A DIALÉTICA DO ESPÍRITO E O COGITAMUS: UMA CONEXÃO DOS CONCEITOS DE DIALÉTICA E ESPÍRITO NO PENSAMENTO DE HEGEL E BACHELARD

THE DIALECTIC OF THE SPIRIT AND THE COGITAMUS: A CONNECTION OF THE CONCEPTS OF DIALECTIC AND SPIRIT IN THE THOUGHT OF HEGEL AND BACHELARD

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8350055


Robson Caixeta Silva1


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo traçar uma relação entre os pensamentos de Bachelard e Hegel. Assim, inicialmente observa-se que dois conceitos são fundamentais para os dois pensadores: Dialética e Espírito. O que se pretende, então, é indagar sobre qual a relação que se pode observar no uso destes conceitos pelos dois pensadores supracitados – houve uma completa ruptura ou pode-se apontar um encadeamento de sentido entre os termos e o seu uso? Para responder a isto, primeiramente se analisa o conceito de dialética, vendo como Hegel e Bachelard o apresentam. Depois, procura-se entender também o conceito de espírito, como decorrência da compreensão dialética, uma vez que nos dois filósofos o método serve para que se analise o espírito. Por fim, procurase mostrar qual a relação pode ser traçada entre a dialética do espírito (sistematização dos dois conceitos no sistema hegeliano) e o ‘cogitamus’ (a proposta que Bachelard também apresenta para a compreensão do espírito científico). A hipótese colocada é a de que se pode fazer como que um encadeamento dessas duas teses fundamentais, de modo que a dialética do espírito hegeliana possa ajudar a compreender melhor o ‘cogitamus’ tal como apresenta Bachelard. 

Palavras-chave: Hegel. Bachelard. Dialética. Espírito. Cogitamus.

ABSTRACT

The present article aims to trace a relationship between the thoughts of Bachelard and Hegel. Thus, it is initially observed that two concepts are fundamental to both thinkers: Dialectics and Spirit. What is intended, then, is to inquire about the relationship that can be observed in the use of these concepts by the two thinkers mentioned above – was there a complete rupture or can one point out a chain of meaning between the terms and their use? To answer this, first the concept of dialectics is analyzed, seeing how Hegel and Bachelard present it. Then, we also try to understand the concept of spirit, as a consequence of the dialectic understanding, since in both philosophers the method is used to analyze the spirit. Finally, we try to show what relationship can be drawn between the dialectics of the spirit (systematization of the two concepts in the Hegelian system) and the ‘cogitamus’ (the proposal that Bachelard also presents for the understanding of the scientific spirit). The hypothesis is that one can make a link between these two fundamental theses, so that the Hegelian dialectic of the spirit can help to better understand the ‘cogitamus’ as presented by Bachelard.

Keywords: Hegel. Bachelard. Dialectic. Spirit. Cogitamus.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Traçar uma relação de proximidade entre Gaston Bachelard e qualquer outro filósofo não é uma tarefa fácil, uma vez que fica claro que o pensador francês sempre utiliza vários conceitos consagrados da Filosofia, mas a seu próprio modo, isto é, sem levar propriamente em conta o sentido original de cada um destes conceitos. Todavia, há que se perguntar se, de fato, há um rompimento completo no pensamento bachelardiano com a tradição filosófica no que se refere ao uso de alguns conceitos clássicos ou haveria a possibilidade de se observar alguma linha, ainda que tênue, de continuidade. 

Esse questionamento ganha uma maior relevância quando se observa que alguns destes conceitos perpassam praticamente todas as obras de Bachelard. E por isso, pretende-se aqui destacar dois destes conceitos: ‘dialética’ e ‘espírito’ – dois termos relevantes em boa parte da obra bachelardiana, mas que tiveram seu uso consagrado na Filosofia pelo pensamento de G. W. F. Hegel. O que se pretende então é indagar sobre qual a relação que se pode observar no uso destes conceitos pelos dois pensadores supracitados – houve uma completa ruptura ou pode-se apontar um encadeamento de sentido entre os termos e o seu uso? 

Para responder a estas perguntas, o presente estudo foi divido metodologicamente em três partes, de modo que uma leva à compreensão da outra. Primeiramente se faz necessário analisar o conceito de dialética, vendo como Hegel e Bachelard o apresentam. Depois, procura-se entender também o conceito de espírito, como decorrência da compreensão dialética, uma vez que nos dois filósofos o método serve para que se analise o espírito. Partindo então desses dois capítulos se questiona: qual a relação pode ser traçada entre a dialética do espírito (sistematização dos dois conceitos no sistema hegeliano) e o ‘cogitamus’ (a proposta que Bachelard também apresenta para a compreensão do espírito científico)? Assim sendo, na última parte se analisa a hipótese da possibilidade de se fazer como que um encadeamento dessas duas teses fundamentais, isto é, fazer uma correlação entre os conceitos de modo que a dialética do espírito hegeliana possa ajudar a compreender melhor o ‘cogitamus’ tal como apresenta Bachelard. 

Faz-se necessário ainda deixar claro que metodologia utilizada neste trabalho foi a revisão bibliográfica das principais obras de Hegel e Bachelard no que diz respeito a estes dois conceitos, bem como a contribuição de artigos que versam sobre esta temática.

Assim, evidencia-se que o intuito aqui proposto não é esgotar o tema, o que seria impossível levando em conta a extensão deste trabalho, mas sim demarcar aqueles que seriam momentos fundamentais ao se tratar os pensamentos de Hegel e Bachelard e as possíveis correlações existentes entre eles. 

A DIALÉTICA 

Ao se analisar inicialmente o conceito de dialética, pode-se dizer que este nasceu juntamente com a Filosofia, uma vez que já desde o pensamento de Pitágoras, bem como outros filósofos gregos, pode-se ver que esse método já é verificado, conforme argumenta Spinelli (2004, p. 69):

O modo grego de pensar é, em geral, afirmativo, mas não linear, e sim, digamos, ‘dialético’, ou seja, caracterizado por um modo dualista de pensar. Foi a tradição pitagórica (cultura da ideia do tempo cíclico e do conceito de ‘antinomia’) que o concebeu deste modo, como se o pensamento só fosse capaz de pensar por oposição, confrontando diferenças.

Em seu princípio, a dialética ficou reduzida ao seu uso retórico, já que até o próprio termo grego do qual derivou a dialética () remete à ideia do discurso[1].

