REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10003948
José Dalmo Ribeiro Cruz
RESUMO
O presente trabalho propõe uma investigação aprofundada das abordagens da filosofia contemporânea em relação à cultura, dentro do contexto do direito constitucional. Através da análise da obra “Filosofia política contemporânea: uma introdução” escrita por Will Kymlicka, este artigo tem como objetivo explorar as complexas interações entre cultura e direito constitucional na sociedade atual. O estudo examinará como as diferentes correntes filosóficas abordam questões cruciais relacionadas à diversidade cultural, identidade, pluralismo e igualdade no âmbito das estruturas constitucionais. Com base nas perspectivas apresentadas por Kymlicka e outros filósofos políticos contemporâneos, o trabalho analisará como as sociedades lidam com a proteção e promoção da cultura dentro do quadro legal e constitucional. Serão exploradas questões fundamentais, como o reconhecimento de direitos culturais, acomodação de minorias, o papel do Estado na preservação cultural e a busca pelo equilíbrio entre a preservação cultural e os direitos individuais universais. Por meio da análise crítica das abordagens filosóficas, este estudo pretende oferecer uma compreensão mais profunda das implicações práticas das teorias discutidas, examinando como elas influenciam a elaboração e interpretação das leis constitucionais. Além disso, o trabalho também destacará a relevância contemporânea dessas questões, considerando o panorama global de diversidade cultural e as tensões entre identidade coletiva e cidadania individual. Ao concluir essa investigação, espera-se fornecer insights valiosos sobre como as correntes da filosofia política contemporânea, conforme expostas por Kymlicka e outros, podem informar e enriquecer os debates sobre cultura e direito constitucional. Esse estudo contribuirá para uma compreensão mais completa das complexas interseções entre os princípios constitucionais e as aspirações culturais em um mundo cada vez mais interconectado e diversificado.
Palavras-chave: Cultura; Direito Constitucional; Filosofia Contemporânea
ABSTRACT
The present work proposes an in-depth investigation of contemporary philosophy’s approaches to culture, within the context of constitutional law. Through the analysis of “Contemporary Political Philosophy: An Introduction” written by Will Kymlicka, this article aims to explore the complex interactions between culture and constitutional law in today’s society. The study will examine how different philosophical currents address crucial issues related to cultural diversity, identity, pluralism and equality within constitutional frameworks. Based on the perspectives presented by Kymlicka and other contemporary political philosophers, the work will analyze how societies deal with the protection and promotion of culture within the legal and constitutional framework. Fundamental issues will be explored, such as the recognition of cultural rights, accommodation of minorities, the role of the State in cultural preservation and the search for a balance between cultural preservation and universal individual rights. Through critical analysis of philosophical approaches, this study aims to provide a deeper understanding of the practical implications of the theories discussed, examining how they influence the making and interpretation of constitutional laws. In addition, the work will also highlight the contemporary relevance of these issues, considering the global panorama of cultural diversity and the tensions between collective identity and individual citizenship. In concluding this investigation, it is hoped to provide valuable insights into how currents in contemporary political philosophy, as expounded by Kymlicka and others, can inform and enrich debates about culture and constitutional law. This study will contribute to a more complete understanding of the complex intersections between constitutional principles and cultural aspirations in an increasingly interconnected and diverse world.
Keywords: Culture; Constitutional right; Contemporary Philosophy
INTRODUÇÃO
A intersecção entre filosofia contemporânea, cultura e direito constitucional é um campo de estudo que tem suscitado crescente interesse e relevância na atualidade. A dinâmica globalizada e diversificada das sociedades contemporâneas traz consigo uma série de desafios relacionados à preservação da identidade cultural e à garantia dos direitos individuais no âmbito dos sistemas legais e constitucionais. O presente trabalho propõe uma exploração aprofundada das perspectivas filosóficas contemporâneas sobre a cultura no contexto do direito constitucional, tendo como base a obra seminal “Filosofia política contemporânea: uma introdução”, elaborada por Will Kymlicka.
A obra de Kymlicka destaca-se como um guia fundamental para compreender as complexas interações entre teorias filosóficas políticas e as questões prementes relacionadas à cultura e ao direito constitucional. Este trabalho tem como objetivo principal analisar e contextualizar as abordagens filosóficas contemporâneas apresentadas por Kymlicka e outros pensadores relevantes nesse campo. Através da exploração das diversas perspectivas teóricas, pretende-se não apenas entender as visões divergentes sobre a relação entre cultura e direitos constitucionais, mas também discutir sua aplicabilidade e implicações práticas em sociedades pluralistas e multifacetadas.
Ao examinar as diversas correntes filosóficas contemporâneas, este trabalho se propõe a contribuir para um entendimento mais abrangente das fundamentais interações entre cultura e direito constitucional. Ao considerar as implicações políticas, sociais e éticas dessas abordagens, aspira-se fornecer insights valiosos para aqueles que buscam aprofundar sua compreensão sobre como as sociedades podem reconciliar a promoção da diversidade cultural com a garantia dos direitos individuais, dentro de uma estrutura constitucional sólida.
