FUNDAMENTOS CIENTÍFICOS DA DISTRIBUIÇÃO DE RENDA NO BRASIL ANÁLISE À LUZ DA TEORIA DE JOHN RAWLS E THOMAS PIKETTY

SCIENTIFIC FUNDAMENTALS OF INCOME DISTRIBUTION IN BRAZIL ANALYSIS IN LIGHT OF THE THEORY OF JOHN RAWLS AND THOMAS PIKETTY

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8347175


Natércia Sampaio Siqueira1
Manuel Gonçalves de Sousa Junior2


RESUMO

Programas de distribuição de renda em geral tem caráter político, ancoram-se no assistencialismo social. Decisões políticas cedem espaço às mais variadas críticas, em sua maioria, fundamentada nas regras do liberalismo econômico puro, bandeira histórica do conservadorismo de direita no Brasil. Determinados setores da política nacional, alegam que o Sul e Sudeste geram riqueza para ser distribuída no Norte e no Nordeste brasileiro, regiões que mais sofrem com a pobreza, a miséria e a desigualdade econômica. Obstante, esse estudo propõe analisar, a partir da teoria da “Justiça como equidade” de John Rawls e a “igualdade econômica” de Thomas Piketty, se existe fundamentação científica da política de distribuição de renda no Brasil. O corte doutrinário terá como parâmetro, os pontos de vista: econômico, antropológico e sociológico. A metodologia utilizada é da pesquisa bibliográfica exploratória, em livros, teses e dissertações e, dados oficiais divulgados pelo IBGE. Ao final, concluiu-se que os fundamentos científicos analisados asseguram a legitimidade técnica dos programas de distribuição de renda para além de uma base exclusivamente política. A distribuição de renda se constitui em um instrumento eficiente de diminuição da pobreza e a redução das desigualdades regionais no Brasil.

Palavras-chaves: Distribuição de Renda. Fundamentos científicos. Desigualdade. Justiça equitativa. Igualdade econômica. 

ABSTRACT

Income distribution programs in general have a political character, anchored in social assistance. Political decisions give way to the most varied criticisms, most of them based on the rules of pure economic liberalism, the historical flag of right-wing conservatism in Brazil. Certain sectors of national politics claim that the South and Southeast generate wealth to be distributed in the North and Northeast of Brazil, regions that suffer most from poverty, misery and economic inequality. However, this study proposes to analyze, based on the theory of “Justice as equity” by John Rawls and “economic equality” by Thomas Piketty, whether there is a scientific basis for the income distribution policy in Brazil. The doctrinal cut will have as a parameter, the points of view: economic, anthropological and sociological. The methodology used is exploratory bibliographical research, in books, theses and dissertations, and official data released by the IBGE. In the end, it was concluded that the analyzed scientific foundations ensure the technical legitimacy of income distribution programs beyond an exclusively political basis. Income distribution constitutes an efficient instrument for reducing poverty and reducing regional inequalities in Brazil.

Keywords: Income Distribution. Scientific foundations. Inequality. Equitable justice. Economic equality.

Sumário: 1. Introdução; 2. “Retratos” da desigualdade (Ceará-Brasil); 2.1 A desigualdade em números e gráficos; 2.2 A desigualdade no Nordeste brasileiro; 3. John Rawls e Thomas Piketty – Distribuição de renda no Brasil; 3.1 John Rawls e a justiça como equidade; 3.2 Thomas Piketty e a igualdade econômica; 4.0 Fundamentos científicos da distribuição de renda no Brasil; 5.0 Considerações finais; 6.0 Referências;

INTRODUÇÃO

Um dos principais problemas que impedem o desenvolvimento social de um país é a desigualdade econômica. Duas teorias tentam orientar o enfrentamento a esse fenômeno: a) a liberal clássica, defendida por Joseph Shumpeter, Adam Smith, Stuart Mill, Milton Friedman e Henry Kissinger, na qual o desenvolvimento social e a busca por igualdade econômica deve ser iniciativa do próprio indivíduo, sem ou com a mínima intervenção do Estado. O crescimento da economia é visto como o único meio capaz de resolver as mazelas sociais. A segunda, b) a do capitalismo democrático, assinada por John Rawls, Amartya Sen, Martha Nussbaum, Thomas Piketty e David Runciman, os quais defendem que, o crescimento econômico puro não é sustentável, ele deve vir acompanhado do desenvolvimento social com relevante participação do Estado. 

Nesta esteira, a pesquisa adota a segunda teoria, pois acredita que seja necessária a ação do Estado para reduzir a desigualdade econômica, reflexo das altas taxas de concentração de renda no Brasil e, que os problemas sociais além de não ser uma atribuição do mercado, o Estado moderno é legitimado para garantir uma igualdade social e econômica. Os programas de transferências de rendas às classes pobres da população a partir da segunda metade da década de 1990, não dispuseram de mecanismos eficientes na redução da desigualdade social. Foram ampliados e melhorados do ponto de vista de sua eficiência, a partir de 2003, com redução gradativa da desigualdade econômica medida pelo índice de Gini. Entretanto, a partir de 2015, esse índice voltou a indicar que a desigualdade econômica no Brasil está em linha de crescimento.

Programas de distribuição de renda em geral tem caráter político, ancoram-se no assistencialismo social. Decisões políticas cedem espaços às mais variadas críticas baseadas nas regras do liberalismo econômico puro, bandeira histórica do conservadorismo de direita no Brasil. Em uma dessas narrativas, setores políticos alegam que o Sul e Sudeste geram riquezas para depois ser distribuída no Norte e no Nordeste brasileiro, regiões que mais sofrem com a pobreza, a miséria e a desigualdade econômica, sendo, portanto, as que reúnem os maiores números de beneficiários dos programas de distribuição de renda. Obstante, esse estudo propõe analisar se, a partir da teoria da “Justiça como equidade” de John Rawls e a “igualdade econômica” de Thomas Piketty, existe fundamentação científica da política de distribuição de renda no Brasil. O corte doutrinário terá como parâmetros, os pontos de vista: econômico, antropológico e sociológico. A metodologia utilizada é da pesquisa bibliográfica exploratória, em livros, teses e dissertações e, dados oficiais divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.

O panorama das desigualdades no Brasil, na região Nordeste e no Estado do Ceará representado nos gráficos, foi com base nas rendas per captas publicados pelo IBGE, por intermédio da última Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios –  PNAD contínua, o estudo faz a comparação entre as rendas sobre o capital, aquelas oriundas do trabalho assalariado e as rendas distribuídas por meio de programas como o “Bolsa Família e o “ Benefício de Prestação Continuada”. As ilustrações gráficas demonstram, na figura 1, o comportamento da curva da desigualdade no Brasil medida por intermédio do índice de Gini, a figura 2, apresenta o quanto é irregular a distribuição de renda no país, tendo por base o conjunto de todas as fontes e, a figura 3, indica o comportamento da renda média entre as famílias beneficiárias dos programas de distribuição de renda – Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada, em comparação com aquelas famílias que não participam dessa renda. Em seguida será feita a análise doutrinária da concepção da desigualdade econômica, como ela surgiu, qual sua origem e os meios eficazes para combatê-la.

Autores como Amartya Sen, referem-se aos bens primários como um conjunto de funcionalidades, com as quais uma pessoa desfruta de boa nutrição, corpo e mente saudável, auto respeito, iniciativa de organização política e social, etc., e que já representam a efetividade do bem-estar social. O autor elege as liberdades como meios para se buscar a efetividade desse estado de bem-estar. Entenda-se, que a efetividade desse estado de bem-estar social, é a mudança de uma situação X para uma situação Y melhor que a anterior, demonstrando que houve desenvolvimento socioeconômico, que é o termo afeto a temática proposta por esta pesquisa. Para Piketty, a desigualdade “não é econômica e nem tecnológica, ela é política e ideológica”, assim, o autor propõe que o Estado seja o único incumbido de intervir na economia para reduzir a desigualdade econômica, por intermédio do que ele próprio chama de “progressividade fiscal”, ou seja, a taxação elevada da riqueza, sobre o patrimônio e sobre a herança. Defende que “a propriedade deve ser limitada e transitória” e que sua função social, deve estar focada no fomento à igualdade econômica.

