REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8409123
Cristian Alves de Souza
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por escopo verificar a importância da atuação do Poder Judiciário no controle das políticas públicas como forma de promover a efetivação dos direitos sociais estabelecidos na Constituição Federal.
Quase um quarto de século após a promulgação da Constituição Cidadã, muitos direitos nela estabelecidos continuam a carecer de efetivação, tanto no campo legislativo, sem leis que regulamentem determinados direitos, quando na seara administrativa, porquanto longe se está de levar a efeito no plano prático os direitos sociais esculpidos em nossa Lei Maior.
Aos que se vêm mitigados no gozo dos direitos que, apesar de escritos, não se transmudam em alterações fáticas, resta socorrer-se do Poder Judiciário para conseguir usufrui-los. Todavia, há quem defenda que ao Judiciário falece legitimidade para obrigar os demais poderes a levar a efeito os direitos sociais.
É daí que emerge a pertinência do tema, na medida em que o objetivo maior do Estado de Direito é o cumprimento dos planos e metas estabelecidos em sua respectiva Constituição, todavia, na prática, não é o que ocorre, eis que comumente as autoridades invocam princípios, inclusive constitucionais, para se escusar de efetivar a Constituição e, com ela, os direitos sociais.
De maneira a possibilitar melhor compreensão sobre o tema, discorrer-se-á, inicialmente, acerca dos direitos sociais em si mesmo considerados, seu conceito e sua fundamentalidade, de maneira a demonstrar que seu status constitucional de aplicabilidade imediata, resultado da interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais, apesar da crítica de alguns, só leva a concluir que a implementação de tais direitos não constitui mera liberalidade, antes, e diante da força normativa da Constituição, possui caráter cogente, merecendo, portanto, observância obrigatória.
Nesse diapasão, superanda a discussão que culmina com o sensato entendimento de que os direitos sociais estabelecidos na Carta Primaveril de 1988 são merecedores da aplicabilidade imediata estabelecida, textualmente, apenas para os direitos e garantias individuais (art. 5º, § 2º, CF), mas estendidos, por meio de intepretação sistemática de nossa Carta Magna, aos direitos sociais, buscar-se-á estabelecer o papel do Poder Judiciário na efetivação de tais direitos.
Sob esse aspecto, a problemática que se apresenta é discernir até que ponto o princípio da inafastabilidade do controle judicial, estabelecido no art. 5º, XXXV, de nossa Carta Republicana, legitimaria o Judiciário a impor aos demais poderes a obrigação de implementar as políticas públicas necessárias à efetivação dos direitos sociais.
Com efeito, muito se discute se a ingerência, por parte do Judiciário, no âmbito das políticas públicas, matéria tradicionalmente atribuída aos Poderes Legislativo e Executivo, configuraria afronta à separação constitucional das funções estatais (art. 2º, CF/88). A esse respeito, buscar-se-á, traçando parâmetros interpretativos, conciliar os princípios da máxima efetividade das normas constitucionais, inafastabilidade do controle jurisdicional e a tripartição de poderes.
Será discutido, em arremate, a banalização da exceção da disponibilidade financeira dos cofres públicos, tergiversando a respeito da teoria da reserva do financeiramente possível e sua ampla utilização como excludente da responsabilidade estatal, no âmbito da efetivação dos direitos sociais fundamentais.
2. DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS
2.1. Escorço Histórico
Os direitos sociais sugiram da necessidade de efetivação do direito à liberdade conquistado no apogeu das ideias do Estado Liberal, bastante difundidas nas revoluções iluministas, em especial, a francesa, e na independência norte-americana.
O Estado Liberal que se estabelecera com a finalidade de impedir a atuação estatal na órbita da vida privada do povo, já que as autoridades que estavam no poder quase sempre o exerciam de maneira arbitrária, passava por sua crise. Observou-se, nesse viés, que a liberdade alcançada não era suficiente para que a população gozasse de seus direitos. Em realidade, de quase nada adiantava o Estado se abster de interferir na vida privada do indivíduo, se não lhe proporcionasse condições de usufruir de sua liberdade, aí a gênese das ideias de Estado Social.