Konder (1985, p. 7) salienta que “o termo dialética ficou conhecido sempre como a arte de demonstrar uma tese por meio de uma argumentação capaz de definir e distinguir claramente os conceitos envolvidos na discussão.” 

Todavia, se pretende aqui ir para além deste uso, para que se possa penetrar no sentido mais denso do que seja a dialética. E, logo de início, percebe-se que ao aprofundar-se na interpretação do termo, não há como se esquivar da compreensão hegeliana a respeito deste. Apesar de Hegel não ter sido o criador do conceito de dialética, como já foi apontado, foi ele quem contribuiu substancialmente para a compreensão deste termo, que em sua filosofia ganha uma nova perspectiva, uma nova magnitude (URDANOZ, 2001). Como defende Cabral (1997, p. 1395): “Hegel identifica lógica e ontologia, transfere ousadamente a dialética, do campo do raciocínio em si, para o do ser.”

Inicialmente a dialética é entendida por Hegel como método, o que não a diminui, já que o método é fundamental para que possa alcançar o êxito de buscar o saber verdadeiro, como é apresentado na ‘Fenomenologia do Espírito[2]: “A filosofia, antes de abordar a Coisa mesma, – ou seja, o conhecimento efetivo do que é, em verdade -, necessita primeiro pôr-se de acordo sobre o conhecer, o qual se considera […] um meio através do qual o absoluto é contemplado” (FE, § 73, p. 71). 

Todavia, ao se dizer ‘método’, não se pode confundir a dialética apenas com um procedimento lógico, já que se pode verificar na própria realidade que a verdadeira identidade contém a diferença, uma vez que a identidade pura e abstrata demonstrada pelo entendimento só existe no pensamento formal da lógica, mas nunca na realidade (HEGEL, 1995a). Assim, ao tentar compreender a realidade, já se percebe a necessidade de que cada conceito leve junto a si o seu oposto, a sua negação. “Ao afirmar um conceito é preciso negá-lo […], pois ao romper essa limitação se anula ou suprime a si mesmo, para voltar a uma identidade superior que não destrói as diferenças.” (URDANOZ, 2001, p. 316). Com isso vê-se que a dialética é o único caminho para a busca do saber verdadeiro, que é o escopo da Ciência, pois ela evidencia o fato de que negar não significa excluir o negado, pois “a atividade negadora não exclui o negado, mas eleva-o a um momento que exige o conceito, o verdadeiro.” (SALGADO, 1996, p. 190). 

É preciso lembrar também que Hegel apresenta o movimento dialético como sendo uma marcha em um ritmo triádico, isto é, em três momentos específicos, de modo que cada um é a negação e assim a superação do outro, embora cada momento seja extremamente necessário para o desenvolvimento como um todo: “A lógica [dialética] tem, segundo a forma, três lados: a) o lado abstrato ou do entendimento [tese]; b) o dialético ou negativamente-racional [antítese]; c) o especulativo ou positivamente racional [síntese]”. (HEGEL, 1995a, p. 159) 

Não havendo aqui a possibilidade de se tratar de cada um destes momentos, fazse necessário citar o momento fundamental, que de certo modo é a síntese da dialética hegeliana – a ‘suprassunção’ (Aufhebung). Este é o momento especulativo apontado por Hegel (1995a) como aquele que se mostra como ‘superar’ que é ao mesmo tempo o ‘tirar- e-conservar’. Assim, o termo apresentado primeiramente não é de forma alguma excluído, mas conservado na própria negação, e reaparecerá ‘suprassumido’ já no próximo momento dialético. Quando a consciência chega a este ponto é capaz de conhecer verdadeiramente a realidade, pois pode agora conhecer o verdadeiro conceito, que implica nas semelhanças e também diferenças, conciliando estas duas e mostrando que são duas faces da mesma moeda. 

Importa recordar aqui a dupla significação de nosso termo alemão aufheben. Por aufheben entendemos primeiro a mesma coisa que ‘hingwegräumen’ [ab-rogar], ‘negieren’, e por conseguinte dizemos, por exemplo, que uma lei, um dispositivo são ‘aufgehoben’ [ab-rogados]. Mas além disso significa também o mesmo que ‘aufbewahren’ [conservar], e nesse sentido dizemos que uma coisa está ‘wohl aufgehoben’ [bem conservada]. Essa ambiguidade no uso da língua, segundo a qual a mesma palavra tem uma significação negativa e uma significação positiva, não se pode considerar como contingente, nem se pode absolutamente fazer à linguagem a censura de dar azo à confusão; mas tem-se de reconhecer aí o espírito especulativo de nossa língua, que vai além do simples ou-ou do entendimento. (HEGEL, 1995a, §96, p. 194).  

Deste modo, se por um lado entende-se que a própria realidade é devir e dinamismo, por outro também se vê que a dialética hegeliana aponta como seu cerne o movimento ou devir, já que sem este, aquela não seria mais que um processo de negação simplesmente lógico. Assim, conclui-se que a dialética é o método mais adequado à realidade, pois está fundada na dinamicidade. Evidenciando isso, Hegel diz: “A verdadeira compreensão é esta: que a vida como tal traz em si o gérmen da morte, e que em geral o finito se contradiz em si mesmo, e por isso se suprassume.” (HEGEL, 1995a, p. 163). 

E, se a realidade em Hegel só pode ser compreendida de modo dialético, o mesmo se pode perceber no pensamento de Bachelard. Quando se analisa o que propôs o filósofo francês ao desenvolver suas ideias, também é possível perceber que seu trabalho epistemológico é em si dialético, conforme defende Costa (2015, p. 92). Todavia, o desenvolvimento de seu pensamento está erguido sobre o trabalho dos cientistas e não dos filósofos[3], o que faz com que o conceito de dialética tenha uma conotação um tanto quanto diferente em relação à ideia de dialética em Hegel – sentido este que será agora apresentado. 

Inicialmente, ao se perguntar o que exatamente Bachelard entende por dialética, já se percebe que esta não é uma pergunta que se pode responder facilmente. Isso acontece por que não se vê de modo imediato em sua obra uma definição exaustiva deste conceito e quanto mais se procura fazer uma delimitação exata, tanto mais difícil se torna dizer estritamente o que é a dialética bachelardiana. 