Nas próximas seções deste trabalho, exploraremos as principais abordagens filosóficas contemporâneas sobre cultura e direito constitucional, destacando as contribuições de Kymlicka e outros autores influentes nesse campo. Além disso, analisaremos os desafios e oportunidades que surgem ao aplicar essas teorias no cenário complexo e em constante evolução das sociedades contemporâneas
2. DO CONCEITO DE CULTURA NA FILOSOFIA DO DIREITO
No século XVI, à medida que os contatos entre diferentes povos e nações se intensificaram, surgiu a necessidade de compreender o diverso. Contudo, durante esse processo, ocorreram numerosos equívocos, marcados por preconceitos e dificuldades na compreensão do conceito de cultura. A evolução do uso do termo conduziu a uma nova compreensão, e as mudanças no conceito refletiram as diversas correntes teóricas que questionavam posições específicas em relação a essa questão. Contudo, antes de discutirmos a noção de “cultura”, é necessário examinar o conceito de “civilização” (KYMLICKA, 2008).
A ideia de civilização é intrinsecamente vinculada à autoimagem do Ocidente, que historicamente a adotou para propagar a noção de sua própria superioridade. O termo “civilizado” é empregado para denotar costumes, papéis sociais, conhecimento científico e técnico. O emprego desse termo difere entre os ingleses, franceses e alemães. Cada sociedade expressa uma perspectiva e significado distintos devido às suas estruturas representacionais, processos ideológicos e juízos formados. Para os ingleses, esse termo implica “o orgulho pela contribuição de suas nações para o avanço do Ocidente e da humanidade” (ELIAS, 1994, p. 24). Na visão alemã, a “‘Zivilisation’ representa algo efetivamente útil, porém, ainda assim, considerado de segunda classe, abrangendo apenas a superfície externa dos seres humanos, a aparência superficial da existência humana” (ELIAS, 1994, p. 24). O orgulho alemão é expresso pelo termo “Kultur”, associado a suas próprias realizações e identidade (ELIAS, 1994, p. 24).
Devido à sua natureza subjetiva, a definição de um único sentido ou a criação de um paradigma para o termo se torna excessivamente complexa. O conceito alemão de Kultur se refere principalmente a fatos intelectuais, artísticos e religiosos, estabelecendo uma clara “fronteira entre tais fatos e, por outro lado, eventos políticos, econômicos e sociais” (ELIAS, 1994, p. 24). Assim, o conceito de Kultur delimita as expressões humanas na arte, na religião, no pensamento e na busca pelo conhecimento, formando a individualidade da sociedade germânica. O entendimento desse conceito evoluiu e ganhou nova interpretação quando foi estudado pela antropologia e etnologia. Segundo Norbert Elias (1994), a ideia de civilização continua o expansionismo do colonizador, enquanto o conceito de Kultur reflete sobre si mesmo, perpetuamente questionando seus limites. Esse movimento na evolução do conceito de cultura revela o processo histórico de sua formação e sua colocação em contextos específicos, destacando a abordagem delicada do termo.
Dado o caráter particular do significado original de Kultur, considerar o que é cultura ou definir o termo em uma sociedade específica é algo delicado, pois apenas um indivíduo que internalizou o sentido cultural ao longo de sua formação histórica e faz parte desse sistema simbólico pode desvendar os elementos que sustentam sua estrutura. No entanto, não é viável transmitir todas as experiências que dão substância a esse conceito em seu contexto. Portanto, a localização e o significado do conceito estão enraizados na formação social do indivíduo e em suas vivências (SALES SARLET e NETO, 2018). Por essa razão, ele pode ser explicado, mas nunca completamente compreendido. Não é possível estabelecer uma definição universal para o termo, uma vez que seu sentido, construção e estrutura estão ligados a realidades e contextos subjetivos e historicamente moldados. É possível descrevê-lo através de observações embasadas em teorias, mas não capturar sua essência em sua totalidade.
A distinção entre os conceitos de Kultur e Civilização se torna aparente no momento em que o mundo, incluindo o mundo germânico, se encanta pela França e pelo ideal francês de nobreza. A língua francesa havia se tornado a língua culta e nobre, elevando a importância do termo “civilização”. Isso evidencia a mudança no uso do conceito ao longo do tempo. Ele passa a representar uma maneira de estabelecer um modo de vida, um estilo, uma língua e conceitos – em essência, ideologias e valores que se desenvolvem em torno desse termo e seu significado. Na Alemanha, é notável que o termo Kultur era associado à classe média, já que aqueles fora dessa classe não o compartilhavam. Em outras palavras, o significado que atribuímos a Kultur nos parágrafos iniciais estava restrito a uma classe que detinha um conjunto de noções específicas – artes, poesia, filosofia e reflexão sobre a existência pareciam pertencer exclusivamente a uma classe capaz de dominar essas práticas: a classe média. Além disso, o termo também serviu para mitigar o complexo presente na classe média alemã. Diante de sua fragilização, eles careciam de elementos que fortalecessem a identidade do povo germânico.