Concebeu-se, nesse norte, que mais que um no facere, ao Estado cabia a tarefa de proporcionar aos seus, condições de exercício da liberdade então alcançada. Assim é que o Estado passou a ser visto como agente não somente garantidor da liberdade, mas, da mesma forma, provedor do gozo dos demais direitos ostentados pelos cidadãos e sua atuação positiva na sociedade não se configurava mera discricionariedade, antes, era a própria essência de sua finalidade e razão de sua subsistência.
No escólio de Raul Machado Horta,
Os direitos individuais foram instrumentos contra o Poder, aprofundando o dissídio entre a liberdade e a autoridade do Estado. Os direitos sociais superam o confronto entre a liberdade e o Poder. Converteram-se em instrumentos do Poder, para que este possa realizar direitos coletivos. 1
Concebidos, inicialmente, como normas-princípios, dirigidas ao legislador ordinário, com caráter exclusivamente orientador, os direitos sociais somente passaram a ser reconhecidos juridicamente a partir da Constituição Mexicana de 1917 e da Constituição da Primeira República Alemã de 1919, conhecida como Constituição de Weimar.
Entre nós, as influências das novas concepções de justiça social que afloravam pelo mundo, incidiram fortemente na edição da Constituição de 1934, a qual, nos dizeres de BONAVIDES, nos insere na,
penetração de uma nova corrente de princípios, até então ignorados do direito constitucional positivo vigente no País. Esses princípios consagravam um pensamento diferente em matéria de direitos fundamentais da pessoa humana, a saber, faziam ressaltar o aspecto social, sem dúvida grandemente descurado pelas Constituições precedentes. O social aí assinalava a presença e a influência do modelo de Weimar numa variação substancial de orientação e de rumos para o constitucionalismo brasileiro.2
A Constituição Brasileira de 1934, assim, representa uma nova fase no constitucionalismo pátrio, uma vez que se afasta do caráter não intervencionista estatal importado do Direito francês e norte-americano, para se aliar ao constitucionalismo germânico de Weimar, que preconizava o sentido social dos direitos, reconciliando o Estado com o cidadão.
É nesse diapasão que emerge, entre nós, o Estado Social de Direito, de inspiração alemã, o qual se abaliza nas formas democráticas, em que a sociedade e o homem são os valores mais importantes que devem ser protegidos pelo Estado, ainda que de maneira intervencionista.
Acontece que a positivação dos direitos sociais, conquanto de inegável importância, não é suficiente para a implementação efetiva de tais direitos, os quais passam a ser expressos nas Constituições, porém, não se transmudam em alterações fáticas para a sociedade. É dizer, apesar de consignados na Lei Maior, com caráter constitucional de primazia, os direitos sociais não passaram, por muito tempo, de meras utopias, sem caráter vinculante.
2.2. Direitos Sociais: Conceito;
Classicamente, denominam-se sociais os direitos que objetivam proporcionar igualdade substancial aos cidadãos através de uma atividade positiva por parte do Estado, o qual passa a ser visto não mais com o distanciamento necessário do período liberal, mas sim como instrumento garantidor e provedor do exercício substancial, por parte do povo, da liberdade alcançada.
Concebidos como direitos de segunda geração, os direitos sociais diferenciam-se dos direitos individuais na medida em que estes, corolários que são do Estado Liberal, possuem, em regra, caráter negativo, de abstenção estatal, a fim de garantir a liberdade e resguardar a propriedade do indivíduo.
Já os direitos sociais constituem-se verdadeiros remédios a sanar as desigualdades advindas do modelo liberal de Estado. Reclamam, destarte, uma atuação positiva estatal como promovente do pleno exercício dos direitos fundamentais – status positivus libertatis.
No magistério de SARLET:
A nota distintiva destes direitos é a sua dimensão positiva, uma vez que se cuida não mais de evitar a intervenção do Estado na esfera da liberdade individual, mas sim, na lapidar formulação de C. Lafer, de proporcionar um “direito de participar do bem estar social”. Não se cuida mais, portanto, de liberdade do e perante o Estado, e sim de liberdade por intermédio do Estado.3
A esse respeito, afirma FARIAS, que os direitos sociais consubstanciam-se uma ferramenta discriminatória de cunho compensatório, uma vez que não se baseiam nas nem sempre justas ideias de tratamento uniforme, antes, qualificam-se como direitos de preferências e das desigualdades4.