Uma adaptação da teoria de Rawls, a distribuição de bens primários pode ser feita, por meio de políticas auxiliares, necessárias para manter a eficiência da política de distribuição de renda principal, com as garantias das liberdades e a geração equitativa de oportunidades, que permitam o desenvolvimento individual de cada pessoa ou família beneficiária do programa. A contribuição teórica de Piketty, exalta a progressividade tributária, no sentido de afirmar que a igualdade econômica não é conseguida sem que haja uma maneira justa e eficiente de tributar a riqueza – lucros e dividendos; bens/heranças. O enfrentamento à desigualdade econômica como fruto de uma ideologia política liberal, exige que as democracias ocidentais passem, na prática, a exercerem uma governança na qual o poder é dividido equitativamente entre todas as classes sociais.

Ao final, concluiu-se que os fundamentos científicos analisados asseguram a legitimidade técnica dos programas de distribuição de renda para além de uma base exclusiva e tradicionalmente política. A distribuição de renda, ampara-se de forma doutrinária, à justiça como equidade de John Rawls e tem como meta principal a igualdade econômica de Thomas Piketty. Se constitui em um instrumento eficiente de diminuição da pobreza e a redução das desigualdades sociais no Brasil. Como sinônimo de justiça social, os bens são resgatados na proporção das possibilidades de quem os detém e distribuídos na proporção das necessidades reais de quem precisa, visando a um justo e equitativo Estado de bem-estar social, de respeito às liberdades e apoio ao exercício da autonomia social de forma ampla.

2. “RETRATOS” DA DESIGUALDADE (CEARÁ-BRASIL)

A partir do fim da segunda guerra mundial com o advento dos direitos sociais, passou-se a medir a desigualdade econômica no país. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2020), elaborou amplo relatório sobre a concentração de renda, a renda per capta e os efeitos da inflação dos preços na vida dos brasileiros mais pobres, e indicou a desigualdade econômica como um dos principais obstáculos ao desenvolvimento social desde a década de 1960. Em uma dessas descobertas, Costa (1977), relatou como a renda pessoal medida pelo tipo da ocupação, com salários fixos ou variáveis, se configurou como desigual diante do crescimento econômico experimentado nos anos 60. 

O autor procura antes acentuar qual e em que conceito melhor se adequa o termo desigualdade, ele adota, desse ponto de vista, três tipos de desigualdades: a econômica, a social e a política. Embora seja possível encontrar conceitos distintos para cada tipo de desigualdade, a política e a social são, na prática, restringidas pelos níveis de desigualdade econômica. “Nosso interesse sobre a desigualdade social ou política não é profundo; mas, não podemos negar que a desigualdade econômica impõe certas restrições à desigualdade política e ou social dos indivíduos” (COSTA, 1977, p. 7).

Costa (19977) analisou a desigualdade econômica medida pelos tipos de ocupação, de um modo empírico, se constitui a ocupação como um dos principais meios de auferir renda. Apesar de ele próprio afirmar que “esta vasta interação entre vários tipos de desigualdade pode ser uma fonte de obstáculos analíticos, confusões e mal-entendidos, principalmente em relação à investigação empírica. (COSTA, 1977, p. 7). 

Sem a ocupação não é possível identificar cenários de desigualdade, esta deve vir em primeiro lugar, a qualificação profissional ou níveis de educação não importam exatamente em assunção de renda, mas sim, na sua quantidade. Naquele contexto, o autor percebeu que a qualificação ou a educação profissional eram secundários para um indivíduo participar da pesquisa sobre a desigualdade de renda, no caso, somente a renda era relevante, não era relevante as condições com a qual essa renda era auferida. “A habilidade sem a ocupação, na maior parte das vezes, é um atributo sem valor, pelo menos em termos de renda”. (COSTA, 1977, p. 9).

A natureza da ocupação, mesmo sem ser a única fonte da desigualdade, infere diretamente nesta, pela diferenciação dos salários vistos como uma função dos mercados ou ainda determinados pelo montante da renda em países desenvolvidos economicamente. A realização do “Censo Demográfico” no Brasil em 1960, permitiu mensurar a desigualdade de renda e compreender de forma analítica, suas causas e efeitos, bem como identificar como ela pode estar dissociada do crescimento. 

Mais recente, Juarez de Paula (2008), ressalta o paradoxo que se pereniza na narrativa da política nacional – “O Brasil é um país rico, mas o povo brasileiro é pobre. Somos campeões mundiais em concentração de renda e desigualdade social” (PAULA, 2008, p. 14). Para o autor, “A pobreza é o maior desafio a ser enfrentado pelo Brasil neste início de século e de milênio” (PAULA, 2008, p. 14), e só existe uma forma definitivamente de combater a pobreza e a miséria: “promovendo o desenvolvimento”. (PAULA, 2008, p. 14). Obstante, com o propósito de aperfeiçoar os mecanismos de enfrentamento a essa grave injustiça social, faz-se necessário a utilização de meios adequados e eficientes para a coleta de dados sobre a desigualdade econômica no Brasil, de forma mais precisa e assertiva. 

2.1. A desigualdade em números e gráficos 

Dois sistemas estatísticos de informação, analisados por meio de dados percentuais e índices numéricos, demonstram a realidade econômica e social no Brasil. Um deles é a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios – PNAD instituída a partir de 2011, realizada anualmente e os dados divulgados no início do ano subsequente. Só a partir de 2016, passou a ser mensal, refletindo os dados dos últimos três meses, sendo, então referendada, como PNAD contínua (PNADc). Esse sistema, juntamente com o módulo utilizado também pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, obtido do rendimento de todas as fontes (trabalho, pensão e aposentadorias, rendimentos de capital, aluguéis e de programas de transferência de renda), é o responsável pelo fornecimento de dados para a produção do índice de Gini, principal dado estatístico que mede a desigualdade/concentração de renda no país. A PNADc é realizada, analisada e divulgada pelo IBGE.

O outro sistema com relevância na divulgação dos índices sociais e econômicos no Brasil, é o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, órgão internacional que desenvolve, prioritariamente em países de economias em em subdesenvolvimento ou emergentes, pesquisas direcionadas para a identificação dos níveis de qualidade e efetivação das políticas públicas, concernentes ao bem-estar social da pessoa. Esse sistema é o principal fornecedor de dados para a produção e análise do Índice de Desenvolvimento Humano – IDH, de cada país e em comparação com outras Nações, e ainda de Região, Estado ou Município.

Como observado, o sistema PNUD das nações Unidas, forma estatística para a definição do IDH, e a PNADc para o índice de Gini, principal indicador da desigualdade econômica no Brasil e, portanto, o foco de análise para essa pesquisa. A PNADc fornece dados para a demonstração dos níveis de desigualdade econômica por intermédio da renda “per capta”, ou seja, revela os patamares de desigualdade econômica, que influi diretamente nos níveis de desenvolvimento social. É ocasionada pela concentração de renda, que no Brasil, tem aumentado nos últimos 8 anos. Por sua vez,  a distribuição ou transferência de renda, feita principalmente por intermédio do Programa “Bolsa Família” destinados às pessoas de baixa renda e  do Benefício de Prestação Continuada – BPC, distribuídos a aqueles pobres que não se enquadram nos requisitos de aposentadorias, não dispõe de  capacidade laborativa e nem meios próprios de se manter. 