De acordo com Bauman (2012), a concepção de cultura começou a surgir na segunda metade do século XVIII. Inicialmente, seu propósito era demarcar a diferença entre a atividade humana e as manifestações naturais, ou seja, cultura entendida como produção humana. A partir desse ponto, emergiu o processo de naturalização da cultura, conferindo-lhe um estatuto autônomo, com sua própria existência independente. A abordagem técnica, retratando cultura como o resultado das ações humanas, tomou conta da realidade, obscurecendo a presença da natureza. Consequentemente, o termo “cultura” se tornou sinônimo de progresso técnico e domínio nas artes e atividades industriais. A interpretação da cultura restringiu-se à produção direta de uma sociedade que identificava a racionalidade como um traço fundamental. Entretanto, é crucial considerar a racionalidade com cuidado, pois o conceito de cultura, ligado ao racionalismo da era moderna, também foi empregado para validar determinados pensamentos ou formas de pensamento como os únicos verdadeiros e válidos. Dessa forma, o pensamento ocidental se estabeleceu como o padrão único e aceito, dando origem ao que é denominado cultura ocidental.
A evolução do termo “cultura” como compreendemos hoje, dentro dos campos da antropologia e das ciências sociais, resulta da fusão entre o conceito francês de “civilização” e o termo alemão “Kultur”. Essa união das duas categorias distintas – “civilização” e “Kultur” –, cada uma com sua compreensão particular dentro de suas respectivas esferas de significado, gerou uma única categoria mais intrincada, abrangendo um vasto leque de representações e realidades. É como se o termo “cultura”, originado a partir de “Kultur” e “civilização”, fosse um terceiro termo com fonética similar e raízes remetentes à palavra alemã. Contudo, esse termo diferenciado extrapolou os limites das sociedades específicas do século XVIII – França e Alemanha – para adentrar na compreensão de universos mais amplos, deixando para trás práticas restritas a nacionalismos e classismos. Em vez disso, ele mergulhou na exploração das diferenças em termos de significados, representações, ideologias, subjetividades, manifestações ontológicas e conexões espaciais, sociais e geográficas.
A base científica do conceito de cultura, em seu início e formação, tinha uma natureza normativa. De acordo com Cuche (1999), os pioneiros da etnologia buscavam conferir ao termo um caráter puramente descritivo. O intuito não era definir o que a cultura deveria ser, mas sim descrever como ela se manifestava. Contudo, a etnologia em seus estágios iniciais não conseguiu evitar completamente ambiguidades e implicações ideológicas ao abordar a questão da cultura. Segundo Cuche (1999), a primeira definição etnológica do conceito de cultura é atribuída ao antropólogo britânico Edward Burnett Tylor (1832-1917), nos séculos XIX e XX.
Tylor rompeu com descrições restritas e individualistas que anteriormente circundavam o conceito. Ele argumentava que o aspecto biológico não determinava o aspecto cultural, mas sim era algo adquirido por meio do aprendizado. A cultura não se originava da hereditariedade biológica. Assim, Tylor foi pioneiro na construção da reflexão teórico-científica do conceito de cultura. Enquanto Tylor estabeleceu os fundamentos do conceito universalista e científico de cultura, Franz Boas (1858-1942) tornou-se o primeiro antropólogo a realizar pesquisas in loco para a observação direta e prolongada de culturas primitivas, introduzindo inovações na disciplina da etnologia. Boas procurou demonstrar que as diferenças eram culturais, não raciais, desafiando classificações baseadas no conceito de raça. Esse enfoque ético afirmava a dignidade de cada cultura, promovendo respeito e tolerância em relação às diversidades. Além disso, Boas abandonou o termo “raça” em seus estudos sobre comportamento humano, contribuindo para superar classificações e divisões que geravam desigualdades e discriminação.
3. DOS DIREITOS CULTURAIS
Os direitos culturais estão intrinsecamente ligados aos direitos humanos, e sua separação não é uma tarefa simples. Esses direitos visam proteger tanto os aspectos individuais quanto os coletivos de cada pessoa, constituindo uma maneira de expressar a dimensão humana perante a visão de mundo. Conforme o artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de usufruir das artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios” (Declaração Universal dos Direitos Humanos, Assembleia Geral das Nações Unidas, resolução 217 A III, 10 de dezembro de 1948).
Por sua vez, os Artigos 13 e 15 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais estabelecem que todas as pessoas têm o direito de expressar-se, criar e disseminar seu trabalho na língua de sua escolha, especialmente em sua língua materna. Além disso, elas têm o direito de usufruir dos avanços científicos e suas aplicações, bem como receber proteção para os interesses morais e materiais resultantes de suas criações científicas, literárias ou artísticas. Os indivíduos também têm o direito à liberdade necessária para a pesquisa científica e a atividade criativa, além de acesso à educação de qualidade que respeite sua identidade cultural. O direito de participar da vida cultural de sua escolha e de praticar suas próprias expressões culturais também é garantido, desde que isso não viole outros direitos humanos e liberdades fundamentais. Conforme apontado por José Estênio Raulino Cavalcante (2011, p. 3): “Assim, todas as pessoas devem poder se exprimir, criar e difundir seus trabalhos no idioma de sua preferência e, em particular, na língua materna”.