Todavia, mesmo que sem uma conceituação estrita, é fato que Bachelard apresenta o saber científico sendo organizado por um processo dialético, na relação entre teoria e experiência, com a presença de erros e fracassos, retificações e aproximações do conhecimento. É justamente nesse viés que Japiassú (1976, p. 66-67) argumenta sobre essa nova dialética:

Trata-se, antes de tudo, da dialética “espontânea” da prática científica. […] Sua função é a de reorganizar o saber científico. Ela se inscreve no diálogo entre o Matemático e o Físico, quer dizer, no diálogo entre os elaboradores de hipóteses e teorias e os efetuadores de experiências. Essa troca de informações tem por objetivo ajustar teoria e experiência. Todavia, não sendo possível recorrermos a um objeto fixo, devemos pensar este ajustamento não como uma adequação formal, mas como um processo histórico. Trata-se de uma história que de forma alguma assegura que a teoria esteja destinada a encontrar sempre um meio de realizar-se, mas que está sujeita a riscos e fracassos. Os riscos e fracassos, ao invés de revelarem uma crise da ciência, são a ocasião de um trabalho, porque proporcionam aos cientistas oportunidade tanto de reverem suas teorias e de formularem novas hipóteses, quanto de aperfeiçoarem suas experiências e de melhor controlarem seus instrumentos. Por intermédio desse processo é que se reorganiza o saber. E é esta reorganização que Bachelard chama de dialética.   

Deste modo, é justamente aqui que se percebe o novo sentido dado à dialética por Bachelard. Ainda que o conceito não esteja estritamente delimitado, percebe-se que ele se mostra como o caminho científico, incidindo na experiência que acontece na presença de erros e fracassos, retificações e aproximações. É neste viés que argumenta Japiassú (1976), ao dizer que a dialética em Bachelard é uma reorganizadora do saber científico, quando se leva em conta a aptidão científica de progredir continuamente pela ruptura, retificação, revolução. E é justamente por este viés científico que, conforme defende o próprio Bachelard, a dialética hegeliana mostra-se como insuficiente para tal fim da ciência:

A dialética hegeliana nos coloca, com efeito, diante de uma dialética a priori, diante de uma dialética na qual a liberdade do espírito é incondicionada demais, demasiadamente desértica. Pode levar, talvez, a uma moralidade e política gerais. Não pode levar a um exercício diário das liberdades do espírito, detalhadas e renascidas. Corresponde àquelas sociedades sem vida nas quais se é livre para fazer tudo, mas nas quais não se tem nada a fazer. Então, você é livre para pensar, mas não tem nada em que pensar. Muito superior é a dialética instituída no nível das noções particulares, a posteriori […]. (BACHELARD, 2001, p. 10. Tradução nossa[4]).

Fica então claro que a dialética em Bachelard é a posteriori, sendo esta a possibilidade que melhor se encaixa na apresentação do processo científico. Isso significa que, conforme apresenta Costa (2015), é preciso primeiramente reconhecer o caráter histórico da ciência, já que cada noção (objeto) tem a sua história e o seu perfil epistemológico desde o estado pré-científico ao novo estado científico das ciências contemporâneas. E justamente por isso, quando se descreve a história de cada objeto, avaliando os seus diversos momentos, já se está aplicando a dialética a posteriori àquele mesmo objeto, que já ocorreu, que já tem uma história e que pode evoluir no devir da ciência. Portanto, a dialética se mostra como uma categoria científica fundamental, e pode ser vista também como um método, pois tem o escopo de revelar como se faz ciência.

Assim argumenta Costa (2015, p. 96):

A ciência assim entendida trabalha a posteriori com fatos científicos reais, juntando empirismo e racionalismo na filosofia do racionalismo aplicado, chegando-se ao materialismo racional, em que a matéria recebe novo status de cientificidade pela junção de física e química por meio das teorias quântica e ondulatória. Esse movimento de retificação do passado científico e avanço para o devir científico revela o processo dialético realizado pela própria ciência e que Bachelard registrou. Ou seja, a ciência em si é dialética em seu percurso histórico-epistemológico e necessita de uma visão filosófica que enxergue e demonstre esse movimento dialético.

Assim, a dialética em Bachelard se mostra como uma visão crítica histórica que coloca em confronto e diálogo as diferentes noções e fatos científicos, teorias, filosofias, cientistas, de tal modo que haja entre eles um alinhamento e uma complementação que mostre o progresso da ciência em busca de verdades objetivas. E assim pode-se dizer que a dialética, na epistemologia de Bachelard, é principalmente seu método de trabalho, pois o que ele faz em toda a sua obra – registrar a passagem do conhecimento vulgar concreto, entendido muitas vezes como o senso comum, para o conhecimento científico abstrato – se dá de modo dialético.

Portanto, após perceber como cada filósofo concebe o conceito de dialética, entende-se que sugere, tanto em Hegel como em Bachelard, um caminho metodológico a se seguir, dando aqui espaço para ainda outros elementos em comum (o que se fará mais à frente). Todavia, abre-se espaço também para se questionar sobre quem é o sujeito que percorre esse itinerário e, ao mesmo tempo, a que ele é direcionado. É justamente diante destas indagações que aparece, unido ao conceito de dialética, o conceito de ‘Espírito’, que esteve profundamente ligado à Antropologia filosófica, mas que aqui ganhará dimensões ainda mais interessantes e, por isso, passa-se agora à análise deste. 

O ESPÍRITO 

Olhando agora para o conceito de ‘Espírito’, percebe-se que este tem uma grande importância tanto na filosofia de Hegel, como também como também no pensamento de Bachelard. E, sabendo que este conceito não é aqui apontado ao acaso, mas justamente porque a dialética leva até ele, o que se pretende agora é aprofundar-se também em sua compreensão. Para isso, do mesmo modo como na dialética, será apresentado num primeiro momento a visão hegeliana do que é o ‘espírito’ e, posteriormente, como Bachelard também o entende. 

Inicialmente, ao se observar o caminho dialético na filosofia hegeliana, não se pode perder de vista que este busca abranger a totalidade da realidade, isto é, a totalidade de tudo o que é, o infinito (HYPPOLITE, 1991). E este conceito é melhor descrito dentro da ‘Fenomenologia do Espírito’, bem como em todo sistema hegeliano, como o Absoluto,

“que é concebido como totalidade, a realidade do universo, como um todo; esta realidade universal que é também vida.” (URDANOZ, 2001, p. 305). Destaca-se aqui que o Absoluto se apresenta como sujeito, ou seja, ele tem consciência de sua própria existência, é o pensamento que pensa a si mesmo e isto equivale a dizer que o Absoluto é Espírito[5], “o sujeito autoconsciente ou infinitamente luminoso a si mesmo.” (URDANOZ, 2001, p. 307).