Nesse mesmo sentido é o pensamento de HORTA:
Os direitos individuais contêm vantagens atribuídas ao indivíduo, cuja efetiva utilização depende de sua iniciativa, sua inteligência e habilidade. A norma declaratória desses direitos encerra uma autorização, uma faculdade. No ramo dos direitos sociais a perspectiva é outra, o caráter protetor adquire primazia e o comando normativo supre deficiências de ordem social existente. Nas palavras de Burdeau, o Poder é convocado para assegurar a liberação do homem. E essa liberação, na análise de Burdeau, será obtida pela ação do Poder5.
Destarte, a mudança da postura do Estado em relação ao indivíduo é a nota característica dos direitos sociais, por meio dos quais o Poder almeja, através de ações positivas, assegurar igualdade, mediante a redução das deficiências decorrentes do modelo liberal.
2.3. Da Fundamentalidade dos Direitos Sociais;
Se os direitos de primeira geração dominaram o cenário jus-filosófico dos séculos XVIII e XIX, os chamados direitos de segunda geração, protagonizaram (e ainda protagonizam), desde o período do segundo pós-guerra, as discussões no âmbito do direito constitucional.
Como cediço, os direitos sociais inicialmente dirigiram-se ao legislador ordinário no sentido de inspirar a produção legiferante. Certo tempo depois, tais direitos passaram a ser vistos como normas programáticas cuja perpétua ineficácia significou sua pouca expressão no cenário jurídico. No entanto, apesar das críticas em sentido contrário, não se pode negar que desde o advento da Carta Constitucional de 1988, os direitos sociais ganharam status e disciplina jurídica de direito fundamental.
Partindo de uma perspectiva formal-reducionista, os direitos fundamentais seriam aqueles assim denominados pela legislação pertinente. É dizer, sob esse aspecto, seriam considerados como fundamentais tão-somente os direitos assim denominados no texto constitucional. Ocorre que, a somente leitura da norma geral inclusiva expressa no art. 5º, § 2º, da Constituição Federal Brasileira, conduz, inexoravelmente, à interpretação diversa, senão vejamos:
Art. 5º (Omissis)
§ 2º Os direitos e garantias expressos nessa Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Assim é que, tendo em vista o disposto no art. 5º, § 2º, de nossa Carta Primaveril, todos os direitos, estejam ou não no Título II da Constituição, e mesmo aqueles provenientes de tratados internacionais dos quais o Brasil seja signatário, são direitos fundamentais, tanto em sentido formal, quanto em sentido material.
É por essa razão, por se tratarem de direitos fundamentais, que os direitos sociais possuem regime jurídico-constitucional pleno. Isso se justifica na medida em que aos direitos sociais, enquanto espécie de direitos fundamentais, foi conferida aplicabilidade imediata, nos termos do art. 5º, § 1º, da CRFB/1988, bem como limites materiais à reforma constitucional, na dicção do art. 60, § 4º, também da Constituição.
A propósito convém tecer alguns comentários acerca da aplicabilidade imediata dos direitos sociais (que é o que interessa a esse trabalho), eis que há quem defenda que o § 1º do art. 5º da Constituição limitou-se a expressar direitos individuais e coletivos, o que, no entender de muitos, não albergaria os direitos sociais.
Malgrado a localização topográfica do dispositivo mencionado sugerir o contrário, não há como negar que, mesmo uma interpretação literal do texto refuta a tese restritiva apresentada, uma vez que o dispositivo utiliza a expressão genérica “normas definidoras de direitos e garantias fundamentais” o que, a toda evidência, engloba os direitos sociais.
Ademais, adotando-se uma interpretação sistemático-teleológica, na esteira do que propõe SARLET6, o argumento restritivo cai por terra de vez. É que, a se admitir a aplicabilidade imediata somente ao art. 5º da Constituição, estar-se-ia excluindo da regra do § 1º, por exemplo, os direitos políticos de caráter individual, o que, evidentemente, não pode prevalecer. E mais, restringindo a aplicação imediata tão somente aos direitos individuais dispostos no art. 5º, estariam excluídos da aplicabilidade imediata direitos coletivos expressos naquele dispositivo constitucional, tal como o direito de greve e o mandado de segurança coletivo.