Cavalcante (2011, p. 3) também destaca que o artigo 13 garante o direito à educação, direcionada para o pleno desenvolvimento humano, a dignidade, os direitos humanos, o pluralismo ideológico, as liberdades fundamentais, a justiça e a paz. A doutrina não possui uma definição precisa de cultura, talvez pela ilusão de que seu entendimento seja óbvio. De acordo com Francisco Humberto Cunha Filho (2004), essa falta de clareza resulta em uma comunicação deficiente entre os chamados “operadores do direito”, uma dificuldade encontrada em várias nações nas intersecções entre direito e cultura.
Francisco Humberto Cunha Filho, em sua tese, faz referência ao jurista Peter Häberle, que busca uma definição positiva de cultura para o Direito: cultura no âmbito material e funcional é o campo de origem dos direitos fundamentais culturais. Essa definição é especialmente pertinente na distinção entre as esferas política, econômica e social. Quanto mais complexa for uma definição positiva de cultura, mais ela é tida como óbvia nos textos constitucionais que se referem à cultura sem oferecer uma definição mais detalhada (CUNHA FILHO, 2004).
O rol de direitos culturais formulado por José Afonso da Silva, ressaltado por Francisco Humberto Cunha, engloba o reconhecimento pelo sistema jurídico, abrangendo: a) o direito à criação cultural, englobando criações científicas, artísticas e tecnológicas; b) o direito de acesso às fontes da cultura nacional; c) o direito de disseminação da cultura; d) a liberdade de formas de expressão cultural; e) a liberdade de manifestações culturais; f) o dever-estado de formar o patrimônio cultural brasileiro e proteger os bens culturais (…). (2004, p. 39).
A categorização por meio de identificações de produtos culturais levou os pensadores a identificar diversas formas de fenômenos. O cuidado para evitar riscos ideológicos e de dominação conduziu à investigação dos processos de produção cultural, levando os estudiosos a identificarem fenômenos que se tornaram conhecidos como “cultura popular”, “cultura erudita”, “cultura de massa” e “indústria cultural”. A cultura popular engloba as manifestações distintivas das várias comunidades humanas; é de natureza local, nacional e patriótica, entendendo esses termos em seu sentido mais básico. Os estudiosos a veem como a base sólida da qual surgem outras formas de cultura, e ela é constituída por matéria-prima, não apenas essência (MOLINARO, 2018).
O desafio de definir a arte é uma questão que filósofos frequentemente enfrentam, e fica evidente que não há um consenso sobre o assunto. Quando compreendemos que o artigo 215 da Constituição Federal abarca direitos culturais, torna-se claro que uma noção precisa é essencial para sua proteção. Como salienta Guilherme Varella: “Se a compreensão e aplicação dos direitos culturais dependem da noção de cultura que se utiliza, é essencial entender como a Constituição Federal do Brasil entende esses direitos. É por meio dos ‘direitos culturais’ que a Constituição estabelece sua proteção normativa, como é evidenciado pelo artigo 215. Esse trecho específico sobre a cultura determina que: ‘O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais’ (2014, p. 45)
Dessa forma, é imperativo garantir nossa cultura e concretizar os direitos culturais, por meio de um conjunto de normas alinhado com a Constituição. Esse conjunto de disposições é denominado por José Afonso da Silva como “ordenação constitucional da cultura” (SILVA, 2001, p. 50). Essa premissa é estabelecida pelo Plano Municipal da Cultura, que enuncia o princípio do “direito de todos à arte e à cultura” (Art. 1˚, IV), ao mesmo tempo que enumera os objetivos e segmentos dos direitos culturais a serem considerados ou alcançados. Em concordância com Guilherme Varella (2014, p. 46): “A análise mais detalhada dos direitos culturais está em andamento, começando naturalmente pela sua origem e evolução, que segue o desenvolvimento progressivo dos direitos humanos em sintonia com sua incorporação gradual no ordenamento jurídico nacional.”
Continuando na linha das observações de Guilherme Varella, os direitos culturais são frequentemente negligenciados e vitimados pelo “subdesenvolvimento conceitual”. Ele argumenta que esses direitos muitas vezes são considerados os “primos pobres” entre os direitos humanos e que, somente em novembro de 2009, foram objeto de monitoramento específico pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU), sendo uma das últimas áreas a receber tal atenção (VARELLA, 2014, p. 46). Os direitos culturais evoluem lado a lado com os direitos humanos, constituindo-se como parte intrínseca das garantias fundamentais. Assim, esses direitos se solidificam, contribuindo para a concretização da dignidade humana e ampliando o alcance dos próprios direitos humanos, como destacado por Teixeira Coelho (2011, p. 8).