Assim sendo, o Espírito, que é toda a realidade, deve abarcar em si todas as diferenças e oposições existentes no real, para só então se reconhecer efetivamente como Espírito. Porém, para que possa acontecer esse reconhecimento, isto é, a efetivação do Espírito, este deve realizar todo um movimento que consiste em ir se descobrindo pouco a pouco. É neste viés que aqui se recorre às figuras-de-espírito: a consciência, ao partir da certeza sensível, passando pela percepção, força e entendimento chega à ‘certeza de si mesmo’, para só então, como ‘consciência-de-si’ chegar a ser Razão e posteriormente reconhecer-se como Espírito.

É claro que, ao longo de todo esse percurso dialético, algumas dessas figuras de espírito são apontadas como mais importantes para que se possa entender como, de fato, já na ‘Fenomenologia’ é possível perceber que a consciência se abrirá à realidade, ou ainda, à essência daquilo que é, o que posteriormente será muito bem elaborado no sistema hegeliano dentro da ‘Enciclopédia das ciências filosóficas’ na Filosofia do Espírito. 

E o primeiro momento que merece destaque é justamente o momento em que a consciência, que antes partiu do conhecimento sensível, torna-se então Razão. Este é o momento em que “no pensamento que captou – de que a consciência singular é em si a essência absoluta -, a consciência retorna a si mesma. Para a consciência infeliz o ser-emsi é o além dela mesma. […] Em outras palavras: arrancou de si seu ser-para-si e fez dele um ser.” (FE, p. 172, §231). Conforme explica Meneses (1992), a passagem para a Razão se dá justamente no momento em que a consciência retorna sobre si mesma, certa de ser toda a verdade e, deste modo, muda de atitude frente à realidade toda, porque ela descobre que tudo lhe pertence. Mas na Razão, o percurso dialético ainda necessita continuar, já que não basta apenas que exista a certeza de ser toda a realidade, mas é necessário que isto se converta em veracidade, isto é, unidade com a realidade. E deste modo, dá-se um passo ainda mais efetivo quando a Razão se torna Espírito, momento este definido por

Hegel do seguinte modo: “A razão é espírito quando a certeza de ser toda a realidade se eleva à verdade, e [quando] é consciente de si mesma como de seu mundo e do mundo como si mesma.” (FE, p. 304, § 438). 

E justamente com o Espírito percebe-se que o ponto de partida que foi dado para se buscar a totalidade da realidade ganha aqui um sentido. Neste momento é claro para Hegel que “o Espírito é a substância e a essência universal, igual a si mesma e permanente: o inabalável e o irredutível fundamento e ponto de partida do agir de todos, seu fim e sua meta, como [também] o Em-si pensado de toda a consciência-de-si.” (FE, p. 305, §439). E desta forma, conforme apresenta Hyppolite (1991), a busca da verdade da realidade se converte na busca do saber de si do Espírito. E esta busca é imprescindível para o Espírito, pois só quando tem a certeza de si é que ele se torna de fato Absoluto. 

A certeza de si é justamente a prova de que a totalidade que é Espírito, se mostra como sujeito – o atributo do Espírito que realmente o singulariza, e o faz ser o que é plenamente, é a autoconsciência. Isso se justifica pelo fato de que é somente sabendo de si que o Espírito pode se firmar como sujeito, pois, como já foi argumentado, a subjetividade pressupõe o autoconhecimento e se justifica nele. Essa característica faz com que o Espírito não se torne algo a ser conhecido, como um objeto qualquer, mas o torna alguém que conhece e que se dá a conhecer, não mais como uma simples coisa ou substância inconsciente de sua existência. Em consonância com essa postura, Vaz (2001, p. 274) afirma: 

Ora, o sujeito que se manifesta imediatamente como implicado no dinamismo da intenção é, precisamente, o sujeito mesmo da intenção, a consciência enquanto intencionante. […] O sujeito não é conhecido como “alguma coisa”, mas se automanifesta como consciência-de-si.  

Portanto, até aqui fica claro que o Espírito que foi se produzindo pouco a pouco pelo processo dialético e conseguiu se provar como totalidade da realidade. Desde o início do movimento, ele já era a própria realidade, mas agora, com o pleno desdobramento dialético, ele teve certeza disso e se conheceu como absoluto. Conforme Singer (2003), sempre que se pretendeu traçar a trajetória do Espírito quando este conhecia a realidade, na verdade só se observava a construção da realidade por este Espírito, que no fim da construção é Absoluto.

Após fazer toda essa caminhada pelo pensamento de Hegel, faz-se agora necessário entender também o que Bachelard aponta como a definição do conceito de ‘Espírito’, já que também ao longo de sua obra o termo aparece em diversos momentos. Todavia, é preciso deixar claro, logo de início que é também em relação a este conceito

Bachelard não se preocupa em dar uma conceituação estrita, usando o conceito ‘espírito’ diversas vezes como se o seu sentido já fosse presumido por seus leitores. Por isso, o que se pretende fazer agora é evidenciar qual o sentido com que o filósofo usa o termo ‘espírito’ em alguns momentos de sua obra. É claro que já se deve levar em conta que uma análise muito mais minuciosa seria aqui necessária, o que não será possível devido ao alcance deste trabalho. Assim, será em linhas gerais que se apresentará a compreensão do que Bachelard entender por ‘Espírito’. 

Inicialmente, percebe-se que o Bachelard (2005) toma a noção de espírito como bastante próxima à atividade racional do ser humano, estando ligada ao pensamento, ou melhor, aquele que é capaz de fazer a abstração, tão necessária à ciência. Isso fica claro quando o epistemólogo fala, por exemplo, do pensamento e sua abstração: “Para isso, temos de provar que pensamento abstrato não é sinônimo de má consciência científica, como parece sugerir a acusação habitual. Será preciso provar que a abstração desobstrui o espírito, que ela o torna mais leve e mais dinâmico.” (BACHELARD, 2005, p. 08). Não só nesta passagem, mas em diversos outros momentos da obra ‘A Formação do Espírito Científico’ (BACHELARD, 2005) esta visão do conceito pode ser encontrada. 