Para compreender o Índice de Gini na análise da figura 01, o próprio IBGE (2020) traz a definição do que seria esse índice: “Um dos principais indicadores de medida da desigualdade de renda, o índice de Gini varia de zero a um. Quanto mais próximo de zero, melhor é a distribuição da riqueza, ou seja, a igualdade econômica de um país e quanto mais perto de um, mais desigual é a economia” (IBGE, 2018). Em relatório divulgado em maio de 2020, a figura 01 mostra que a concentração de renda per capita, medida pelo índice de Gini, mostrou estabilidade ficando na casa de 0,543 no Brasil, em 2019, na comparação com o ano anterior que foi de 0,545. Houve redução em todas as regiões, com exceção do Nordeste, onde a desigualdade aumentou de 0,545 para 0,559.  Nota-se, pois, que a desigualdade econômica aumentou em 2019 com relação a 2018. 

O reflexo disso é o empobrecimento das famílias consideradas de classe média baixa, que ascenderam a esta posição em meados de 2010, evidenciando o enriquecimento da classe dos mais abastados. Este fenômeno gera desequilíbrios sociais graves, porque reduz o poder de compra da massa empobrecida, aumentam as demandas por serviços públicos e os requerimentos por benefícios sociais, além de aumentar os índices de analfabetismo e de violência.

Embora a concentração de renda tenha caído em quase todas as grandes regiões brasileiras, “sendo o menor índice no Sul (0,467) e a maior redução no Norte (de 0,551 para 0,537), a alta da desigualdade econômica no Nordeste, que passou de 0,545 para 0,559, contribuiu com a estabilidade do índice de Gini em 2019” (IBGE, 2020). Na análise conclusiva do gráfico da figura 01, Alessandra Scalioni, observa ainda que a concentração de renda registrada em 2019 é a segunda maior desde o início da série histórica, em 2012. Porém, em 2018, o índice alcançou a pior indicação de concentração de renda no Brasil. A analista acrescenta que: “Entre 2012 e 2015 houve uma tendência de redução no indicador (de 0,540 para 0,524), que foi revertida a partir de 2016, quando o Gini aumentou para 0,537, chegando ao maior valor da série em 2018 (0,545). O melhor resultado (0,524) foi registrado em 2015” (IBGE, 2020).

Figura 01

Rendimento domiciliar per capta – Índice de Gini

Fonte: PNADc (2020) – Agência IBGE

Além do índice de Gini, a renda mensal por membros no domicílio familiar é outro indicativo da desigualdade econômica no País. A pesquisa revela (figura 02) que em 2019, ela cresceu para 294,4 bilhões, sendo que a fatia dos 10% mais pobre possuía 0,8% da massa, enquanto os 10% com os maiores rendimentos concentravam 42,9%. Os rendimentos médios mensais dessa faixa dos 10% mais ricos superou inclusive a proporção detida por 80% da população, cujo total de rendimentos chegou aos 41,5%. 

Figura 02

Massa do rendimento domiciliar – distribuição por quintos de rendimentos

Fonte: PNADc (2020) – Agência IBGE

Os 20% de maiores rendimentos (cor preta), preenchem a metade da figura circular, enquanto os 20% menores (cor amarela), ocupam a menor parcela, demonstrando que quanto maior a renda, maior será o grau de desigualdade. A renda obtida decorrente do emprego formal também indica a disparidade entre ricos e pobres no Brasil. Ainda segundo a pesquisa, a renda da população 1% mais rica, foi 33,7 vezes maior que a da metade mais pobre em 2019. Isso significa que a parcela de trabalhadores com a maior renda arrecadou R$ 28.659 por mês, em média, enquanto os 50% menos favorecidos ganharam R$ 850.

Em 2018, essa diferença acentuou-se um pouco, passando para 33,8.  Em 2020 no Brasil, cerca de 12,3 milhões de desempregados, 38 milhões que estão na informalidade e 4,7 milhões de “desalentados”, aqueles que desistiram de procurar emprego. A renda que deixa de ser computada por ausência de dados da economia informal, somada à inexistência de renda pelos desempregados, principalmente jovens, poderia revelar ainda mais que a situação de desigualdade é bem mais profunda que a demonstrada na pesquisa PNADc de 2020.

Para Sônia Rocha (2006), há uma estreita relação entre desigualdade econômica, distribuição de renda e renda per capta. Em sua pesquisa sobre a relação entre desigualdade e pobreza, faz referência à três grupos de países: O primeiro grupo formado por aqueles cuja renda nacional é insuficiente para garantir o mínimo considerável a cada um de seus cidadãos. O segundo, formado por países ricos, onde a renda per capta é elevada e as desigualdades são compensadas por transferências de renda e a universalização do acesso a serviços públicos de qualidade. E por fim, um terceiro grupo de países com economias em desenvolvimento em que a renda nacional é suficiente para garantir o mínimo de sobrevivência a todos, porém, marcados por uma profunda má distribuição, com reflexo na alta concentração de renda. 

Segundo Rocha (2006), é no terceiro grupo que o Brasil se enquadra: “O Brasil se classifica neste terceiro grupo. Com renda per capta de R$ 3.500,00 no ano de 2000 – portanto, bem acima de qualquer valor que possa ser associado à abaixo da linha de pobreza. A incidência de pobreza absoluta no Brasil, decorre da forte desigualdade na distribuição do rendimento”. (ROCHA, 2006, p. 31). Kageyama e Hoffmann (2006), chama a atenção para as limitações das pesquisas sobre desigualdade econômica, mas lembra que em domicilio de pobre, a única renda existente é relativa aos programas de distribuição de renda como o “Bolsa Família” e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), portanto não existe complexidade para a captura de informações sobre a renda per capta. Segundo o autor, “ para os domicílios relativamente pobres, esse rendimento é constituído, essencialmente, por transferências desse tipo, como o Bolsa Família e o BPC (Benefício de Prestação Continuada) ” (KAGEYAMA; HOFFMANN, 2006, p.31).

Para baixar o índice de Gini, ou seja, aumentar os níveis de igualdade econômica, a agenda da economia global dos países ocidentais, com regimes democráticos defendem a utilização de políticas de distribuição ou transferência de renda ou ainda mecanismos de formação de uma renda básica (geração de trabalho/ocupação), em patamares mínimos de sobrevivência. Sem comparação com o “New Deal”, programa norte americano de distribuição de renda à famílias pobres para amenizar os efeitos da crise de 1929, os programas utilizados no Brasil como o “Bolsa Família”, nos moldes em que foi ampliado e aperfeiçoado em 2002, tem como objetivo reduzir a pobreza à patamares dignos de sobrevivência humana por intermédio de melhoria da renda per capta no domicílio familiar, que uma vez detectada, possa superar o patamar de renda mínima exigido pelo programa. 

O IBGE (2020) mostra que a cada ano, cai o número de beneficiários do “Bolsa Família”, em 2019, 13,5% dos domicílios brasileiros foram beneficiados com os recursos, contra 15,9% em 2012, sendo que os motivos dessa redução, não é exatamente, a melhoria da renda das pessoas extremamente pobres, mas, às políticas do Governo Federal focadas na redução dos gastos públicos e cumprimento de meta fiscal em tempos de crise. O instituto aponta ainda que entre 2012 e 2019, o Nordeste foi a região que sofreu a maior redução de percentual de domicílios com beneficiários do programa, chegando a 6,1%. Somente em 2019, as regiões Norte e Nordeste somaram juntas os maiores percentuais, atingindo cerca de 52,6% de famílias atendidas pelo programa, contra apenas 4,7% de famílias na Região Sul. 