Para Cunha Filho, a compreensão dos direitos culturais fundamentais envolve duas abordagens: stricto sensu e lato sensu, a fim de torná-los explicitamente reconhecíveis e, assim, efetivos, visto que são tangíveis e facilmente identificáveis. Por esse enfoque, a cultura forma a base para todos os demais direitos fundamentais. Os estudiosos do constitucionalismo frequentemente não oferecem elementos claros para discernir se a cultura se trata de direitos culturais. Francisco Humberto Cunha Filho identifica dois elementos que levam à conclusão de que os direitos culturais estão associados à criação e à transmissão da arte e que possuem um caráter atemporal em sua criação: “(1) são direitos relacionados às artes, à memória coletiva e à transmissão de conhecimento; (2) há em todos esses direitos um forte componente de passado, presente e futuro” (2000, p. 33). Para o Estado, as manifestações artísticas são reconhecidas como cultura e nelas estão presentes todas as expressões culturais. Essas ações públicas são divididas em setores segmentados e observam uma série de valores constitucionais definidos.
O conceito de cultura como um conjunto de bens (patrimônio) e valores encontra lugar em nosso ordenamento jurídico. Miguel Reale, um filósofo do direito brasileiro, divide o conceito de cultura em duas partes, compreendendo o mundo como “natural” e “cultural”, ou seja, tudo que é construído pelo “homem no âmbito material e espiritual” (ANDRÉ LUIZ DE AGUIAR PAULINO LEITE, 2014, p. 1). Nota-se que o termo cultura é empregado para transmitir nosso cotidiano e muitas vezes é erroneamente associado apenas às artes, quando, na verdade, todos os costumes humanos podem ser considerados culturais. O Estado assume a responsabilidade de proteger esses bens jurídicos como direitos fundamentais.
A cultura como um elo entre as normas do Direito é o resultado da operacionalização dos direitos culturais, stricto sensu, uma tarefa desafiadora. De acordo com Peter Häberle, que realizou um estudo comparativo de constituições, incluindo a alemã, suíça, grega, portuguesa e espanhola, vários desdobramentos emergiram, tais como: liberdade para praticar ciência e arte; liberdade de ensino; direito à educação; liberdade de aprendizado; liberdade dos pais para educar os filhos; liberdade de ação das associações culturais; proteção da propriedade intelectual; alfabetização de adultos; participação na radiodifusão; proteção ao patrimônio histórico e artístico; e proteção do meio ambiente (1993, p. 229).
Esses desdobramentos esclarecem a questão dos Direitos Culturais em relação à sua definição e classificação. A compreensão é delineada pelo contexto histórico de sua formação até o presente momento. Isso será abordado na próxima seção sobre o Direito à Cultura no Brasil e no exterior.
4. CIDADANIA CULTURAL: A CULTURA COM O DIREITO
Durante a década de 1980, no contexto brasileiro, a maneira pela qual o Estado interagia com a esfera cultural passou a assumir novas configurações, delineando duas tendências proeminentes: a abordagem de “cultura e mercado” e a perspectiva de “cidadania cultural”. No âmbito da primeira tendência, o papel do Estado se evidencia como intermediário nas relações entre agentes culturais produtores e empresas ou indivíduos interessados em patrocinar empreendimentos culturais, visando obter benefícios fiscais. É neste cenário que emerge o diálogo acerca das Leis de Incentivo à Cultura. A visão da “cidadania cultural” concebe a cultura como um direito universal dos cidadãos e o Estado como o protagonista das iniciativas políticas culturais.
As reflexões centrais acerca de políticas culturais ancoradas no princípio da cidadania cultural foram minuciosamente articuladas por Marilena Chauí. Essas ponderações emanam dos debates que tiveram origem no seio do Partido dos Trabalhadores e, notavelmente, da vivência da autora enquanto à frente da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, durante a gestão da prefeita Luiza Erundina (1989 – 1992).
As deliberações internas no âmbito do Partido dos Trabalhadores sobre as diretrizes que deveriam orientar o tratamento das questões culturais culminaram no documento intitulado “Política Cultural”. Dito documento foi coassinado por Marilena Chauí, Antonio Candido, Lelia Abramo e Edelcio Mostaço, sendo posteriormente encaminhado à Executiva Nacional do PT. O cerne dessa discussão reside na importância da cultura no escopo da transformação societária, com uma abordagem democrática e de matiz socialista. A cultura se apresenta como um domínio que propicia mudanças sociais, em virtude do seu caráter resistente para as classes subalternas.