Todavia, este mesmo espírito, que à primeira vista se refere ao um sujeito individual, deve se abrir à ciência, ou em outras palavras, é o espírito que permite com que o sujeito cognoscente possa fazer ciência. Nas palavras de Bachelard, o espírito é aquele que ao abstrair as experiências pode construir o objeto científico:

Na experiência, [o espírito] procura ocasiões para complicar o conceito, para aplicálo, apesar da resistência deste conceito, para realizar as condições de aplicação que a realidade não reúne. É então que se percebe que a ciência constrói seus objetos, que nunca ela os encontra prontos. A fenomenotécnica prolonga a fenomenologia. Um conceito torna-se científico na proporção em que se torna técnico, em que está acompanhado de uma técnica de realização. (BACHELARD, 2005, p. 77).

E já aqui percebe-se a estrita ligação entre espírito e ciência. E indo mais além, pode-se dizer que é uma necessidade para o espírito que este aceda à ciência para que possa se aprimorar, como argumenta Bachelard (2005, p. 18): “Quando o espírito se apresenta à cultura científica, nunca é jovem. Aliás, é bem velho, porque tem a idade de seus preconceitos. Aceder à ciência é rejuvenescer espiritualmente, é aceitar uma brusca mutação que contradiz o passado.” 

Desta maneira, algo que para Bachelard se mostra como central é que não se deve dar destaque apenas ao espírito de um modo geral, mas se deve evidenciar a sua relação com a ciência e, por isso, na obra bachelardiana é colocado em evidência o ‘espírito científico’. Essa conotação é muito importante aqui, já que enquanto científico, este conceito mostra que o espírito é aquele que vai para além da individualidade, não se prendendo à existência de um sujeito particular. É neste viés que Costa (2015) argumenta que no processo científico operado pelo espírito, a ciência se sobrepõe à vida, ou o que é o mesmo, a linha do espírito e da ciência se colocam acima da linha da vida. E isto é um elemento fundamental para o próprio espírito, já que surge como uma necessidade para o seu movimento: “O que serve à vida imobiliza-a. O que serve ao espírito põe-no em movimento” (BACHELARD, 2005, p. 308).

Ainda seguindo a explanação de Costa (2015), o que foi acima apontado serve justamente para que se entenda que a ciência marcha apesar dos homens individuais, ou seja, ela tem uma história epistemológica. E, por isso mesmo, conforme também adverte Bachelard (2005), o espírito que quiser colaborar com o avanço da ciência tem que prosseguir dentro da linguagem matemática que ela criou, e de modo mais específico, que os espíritos científicos criaram, desenvolveram e encontraram, porém não são mais os detentores.

Aqui então se abre espaço para recordar o que Bachelard apresenta como uma espécie de progressão do espírito científico, inclusive do ponto de vista cronológico. Em toda a sua obra o epistemólogo deixa claro que o espírito científico se define em aversão ao espírito pré-científico, ao qual advém de modo imediato no tempo cronológico. De modo concreto, para Bachelard (2005), o espírito científico começou a se formar no final do século XVIII, mas se delineou de modo efetivo no século XIX, o século de Newton, e teve como grande marco, para um novo espírito científico o ano de 1905, quando Albert Einsten publicou a sua teoria da Relatividade. Para que fique ainda mais claro, Barchelard explana sobre essa divisão e evolução cronológica:

O primeiro período, que representa o estado pré-científico, compreenderia tanto a Antiguidade clássica quanto os séculos de renascimento e de novas buscas, como os séculos XVI, XVII e até XVIII. O segundo período, que representa o estado científico, em preparação no fim do século XVIII, se estenderia por todo o século XIX e início do século XX. Em terceiro lugar, consideraríamos o ano de 1905 como o início da era do novo espírito científico, momento em que a Relatividade de Einstein deforma conceitos primordiais que eram tidos como fixados para sempre. A partir dessa data, a razão multiplica suas objeções, dissocia e religa as noções fundamentais, propõe as abstrações mais audaciosas. (BACHELARD, 2005, p. 09).

E é a partir dessa apresentação da ‘formação do novo espírito científico’ que Bachelard irá então apresentar boa parte dos outros conceitos importantes em seu pensamento. Isso pode ser exemplificado quando se diz que o pensamento do espírito précientífico forma um quadro geral de obstáculos epistemológicos que devem ser superados pelo novo espírito científico (BACHELARD, 2005). Não se tem espaço aqui para se fazer toda essa apresentação do arcabouço bachelardiano, mas o certo é que, ao apontar o que é o espírito e como este advém, Bachelard abre espaço para que toda sua filosofia deixe clara a ‘história do espírito’. E ele mesmo deixa clara essa importância, ao dizer: “insistiremos no fato de que ninguém pode arrogar-se o espírito científico enquanto não estiver seguro, em qualquer momento da vida do pensamento, de reconstruir todo o próprio saber. Só os eixos racionais permitem essa reconstrução.” (BACHELARD, 2005, p. 10). 

Posteriormente se poderá analisar ainda alguns aspectos interessantes da noção de espírito e espírito científico em Bachelard, abrindo inclusive espaço para uma relação com a noção apontada também por Hegel para este conceito. Por ora, crê-se que a apresentação da identidade entre espírito e realidade, de um lado, bem como a noção de espírito científico e seu desenvolvimento histórico são suficientes para se ter uma compreensão do uso que Hegel e Bachelard fazem deste conceito aqui apresentado. Todavia, esta compreensão será agora alargada, à medida que se pode colocar ainda mais em evidência a relação da posição de cada um destes pensadores – passo que se dará doravante.

A DIALÉTICA DO ESPÍRITO E O COGITAMUS

Até o presente momento, foi possível verificar-se por um lado o grande afastamento entre a filosofia hegeliana e o pensamento de Bachelard, no que diz respeito ao modo como cada um desenvolve sua filosofia. Todavia, é inegável que os termos

‘dialética’ e ‘espírito’ são fundamentais ao longo da obra de cada um destes pensadores. Por isso, o que agora se pretende analisar é justamente quais as relações seriam possíveis ser traçadas tendo como horizonte os desdobramentos destes conceitos. Assim sendo, questiona-se se seria possível encontrar, ainda que no recorte dos conceitos acima apresentados, um ponto de confluência entre estas duas filosofias, mesmo deixando claro que o pensamento bachelardiano se coloca à parte e nega-se sempre a fazer uma ‘filosofia de filósofos’.

