REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8350726
Roselin Angelita Dantas Reis[1]
Ricardo Freitas de Oliveira[2]
RESUMO
A proposta deste artigo é analisar as representações lesboeróticas na escrita de Cidinha da Silva, a partir de dois contos da autora: “Mameto”, publicado em Um Exu em Nova York (2018), e “Duas mulheres numa rua íngreme”, apesentado em Baú de miudezas, sol e chuva (2014). Buscamos observar de que modo tais representações possibilitam uma rasura no cânone literário, a partir da elaboração de uma literatura com traços biográficos e uma escrita lesboerótica, baseada nas relações homoafetivas lésbicas entre mulheres negras. Para embasar este estudo, nosso aporte teórico se baseia nas proposições de Polesso (2018), Evaristo (2011), Candido (1972) e Hall (2015). Ao abordar as temáticas de gênero, sexualidade e raça, Cidinha da Silva contribui para enriquecer a literatura contemporânea, uma vez que se torna importante defender causas e lutar por questões sociais que envolvem, entre diversas formas de diversidade, o combate aos preconceitos raciais, de gênero e sexuais, rasurando o cânone ao inscrever corporalidades negras e lésbicas em seus textos literários.
Introdução
Início este artigo com um antigo saber africano, originado da língua Akan, falada entre povos da África Ocidental, em Gana, Togo e Costa do Marfim, que diz: “se wo were fi na wosan
kofa a yenki”, sendo traduzido por: “retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”. Como um símbolo Adinkra, Sankofa pode ser representado como um pássaro mítico que voa para frente, tendo a cabeça voltada para trás e carregando no seu bico um ovo, o futuro (Figura 1).
Figura 1 – Imagem de Sankofa
Fonte: Coletivo Cultural Sankofa, 2012
Assim como Sankofa permite olhar o passado e traçar novos caminhos para o futuro/presente, pontuamos que, neste artigo, temos o intuito de olhar para o passado do Cânone literário brasileiro e entender o que foi privilegiado e o que foi esquecido, apagado ou renegado, numa busca por conhecimento e novas vivências para a contemporaneidade. Para seguir em direção ao futuro, é necessário virar pra trás e pegar algo. O movimento não é linear, é circular. E é circulando que construiremos nossas ideias, debatendo, inicialmente, o cânone literário brasileiro. Destacamos que as normas que sustentam e derivam do cânone não surgem naturalmente, mas provêm da biopolítica, da colonialidade, recortadas por vários marcadores sociais como gênero, classe, sexualidade, dentre outros.
O cânone é um termo que deriva da palavra grega “κανόνας”, e originalmente se refere a uma vara utilizada como medida. Em português, cânone é designado como norma, regras ou padrões. No catolicismo, no processo de canonização, uma pessoa é reconhecida como santa. Já nas artes, os cânones são as chamadas obras-primas e os clássicos. O cânone literário brasileiro teve início com base na cultura ocidental, elaborada a partir da escrita de homens brancos, europeus, cristãos, heterossexuais e de renda alta ou média. Essa formação foi pautada pelos escritores românticos do século XIX e está relacionada à construção de uma identidade nacional brasileira. Foi o momento em que o Brasil se libertava da metrópole, contribuindo para a formação de uma “literatura empenhada” (CANDIDO, 1981), formando assim a identidade nacional. Essa literatura representaria aquilo que se almejava que os brasileiros vissem como sendo o Brasil, incluindo a língua que falavam e os costumes. Essa formação do cânone acaba sendo uma maneira de moldar a civilização brasileira, ainda que a custo de muita violência, como indica Rita Therezinha Schimidt (2020).