Em suma, pode-se concluir que os direitos sociais são categoria dos direitos fundamentais, extraem tal característica do próprio texto constitucional e possuem o mesmo regime jurídico-normativo aplicável aos direitos fundamentais, em especial – e que nos interessa – a aplicabilidade imediata (art. 5º, § 1º, CRFB/1988).
De maneira a demonstrar a importância do reconhecimento da fundamentalidade dos direitos sociais e, por conseguinte, estabelecer a disciplina jurídica que os regula, CANOTILHO identifica quatro consequências do reconhecimento formal destes direitos como fundamentais, quais sejam, [1] a superioridade jurídica de tais normas, [2] um procedimento agravado de revisão, [3] limites ao Poder Constituinte derivado e [4] vinculatividade imediata dos poderes públicos7.
Ainda de acordo com o Douto constitucionalista português, em sentido material, caracterizar um direito como fundamental implica, em especial, a possibilidade de abertura da Constituição a outros direitos igualmente fundamentais, mas não previsto no texto originário e a aplicação a estes direitos de alguns aspectos do regime jurídico inerente à fundamentalidade formal8.
3. DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS;
3.1. As Políticas Públicas como instrumento efetivador;
Partindo da premissa de que os direitos sociais, enquanto categoria de direitos fundamentais, possuem aplicabilidade imediata decorrente do texto normativo estabelecido no art. 5º, § 1º, da Constituição Federal, cumpre discorrer acerca da efetivação mesma desses direitos.
É evidente que não basta a um direito gozar, no plano normativo, de aplicabilidade imediata. Faz-se necessário, por semelhante modo, que essa aplicabilidade conferida legislativamente acarrete efeitos práticos.
Com o estabelecimento dos direitos sociais na Constituição Federal, surge para o Legislador ordinário e, após, para os governantes que compõem o Poder Executivo, a tarefa de implementar programas necessários à efetivação de tais direitos, eis que, como alhures dito, os direitos sociais, diferentemente dos direitos individuais, reclamam um fazer do Poder Público para sua implementação. A esses programas de ação para realização de objetivos determinados em certo espaço de tempo, MARIA PAULA DALLARI BUCCI, chama de Políticas Públicas9.
As políticas públicas, portanto, são o modo através do qual o Poder Público realiza no plano fático os direitos sociais estabelecidos na legislação. A incumbência dessa tarefa recai, inicialmente, sobre o Poder Legislativo, a quem cabe a tarefa de implementar, por meio de leis, as políticas efetivadoras dos direitos constitucionalmente assegurados.
Porém, com a atual possibilidade de o Poder Executivo editar Medidas Provisórias (art. 62, CRFB/88) e regulamentar a legislação através de Decretos, Portarias e outros atos administrativos, a munus tradicionalmente atribuído ao Legislativo sofreu mitigações. Hoje, portanto, o Poder Executivo possui atribuições executoras das normas emanadas do legislador e, também, poder de ele mesmo implementar através de atos normativos próprios, as políticas públicas para efetivação dos direitos sociais.
Na síntese de MARIA PAULA DALLARI BUCCI:
Parece relativamente tranquila a ideia de que as grandes linhas das políticas públicas, as diretrizes, os objetivos são opções políticas que cabem aos representantes do povo e, portanto, ao Poder Legislativo, que as organiza em forma de leis de caráter geral e abstrato, para execução pelo Poder Executivo, segundo a clássica separação de poderes de Montesquieu. Entretanto, a realização concreta das políticas públicas demonstra que o próprio caráter diretivo do plano ou do programa implica a permanência de uma parcela da atividade “formuladora” do direito nas mãos do governo, Poder Executivo, perdendo-se a nitidez da separação entre os dois centros de atribuições10.
Destarte, classicamente, a implementação de políticas públicas efetivadoras dos direitos sociais é papel que incumbe tanto ao Poder Legislativo quanto ao Poder Executivo, porquanto ambos são dotados de poder legiferante típico (Legislativo) ou atípico (Executivo).