Inicialmente, quando se olha para o que apresentou Hegel, fica muito fácil perceber que o conceito de espírito não pode ser pensado sem a dialética e vice-versa. Isso acontece de tal modo, que a busca do saber verdadeiro, que Hegel (2008) nomeia diversas vezes como ciência[6], acontece no movimento dialético do Espírito e se mostra como autoconhecimento (a consciência-de-si já apresentada anteriormente). Isso significa que no autoconhecimento do Espírito, este produz-se como seu próprio objeto e ao analisá-lo reconhece-se a si mesmo como totalidade e verdade. É este o horizonte para o qual Hegel (1995c, §377 e §379) chama a atenção: 

Só um conhecimento merece de agora em diante o nome de uma consideração filosófica. O autoconhecimento, mas que no sentido trivial costumeiro, de uma investigação das fraquezas e vícios próprios do indivíduo só tem interesse e importância para o singular – não para a filosofia; […] [É preciso considerar o Espírito universal]. Somente quando consideramos o espírito no processo que foi descrito da auto-efetivação do seu conceito é que nós o conhecemos em sua verdade (pois verdade significa justamente acordo do conceito com sua efetividade). […] O desenvolvimento total do Espírito não é outra coisa que seu elevar-se-a-si-mesmo à sua verdade.

Essa definição do saber de si do Espírito como saber da ciência torna-se um caminho interessante para que se possa também adentrar na dialética do espírito científico conforme esta é proposta por Bachelard. Já foi dito anteriormente, sobretudo no que diz respeito ao conteúdo, que a dialética nos dois filósofos são termos dessemelhantes. Todavia, é muito interessante notar que essa apresentação da busca hegeliana pelo saber, que leva em conta o movimento dialético no qual o espírito toma consciência da sua atividade no sentido de impor-se na definição do seu progresso, não passou desapercebida pelo próprio Bachelard. É justamente o que apresenta Rocha (2018), quando este diz que:

Numa conferência realizada em 1952, em que Bachelard fala sobre a Vocação Científica e a Alma Humana, Bachelard afirma que Hegel entende o espírito como a própria ciência, sendo essencialmente um desenvolvimento em que se capta a correspondência espiritual da artificialidade filosófica com a história humana. É quando o pensamento toma consciência da sua atividade no sentido de impor-se na definição do seu progresso. Logo, na medida em que, a partir de Hegel, a cultura científica expandiu-se substancialmente, o espírito científico pôde tomar consciência das suas retificações e rupturas, como consciência do próprio devir. (ROCHA, 2018, p. 73).  

Aqui se coloca em evidência não só o fato de o espírito estar no movimento dialético, o que é possível perceber-se nos dois pensadores, mas também a identidade que se estabelece entre o espírito e a busca do saber como ciência: há aqui a possibilidade de postular que o espírito que opera dialeticamente é a própria ciência (saber). No pensamento hegeliano esta postulação pode ser apresentada da seguinte forma:

Saber e dialética coincidem, por que como pensante, o Espírito é um pensamento que toma por objeto o que ele é e como ele é. É o saber e o saber é o conhecimento de um objeto racional e real. Então o saber compreende toda a dialeticidade do Espírito, pois é ele mesmo que se conhece exatamente como pode ser: realidade dialética. (SALGADO, 1996, p. 227)

E essa mesma postulação pode ser aplicada ao pensamento bachelardiano, salvo o conteúdo e a as dimensões de pensamento. E é justamente nesse viés que Rocha (2018) chega inclusive a defender uma polêmica hipótese, de que na verdade a dialética bachelardiana é uma nova formulação da dialética hegeliana. Há que se ressaltar que esta não é uma posição defendida pela grande maioria dos intérpretes de Bachelard e, por isso, se pretende aqui apenas dar alguns apontamentos desta hipótese, uma vez que ela é que nos permitirá chegar a um outro fato, que é o verdadeiro escopo deste trabalho. 

Neste sentido, primeiro apresenta-se uma interessante explanação colocada por Canguilhem (2012), quando este identifica na dialética de Bachelard uma identidade, que lembra à hegeliana, entre razão (espírito) e ciência, de tal modo que se pode dizer que a razão é a própria ciência. 

A palavra dialética aparecia para Bachelard própria para caracterizar a conduta de racionalidade, essa dialética operava diferentemente de uma dialética com ritmo ternário obrigatório. Em tal dialética, é a ultrapassagem que cria retroativamente a tensão entre os momentos sucessivos do saber. O conceito de dialética para Bachelard equivale à afirmação, sob uma forma recuperada e abrupta, de que a razão é a própria ciência. Distinguir, como se fez até ele, razão e ciência é admitir que a razão é potência de princípios independentemente de sua aplicação. Inversamente, identificar ciência e razão é esperar da aplicação que ela forneça um desenho dos princípios. O princípio vem no fim. Mas, como a ciência não acaba de acabar, o princípio não acaba de ultrapassar o estágio do preâmbulo. (CANGUILHEM, 2012, p. 218) 

E aqui também se destaca a importante contribuição de Gauthier[7], o qual caracterizou a lógica de Hegel como “silogística dinâmica”, com a noção de dupla negação não clássica como a força motriz por trás da dialética – é justamente aqui que se percebe uma possibilidade de relação com o pensamento bachelardiano. Assim defende Gauthier esta hipótese de proximidade entre a dialética hegeliana e bachelardiana:

Aqui a própria linguagem de Bachelard nos convida a retornar à dialética hegeliana da Aufhebung que traduzimos pelo termo “suprassunção” como antônimo da subsunção kantiana. A subsunção kantiana significava essencialmente colocar o particular sob o geral, enquanto a suprassunção significa a generalização do particular ou singular. A mediação dialética opera em Hegel por meio da dupla negação (“doppelte Negation”) que vai da primeira afirmação, diz Bachelard formação, a uma nova afirmação que não é, em virtude da supersunção que nega e preserva, um retorno à primeira formação. mas o advento ou surgimento de uma nova formação. Podemos formalizar esse movimento dialético pela fórmula  ¬¬ a → b > a […] (GAUTHIER, 2013, p. 352, tradução nossa[8]).