Nesse contexto, as mulheres foram apagadas do cânone literário. Essa premissa é afirmada por Faedrich (2018), quando conta a história da “poeta interrompida” Amélia de Oliveira, noiva do famoso poeta Olavo Bilac que foi repreendida por publicar poesias: “Exemplo paradigmático de uma crítica desencorajadora, dos limites que se impõem e do que se espera de uma mulher escritora no final do século XIX é a carta de Olavo Bilac à sua noiva, Amélia de Oliveira (1868-1945).”( FAEDRICH, 2018, p. 165). A referida carta a que Faedrich se refere foi publicada no livro “O noivado de Bilac”, de Elmo Elton, sendo possível observar o ataque sofrido por mulheres na literatura, em que utiliza a reputação como argumento para a proibição: “O primeiro dever de uma mulher honesta é não ser conhecida”. – não é uma grande verdade? reflete bem sobre isso: há em Portugal e Brasil cem ou mais mulheres que escrevem. Não há nenhuma delas de quem não se fale mal, com ou sem razão.”(ELTON, 1954, p. 48).
Assim, a representação feminina na literatura provinha de escritos masculinos, ou seja, vários escritores de prestígio elaboravam personagens femininas, ratificando os papéis sociais pautados no patriarcado, na heteronormatividade e na desigualdade de gênero. A mulher era, majoritariamente, retratada como submissa, doce, meiga, terna, dona de casa, mãe dedicada, dentre outros atributos. Machado de Assis, clarifica essa questão com um breve trecho da sua obra Helena (1876, p. 17):
As mulheres que são apenas mulheres, choram, arrufam-se ou resignam-se; as que têm alguma cousa mais do que a debilidade feminina, lutam ou recolhem- se à dignidade do silêncio. Aquela padecia, é certo, mas a elevação de sua alma não lhe permitia outra cousa mais do que um procedimento altivo e calado.
Se, por um lado, o cânone excluiu as mulheres, por outro, também buscou apagar os negros da escrita e das representações literárias, como indica Regina Dalcastagnè (2007). Nessa linha, escritores homossexuais também se camuflavam como heterossexuais para dar continuidade as suas obras literárias. Enfim, o cânone brasileiro foi espelhado no ocidente, que foi elaborado, por sua vez, a partir da literatura masculina, branca, eurocêntrica, cristã, hetero, reflexo da classe burguesa da época. O discurso histórico-literário, dominado por perspectiva cis-heteronormativa, eivada pelo machismo e por uma razão logofalocêntrica, reforçava estereótipos de gênero, marginalizando experiências que não estivessem de acordo com a norma. Isso resulta em invisibilidade, representações limitadas, ou ainda em uma representação estereotipada de identidades de gênero e sexualidade na literatura. Dalcastagnè (2007, p. 30), ao discutir sobre representatividade e literatura, analisa:
Tal como outras esferas de produção de discurso, o campo literário brasileiro se configura como um espaço de exclusão. Nossos autores são, em sua maioria, homens, brancos (praticamente todos), moradores dos grandes centros urbanos e de classe média – e é de dentro dessa perspectiva social que nascem suas personagens, que são construídas suas representações. Conforme mostra uma ampla pesquisa sobre a totalidade dos romances publicados pelas principais editoras do País nos últimos 15 anos, a homogeneidade dos autores se reflete em suas criações. O outro (mulheres, pobres, negros, trabalhadores) está, em geral, ausente; quando incluído nessas narrativas, costuma aparecer em posição secundária, sem voz e, muitas vezes, marcado por estereótipos.
Nessa perspectiva de enfrentamento da situação apresentada por Dalcastagnè, identificamos a escrita afrofeminina de Cidinha Silva, com sua análise social em forma de prosas, histórias sobre as pessoas, sobre o cotidiano, nas quais emergem vários temas contemporâneos não hegêmonicos. Entendemos, nesse sentido, que o cânone, regulamentado por uma escrita pautada na masculinidade branca e colonialista brasileira, é quebrado por Cidinha Silva, com sua autoria negra, falando como negra, mas também como mulher e lésbica. E assim, neste artigo pretendemos analisar as representações lesboeróticas na escrita de
Cidinha da Silva, a partir de dois contos da autora: “Mameto”, publicado em Um Exu em Nova York (2018), e “Duas mulheres numa rua íngreme”, apesentado em Baú de miudezas, sol e chuva (2014).
