, como a “Passeata dos Cem Mil” (1968) e o movimento “Diretas Já” (1983-1984), que evidenciam um fortalecimento do espírito cívico entre o povo brasileiro.
Ainda, há uma certa democratização do conhecimento jurídico, embora limitada, com a inclusão gradual de camadas populares no ensino superior (embora a elitização deste ainda seja uma causa principal da problemática discutida nesta seção).
Assim, há boas perspectivas para o futuro da ação popular como instituto constitucional, com uma tendência de crescimento em sua eficácia social que pode ser razoavelmente prevista.
Análise Crítica dos Fatores que Impedem a Plena Aplicação da Ação Popular
A ação popular, apesar de sua relevância teórica e normativa, enfrenta uma série de desafios práticos que limitam sua eficácia social. Esses desafios não são meramente técnicos, mas estão profundamente enraizados na estrutura social, no sistema jurídico e na percepção pública sobre a justiça. A seguir, são discutidos os principais fatores que dificultam a plena aplicação desse instituto.
Burocracia e Complexidade do Sistema Judiciário
O sistema judiciário brasileiro é frequentemente criticado pela sua complexidade e pela burocracia envolvida nos processos judiciais. A ação popular, sendo um mecanismo jurídico que exige mobilização e conhecimento jurídico, está sujeita a essas mesmas complexidades.
A burocracia pode desencorajar cidadãos comuns de ajuizar ações populares, especialmente aqueles que não têm acesso fácil a recursos jurídicos. A necessidade de enfrentar um sistema judicial que é muitas vezes percebido como lento e complicado pode desestimular a participação ativa dos cidadãos. Estudos mostram que a complexidade processual e o custo indireto (como o tempo gasto e a necessidade de lidar com múltiplas instâncias) são barreiras significativas para o acesso à justiça (FERRAZ, 2018).
A desconfiança no sistema judiciário é uma questão crítica no Brasil. Muitos cidadãos percebem o Poder Judiciário como uma instituição distante e frequentemente ineficaz na proteção dos direitos coletivos. Essa percepção pode ser exacerbada por casos de corrupção, ineficiência e decisões judiciais que não atendem às expectativas da população. A falta de confiança pode levar à apatia cívica, onde os cidadãos não acreditam que suas ações tenham um impacto real. O desinteresse em ajuizar ações populares pode ser visto como uma consequência dessa desconfiança generalizada no sistema judicial (SILVA, 2017). Sem a crença na eficácia da justiça, a ação popular, como meio de participação direta, perde sua atratividade.
A educação jurídica é um fator crucial para o entendimento e a utilização da ação popular. A falta de conhecimento jurídico entre a população em geral é uma barreira significativa. Muitos cidadãos não têm conhecimento suficiente sobre a existência da ação popular, suas funções e como utilizá-la efetivamente. A educação cívica e jurídica no Brasil ainda enfrenta desafios significativos. Embora haja esforços para democratizar o acesso ao conhecimento jurídico, a educação formal muitas vezes permanece restrita a uma parte da população. A falta de conscientização sobre a ação popular pode ser atribuída a uma deficiência nos currículos escolares e na falta de iniciativas de educação cívica que informem sobre os direitos e mecanismos de participação (CARVALHO, 2019).
Embora a Constituição isente os autores de ação popular de custas judiciais e ônus de sucumbência, a realidade prática pode ser diferente. O custo indireto de iniciar uma ação popular, incluindo a necessidade de assistência jurídica e a possível perda de tempo, pode ainda ser um obstáculo significativo para muitos cidadãos. Além disso, a falta de incentivo por parte de organizações da sociedade civil ou por campanhas públicas pode contribuir para a baixa utilização do instituto. Se a ação popular não for amplamente promovida e apoiada por campanhas de conscientização e por estruturas de apoio, sua eficácia social será inevitavelmente limitada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base em toda a argumentação apresentada, que inclui o mapeamento das origens históricas da ação popular fundamentadas nos princípios da cidadania e soberania popular, além da análise do conceito de eficácia, abordando a distinção entre sua forma jurídica e social, e questionando se a norma que estabelece a ação popular atende plenamente aos requisitos de eficácia social, foi possível chegar a algumas conclusões com um certo embasamento empírico.
Esse método é essencial para avaliar os efeitos práticos e sociais de qualquer norma, inclusive aquelas de origem constitucional, que ocupam o topo hierárquico do ordenamento jurídico nacional.
As conclusões acima mencionadas implicam a aceitação de que a ação popular, possivelmente devido à sua natureza como uma ação coletiva, enfrenta dificuldades em ser plenamente incorporada ao ethos do povo brasileiro e sua cultura particular, ou mais provavelmente devido à desconexão entre as normas, doutrina, conhecimento jurídico e o mundo real da comunidade. Isso resulta em uma eficácia social que é apenas parcial. Essa é, portanto, a resposta oferecida para a questão levantada pelo trabalho.
É crucial ressaltar que o instituto da ação popular não deve ser visto como um apêndice arcaico herdado de um sistema jurídico ancestral, mesmo que distinto do atual. Discordamos da posição de Clóvis Beviláqua, mencionada no artigo, que argumenta pela desnecessidade da ação popular no Direito contemporâneo. Pelo contrário, ela é absolutamente essencial, sendo um dos poucos instrumentos da democracia direta.
A simples inclusão da ação popular entre os remédios processuais representa um importante avanço para a consolidação democrática e o fortalecimento do princípio fundamental da cidadania.
No entanto, isso não é suficiente por si só. Alcançar a plena eficácia social da ação popular seria de grande benefício para a causa cívica, sendo o civismo um dos pilares fundamentais do regime democrático e um guardião contra sua erosão. Embora esse objetivo ainda esteja distante, é possível realizá-lo.
Para incentivar a utilização da ação popular, medidas adicionais podem ser adotadas, como a criação de incentivos para aqueles que ajuízam ações populares que resultem em benefícios claros para a sociedade. A proteção contra retaliações e a garantia de que o autor da ação não sofrerá represálias também são essenciais para encorajar a participação ativa.
É crucial democratizar o conhecimento jurídico para conscientizar sobre os direitos coletivos e difusos, que são os objetos protegidos pela ação popular. Além disso, é essencial aumentar o conhecimento sobre a própria ação popular, que para muitos cidadãos ainda é amplamente desconhecida. Assim, a promoção da participação cidadã e a conscientização sobre a importância da ação popular são fundamentais para fortalecer a democracia. À medida que a sociedade brasileira continua a evoluir, a ação popular pode se consolidar como uma ferramenta essencial para a defesa dos direitos coletivos e a promoção da justiça social.
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