Essa regulamentação dos direitos sociais, sem a qual estes não se tornam eficazes, depende, todavia, de um juízo de conveniência e oportunidade dos poderes públicos responsáveis por sua efetivação. É dizer, quem define o momento de regulamentar e tornar eficaz um direito social expresso no corpo da Constituição são exatamente os poderes Legislativo e Executivo.
A escolha do momento, ou seja, da conveniência e da oportunidade dessa implementação, durante muito tempo, foi tida como intangível à apreciação jurisdicional por tratar-se de aspecto político.
Entendeu-se, assim, que a efetivação dos direitos sociais, levada a efeito mediante o implemento das políticas públicas, por deter caráter político e cunho discricionário, estava imune ao controle jurisdicional, a não ser quando este perquiria sobre a legalidade desses atos.
Ao Poder Judiciário caberia, pois, tão somente, a análise da legalidade dos atos políticos, sendo a ele defeso imiscuir-se no mérito da questão, sob pena de afronta ao sempre lembrado princípio da separação dos poderes.
Essa ideia de impossibilidade de o Judiciário controlar os atos políticos dos demais poderes reinou absoluta por muito tempo, chegando a haver quem concebesse entre as funções do Estado uma função política não redutível ao Direito e, por conseguinte, não apreciável normativamente.
Hodiernamente, no entanto, superou-se essa ideia na medida em que se passou a compreender que essa função política é, nada mais, que uma conexão de funções legislativas, regulamentares, planificadoras (…) dirigidas à individualização e graduação de fins constitucionalmente estabelecidos.
Com efeito, não existe atividade política, senão atividade política constitucionalizada. É dizer, a toda atividade, de quaisquer dos poderes constituídos, corresponde um comando constitucional, ainda que implícito. Daí se conclui que mesmo aqueles atos políticos e de aparente cunho discricionário estão sujeitos ao controle jurisdicional, quando violarem direitos constitucionalmente estabelecidos.
É exatamente por isso que a mera alegação de que determinado ato possui cunho político não pode ter o condão de afastar o controle efetuado pelo poder jurisdicional, especialmente porque é do próprio juiz a tarefa de dizer se aquele ato é político ou não, conforme asseverou Rui Barbosa, evocado por HELLY LOPES MEIRELES:
Indubitavelmente a Justiça não pode conhecer de casos que forem exclusiva e absolutamente políticos, mas a autoridade competente para definir quais os casos políticos e não políticos é justamente essa Justiça suprema. Em todas as organizações políticas ou judiciárias há sempre uma autoridade extrema para errar em último lugar. A justiça, não sendo infalível, pode errar, mas a alguém deve ficar o direito de errar por último, de decidir por último, de dizer alguma coisa que deva ser considerado erro ou verdade.11
3.2. A separação dos poderes como obstáculo ao intervencionismo do Judiciário na efetivação dos direitos sociais;
Como fora dito, classicamente, ao Legislativo e ao Executivo foram atribuídas as funções de regulamentação e implementação de políticas públicas efetivadoras dos direitos de segunda geração.
Essa conclusão baseava-se quase sempre na doutrina da separação dos poderes, uma vez que eventual controle do Judiciário sobre os atos do Estado que terminem por violar direitos sociais constitucionais resulta numa aparente preponderância desse órgão sobre os demais poderes estatais, retirando-se certas questões do plano meramente político e submetendo-as à análise jurídica dos juízes e Tribunais.
Com efeito, o princípio da separação dos poderes, concebido nas lições de Aristóteles e desenvolvido na doutrina de Montesquieu, defende, para melhor organização do Estado, a divisão sistêmica das funções estatais entre o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Poderes esses que, apesar de harmônicos, são independentes entre si.
Contemporaneamente, no entanto, não se pode negar o desgaste do referido princípio, havendo, inclusive, quem afirme que ele se caminha quando não para a decadência, ao menos para uma ampla reformulação12.