Compreendemos, nesse sentido, que os referidos contos ilustram uma literatura capaz de desestabilizar, rasurar o cânone e dialogar de forma interseccional propondo novas formas de pensar, agir e sentir o amor numa perspectiva não binária. A escritora e prosadora em foco, utiliza sua liberdade para criar imaginários, reinventar e fissurar paradigmas da literatura. Cidinha é uma protagonista da literatura negra no Brasil, não limitando a literatura à própria causa, mas entrando no espaço que tem sido sistematicamente negado à pessoas negras, às mulheres, a comunidade LGBTQIA+[3], indígenas, quilombolas, pessoas pobres, comunidades de terreiros, dentre outros, a fim de contar suas histórias. Há, assim, uma transição do ser narrada para o poder narrar-se, que é um movimento muito importante no panorama literário contemporâneo, sobretudo em escritas que estão à margem do cânone.
Cidinha revela-se como uma “infiltrada” na literatura. O termo “infiltrar”, segundo seu significado no dicionário, refere-se a algo que entra ou penetra, como através de um filtro. Na forma substantiva – infiltração – é descrito como “a passagem de um líquido pelos espaços vazios”[4]. A palavra de Cidinha é assim. Ela infiltra, ocupa espaços, invade e representa um ponto de virada importante em nossa literatura, pois inaugura um espaço de expressão para a experiência de vozes que antes não eram ouvidas. Sobre sua literatura, Chico César dança com as palavras na orelha do livro Os Nove pentes D’África (2009):
Cidinha da Silva é uma amiga minha que escreve como quem trança ou destrança cabelos e nos presenteia com pentes presentes cheios de passado que nos ajudam a destrinçar o futuro. Seus pentes são pontes de compreensão entre o que somos nós negros brasileiros agora, nossos avós recentes e os tais ancestrais africanos. E pontes entre nós e nossos filhos e sobrinhos, os que vêm depois de nós. Compreensão aqui que eu digo é aquele entendimento afetuoso, apaixonado até e cheio de compaixão no sentido de gratidão pelo que se é. Pelo que nós somos: família, solidariedade e contradição na difícil tarefa de encontrarmos, cada um, nosso papel de levar adiante a história coletiva e ao mesmo tempo afirmar o traço intransferivelmente pessoal do indivíduo. Estar com a mãe e nascer, ser da família e ir embora, constituir a sua própria (que ainda é a mesma). É aí que mora o penteado: saber qual é o pente que te penteia. Para os mais jovens, a quem se destina a princípio este livro, mas também para os nem tão jovens assim são generosas as pistas sopradas ao nosso ouvido por essa contadora de história. Escutadora atenta, agora vem a griot nos atentar doce e profundamente. Vem aqui nos alentar deschavando nós e nos ajudando a achar laços nesse desconchavado mundo. Vem reforçar nossas ligações básicas, comunitárias, domésticas. É tão certeiro e tão bem-vindo esse livro que lê-lo me encheu de orgulho e admiração. Pelo tema e pela forma. Sei que os próximos leitores de ‘Pentes’ sentir-se-ão gratos a Cidinha da Silva, como eu.
Os contos eleitos apresentam de forma expressiva a literatura negra, uma literatura marginal ao cânone, que fala de temas que perpassam pelo preconceito racial, cultura e religião afro brasileira, mas também contemplam as relações lesboeróticas entre mulheres negras. Nesse contexto, temos o privilégio de ter uma literatura que busca dar visibilidade a questões de gênero e sexualidade, cultura afro-brasileira e etnia. Nela, são apresentadas mulheres negras
que subvertem a lógica perversa que diz o lugar que a mulher deve estar, burla o pensamento branco burguês apoiado em práticas coloniais e resiste gritando ao mundo a mulher forte que é.
Escritas de amores que não silenciam
A introdução de personagens lésbicas nas letras brasileiras marca o Quinhentismo, vindo primordialmente da literatura portuguesa. Entretanto, essas representações femininas eram poucas e sempre elaboradas por homens, sem autorias femininas. Nesse contexto, percebemos a importância da mulher ter voz e a falar a partir dessa voz situada, lutar contra um silêncio imposto por séculos a elas (ZINANI e SANTOS, 2013).