Tomando então o que apontou anteriormente Canguilhem (2012) e agora Gauthier (2013), pode-se perceber a possibilidade de uma aproximação por meio da dialética pelos dois filósofos. Isso se dá justamente pelo fato de se entender que, se o modo de operar da ciência é dialético, como se percebeu na obra bachelardiana, também a razão assim opera, já que há quase como que uma identidade entre elas. Ainda que esta operação não seja de modo triádico e a priori, como o faz Hegel, não se pode esquecer que também a razão que depois se faz ‘espírito’, no pensamento hegeliano, opera de modo dialético. Daí se pode entender melhor por que Gauthier (2013) ressaltou o fato da linguagem de Bachelard também levar a um retorno à dialética hegeliana, compilada na ideia da Aufhebung

O que também se quer deixar claro é que a mesma relação traçada entre a dialética e o espírito, enquanto caminho para o saber verdadeiro, isto é, para a ciência, pode-se também ser verificado em Bachelard. Mas onde realmente se quer chegar é na hipótese de que assim como o Espírito hegeliano suprassume (aufheben) o indivíduo enquanto consciência isolada, abrindo-se então à totalidade de tudo aquilo que é, também o caminho para a ciência em Bachelard passa pela superação da compreensão da ciência feita por um espírito individualizado, apartado de uma comunidade científica. Isso porque a dialética bachelardiana sempre conduz o espírito para que este possa ir além da individualidade, e Bachelard (1977) explana sobre este fato justamente quando o apresenta como ‘cogitamus’. Com este novo conceito quer ressaltar-se que o pensamento científico não se faz só, mas ele sempre acontece por meio de um nós: 

A dialética: “eu estava só, e estaremos reunidos” funciona a propósito da validade de cada ideia, de cada experiência numa tomada sensibilizada de cultura. É no próprio pormenor dos pensamentos que o não-psicologismo do eu e tu racionais vem reduzir o psicologismo do sujeito isolado. (BACHELARD, 1977, p. 62). 

Assim, se o espírito científico não corresponde unicamente a um indivíduo, entende-se melhor o que Bachelard (1977) diz quando defende que a cidade científica não é simplesmente um conjunto de pessoas, já que na cidade científica não se tem sujeitos, mas conceitos, ideias. E é a isso que Hegel chama de Espírito, e por isso também para ele a Ideia é o fundamento de tudo aquilo que é – a realidade é ideia (HEGEL, 1995a).

Portanto, quando Hegel defende que “o eu que é um nós e o Nós que é um eu” (FE, §177, p. 142), pode-se apontar também esta ideia como fundamento de um ‘cogitamus’. É preciso lembrar que esta leitura, levando em conta o conceito de cogito que vai além do cartesianismo, se deu mais por conta da interpretação de Hegel por Jean Hypollite (1971), quando este escreve: “A mente, portanto, parece aqui como a essência da “cogitamus” em vez de apenas “Cogito”. Ele supõe tanto o ultrapassar da consciência singular, como a manutenção da diversidade dentro da substância” (HYPPOLITE, 1971, p. 312). Quando este pensador aponta como a experiência de Cogitamus e não mais somente do Cogito, evidencia que acontece neste momento a superação das consciências singulares e ao mesmo tempo a conservação de sua diversidade no seio da substância através do que aponta Hegel. E essa mesma ideia pode ser encontrada no pensamento bachelardiano: 

[É no desenvolvimento explícito] […] desses momentos do racionalismo aplicado que se funda o cogitamus que se solidariza, num mesmo pensamento, e, consequentemente, numa coexistência pensante, o eu e o tu racionalistas. Mediante esse cogitamus, o eu e o tu aplicam-se culturalmente um ao outo, no mesmo sentido em que os matemáticos falam da aplicação conforme de dois elementos de superfície. Para tomar consciência de sua concordância, dois espíritos racionalistas não precisam de identidade completa: basta-lhes instituir-se um e outro no papel do pensamento objetivamente controlado. (BACHELARD, 1977, p. 69)

Por fim, muitos outros apontamentos deveriam ainda ser melhor explanados aqui para que se possa entender melhor essa relação apresentada entre Hegel e Bachelard, o que não se faz possível devido à limitação de extensão deste trabalho. Levando então em conta o que Bachelard disse em sua ‘Filosofia do não’- “O espírito pode mudar de metafísica, mas não pode ficar sem metafísica.” (BACHELARD, 1984, p. 08) – concluise afirmando que assim como o pensamento metafísico de Hegel tem uma metafísica própria, filosófica e que diz respeito à dialética do Espírito, também o pensamento epistemológico de Bachelard apresenta uma metafísica, todavia científica – não deixando de movimentar-se dialeticamente e nem negando o espírito. Portanto, ainda que seus princípios não sejam iguais, no que diz respeito aos seus conteúdos, é fato que se pode perceber, ainda que ao menos do ponto de vista de ‘movimentação’, que todas as relações aqui traçadas entre Hegel e Bachelard são cabíveis.  

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Levando em conta que a presente reflexão não procura tomar a parte pelo todo, analisando completamente o pensamento de Bachelard e Hegel, crê-se que foi cumprido o objetivo de apresentar as possíveis correlações entre os conceitos de dialética e espírito, nos pensamentos dos dois filósofos supracitados. Mas fica claro também que pesquisas posteriores se fazem necessárias para que se possa aprofundar os elementos que foram aqui elencados – o que não impede de se chegar a algumas conclusões que serão aqui apresentadas.

Primeiramente, ao retomar a visão bachelardiana da dialética, pode-se perceber que a dialética hegeliana foi encarada por um lado como uma dialética a priori, em detrimento da necessidade científica de Bachelard de uma dialética a posteriori. Todavia, é inegável que se pode observar também na própria dialética de Bachelard uma identidade, que lembra à hegeliana, entre razão (espírito) e ciência, de tal modo que se pode dizer que a razão é a própria ciência. Isso leva a entender então que, se o modo de operar da ciência é dialético, também a razão assim opera, ainda que esta operação não seja de modo triádico e a priori, como o faz Hegel. Conforme foi apresentado por Gauthier (2013), é justamente por isso que se pode observar que até mesmo a própria linguagem de Bachelard convida a um retorno à dialética hegeliana, compilada na ideia da Aufhebung

Desta maneira, não se pode deixar de apontar para a similitude entre a ideia que a suprassunção hegeliana, que nega e conserva ao mesmo tempo, com a ideia de

cogitamus’ de Bachelard. Neste último, ficou claro que ao se falar da ciência, percebese que não se fala dos conhecimentos e experiências de sujeitos particulares (os cientistas), mas acontece justamente a superação das consciências singulares e ao mesmo tempo a conservação de sua diversidade, ideia esta trazida no ‘cogitamus’. O mesmo se observa em Hegel, pois o conceito de Espírito implica justamente a abrangência do todo, contudo, sem eliminar a diversidade dos momentos do caminho dialético – esta é a dialética do Espírito (é claro que esta afirmação é bastante simplista quando se olha toda o sistema hegeliano – mas ela cabe aqui com o objetivo de sintetizar). Portanto, ainda que o conteúdo da ‘dialética do espírito’ hegeliano e o ‘cogitamus’ bachelardiano sejam diferentes, ambas as perspectivas se encadeiam de modo que ao entender um, se pode ter uma melhor compreensão do outro.