Desde sua gênese, o referido documento emerge como uma manifestação de protesto dos seus autores ante a escassa consideração dispensada pelo Partido às temáticas culturais:
Embora pareça secundária ou mesmo irrelevante, a questão cultural deveria ser considerada uma das prioridades do Partido dos Trabalhadores quando se leva em conta o papel da cultura seja como fator de discriminação sócio-política, seja como instrumento de dominação ideológica, seja como forma de resistência das classes dominadas, seja, enfim, como forma de criação com potencial de emancipação e de liberação histórica. Se cultura fosse algo de menor importância, seria incompreensível a atenção que lhe é dada pelo Estado contemporâneo e a expansão dos meios de comunicação de massa como instrumento de legitimação da ordem vigente e de conformismo social e político (CHAUI et al., 1984, p. 5).
Os autores realizam uma breve e abrangente explanação acerca da formação do Estado Moderno e suas estratégias de controle e dominação social. Essa abordagem tem o propósito de exemplificar historicamente como o aprimoramento da estrutura burocrática resultou na especialização das funções políticas e, consequentemente, no afastamento da participação popular e das instâncias de representação, como os partidos políticos. A intenção subjacente, sob a ótica marxista, é destacar a conexão entre o Estado e o capital na sustentação da ordem estabelecida, bem como alertar para um ponto crucial: um dos meios mais influentes e eficazes de legitimação do Estado contemporâneo é a política cultural e a indústria cultural. Estas são responsáveis por difundir, preservar e disseminar a ideologia da classe dominante. A política cultural, executada diretamente pelo Estado, é manifestada em instituições como escolas (desde a educação infantil até a universidade), laboratórios, centros de pesquisa científica e artística, planos nacionais de educação e cultura, museus, literatura oficial e empresas culturais nacionais. A indústria cultural, que pode ser tanto estatal quanto privada, é efetivada por meio dos veículos de comunicação de massa, como imprensa, rádio, televisão, propaganda, serviços editoriais, discos e produções audiovisuais. De forma evidente, os objetivos da política cultural e da indústria cultural convergem, ou seja, ambas visam manter a ideologia dominante. No entanto, a política cultural pode se apresentar como uma política nacional de interesse para a nação e a sociedade como um todo, enquanto a indústria cultural está diretamente determinada pelo jogo do mercado e da competição.
A elaboração desse texto ocorreu em um momento em que o Partido estava em processo de estruturação e ainda não ocupava o governo, conferindo-lhe um valor especial por expor os elementos centrais das principais diretrizes de política cultural. O texto contém orientações e sugestões para o Partido, indicando que a sua responsabilidade consistia em “discutir, elaborar e implementar uma política cultural capaz de questionar profundamente as políticas culturais existentes” (CHAUI et al., 1984, p. 9).
Entretanto, quando o Partido dos Trabalhadores assumiu o controle do município de São Paulo, viu-se confrontado com a necessidade de concretizar uma estratégia de atuação no campo cultural. Conforme esclarecido por Chauí (1995), esse desafio era amplificado, já que a ambição era estabelecer os fundamentos de uma nova cultura política. As circunstâncias históricas (sociais e econômicas) e o contexto político (marcado fortemente por conservadorismo na cidade de São Paulo) demandavam a realização de três esforços simultâneos em cada área de atividade governamental: a mudança de mentalidade dos servidores públicos municipais, a definição de prioridades alinhadas às necessidades das classes populares e a criação de uma nova cultura política (CHAUÍ, 1995, p. 71).
No que tange especificamente à cultura, o desafio residia em estabelecer diretrizes políticas sem uma tradição claramente delineada como referência. A abordagem dos procedimentos a serem adotados era guiada pela ideia de definir “uma política cultural”, e não apenas um conjunto de atividades e serviços culturais. Nesse contexto, serviram como balizas, de um lado, algumas experiências anteriores, notadamente as de Mário de Andrade e Sábato Magaldi, e, de outro, algumas tradições que se buscava rejeitar, pois representavam “a maneira pela qual a tradição oligárquica autoritária manipula a cultura por meio do Estado” (CHAUÍ, 1995, p. 81). A partir da recusa desses modelos, o foco era estabelecer os princípios norteadores da política cultural da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo:
Assim, procuramos recusar o controle estatal sobre a cultura e a monumentalidade oficial da tradição autoritária, garantindo contra ela que o Estado não é produtor de cultura. Procuramos recusar a divisão populista entre cultura de elite e cultura popular […] enfatizando uma outra diferença, aquela existente entre a produção cultural conservadora, repetitiva e conformista (que pode estar presente tanto no elitista como no popularesco) e o trabalho cultural inovador, experimental, crítico e transformador (que pode existir tanto nas criações de elite quanto nas populares). Enfim, procuramos recusar a perspectiva neoliberal, garantindo independência do órgão público de cultura face às exigências do mercado e à privatização do que é público, enfatizando por isto a idéia de Cidadania Cultural, isto é, a cultura como direito dos cidadãos, sem confundir estes últimos com as figuras do consumidor e do contribuinte. (CHAUÍ, 1992, p. 14).