Natália Borges Polesso, escritora e pesquisadora brasileira, propõe um estudo denominado “Geografias lésbicas” (2018), no qual busca analisar a escrita de mulheres lésbicas e como se deu a publicação ou interdição de tais textos. Sendo também lésbica e ficcionista, autora do romance Amora, Polesso (2018) destaca a importância da representatividade lésbica e da busca por essa identificação em textos literários:
Depois que publiquei Amora (2015), fui questionada inúmeras vezes sobre denominar ou não o livro como um livro lésbico. Deparei-me então com um imenso problema: não acreditava que este termo pudesse existir como adjetivo para literatura, porém não havia como ignorar o fato de ter pensado o livro a partir de protagonistas lésbicas. Não poderia dar uma resposta simples e taxativa como sim ou não. Era preciso refletir no âmbito literário, social e, principalmente, político sobre a importância da lesbianidade na literatura.
O primeiro ponto que tomei como referência foi a necessidade da adjetivação lésbica por parte dos leitores e da mídia. Minha primeira reação foi acreditar que esses atravessamentos aconteciam porque há uma lacuna no campo literário quanto à autoria e representação da homossexualidade de mulheres na literatura, lacuna promovida por esquecimentos e apagamentos. (POLESSO, 2018, p. 4).
Além de denunciar a ausência de uma literatura que apaga vivências lesboeróticas, Polesso (2018) destaca como esse apagamento também implica, ao tempo em que se relaciona, a autorias que não se identificam como lésbicas. Isso tanto diz respeito a uma produção ainda tímida de autoras que se apresentam como lésbicas, bem como de uma representação feita por mulheres ou homens heterossexuais, considerando também o preconceito e as interdições de que são alvos aqueles/aquelas que assumem sua homossexualidade.
A falta de representatividade no campo literário e a questão da autodeclaração da lesbianidade, no que diz respeito à autoria, são entraves que acabam por criar uma espécie de rede de abordagem específica a essa problemática emergente. Rede que se aproxima de ações de afirmação como tática de validação no campo.
Assim, fui confrontada também pela questão do ativismo. Talvez, por ser uma voz que recebeu destaque, entre tantas, e que, de certa maneira, cumpre a função de representar um grupo não homogêneo, percebi certa demanda para um posicionamento mais politicamente engajado. (POLESSO, 2018, p. 4).
Destacamos, nesse sentido, que, tal como Polesso, Cidinha da Silva é uma autora que, a partir de suas vivências e identidades, traz ao campo literário abordagens lesboeróticas, as quais interrelacionam-se também a perspectivas racializadas. Essas abordagens aproximam-se da biografia de Cidinha, que é uma mulher negra e lésbica, estando vinculadas a temas explorados em suas narrativas. Entendemos que, como discutido por Conceição Evaristo, a escrita literária pode estar ligada à características biográficas e existenciais do sujeito negro. Podemos estender essa afirmação a subjetividade da autoria biográfica lésbica em produções literárias. E assim, pensarmos essa citação de uma perspectiva mais ampla e interseccional:
[…] quando escrevo, quando invento, quando crio a minha ficção, não me desvencilho de um corpo-mulher-negra em vivência e que, por ser esse o meu corpo, e não outro, vivi e vivo experiências que um corpo não negro, não mulher, jamais experimenta (EVARISTO, 2011, p. 132 – grifos da autora).
Evaristo (2011) fala sobre uma escrita baseada na subjetividade feminina e afro. Todavia, buscamos ampliar a noção de escrevivência apresentada pela autora e correlacionar essa perspectiva à proposta de Miranda (2020), sobre o corpo-território: “Torna-se também relevante a recuperação de memórias coletivas da população afro-brasileira e a construção dessas identidades, os corpos-territórios traduzidos pelo processo cultural.” (MIRANDA, 2020, p. 20). Evaristo (2011) fala a partir de um corpo-território de mulher e negra, com todas as suas experiências, subjetividades, negando a perspectiva ancorada pelos valores da cultura europeia, assim como faz Cidinha, em um viés antirracista. Miranda (2020) e Evaristo (2011) se encontram justamente nesse ponto, quando entendemos que o corpo-território nos ensina que precisamos experimentar o mundo com leituras próprias, negar tentativas de padronizar o diferente, primar pela diversidade e não pela imposição de modelos únicos.