Outro dado relevante apontado na pesquisa, é a redução da parcela distribuída por beneficiários ou rendimento mensal per capta, que em 2019, subiu de R$ 341 para R$ 352, sendo que em 2014 esse valor era de R$ 398. Alessandra Scalioni observa ainda a enorme diferença entre a renda de quem recebe esse benefício (R$ 324,00) em comparação com o rendimento dos que não são beneficiários do programa (R$ 1.489,00). “Isso mostra que o Bolsa Família de fato é voltado para a parcela mais pobre da população brasileira” (IBGE, 2020).

O Benefício de Prestação Continuada (BPC), instituído pela Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, corresponde a um salário mínimo pago mensalmente, a 3,7% das famílias com idosos e deficientes físicos que comprovarem baixa renda em 2019. Com relação a 2012, cujo percentual de famílias beneficiadas foi de 2,6%.  A renda média dos beneficiários do programa foi de R$ 696,00, menor que o salário mínimo de R$ 998,00, em vigor em 2019. O BPC não revela efetiva contribuição para a redução das desigualdades econômicas, permite apenas a sobrevivência dos beneficiários que permanecem no limiar de extrema pobreza, com renda média per capta inferior a ¼ do salário mínimo.

Figura 03

Rendimento médio domiciliar – per capta (2020)

Fonte: Agência IBGE – Diretoria de pesquisa (2020)

A partir desse ponto, a análise sobre a desigualdade econômica ficará restrita mais a região Nordeste e em especial o Estado do Ceará, esse afunilamento tem o propósito de demonstrar que índices regionais e locais, se diferenciam dos índices nacionais, de forma positiva e às vezes negativa, e possibilitam uma melhor captação da realidade econômica e social das famílias. Serão analisados sob os aspectos da desigualdade econômica, dos efeitos dos programas de distribuição/transferência e a sua contribuição para o desenvolvimento como um todo. Vale lembrar ainda que, o objetivo central das políticas de distribuição de renda, consiste na promoção do desenvolvimento, buscando a igualdade econômica e um rateio mais equitativo da justiça em geral.

2.2 A desigualdade no Nordeste brasileiro

O IBGE (2020) mostra que no ano anterior (figura 03), em nível nacional o índice de Gini do rendimento médio mensal real domiciliar per capita foi estimado em 0,543. Entre 2012 e 2015 houve redução do índice de Gini do rendimento domiciliar per capita, de 0,540 para 0,524, que foi revertida a partir de 2016, quando o índice aumentou para 0,537, chegando ao maior valor da série em 2018, passando para 0,545. Numa análise regional, o Nordeste entre 2018 e 2019, foi a única região onde o índice cresceu. Registrando neste último ano, ao patamar de 0,559. 

A região Sul apresentou o menor índice, na casa de 0,467 e a Região Norte apresentou a maior redução no período, descendo de 0,551 para 0,537. O Índice ainda revela que na região Sudeste, a faixa de renda per capta, é quase o dobro do Nordeste, extenuante a larga concentração de renda e disparidade regional, na contramão do que determina o Art. 3º. Inciso III da Carta de 1988.

Figura 04

Rendimento médio domiciliar per capta – índice de Gini por regiões 

Fonte: PNADc (2020) – Agência IBGE  

Com relação ao “Bolsa Família”, a região Nordeste, era atendida em 2019, com 27,6% dos domicílios com beneficiários do programa, sendo, dentre todas as regiões, o maior percentual. Porém, foi também a que sofreu a maior redução, em torno de 6,1% dos domicílios com beneficiários entre 2012 e 2019. Ainda segundo o IBGE (2020), o outro programa de distribuição de renda considerado na pesquisa, o BPC, era recebido por 3,7% dos domicílios do país em 2019, percentual praticamente igual ao de 2018 que foi de 3,6%, contra 2,6% registrado em 2012, ano em que o IBGE (2020) passou a divulgar a PNAD contínua. 

No primeiro trimestre de 2020, o Nordeste registrou 5,6% de domicílios com beneficiários do benefício de Prestação Continuada (BPC), atrás somente da Região Norte com 6,0%. Mas, entre 2012 e 2019, houve aumento na proporção de domicílios com beneficiários do BPC em todas as regiões, sobretudo no Norte, onde a pesquisa passou a atingir um número bem maior de municípios. A dependência de investimentos públicos do Governo Federal, situação geográfica que determina clima seco e baixa pluviosidade, torna ineficiente a atividade do agronegócio e outros problemas sociais como analfabetismo e elevados índice de pobreza, faz com que a região Nordeste, historicamente, apresenta patamares econômicos, como PIB (figura 05), índice de Gini e IDH, abaixo da média Nacional, isso sendo a segunda região mais populosa do Brasil, com pouco mais de 55 milhões de pessoas. 

O PIB da Região Nordeste em comparação com o PIB nacional tem crescimento médio inferior  a 1/3 da média nacional. O reflexo deste cenário de estagnação econômica, é percebido diretamente nos índices sociais. Em síntese, o panorama atual da região Nordeste, cujos dados econômicos em 2018, divulgados pelo IBGE, revelaram um crescimento econômico que, se comparado aos de outras regiões brasileiras, o Nordeste não tem conseguido encontrar o caminho para o desenvolvimento sustentável em pleno século XXI. Com o Produto Interno Bruto que não chega a 15% do PIB nacional (Figura 05), sendo a segunda região mais populosa e segunda em extensão territorial. O Nordeste é dependente de financiamentos do Governo Federal, insuficiente e com atraso devido a burocracia para a liberação dos recursos, dificulta governadores e prefeitos planejar e estabelecer metas desenvolvimentistas.

Figura 05

Produto Interno Bruto – PIB (Nordeste – Brasil)

Fonte: IBGE/Tendências Consultoria (2020)

Sem autonomia financeira, a Região que tem o 3º maior parque industrial do país, permite a ascendência do capital privado e da casta empresarial, nesse contexto, o Nordeste apresenta o maior Índice de Gini (0,559 em 2017), ou seja, a maior concentração de renda dentre as macrorregiões brasileiras. A Figura 05 mostra ainda que, de 2010 a 2018 o PIB Nordeste cresceu em média 6,12%, contra apenas 4.5% do PIB nacional. O crescimento econômico do Nordeste em relação a economia nacional, é reflexo também das transferências por meio dos programas de distribuição de renda, sendo a Região Nordeste, a que tem o maior número de domicílios com beneficiários dos programas de transferência de renda, em contrapartida, o índice de Gini é maior do que o nacional e de todas as outras macrorregiões, ou seja, apesar do crescimento econômico, o Nordeste tem a pior desigualdade do país. 

Essa incongruência, demonstra dois fatos importantes e não menos absurdos: o primeiro que a transferência de renda, em valores insuficiente, não está reduzindo a desigualdade e, segundo, o mais grave, evidencia que a desigualdade econômica não caminha junto com o crescimento, e essa assincronia revela quão degradante é a distribuição de renda no Brasil. Considerada a terceira economia da região Nordeste, o Ceará é um dos 9 estados da região que mais tem feito para diminuir os efeitos trágicos da desigualdade sócio economia, apesar de ter um histórico socioeconômico marcado pelo subdesenvolvimento, pela má distribuição das chuvas e pela segregação de investimento que acentua um largo fosso entre zona urbana e zona rural. Períodos longos de seca na maior parte do solo cearense é tido como um fator natural que patrocina a escassez de alimentos e pobreza. A falta de chuvas, não permite  que a atividade agrícola promova o mínimo de sobrevivência das famílias na zona rural.