Por fim, sabe-se que é impossível em apenas uma reflexão como esta aprofundar a relação entre Hegel e Bachelard – aqui foram feitos apenas apontamentos. Todavia, não se pode deixar de evidenciar a grande importância da aproximação entre os dois filósofos, uma vez que ao tomar os conceitos delineados por Hegel, abre-se espaço para que possa dialogar melhor com os conceitos filosóficos e o uso que Bachelard faz deles. E que fique claro também que, ainda que com metafísicas distintas (como defende Bachelard), o espírito apontado pelos dois jamais deixará de buscar a ciência – seja pela ‘dialética do

Espírito’, seja pelo ‘Cogitamus’. Portanto, balizando o caminho, mas não o esgotando, deixa-se aberta a possibilidade para uma futura pesquisa que possa investigar mais a fundo a relação e os desdobramentos dos termos dialética e espírito nos pensamentos dos dois filósofos. 

REFERÊNCIAS

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CABRAL, R. (Dir.) et al. Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. 2. ed. São Paulo: Verbo, 1997. 1v. 

CANGUILHEM, G. Estudos de História e de Filosofia das ciências: concernentes aos Vivos e à Vida.Tradução de Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

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______. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compêndio (1830): a Filosofia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses, com colaboração de José Machado. São Paulo: Loyola, 1995c. 3 v.

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HYPPOLITE, J. Figures de la pensée philosophique – Écrits de Jean Hyppolite (19311968). Paris: Presses Universitaire de France, 1971. Tome II.

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ROCHA, G. K. A dialética do cogitamus: uma investigação hegeliana de Bachelard. Revista Ariel: Revista semestral arbitrada de originales de filosofia. Montevideo, Uruguay, n. 22, p. 72-79, 16 nov. 2018. Disponível em: <https://arielenlinea.files.wordpress.com/2018/12/ARIEL22.pdf>. Acesso em: 04 abr. 2023.

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URDANOZ, T. Historia de la Filosofía IV: Siglo XIX – Kant, idealismo y espiritualismo. 3. ed. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2001. 4 v.


[1]  (dialektikh): Em grego, o verbo ‘’ significa pôr de lado, escolher e conversar. Já na voz média, ’‘, além de falar, exprime antes a ideia de discorrer. Daí que ‘’ se tornasse a arte de discutir. (CABRAL et al., 1997, p. 1391).

[2] PhG §84 – HEGEL, G.W.F., Phänomenologie des Geistes. Hamburg: Felix Meiner Verlag, 1988. Doravante designada no corpo do texto (PhG com o número do parágrafo), quando tratar-se da edição brasileira (2008), será designada como FE e o número do parágrafo e da página.

[3] Na verdade, este é um grande desafio para Bachelard: pensar o novo com palavras e conceitos velhos. Isto explica, certamente, o seu relacionamento pouco ortodoxo com a filosofia. Vemo-lo, com frequência, conferir sentidos novos a palavras e expressões consagradas pela história da filosofia. Um kantiano jamais poderia tolerar o uso selvagem do binômio fenômeno/númeno. Um marxista estremece diante da polivalência da palavra dialética. (TERNES, 1995, p. 83).

[4] La dialéctica hegeliana nos pone, en efecto, ante una dialéctica a priori, ante una dialéctica en que la libertad de espíritu es demasiado incondicionada, demasiado desértica. Puede conducir, quizá, a una moral y a una política generales. No puede conducir a un ejercicio cotidiano de las libertades del espíritu, detalladas y renacientes. Corresponde a essas sociedades sin vida en las que se es libre de hacer todo, pero en las que no se tiene nada que hacer. Entonces, se es livre de pensar, pero no se tiene nada en que pensar. Muy superior es la dialéctica instituida en el nivel de la nociones particulares, a posteriori […]. (BACHELARD, 2001, p. 10)

[5] “O absoluto é o espírito: esta a suprema definição do absoluto. Encontrar essa definição e conceber seu sentido e conteúdo, pode-se dizer que foi essa a tendência absoluta de toda cultura e filosofia […] O que aqui é dado à representação, e o que é em-si a essência, a tarefa da filosofia é apreendê-lo em seu elemento próprio, no conceito.” (HEGEL, 1995c, p. 26).

[6] O saber absoluto é o espírito que se sabe em figura-de-espírito, ou seja: é o saber conceituante. […] Por isso, o que é a essência mesma, a saber, o conceito, se converteu no elemento do ser-aí, ou na forma da objetividade para a consciência. O espírito, manifestando-se à consciência nesse elemento, ou, o que é o mesmo, produzido por ela nesse elemento, é a ciência. (FE, p. 524, §798).

[7] Deve-se à Gauthier a tradução do conceito hegeliano de Aufhebung para o francês, que ele sugeriu traduzir por “sursomption“, sugestão que foi adotada entre outros por Jarczyk e Labarrière em sua tradução da ‘Fenomenologia do Espírito’. No campo dos fundamentos da física, ele introduziu a noção de observador local na mecânica quântica. Cf. From the Local Observer in QM to the Fixed-Point Observer in GR. Advanced Studies in Theoretical Physics. vol.11, 2017, no. 12, p. 687-707.

[8] Ici le langage même de Bachelard invite à un retour sur la dialectique hégélienne de l’Aufhebung que nous rendons par le terme de «sursomption » comme antonyme de la subsomption kantienne. La subsomption kantienne signifiait essentiellement la mise sous tutelle du particulier ou du singulier. La médiation dialectique s’opère chez Hegel par la double négation (« doppelte Negation ») qui va de la première assertion, Bachelard dit formation, à une nouvelle assertion qui n’est pas, en vertu de la sursomption qui nie et conserve à la fois, un retour à la première formation mais l’avènement ou e surgissement d’une nouvelle formation. On peut formaliser ce mouvement ce mouvement dialectique par la formule ¬¬ a → b > a. […] (GAUTHIER, 2013, p. 352).


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