Em realidade, a separação absoluta de funções do estado foi sempre irrealizável, basta imaginar a existência de funções atípicas. Isso porque a atividade dos órgãos e agentes do Estado se exerce atentando para os fins colimados, e não para a natureza do ato praticado. José Carlos Vasconcelos Reis13, com a maestria que lhe é peculiar, reforça esse entendimento ao aduzir que:
A clássica separação dos poderes não corresponde a diferenças verdadeiramente ontológicas entre as funções estatais, pois a atividade do Estado se exerce somente em duas direções fundamentais: uma, no sentido da criação ou modificação do Direito (função normativa); a outra, no sentido da sua aplicação (função executiva), de modo que não haveria diferença de essência entre as funções executiva e judicial.
Não bastassem as críticas de cunho acadêmico e doutrinário, os desdobramentos da errônea visão que se tem da teoria da separação dos poderes ganha contornos ainda mais relevantes quando exportada para a praticidade.
A moléstia maior da tripartição das funções reside na própria não identificação de cada Poder consigo mesmo. No Brasil, verifica-se, a evidente preponderância do Poder Executivo, constatação que vem desde as ditaduras até o conhecido arcabouço normativo emanado desse Poder albergado pela chamadas Medidas Provisórias que transformaram a função até então atípica de legislar, em atribuição característica mesma deste Poder. E, nesse ponto, não houve quem, imbuindo em função legislativa e executiva, ousasse acoimar de afronta à separação constitucional dos poderes.
De outra banda, existe o descrédito no Poder Legislativo, resultado dos cada vez mais denunciados escândalos de corrupção. Ademais, houve uma clara mudança no conceito filosófico de leis desde o período da gênese da separação dos poderes.
Se antes, na época da derrocada do absolutismo, a lei era valorizada ao ponto de ser tida como a expressão da vontade geral do povo, hoje, esse conceito encontra-se apenas no plano literário, eis que com a alta desigualdade da sociedade e sua constante mutação, a lei adquiriu profundo caráter transitório, avolumando-se sua produção e seu descarte, levando à banalização da norma.
Foi exatamente nesse diapasão que o Poder Judiciário assumiu uma nova dimensão, como tutor dos direitos e garantias fundamentais em detrimento das arbitrariedades constantemente cometidas pelo Poder Público.
Esse crescimento do Judiciário, na verdade, é uma das facetas do aspecto do princípio da separação dos poderes que se tem destacado no Estado contemporâneo: a progressiva autonomização da chamada função de controle, já vislumbrada por Loewenstein, atribuída em certa proporção a cada um dos órgãos constitucionais. Desenvolve-se ligada à ideia de “freios e contrapesos”, sendo desempenhada sempre que um Poder ou órgão do Estado se torna sujeito ativo de uma atuação controladora14.
De fato, é antiquado pensar num imóvel distanciamento das funções estatais, ideia essa que vai de encontro às finalidades da própria repartição constitucional. Ora, a divisão das funções do Estado entre organismos visa melhorar a concretização dos planos e metas dispostos na Constituição, não criar entraves e meandros dificultosos do exercício, por parte dos cidadãos, dos direitos e garantias dispostos na Carta Republicana.
4. O PODER JUDICIÁRIO E A REALIZAÇÃO PRÁTICA DOS DIREITOS SOCIAIS CONSTITUCIONAIS
4.1. A força normativa dos princípios como instrumento justificador da efetividade dos direitos sociais constitucionais.
A efetivação dos direitos sociais passa, inexoravelmente, pela discussão acerca da força normativa da Constituição, uma vez que os direitos de segunda geração, apesar de dispostos na Carta Magna, estão compreendido dentro do conceito de normas programáticas.
O fenômeno do constitucionalismo, nesse víeis, representa bem a passagem do Estado autoritário para o democrático de Direito. Originário das Revoluções Iluministas, o constitucionalismo, em sua primeira fase, disseminou a ideia de que é a Constituição o símbolo de uma nova filosofia política, representando o espírito entusiástico da época e o auge da consagração do ideal de liberdade humana, conquistado, paulatinamente, através dos tempos.
Canotilho, por seu turno, assevera que constitucionalismo
É a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade. Neste sentido, o constitucionalismo moderno representará uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos.
Em razão dessa nova concepção acerca do modo de convivência política baseada na conformação jurídica da política, a noção de que a Constituição deve ser protegida em face dos abusos contra ela cometidos foi sendo desenvolvida na trilha do constitucionalismo moderno com a consagração do princípio da supremacia constitucional.