As perspectivas apresentadas oferecem um aporte teórico para analisar a produção de Cidinha como uma escritora negra e lésbica. Algumas personagens são lésbicas, o que amplifica as questões de gênero, ligadas à dimensão étnica. A literatura afro-brasileira retrata questões pertencentes a uma minoria que esteve ou ainda está subalternizada, concedendo voz a essas pessoas. A literatura homoerótica, no viés das geografias lésbicas (POLESSO, 2018), também visibiliza discussões e análises pertinentes a outro grupo historicamente marginalizado – as lésbicas, como observamos em “Mameto” (2018) e “Duas mulheres numa rua íngreme” (2014).
“Mameto” faz referência a uma mulher lésbica, negra, mãe de santo, dona de um terreiro frequentado por outras mulheres negras e lésbicas, sendo a sacerdotisa famosa por suas conquistas amorosas – característica que a aproxima da divindade Oxum. Todavia, a solidão apresentada pela mãe de santo tem sido uma constante companheira: “se alguém conseguisse chegar à outra margem daquele rio silencioso que era seu interior, atravessaria um caminho de pedras lisas e conchas pontudas difícil de firmar o pé.” (SILVA, 2018, p. 51). Nesse trecho, a referência às águas reforça a identificação com Oxum, bem como a sede por amar: “Uma mulher sedenta por amar e consumida pela falta de coragem de se jogar.” (SILVA, 2018, p. 52). A situação perdura até que a mãe de santo, ainda que tente negar, se apaixona pela namorada de uma das suas filhas de santo, reiniciando, assim, o ciclo de conquistas amorosas: “a flecha acertou o coração da caça e escancarou a face abissal da paixão. […] o céu ruborizou um abóbora iansânico no entardecer dos dias frios. Oxum ria um riso de menina arteira” (SILVA, 2018, p. 52).
Como podemos observar, o conto tem como panorama um cenário e enredo que interrelacionam a temática lesboerótica à cultura negra, tanto pela personagem quanto por elementos que ligam às religiões de matriz africana. Esse universo que aproxima o lesboerotismo da cultura religiosa negra também está presente em “Duas mulheres numa rua íngreme”:
Motorista habilidosa, a moça do carro vermelho, dirige coladinho nela e mansa, doce, diz à semi-deusa: ‘Boa tarde, senhora dos ventos, da tempestade que tumultua meu peito. Permita que eu me apresente. Eu sou o Xangô que Oyá mandou para guardar seu caminho. Dê-me a honra de acompanhá-la em seu destino.’ A mulher de Iansã tira os óculos escuros, sem qualquer surpresa. Olha o que ainda falta da ladeira, espreita três mulheres inofensivas dentro do automóvel, dá a volta, deslizando a mão pelo capô e resolve entrar. Cumprimenta a todas, simpática, agradece a gentileza e a motorista pergunta, ‘para onde vamos?’ Vão a um cartório, para onde a bela se dirigia na Barroquinha. Depois vão tomar sorvete na Ribeira. A motorista deixa as amigas por lá e vai levar a musa em casa. A essa altura já tem certeza de que ela é de Iansã. (SILVA, 2014, p. 32).
Nessa “pegada” sedutora e carinhosa, a suposta moça de Iansã ouve uma cantada e observa o interior do carro com três mulheres. Ela aceita a carona, e dá início a um encontro singular entre as duas mulheres numa tarde. Elas tomam sorvete e vão para a casa da moça de Iansã, tendo como cenário a cidade de Salvador, que é também um local de referência negra.