Políticas públicas com intuito de amenizar as consequências da desigualdade econômica e social, são dirigidas em sua maioria para as comunidades urbanas, regiões metropolitanas e periferias das consideradas metrópoles regionais, verdadeiros conglomerados de indigência, cuja origem surge exatamente pelo abandono das famílias rurais que migraram para as áreas urbanas, à procura de meios de sobrevivência. Lima Neto (2009), diz que a baixa mobilidade dos indicadores sociais, principalmente na zona rural cearense, nas últimas décadas, é fruto histórico da desigual posse da terra, das políticas públicas limitadas, do sistema de exploração equivocado, da instabilidade nas relações de trabalho e das condições climáticas específicas. 

De 1992 a 2004, o índice de Gini no Ceará permaneceu estável, porém num patamar considerado alto, de 0,60. Segundo o autor, em 2004, Fortaleza apresentava forte concentração de renda, com 43% da população na extrema pobreza. Pontes et al (2007), ao se referir a desigualdade setorial, entre urbano e rural, assevera que o Ceará oferece um quadro preocupante em matéria de desigualdades, observadas entre a capital e o interior, com grande desvantagem para este último. O autor afirma que, em 2004 a indústria estava fortemente concentrada na Região Metropolitana de Fortaleza – RMF, especificamente entre Caucaia, Maracanaú e Horizonte, esta região exibe uma renda média mensal de cerca de R$ 260,00, enquanto o interior registra R$ 115,00. Se comparado o meio rural e o urbano, acentua-se mais ainda a desigualdade, R$ 162,00 para a zona urbana contra apenas R$ 74,00 para a zona rural. 

Políticas públicas devem estar focadas na descentralização das indústrias e orientadas a encontrar meios de disseminá-las pelo o interior como uma das formas de promover o desenvolvimento, o aumento da atividade econômica local, é imprescindível para o combate à pobreza, por intermédio de um melhor equacionamento da renda per capta. Entretanto, “o desenvolvimento depende de uma mudança de modelos mentais e de atitudes, depende, portanto, do despertar de uma cultura empreendedora” (PAULA, 2008, p. 9). 

Para Rocha (2006), é comum nas economias modernas, transferir rendas como forma indireta da satisfação das necessidades básicas dos indivíduos em uma comunidade, isto quando trata-se de estabelecer um custo associado às necessidades médias, o que ela chama de “trocas Mercantis”. Porém, quando se trata especificamente de satisfazer necessidades nutricionais, esses valores indicam a linha de indigência ou de extrema pobreza. Relatório do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará – IPECE (2018), sobre renda, pobreza e desigualdade, expõe a realidade econômica do Estado, nos anos de 2016 e 2017, com ênfase na renda per capta média mensal do cearense, na análise dos níveis de extrema pobreza e na desigualdade socioeconômica. Os índices são apresentados em comparação com dados referentes à região Nordeste e ao Brasil, no mesmo período. 

Os valores analisados por Rocha (2006), diz respeito à atribuição monetária dada à renda per capta média mensal, que segundo o IPECE (2018), o Ceará embora tenha ficado abaixo dos valores regionais e nacionais, aumentou esse índice em 4,7%, passando de R$ 788,00 em 2016 para R$ 825,00 em 2017. O relatório destaca a linha de extrema pobreza ou indigência, aquelas pessoas que sobrevivem com renda per capta familiar de R$ 70,00 mensais, isso em 2011, a partir daí, esse valor vem sendo corrigido pelo INPC, e em 2019, com valor atualizado de R$ 89,00, o Ceará ocupou o 4º lugar nacional em quantidade de pessoas vivendo na linha de extrema pobreza. Só em 2019, mais de 31 mil pessoas se juntaram a um milhão de famílias que vivem nestas condições. 

A desigualdade econômica provocada, dentre outros fatores, pela alta concentração de renda no Ceará, é vista como o grande desafio das gestões públicas locais. Apesar de, nos anos de 2016 e 2017, como já visto, o Estado aumentou a renda média mensal do cearense (de 789,00 para 825,00) e, reduziu o percentual de pessoas em situação de pobreza (de 20,1% para 19,9%), o índice de Gini, que mede a desigualdade econômica entre as pessoas ou a concentração de renda, aumentou de 0,553 para 0,560, sendo o maior dentre todas as outras unidades da federação. Lembrando que quanto mais se aproxima de 1, o índice de Gini indica o maior grau de desigualdade ou elevada taxa de concentração de renda.

Uma compreensão sob ares neoliberalista da desigualdade econômica, transfere o raciocínio da ciência para o campo da subjetividade humana, cuja aderência se revela mais própria com relação ao desenvolvimento das capacidades, habilidades ou ainda de atribuir ao homem a iniciativa própria de realizar ações justas, sem uma eventual intervenção do Estado. Entretanto, a história revela que o enfrentamento a esse modelo de estratificação social deve ser uma ação bilateral de forças – entre o Estado brasileiro (o elemento político) e as organizações de mercado (o elemento econômico), assim, o enfrentamento à desigualdade social, por não mais apresentar natureza exclusivamente política, torna-se relevante a análise da fundamentação teórica científica dos programas de distribuição de renda no Brasil. 

A ideologia liberal atribui ao mercado a solução dos problemas sociais por meio exclusivo do crescimento dos índices macroeconômicos (PIB, Superávits, Renda nacional, etc.), porém, em pleno século XXI, as expectativas de que os mercados globais resolveria os problemas sociais reduziram-se à desesperança e às frustrações. O capítulo seguinte aborda a justiça como equidade de John Rawls e o estudo de Thomas Piketty, no qual afirma que, a desigualdade econômica é utilizada como argumento ideológico pelos governos e pelo mercado, tão somente para justificar a desigualdade como um fenômeno natural dos países que adotam economias de mercado. 

A intenção dessa análise teórica, tem o sentido de identificar os meios pelos quais a desigualdade se processa e como ela deve ser melhor combatida, a partir daí, definir elementos de uma possível fundamentação científica econômica, antropológica e sociológica dos programas de distribuição de renda no Brasil, para além de um parâmetro exclusivamente político. Rejeita-se qualquer forma de abolição da cientificação da política, entende-se apenas que ela, por si só, não reúne a segurança técnica necessária a solidificação dos programas de distribuição de renda como uma política do Estado brasileiro e não somente de governo. 

3.  JOHN RAWLS E THOMAS PIKETTY – DISTRIBUIÇÃO DE RENDA NO BRASIL 

O desafio aqui consiste em identificar as contribuições científicas das teorias: “justiça como equidade” de Rawls (2000) e a “igualdade econômica” defendida por Piketty, para a construção da metodologia dos programas de transferência de renda no Brasil, com foco na redução das desigualdades econômicas e na análise dos impactos dessa mesma desigualdade, no desenvolvimento social. Rawls (1997) defende que sua teoria é política e não filosófica, demonstra a ideia que ela se aplica à adequação pretendida, vez que a abordagem teórica tem o escopo de compreender o que realmente causa as desigualdades sociais e que, uma vez compreendida, abra caminhos para a promoção de estratégias de combate aos seus efeitos.

Piketty (2015), descreve sua narrativa segundo uma origem econômica dos fenômenos que causam as desigualdades, tecendo críticas ao modelo de acumulação de riquezas, provocados pelo o sistema capitalista liberal, responsável pela segregação histórica da sociedade, destacadamente entre ricos e pobres. Enquanto Rawls (2000) prega que o ajuste das desigualdades sociais e econômicas deve antes ser o exercício da justiça como equidade, com distribuição do que ele próprio chama de bens primários como meios para se atingir os fins (com relativas discordâncias de Sen). 