Conforme a autora destaca, a Secretaria Municipal de Cultura definiu como diretriz principal a “cidadania cultural”, que compreende a cultura como um direito dos cidadãos e uma forma de trabalho criativo (CHAUÍ, 1992, p. 12). Em outra abordagem, a definição desse conceito é delineada de maneira mais abrangente, abrangendo os seguintes aspectos: O direito de produzir cultura, tanto por meio da apropriação dos meios culturais existentes quanto pela inovação de novos símbolos culturais; O direito de participar das decisões relacionadas à produção cultural; O direito de usufruir dos bens culturais, incluindo a criação de espaços e condições que facilitem o acesso da população a esses bens; O direito de estar informado sobre os serviços culturais e as oportunidades de participação ou desfrute; O direito à formação cultural e artística pública e gratuita nas Escolas e Oficinas de Cultura do Município; O direito à experimentação e à criação do novo no campo das artes e humanidades; O direito a espaços para reflexão, discussão e crítica e O direito à informação e à comunicação (CHAUÍ, 1992).
Essa definição deveria servir como inspiração para uma nova mentalidade e prática cultural, tanto por parte dos cidadãos quanto dos funcionários da Secretaria Municipal de Cultura. As diretrizes estabelecidas para a política cultural do município tinham a intenção de transformar a concepção, a prática e a organização da cultura em um serviço público. Para alcançar esse objetivo, a relação entre o poder público e a população também precisaria ser reconfigurada. Como afirma a autora: “Nossa política cultural tem-se proposto a enfrentar o desafio de admitir que a cultura é simultaneamente um fato e um valor, a enfrentar o paradoxo no qual a cultura é o modo de ser dos humanos e, no entanto, precisa ser tomada como um direito daqueles humanos que não podem exercer plenamente o seu ser cultural – no caso, a classe trabalhadora” (CHAUÍ, 1992, p. 39).
A autora relata em diversos momentos as dificuldades encontradas ao implementar a política de cidadania cultural. Isso envolveu desafios burocráticos inerentes à administração, resistência por parte dos funcionários em se alinhar com as novas perspectivas, obstáculos legislativos na aprovação de projetos culturais, questões orçamentárias e a precariedade das estruturas físicas dos espaços culturais do município (CHAUÍ, 1992). Apesar dessas adversidades, na avaliação da autora, o saldo geral foi positivo. Embora seja reconhecido que tais desafios não foram completamente superados em um período de quatro anos, a autora destaca avanços parciais, evidenciados nas audiências para o orçamento de 1993 e na série de projetos voltados para a diversidade cultural da cidade, enraizada nos movimentos sociais e populares.
A política cultural adotada pela Secretaria Municipal de Cultura durante a gestão de 1989 a 1992 se tornou uma referência nacional. Vários de seus programas e projetos foram adotados por diferentes cidades e estados do país. Além disso, o princípio fundamental da cidadania cultural é considerado um contraponto ao modelo neoliberal representado pela abordagem de “cultura e mercado”.
5. INCLUSÃO CULTURAL NA FILOSOFIA DO DIREITO: EXPLORANDO ABORDAGENS DA FILOSOFIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA EM CONTEXTO CONSTITUCIONAL.
Atualmente, vivemos uma nova realidade político-social nas sociedades contemporâneas e nas relações sociais dentro delas. Essa realidade é moldada não apenas pelas mudanças políticas ao longo do século XX, mas também pela globalização mundial e pela reconfiguração do capital por meio da transnacionalização dos mercados (KYMLICKA, 2008). Ao mesmo tempo, persistem disparidades entre o subdesenvolvimento e os Estados desenvolvidos, frequentemente referidos como a relação global entre o Norte e o Sul.
Nesse cenário, Alain Touraine (2007) destaca uma mudança crucial: a reivindicação dos “direitos culturais” pelas coletividades. O sociólogo francês enfatiza que grupos definidos por nação, etnia ou religião, anteriormente restritos à esfera privada, agora buscam uma presença pública e até mesmo forte para questionar sua pertinência à sociedade nacional. Esse movimento leva ao enfraquecimento das comunidades nacionais e ao fortalecimento das comunidades étnicas.
Touraine (2007) enfatiza que os direitos culturais não podem ser simplesmente entendidos como direitos políticos; eles são uma característica distintiva desses direitos. No entanto, ele também alerta para os perigos inerentes à reivindicação desses direitos, uma vez que frequentemente se aplicam a populações minoritárias e podem ameaçar a coesão social.
De acordo com Touraine (2007), a progressão dos direitos políticos para os direitos sociais e, posteriormente, para os direitos culturais, estende a busca democrática para todos os aspectos da vida social e a própria consciência individual. Quanto maior a coação exercida sobre um indivíduo, seja pelo Estado ou pela maioria social, mais surge a ideia de um indivíduo como sujeito de direitos, resistindo em busca do direito de ser ele mesmo.