Durante o encontro, há conversas, música, carinho e a oportunidade de contemplar o pôr do sol no mar através da ampla janela, fazendo com que o tempo pareça passar bem devagarinho. Neste trecho, vemos doses de conhecimento descolonizados, com várias expressões na língua iorubá e uma forte ancestralidade negro-diaspórica e sexo-dissidente que emergem como fontes inesgotáveis de histórias e linguagem contra-hegemônicas. Assim, uma das mulheres compara a outra a Iansã, que segundo Verger (1981, p.170), contempla o arquétipo Oiá-Iansã, tendo as seguintes características:
O arquétipo de Oiá-Iansã é o das mulheres audaciosas, poderosas e autoritárias. Mulheres que podem ser fiéis e de lealdade absoluta em certas circunstâncias, mas que, em outros momentos, quando contrariadas em seus projetos e empreendimentos, deixam-se levar a manifestação da mais extrema cólera. Mulheres, enfim, cujo temperamento sensual e voluptuoso pode leválas a aventuras amorosas extraconjugais múltiplas e frequentes, sem reserva nem decência, o que não as impede de continuarem muito ciumentas dos seus maridos, por elas mesmas enganados.
Podemos perceber claramente como a presença do componente étnico é evidenciada não apenas pelo fato de as personagens serem negras, mas também pela valorização da cultura afrobrasileira. Já neste trecho “a bela ficasse apenas com a blusa laranja de alças delicadas, as sisterlocks em leve desalinho e o salto 12” (SILVA, 2014, p. 31 – grifo da autora), observamos que a mulher é retratada como bela e existe uma relação disso com os “sisterlocks”, que é um tipo de dreadlock, reafirmando a estética e a beleza negra. Neste sentido, Antonio Dias Silva (2014, p. 62), explica que na literatura homoerótica, os espaços de poder são estabelecidos quando as personagens dos textos “propagam imagens valorizando a si e aos outros da mesma subjetividade na relação físico-corporal, afetivo-sexual ou no trabalho, nas amizades […], na crença religiosa”.
De modo consonante, Polesso analisa:
a literatura é um dispositivo político em que se modulam algumas distribuições do que afeta nossos mundos sensíveis e em que aparecem constantemente novas relações entre os corpos. Portanto, pensar a literatura acoplada ao adjetivo lésbica cria múltiplas possibilidades e recortes para um novo entendimento das suas produções em termos de representação ficcional, autoria e de fortalecimento social de um grupo. (POLESSO, 2018, p. 5).
Nessa perspectiva, entendemos que a literatura homoerótica é potente suficiente para propor rasuras no contexto social, ela confronta e desafia, se legitimando como um novo espaço diverso e plural para falar abertamente de assuntos relacionadas às minorias, que foram historicamente silenciadas. Assim, Barcellos (2006) sinaliza a importância dessas construções identitárias gays na literatura e interpretações de obras literárias de viés homoafetivo. E nesse caminho, considerando a importância dessas construções, o autor Cândido afirma que “a literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante” (CANDIDO, 1999, p.180).
As personagens representam mulheres lésbicas e negras, o que propõe uma dupla dimensão de exclusão social em relação ao gênero feminino. Elas desafiam os estereótipos e lutam contra as diversas opressões impostas pela sociedade. É uma representação poderosa de mulheres que se fortalecem e reivindicam seu lugar no mundo. Ressaltamos que esses elementos, mulher/negra/lésbica, elevam a condição social frequentemente marginalizada devido aos diversos preconceitos existentes, que precisam ser superados.
Nas crônicas, clarifica-se uma subversão das situações convencionalmente ligadas ao papel masculino, como um homem que para o carro para cantar uma mulher na rua ou, ainda, da mãe de santo que se apaixona pela namorada de uma das suas filhas de santo. Essa subversão resulta em uma rasura dos papéis tradicionalmente “pré-estabelecidos”. Entretanto, percebemos uma doçura e naturalidade a esses papéis, sem prejuízo da essência sensual e lesboerótica da relação entre mulheres negras. Neste sentido, a proposta canônica ocidentalizada refere-se à criação de uma hegemonia discursiva, na qual determinadas visões de mundo são impostas em detrimento de outras. As crônicas em questão alteram essa lógica perversa e explicitam a rasura do cânone quando é destacada a liberdade afrofeminina, bem como um ideal de beleza negra e a afirmação da cultura afro-brasileira.
Essa literatura não canônica, que subverte a lógica heteronormativa, vem nos brindar com essa forma de artivismo de resistência tão importante e profícuo para desestabilizar certezas. Esse tipo de literatura é como Exu na reflexão feita pelo pesquisador Rufino (2020, p.