Piketty (2015) defende a tese fiscal dos impostos progressivos sobre as rendas e sobre as heranças, ao contrário de uma tributação uniforme praticada atualmente nos países subdesenvolvidos. A progressão fiscal era eficiente quando utilizada por alguns países no século passado, porém, não tem tido os mesmos resultados como mecanismo de combate às desigualdades econômicas no início deste século, segundo o autor, isso se deve à concorrência fiscal globalizada. 

Para Piketty, (2015) a progressividade fiscal baseada na tributação sobre a renda das famílias mais ricas, indicaria justiça tributária de fomento à igualdade econômica, reduziria o peso dos impostos sobre o consumo, o que prejudica ferozmente as classes mais pobres. Caprara (2017) assegura que a ideia de taxação uniforme de impostos é retrógrada e injusta, não representa medida de redução das desigualdades, pelo contrário, essa deriva da concentração de riquezas decorrente desse mesmo processo, não condiz com as ideias de justiça social. Com as desigualdades sociais e econômicas acirradas, surge maior dificuldade para o fortalecimento das democracias contemporâneas, gerando efeito dominó, nocivo e destrutivo de qualquer regime de governo. Piketty (2014) ainda lembra, que essa forma de tributação (taxação uniforme) possibilita que o capital define, de modo automático, patamares de desigualdade, impondo às camadas mais baixas da população, fome e miséria.

Representada pelo segundo princípio, à justiça como equidade de Rawls determina uma espécie de rateio dos benefícios aos menos privilegiados de forma equitativa segundo uma graduação inclusive entre os mais pobres. Tal princípio, não se contrapõe a ideia econômica de justiça social de Piketty (2014) fundamentada na equalização das rendas. Ao contrário, se percebe que ambas as teorias implicitamente se complementam, vista de um ângulo mais pragmático, experimental. 

Vislumbra-se a possibilidade que as duas teorias embasam cientificamente a distribuição de renda no Brasil. Piketty (2014) defende que o montante fiscal para o custeio dos programas de distribuição de renda deve ser formado a partir de uma tributação justa sobre bens de capitais, bens de herança, sobre os lucros e dividendos dos mais ricos. A partir desse montante, a distribuição deve ser feita segundo os critérios justos (equitativos) apresentados na teoria política de Rawls (1997), ou seja, distribuir mais, para quem tem menos, sem deixar de oferecer sempre condições para que o próprio beneficiário, autonomamente possa mudar sua condição social, com liberdades e oportunidades de trabalho e renda. 

Nesse contexto, essa seria a ideia que possibilitaria mecanismos mais justos e sustentáveis para a distribuição de renda no Brasil. Como já afirmado, Piketty indica a fonte dos recursos, Rawls (1997) apresenta, como será visto a seguir, os meios justos e necessários para distribuir com equidade, definindo as bases científicas para as políticas de combate às desigualdades econômicas e sociais por meio das transferências de rendas no país.

3.1 John Rawls e a “justiça como equidade”

A teoria da justiça como equidade (fairness) de John Rawls, com relação às críticas mais contundentes, não se restringe a buscar uma fonte normativa para definir aquilo que é justo, divorciado da moral, da ética e daquilo que é considerado pelo senso comum, como “bom”.  A teoria da justiça de Rawls (1997) foi elaborada sob dois princípios básicos. O primeiro, de caráter sociológico, diz respeito à realização dos direitos e das liberdades iguais para todos. O segundo, de caráter econômico, defende o ajuste sistemático das desigualdades sociais, no sentido de garantir; i) que o maior benefício seja dado aos que mais necessitam; e, ii) que as oportunidades de trabalho e renda sejam “abertas”, ou seja, distribuídas equitativamente entre todos os menos privilegiados.  

Sabe-se, porém, que as desigualdades sociais e econômicas, não podem ser tratadas apenas sob a ótica da distribuição de benefícios e a oferta de oportunidades, é importante reconhecer que, seja qual for o tipo de benefício, se direto, na forma de universalização do acesso a serviços públicos de qualidade, ou indireto, como nas transferências de rendas, do ponto de vista econômico, o ponto de partida essencial é a garantia do exercício da justiça social.

A distribuição equitativa de oportunidades, deve ser vista com cautela, vez que exige o desenvolvimento de capacidades, competências e habilidades comuns, que não são iguais em todos os indivíduos. Nesse caso, a complexidade desses requisitos deve ser tratada também sob o prisma da individualização dessas oportunidades. Perlingeiro (1998), analisa esse princípio inferindo que “a justiça como equidade é pensada para aplicação ao que se chama de estrutura básica de uma democracia constitucional moderna”. (PERLINGEIRO,1998, p. 209). Nesse contexto, o autor defende uma solidez democrática para o exercício da justiça como equidade, a estrutura básica da democracia não se coaduna com a desigualdade econômica e social. 

O autor afirma ainda que, de um ponto de vista filosófico, há conexão entre os dois princípios de Rawls (1997), religioso ou moral, um princípio não pode realizar-se sem uma espécie de neutralização um do outro, pois o acordo político sobre a justiça como equidade, não pode ser cumprido sem o respeito do Estado às liberdades básicas dos cidadãos. Um beneficiário da bolsa família, por exemplo, não pode viver ad eternum na dependência econômica, social, biológica e moral com o Estado. Infere-se do enunciado que, o não cumprimento do primeiro princípio, ou seja, a negação ao direito às liberdades básicas, abre a possibilidade de realização do segundo. De fato, o segundo princípio é exposto para reduzir as desigualdades geradas pela ausência do sistema de liberdades.

Perlingeiro (1998) aponta que a unidade social e a lealdade dos cidadãos com respeito a suas instituições comuns, não estão calcadas na ideia de que todas as pessoas sustentam a mesma definição do que é um “bem”, no ocidente a vaca é bem de consumo e no oriente é um bem sagrado, por exemplo, mas a justiça como equidade, consiste em aceitar publicamente, uma concepção política de justiça para regular a estrutura básica da sociedade. Na interpretação do segundo princípio, Rawls (2000) ensina que uma estrutura eficiente, consiste em que seja impossível alterar sua configuração, no sentido de que algumas pessoas melhorem sua situação sem que, ao mesmo tempo, outras piorem a sua, nesse sentido, estão presentes as raízes de todas as desigualdades. A distribuição de determinados bens somente será justa e equitativa, se esses bens, ao melhorar a situação econômica de uns, não prejudiquem a situação econômica de outros.

Quanto à organização da produção, para Rawls (2000), ela só é eficiente, se não houver modo de alterar os insumos para aumentar a produção de um bem, sem que seja necessário diminuir a produção de um outro. Dessa forma, será possível produzir bens em quantidade tal que não seja necessário privar pessoas de outros bens. Esse excedente, poderia ser usado para melhorar a situação de algumas pessoas sem piorar as de outros. Rawls ( 2000) utiliza-se da dicotomia bens-necessidades como argumento para análise da eficiência de seu enunciado, destaca que uma pessoa não pode melhorar sua situação econômica e social causando piora na situação de outro. Rawls (2000) justifica o fenômeno da desigualdade econômica como sendo causada pela distribuição injusta e restrita de bens, como uma organização errônea originada de uma estrutura econômica forjada no próprio sistema político.

Rawls (2000) redefine a concepção política de justiça como equidade, a partir de três características básicas que se relacionam entre si quanto: i) à forma do objetivo; ii) a maneira de como é apresentada; e, iii) a expressão do seu conteúdo; segundo a cultura política da sociedade alvo da análise. Quanto ao objetivo da concepção política de justiça como equidade, Rawls alerta para a o reconhecimento prévio de uma “estrutura básica” da sociedade, nos moldes da democracia constitucional moderna. A apresentação dessa concepção, para o autor, infere na dimensão moral e no grau de abrangência, quando compreende todos os valores e virtudes reconhecidos dentro de um sistema articulado de forma precisa, das sociedades atuais. 