Nesse sentido a brilhante passagem de CRISTINA QUEIROZ:
A constituição fixa agora a fronteira entre o lícito e o ilícito, entre o constitucional e o inconstitucional. Provoca, com isso, uma clara diferenciação entre o direito constitucional e o direito infraconstitucional. O binômio inovação política/mudança conceptual reside precisamente nisso: na ideia de supremacia da constituição face ao restante do ordenamento, a ideia de uma lei utilizada como critério de legitimidade e/ou ilegitimidade face às demais leis e actos jurídico-públicos. A constituição atribui-se a si própria a primazia, rompendo com a regra tradicional segundo a qual lex posterior derrogat legi priori. Esta supremacia constitui em si mesma uma regra de resolução de conflitos. Ela é a própria forma do direito15.
Logo mais, a força cogente das normas constitucionais estendeu-se aos princípios de mesma hierarquia, justamente no momento da migração dos códigos jurídicos para a Constituição.
A Teoria dos Princípios, desde então, consolida-se a partir da mudança de tratamento deles, que deixam de ter caráter puramente abstrato para se inserir no campo normativo e concreto do direito, o que resulta, ao final, em sua igualdade e, muitas vezes, maior relevância, em relação às regras jurídicas.
Daí o porquê de BONAVIDES16 arrolar como principais consequências da adoção por nossa ordem constitucional da Teoria dos Princípios
a transição crucial da ordem jusprivatista (sua antiga inserção nos Códigos) para a ordem juspublicística (seu ingresso nas Constituições); a suspensão da distinção clássica entre princípios e normas; o deslocamento dos princípios da esfera da jusfilosofia para o domínio da Ciência Jurídica; a proclamação de sua normatividade; a perda de seu caráter de normas programáticas; o reconhecimento definitivo de sua positividade e concretude por obra sobretudo das Constituições; a distinção entre regras e princípios, como espécies diversificadas do gênero norma e, finalmente, por expressão máxima de todo esse desdobramento doutrinário, o mais significativo de seus efeitos: a total hegemonia e preeminência dos princípios.
4.2. A Legitimidade do Judiciário para concretização dos direitos sociais;
Em realidade, o controle exercido pelo Judiciário sobre atos dos demais poderes que firam de morte regras (ou princípios) constitucionais se assenta exatamente em sua missão de guardião da Constituição, erigida à categoria de direito fundamental pelo art. 5º, XXXV, da CRFB/88.
É que no paradigma de um Estado de Direito Democrático, é de se requerer exatamente do Judiciário que tome decisões que, ao retrabalharem constitucionalmente os princípios e regras constitutivos do Direito vigente, satisfaçam, de uma só vez, a exigência de dar curso a crença tanto na legalidade, quando ao sentimento de justiça realizada, que deflui da adequabilidade da decisão às particularidades do caso concreto.
Não se pode, assim, opor à efetivação dos direitos sociais, erigidos à categoria de direitos fundamentais e dispostos na própria Lei Maior do Estado, o princípio da separação dos poderes, uma vez que imbuído neste princípio está, exatamente, a regra dos “freios e contrapesos”, que em muito legitima a atuação do Judiciário no controle dos atos praticados pelos demais poderes, quando estes descumprem preceito de hierarquia constitucional.
E que também não se alegue (como sustentam alguns) eventual ingerência por parte do Poder Judiciário no juízo de conveniência e oportunidade conferido, com caráter de exclusividade, ao administrador público.
Até mesmo a discricionariedade encontra barreira intransponível na lei. Com efeito, não se trata o Poder Discricionário de liberdade para atuar, mas sim liberdade nos limites estabelecidos pela lei. E se a lei pode ser eleita como paradigma do controle dos atos discricionários, com maior razão a Constituição, enquanto norma fundamental.