26): “Exu gera dúvida, motricidade e, para um projeto de mundo que ser quer único, que se quer totalizante, isso é muito perigoso e revolucionário, porque é a produção no e do caos. É a ordem produzida via desordem.”
Nessa instância, compreendemos a linguagem literária como poder, conhecimento e possibilidades de mudanças sociais. “Assim, todas as práticas humanas são tipos de linguagem, visto que têm a função de demarcar, de significar, de comunicar” (KRISTEVA, 1996, p. 14). Correlacionando essa afirmação às questões discutidas neste artigo, podemos perceber o poder que a literatura não hegemônica exerce por meio da linguagem e a potência da luta pela criação de imaginários que possam reinventar a norma, que contrariem o fetiche heterossexual da supremacia branca e classista que insiste em leituras romantizadas que humanizam a violência da colonialidade.
Podemos perceber que a temática lesboerótica dos contos analisados é representada pelo amor feminino, no qual ora o encontro entre as mulheres ocorre de maneira sutil e delicada, ora mais furtiva e, em outros momentos aquecido por uma sensualidade latente. Nesse movimento, composto em sua maioria de mulheres lésbicas e negras é construído o imaginário dessas relações homoafetivas. O desejo de Cidinha da Silva em contar essas histórias perpassa pela busca de visibilidade, mostrando ao mundo suas vivências e uma arte humanizadora. Para Candido (1999), a literatura moderna é confeccionada esteticamente de forma que consiga atingir intencionalmente o leitor, essas intenções estão direcionadas ao despertar de emoções, sejam elas positivas ou negativas, a sensibilização, ao emocionar, tal como o faz Cidinha da Silva, ao possibilitar identificações a partir de suas narrativas.
Candido (1999) pontua ainda elementos que mostram a função humanizadora da literatura, que propicia ao ser humano referências que podem contribuir com sua formação. Nesse sentido, são explicitadas as funções psicológica e formadora. A função psicológica fala sobre a essência humana em si, revelando a necessidade inerente ao indivíduo de se relacionar com o mundo da fantasia promovendo seu desenvolvimento, independentemente da condição financeira social, cultural ou qualquer outro marcador social. Já na função formadora, Candido define aspectos que mostram como a literatura desenvolve um papel formativo e construtivo do conhecimento. A literatura é uma forma de arte constituída de saberes e informações. Nesse viés, Todorov (2009) entende que, “Nesse sentido, pode-se dizer que Dante ou Cervantes nos ensinam tanto sobre a condição humana quanto os maiores sociólogos e psicólogos e que não há incompatibilidade entre o primeiro saber e o segundo.”
Candido e Todorov explanam sobre o papel formativo da literatura, mas não podemos esquecer que essa formação é pautada na cultura do Ocidente. Em contraponto, Rufino (2020) que propõe na Epistemologia das encruzilhadas, a necessidade de descolonizar epistemologia, questionando os padrões dominantes de produção e disseminação do conhecimento estabelecidos por estruturas de poder opressivas. E assim, a literatura de Cidinha se coloca como formativa, num viés contra hegemônico, partindo do princípio que temos que “‘jogar nas encruzas’, compreendo ‘cruzo’ como o conceito que possibilita rasurar determinados saberes, produzindo atravessamento, uma espécie de justaposição em que o conflito é fundamental para o exercício reflexivo.” (RUFINO, 2020, p. 27)
E não menos importante, encontramos o conceito de literatura de Candido (1999) como função social. A arte de Cidinha é costurada na função social, em que o elo entre o contexto social e histórico e a ficção buscam por mudanças e rasuras na sociedade. Assim, percebemos que a literatura é um lugar de construção e validação de representações de mundo. Não obstante, é crucial o reconhecimento que nesse mesmo lugar também são reproduzidas e perpetuadas certas representações sociais, disfarçadas sob a perspectiva da “realidade” da obra. “A literatura da encruzilhada” de Cidinha, como diria Rufino (2020), tenta oferecer a oportunidade de transcender fronteiras físicas e mentais, permitindo que os leitores mergulhem em narrativas que questionam e expandem as concepções tradicionais de corpo e identidade impostas por narrativas hegemônicas.