Jürgen Habermas (2007), em sua obra “Entre naturalismo e religião”, dedica um capítulo à discussão dos direitos culturais. Ele argumenta que a ideia de igualdade e liberdade obriga os participantes do processo democrático a se concederem mutuamente os direitos necessários para uma associação voluntária e autônoma de parceiros do direito, livres e iguais. O filósofo alemão aborda questões de direitos culturais e tolerância, trazendo esses temas para o centro do debate a partir de suas obras anteriores, especialmente “A inclusão do outro” e “Direito e Democracia”.
Enquanto obras anteriores exploram o diálogo entre liberalismo clássico, comunitarismo e democracia, em “Entre naturalismo e religião”, Habermas estende seu enfoque aos direitos culturais e à tolerância. Ele sustenta que as éticas pós-modernas devem se basear na ideia de que a justiça humana só pode ser totalmente satisfeita ao tratar de maneira adequada o não idêntico. Portanto, os direitos culturais e as políticas de reconhecimento podem fortalecer a capacidade de autoafirmação de minorias discriminadas.
Diferentemente dos direitos sociais, “os direitos culturais devem ser justificados considerando as possibilidades de inclusão simétrica de todos os cidadãos” (HABERMAS, 2007, p.236). Habermas argumenta que as comunidades religiosas podem promover uma autocompreensão pós-secular da sociedade ao participar de controvérsias nacionais sobre questões morais e éticas. Isso possibilita uma continuidade vital da religião em um contexto de crescente secularização. Portanto, a abordagem de Habermas aos direitos culturais e à tolerância deriva de seu arcabouço teórico, sobretudo de sua filosofia política presente em “Direito e Democracia”. Isso destaca sua relevância no debate entre liberais e comunitaristas, abrindo espaço para explorar a ideia de reconhecimento, que ele também abordou em “A inclusão do outro”.
Audard (2006, p. 94) argumenta que “a demanda por justiça inclui, ao lado de outras dimensões, uma demanda por reconhecimento (…)”, enfatizando a importância de uma concepção democrática e inclusiva da justiça. Habermas (2007, p. 311) defende que as éticas pós-modernas devem se concentrar na “pretensão da justiça humana” por meio do tratamento adequado do não idêntico. Assim, os direitos culturais e as políticas de reconhecimento podem fortalecer a capacidade de autoafirmação de minorias discriminadas.
Portanto, Habermas aborda os direitos culturais e a tolerância a partir do edifício teórico construído em sua obra anterior, “Direito e Democracia”, mantendo a ideia do direito como medium da facticidade e validade. Isso permite que ele debata essas questões de maneira aprofundada, enriquecendo o debate entre liberais e comunitaristas e contribuindo para a discussão sobre inclusão e justiça em sociedades diversas e complexas.
CONCLUSÕES
O estudo das abordagens da filosofia contemporânea sobre a cultura no contexto do direito constitucional, à luz das contribuições de Alain Touraine e Jürgen Habermas, revela um cenário complexo e dinâmico de interações entre diversidade cultural, direitos individuais e coesão social. Ao longo deste trabalho, exploramos como as transformações políticas, a globalização e as mudanças na dinâmica do capitalismo têm impactado a relação entre as sociedades contemporâneas e suas composições culturais.
As ideias de Alain Touraine ressaltam a emergência dos “direitos culturais” como uma evolução significativa no âmbito das reivindicações sociais. A noção de que grupos anteriormente limitados à esfera privada agora buscam reivindicar sua identidade cultural publicamente, enquanto questionam seu encaixe nas sociedades nacionais, aponta para a reconfiguração das comunidades e para a complexa relação entre cultura e pertencimento.
Por sua vez, Jürgen Habermas aprofundou essa discussão, conectando os direitos culturais a sua concepção mais ampla de direitos e justiça. Ao situar a discussão dentro de seu arcabouço teórico estabelecido em “Direito e Democracia”, Habermas destaca a importância dos direitos culturais no contexto de uma sociedade multicultural e globalizada. Sua ênfase na necessidade de inclusão simétrica e na participação das comunidades religiosas em debates morais e éticos traz à tona novas perspectivas para a justificação dos direitos culturais.
A interseção entre as teorias de Touraine e Habermas destaca a vitalidade do debate sobre direitos culturais, identidade e inclusão na filosofia contemporânea. Ambos os autores reconhecem os desafios inerentes a essa reivindicação, que envolve o equilíbrio entre a preservação cultural e a coesão social. A visão de Touraine sobre o fortalecimento das comunidades étnicas e a advertência de Habermas sobre os perigos do particularismo ressoam com as preocupações da nossa era, onde as sociedades buscam a harmonização entre diversidade e unidade.
Em síntese, este trabalho explorou as abordagens da filosofia contemporânea sobre a cultura em contexto de direito constitucional, utilizando as perspectivas de Alain Touraine e Jürgen Habermas como guias fundamentais. Através dessa análise, percebemos como a dinâmica cultural e os direitos individuais se entrelaçam em um cenário global em constante transformação. A contribuição desses filósofos oferece insights valiosos para a compreensão das complexas interações entre cultura, direito constitucional e coesão social, estimulando a reflexão contínua sobre como abordar essas questões no mundo contemporâneo.
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