É nesse sentido a visão de Valmir Pontes Filho, quando aduz que,
Quaisquer que sejam os programas e projetos governamentais, ou eles se ajustam aos princípios e diretrizes constitucionais ou, inexoravelmente, haverão de ser tidos como inválidos, juridicamente insubsistentes e, portanto, sujeitos ao mesmo controle jurisdicional de constitucionalidade a que se submetem as leis. Como igualmente ponderado é observar que a abstinência do governo em tornar concretos, reais, os fins e objetivos inseridos em tais princípios e diretrizes constituirá, inelutavelmente, uma forma clara de ofensa à Constituição e, consequentemente, de violação de direitos subjetivos dos cidadãos.17
A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental (RTJ 185/794-796, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno).
Sobre o tema ganhou relevo o precedente fixado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento (apesar de prejudicado) da ADPF 45, da relatoria de Ministro Celso de Mello, o qual, com a maestria pela qual é reconhecido asseverou que
É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário – e nas desta Suprema Corte, em especial – a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (…) pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo. Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgão estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de conteúdo programático. (ADPF 45)
O que não se mostra lícito é que, a pretexto de cumprir determinados princípios constitucionais (como o da separação dos poderes), o poder público termine por ferir de morte a Constituição Federal, sob pena de total consagração ao desrespeito ao verdadeiro Estado Democrático de Direito.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
De todo o exposto, é de concluir que o encargo de tornar efetivos os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição da República, e aí se inserem os direitos de segunda geração (econômicos, sociais e culturais), é papel não somente atribuído aos poderes Legislativo e Executivo, mas também, e tendo em vista a inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, XXXV, CF/88), ao Judiciário, a quem incumbe também, com o mesmo grau de responsabilidade dos demais poderes, zelar pela efetividade das normas constitucionais, a fim de que o Texto Maior, em que se fundamenta todo o Estado, não se confunda com mera carta de intenções, sem conteúdo vinculativo.
E, desse modo, não se mostra lícito ao Estado, sob o pretexto da falta de recursos, ou não previsão orçamentária, se furtar à preservação de condições mínimas de sobrevivência ao indivíduo. Reconheceu-se, assim, um leque intangível de direitos, mínimo existencial, os quais o Poder Público está obrigado a resguardar, ainda que tenha que aniquilar direitos menos indispensáveis.
6. BIBLIOGRAFIA
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26ª. ed. São Paulo: Malheiros. 2011;
BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas, São Paulo: Saraiva, 2006;
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra-Portugal: Editora Almedina. 2003;
HORTA, Raul Machado Horta. Constituição e Direitos Sociais. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte: UFMG. v. 86. Janeiro. 1998;
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2007;
QUEIROZ, Cristina. Interpretação constitucional e poder judicial: sobre a epistemologia da construção constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2000;
BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas, Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. 5 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001;
REIS, José Carlos Vasconcelos. As Normas Constitucionais Programáticas e o Controle do Estado. Editora Renovar, 2003, p. 240
FERREIRA, Sérgio D’Andreia. O Controle da Administração Pública pelo Judiciário. Rio de Janeiro: Renovar: 1998
1 Horta, Raul Machado. Constituição e Direitos Sociais. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte: UFMG, n. 86, p.07
2 Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26 ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 366
3 Sarlet, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, pg. 49
4 FARIAS, Jose Eduardo. O direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999, pg. 105.
5 Horta, Raul Machado. Constituição e Direitos Sociais. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte: UFMG, n. 86, p.07
6 Sarlet, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, pg. 13
7 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra-Portugal: Editora Almedina. 2003, p. 379
8 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra-Portugal: Editora Almedina. 2003, p. 379.
9 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas, São Paulo: Saraiva, 2006; pg. 10.
10 BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas, São Paulo: Saraiva, 2006; pg. 10.
11 (BARBOSA, Rui. O Controle do Governo, as Decisões do Poder Judiciário e as Intervenções Federais, 1915, apud MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, pg. 550-551
12 BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas, Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. 5 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 124.
13 REIS, José Carlos Vasconcelos. As Normas Constitucionais Programáticas e o Controle do Estado. Editora Renovar, 2003, p. 240
14 FERREIRA, Sérgio D’Andreia. O Controle da Administração Pública pelo Judiciário. Rio de Janeiro: Renovar: 1998, p. 388
15 QUEIROZ, Cristina. Interpretação constitucional e poder judicial: sobre a epistemologia da construção constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 15
16 BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, pg. 265
17 (PONTES FILHO, 2003, Obra citada, p. 244)