Neste sentido, Stuart Hall (1997) explica que a cultura não é algo estático, mas sim um processo dinâmico em constante negociação. As representações simbólicas presentes na cultura têm um papel importante na formação de ideias e valores, influenciando a forma como pensamos, agimos e nos relacionamos com os outros. No contexto da rasura da norma em relação ao gênero e sexualidade, isso significa que as representações culturais podem exercer um papel central numa mudança de paradigma. Dessa forma, podemos perceber que: “A cultura não é um espelho passivo da realidade, mas uma arena de luta, onde diferentes grupos e interesses buscam impor suas visões de mundo. Ela é o terreno em que são travadas as batalhas pelo significado e pela representação.” (HALL, 1997, p. 57).
Assim, compreendemos que o cânone literário não é algo imutável, ocorrendo ao passar do tempo revisões e mudanças que visam refletir as transformações sociais, culturais e políticas. O que é considerado canônico em uma época pode não ser tão valorizado em outra. Novas vozes, vozes dissidentes, vozes que desejam a subversão e buscam espaços dentro do e fora do mercado editorial tradicional. Novas vozes, novos paradigmas: nova literatura!
Considerações finais
Ao discutirmos a proposta apresentada para este estudo, podemos perceber que há uma constância na literatura em reafirmar a norma monogâmica, romântica e heteronormativa, que faz com que aqueles que não se encaixam nela se sintam em falta de algo. Nesse sentido, o texto literário de autoria negra e que fala de forma contra hegemônica deixa de ser somente fruição estética e busca legitimar também o valor e a função de apresentar vivências e saberes outros, como vimos que indicam Evaristo (2011), Polesso (2020) e Rufino (2020).
E por longo tempo, mulheres lésbicas não se sentiam representadas na literatura e, se tem algo em comum entre muitas escritoras, é o desejo de falar de si, contar histórias autobiográficas que gostariam de ter lido, seja na adolescência ou na vida adulta, mas que também fossem espelho de suas vivências, seus conflitos, suas paixões. Observamos que a falta de representação lésbica na literatura refere-se à hegemonia heteronormativa e sua luta pela continuidade. É um processo contínuo de invisibilidade e apagamento. Nessa perspectiva é fundamental a luta pela ampliação de espaços de comunicação e de opinião no campo político sobre essas identidades dissidentes e minoritárias, impulsionadas pelos estudos de gênero, em lentes interseccionais, estudos decoloniais, teoria queer e ampliação do debate LGBTQIA+. Essa visibilidade proporciona um espaço de expressão no qual a problematização da colonialidade em suas diversas formas é o ponto de convergência, como destacado por Arturo Escobar (2005).
A literatura desempenha um papel crucial ao representar, criar e desconstruir paradigmas de uma sociedade repressiva, além de clarificar as transformações ao longo do tempo e dar voz àqueles que foram silenciados. Nesse sentido, é por meio deste artigo e considerações sobre aspectos das relações lesboeróticas apresentadas por Cidinha Silva que podemos afirmar que a arte lesboerótica dessa autora faz como o sankofa, vai buscar no passado conhecimentos que alteram a forma que enxergamos o mundo, provocando rachaduras. E assim, mais uma vez, tentando fugir da escrita positivista, podemos dizer que é “pela rachadura que a luz entra”. A rasura do cânone está nessa luz, que entra fazendo curva, na circularidade contida no proverbio africano que citamos no início. ASÈ!
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[1] Discente do curso de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagens e Representações – PPGL, pela Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC. Técnica em Assuntos Educacionais no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano – campus Uruçuca.
[2] Professor Titular Pleno da UNEB/Campus I, Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Estudos das Linguagens – PPGEL/UNEB e do Programa de Pós-Graduação em Letras, Linguagens e Representações – PPGL/UESC.
[3] A sigla LGBTQIA+ refere-se a Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans, Travestis, Queers, Intersexos, Assexuadas e todas as demais identidades que compõem o espectro de gênero e sexualidade.
[4] Informações disponíveis em: https://www.dicio.com.br/infiltrar/. Acesso em: 08 jul. 2023.