A terceira característica, enuncia que, a justiça como equidade parte de uma certa tradição política e assume como sua, a ideia de sociedade como um sistema equitativo de cooperação ao longo do tempo. O conceito político de Rawls (2000) para a justiça como equidade, com base na adoção de uma estrutura básica de desigualdade socioeconômica, requer um sistema de distribuição dos benefícios e de oportunidades dentro de um regime democrático constitucional, com inteira abrangência, que alcance todos os segmentos sociais e que leve em consideração as peculiaridades socioculturais, com ênfase na capacidade de cooperação entre os indivíduos desse mesmo núcleo social.

As críticas de setores da sociedade aos programas de distribuição de renda no Brasil, baseiam-se na narrativa de que programas como o “bolsa família”, causam uma divisão política da sociedade de forma desproporcional e injusta, sobre a geração e distribuição de riqueza inter-regionais. Segundo setores políticos contrários aos programas de distribuição de renda, pessoas trabalham nas regiões Sul e Sudeste (“geradores de riqueza”) para proporcionarem a distribuição de renda nas regiões Norte e Nordeste (“recebedores da riqueza”), ou seja, para as pessoas que se situam à margem do mercado de trabalho. Em Rawls (2000), tais críticas encontram uma suposta base teórica, no fato de que enquanto uns são beneficiados outros são “prejudicados”, entretanto, os que assim pensam, não encontram amparo científico doutrinário para elevar o debate para além de palanques político-partidários no Brasil.

Por fim, é imperioso destacar que a teoria de Rawls (2000) não se refere diretamente aos processos de redução da desigualdade econômica entre as pessoas. Sua teoria de justiça como equidade, requer a aplicação do método dedutivo subjetivista para a compreensão de sua abrangência, econômica e social, ao mesmo tempo em que revela a incompatibilidade do exercício da justiça como equidade em um pais cuja estrutura básica da sociedade emerge sobre o prisma da desigualdade econômica e social.

3.2 Thomas Piketty e a “igualdade econômica”

Piketty (2015), por outro lado, é mais pragmático, especificamente ao apresentar mecanismos de redução das desigualdades por ações direta do Estado ou ainda, que impeçam o seu acirramento, mesmo contra as forças do capitalismo liberal e das ideias de desestatização da economia e o enfraquecimento do Estado social. Piketty (2015) insiste na forma de redistribuição de renda a partir de uma arrecadação fiscal justa e progressiva. Para ele, “a mensagem central é que, para julgarmos os efeitos de uma redistribuição, não devemos nos limitar a analisar quem paga: convém também levar em conta a incidência da redistribuição proposta sobre o conjunto do sistema econômico” (PIKETTY, 2015, p. 39). 

A preocupação da teoria pikettyana, não se reduz apenas em distribuir renda para frear o fenômeno da desigualdade econômica, a silogia feita com as “estruturas básicas” de Rawls (2000), indica que  o Estado também deve criar mecanismos que garanta a efetividade dessas rendas transferidas. Um dos meios indicados por Piketty (2015), é o controle entre os valores de rendas distribuídos e o controle estratégico dos preços. Entretanto, o autor enfatiza que, “é mais eficaz redistribuir por meio de transferências fiscais que permitam aos mais pobres pagar por preços elevados do que pela instauração de um controle de preços, pois ele suscitaria escassez e racionamento. (PIKETTY, 2015, p. 39).

Obstante, em “Capital et Ideologie”, Piketty (2019) fornece uma nova agenda redistribucionista, baseada em três vertentes básicas: i) distribuição de investimentos equitativos em educação, uma espécie de “justiça educacional”- basicamente gastar a mesma quantia por cada pessoa em educação; ii) uma maior participação dos trabalhadores nas decisões administrativas da empresa, como acontece na Alemanha e na Suécia e; o mais importante, iii) a taxação sobre a riqueza. Vale destacar que Piketty (2019), não defende a abolição da propriedade, mas “ele quer distribuí-la para a metade mais pobre, que mesmo nos países ricos nunca teve muita coisa” (PIKETTY, 2019, p. 1117). 

Na prática, Piketty (2019) diz que para fazer isso, é preciso redefinir a propriedade privada como “temporária” e limitada, ou seja, é permitido gozar dela enquanto estiver vivo, e em quantidades moderadas. Nesse contexto, no qual o autor é bastante criticado, é que ele redefine os parâmetros institucionais da desigualdade econômica, para Piketty (2019): L’inégalité n’est pas économique ou technologique: elle est idéologique et politique. (PIKETTY, 2019, p. 16), ou seja, a intervenção estatal no sentido de frear a desigualdade relativizando a propriedade, depende meramente de vontade política, essa vontade política por sua vez, está intimamente ligada à ideologia de quem tem o poder de decisão. Piketty (2019) propõe uma taxação de 90% sobre as fortunas dos bilionários, e exemplifica que, com esses recursos, um país como a França poderia conceder a cada cidadão um fundo fiduciário de cerca de €120 mil euros à idade de 25 anos. Para justificar seu argumento, Piketty declara que, historicamente, impostos muito altos, não impediram o crescimento acelerado no período de 1950 a 1980 da economia global.

Em comparação com a metodologia de distribuição de renda utilizada no Brasil Piketty em seus estudos, propõe mecanismos fiscais mais justos e progressivos para a geração do montante a ser distribuído entre aqueles menos privilegiados e assim reduzir os efeitos da desigualdade econômica. Na esteira do social, o autor afirma não ser relevante a especificação da fonte, mas como se processa a distribuição.  Numa esteira econômica, a preocupação consiste nos meios utilizados para a arrecadação dos tributos que irão formar o “bolo” fiscal a ser distribuído. No Brasil, ainda se pratica uma tributação injusta, complexa e regressiva, talvez por essa ótica, setores da sociedade que criticam a distribuição de renda no Brasil, as concepcione como causadora do desequilíbrio fiscal, do déficit orçamentário, da estagnação econômica e do aumento da dívida pública do Estado.

 4.0 FUNDAMENTOS CIENTÍFICOS DA DISTRIBUIÇÃO DE RENDA NO BRASIL

Programas de distribuição de renda geralmente têm natureza política, estão ancorados em um determinado arcabouço legal, não se verifica, ou ao menos nem se tentou verificar, a necessidade de estarem sob o julgamento e obediência aos princípios ou às leis científicas, no sentido de fundamentar sua substância ou aferir o grau de sua eficiência e/ou aplicabilidade. Sob um ponto de vista conceitual, quanto a uma política pública específica, pode-se afirmar que desde a sua concepção elas envolvem ramos peculiares e necessários das ciências, como a economia, a sociologia e a antropologia, embasadas de alguma forma em leis científicas, princípios, objeto e, em uma metodologia experimental. O viés econômico determina os recursos que custearão as políticas de distribuição de renda; a antropologia identifica socioculturalmente os alvos, ou seja, o público que será beneficiado; enquanto que a sociologia define a metodologia, o espaço social, identifica as carências e traça as metas;

O que se pretende com a implementação das políticas de distribuição de renda é a igualdade econômica defendida por Piketty (2015) como forma de garantir o bem-estar social. A justiça como equidade pode ser utilizada como meio para a realização dessa pretensão. Segundo Rawls (2000), distribuir segundo as reais necessidades, e com isto garantir o mínimo de renda (renda básica) que permita a autonomia e o exercício das liberdades individuais e, nesse processo, identificar elementos para o objetivo maior das políticas públicas, qual seja, o desenvolvimento social parelho ao crescimento econômico, melhorando as condições sociais das classes média e baixa da sociedade brasileira, segundo uma proporcionalidade mais justa.

Segundo Amaral (2021), a renda básica proporciona aos beneficiários dos programas de distribuição de renda, autonomia e independência, principalmente, “no âmbito dos relacionamentos familiares, inclusive viabilizando o rompimento daqueles mantidos essencialmente por questões de dependência financeira, podendo assim ser especialmente libertador para as mulheres” (AMARAL. 2021, p. 23). Para o autor, as motivações são justificadas segundos aspectos éticos e filosóficos nas pessoas ou grupos de beneficiários, no que tange à promoção das liberdades individuais, na qual se “destaca a argumentação de que a renda básica é imprescindível para a concretização de uma verdadeira liberdade individual” (AMARAL, 2021p. 23). Nesse sentido, destaca-se o que preconiza Rawls (2000), sobre as liberdades como parte de bens a serem distribuídos.

Estão presentes nas políticas de distribuição de renda, condições e critérios predefinidos. Um indivíduo beneficiário recebe o auxílio por um período determinado, até que ele alcance a tal da autonomia e a tal da liberdade tanto preconizada, em outras palavras, até que ele desenvolva condições de manter a si próprio e de sua família, em outras palavras, que ele próprio garanta um patamar mínimo de sobrevivência. Nesse ponto, Rawls (2000) empresta significativa contribuição, pois o Estado não pode se limitar a apenas implementar políticas, distribuição de renda não tem um fim em si mesma, a continuação deve ser na forma da oferta ampla e equitativa de oportunidades para a qualificação profissional, a geração de trabalho e renda e, fomento ao empreendedorismo e ao cooperativismo.

Amartya Sen (2000), afirma não ser possível o desenvolvimento socioeconômico antes do desenvolvimento das capacidades e o aprimoramento das liberdades, mas como um determinado indivíduo ser liberto e exercer a autonomia, se falta o sustento básico para ele próprio e sua família. Nessa esteira, a disponibilidade da renda básica, por meio das políticas de distribuição renda, possibilita ao indivíduo, mesmo que minimamente, senso de autonomia e liberdade, a partir daí, passa a gerar microestruturas socioeconômicas para a criação de mecanismos de desenvolvimento, objetivo central dessas políticas.

No objetivo central dos programas de distribuição de renda, deve estar definido previamente; i) o valor da renda básica ou dos benefícios e os mecanismos de atualização monetária e, ii) a frequência, ou seja, até quando aquele indivíduo ou aquela família irá ser beneficiária. Quanto à definição do valor da renda básica, ou do valor a ser distribuído por família ou indivíduos, Amaral (2021) entende que, “este, [valor da renda básica] é, necessariamente, uma definição política, relacionada às expectativas da sociedade a respeito de seu sistema social e aos custos que ela está disposta a assumir em função dele” (AMARAL, 2021, p.31). Com relação ao referencial adotado, o autor complementa que, se a ênfase do programa visa um sistema de proteção social contra a miséria, a referência utilizada poderá ser a linha de pobreza ou, um padrão de consumo mínimo das famílias. 

Por outro lado, se o foco das políticas de distribuição de renda é amenizar os efeitos do desemprego em massa, causados ou por uma crise econômica global ou por altos investimentos em tecnologias, daí o referencial adotado poderá ser um padrão mínimo de vida a ser identificado por institutos de pesquisas oficiais. No Brasil, a renda básica não se detém à essas questões, o sistema de proteção social é amplo entre os mais pobres, seja para combater a fome e a miséria, seja para combater o desemprego, esse por sinal, também faz parte da proteção constitucional aos pobres, e fomento à criação de patamares mínimos de sobrevivência.

A distribuição de renda no Brasil ou formação da renda básica, não se reserva a um fenômeno meramente político, observa-se que sua estrutura é composta de: objetivo central, metodologia, definição de valores e de identificação do referencial por meio da coleta científica de dados. Podem, cientificamente, estarem presentes os elementos que responda o “porque fazer?”, ancorada na decisão política a partir da necessidade social ou do estado de miséria previamente definido; o “quando fazer?”, no sentido de identificar a urgência/emergência; o “como fazer?”, no qual se define a metodologia e, o “para quem fazer?”, de cunho científico sociológico na detecção dos setores mais vulneráveis da sociedade alvos do programa e, antropológico, relativo à recepção e interação sociocultural da comunidade alvo. 

Segundo uma análise científica das estruturas dos programas de renda básica, é possível identificar três fundamentos essenciais: a) econômicos; b) antropológicos e, c) sociológicos, não isolados entre-se, mas que se completam e algumas vezes se fundem, no sentido de formar certezas, garantias, eficiência e continuidade dos programas. O fundamento científico econômico se consubstancia na forma de arrecadação do montante primário que irá custear as políticas públicas para: a) a distribuição aos beneficiários, b) para investimentos na geração de trabalho e renda e, c) para o fomento ao empreendedorismo e ao cooperativismo. 

A formação do orçamento específico para o programa, de forma sustentável, sem comprometer as reservas orçamentárias da União destinadas a outras áreas, é apresentada por Piketty (2014). O autor tece duras críticas aos países ocidentais que se utilizam de uma única forma de tributação da renda (imposto de renda) para realizar o sistema de proteção social. Além deste, Piketty (2014) sugere mais duas formas de tributação da riqueza: i) sobre os bens de capitais, por intermédio dos impostos sobre os lucros e dividendos, e, ii) sobre o patrimônio/herança. 

O fundamento científico antropológico contém os mecanismos de conhecimento da interatividade sociocultural e dos elementos étnicos da sociedade, bem como a identificação de comportamentos e dos processos evolutivos dos grupos de seres humanos, sem desconsiderar sua individualidade. Os mecanismos estão dispostos sob dois pontos de vista, a) profissional, inerente ao desenvolvimento de suas capacidades e habilidades e, b) social, referente a sua ascensão na comunidade (status). 

Marconi e Presotto (2001), diz que a antropologia é a ciência que estuda o ser humano, mas que “apesar da diversidade dos seus campos de interesse, constitui-se em uma ciência polarizadora, que necessita da colaboração de outras áreas do saber, pois conserva sua unidade, uma vez que seu foco de interesse, é o homem […]” (MARCONI; PRESOTTO, 2001, p. 26).  Em François Laplantini, o estudo do homem ainda deve ser “em todas as sociedades, sob todas as latitudes, em todos os seus estados e em todas as épocas” (LAPLANTINI, 2004, p. 9). Por ser o homem o elemento principal na elaboração dos programas de distribuição de renda no Brasil, constitui esse fundamento um dos mais importantes para a realização dos objetivos dessas políticas.

Rawls (2000) talvez não teria conseguido elaborar a teoria da justiça como equidade (fairness), sem conhecer alguns sistemas inerentes ao ser humano, enquanto sujeito político e social. Sua contraofensiva, por sinal bem sucedida, ao liberalismo econômico puro, o qual considerava que o crescimento das estruturas de mercado eram super capazes de fornecer todos os bens necessários a uma igualdade socioeconômica, resultou na concepção de bens primários não econômicos mas necessários, dentro de um estado de coisas, ao desenvolvimento social, que crescer sem desenvolver, não tem mais a credibilidade nem da sociedade e nem governamental no mundo do século XXI. 

Essa não foi a ideia de Rawls (2000) mais cortejada, mas a percepção decorrente dela, de que para a realização humana, bens econômicos isolados como a renda, não são capazes de transformar as condições de desigualdade econômica, bem mais do que isso, essas políticas devem prever também a distribuição dos chamados bens primários – realização dos direitos básicos e respeito às liberdades individuais igualmente distribuídas,  nas políticas que visem a proteção social, crescimento e desenvolvimento socioeconômico de forma sustentável.

O fundamento científico sociológico garante a identificação dos mecanismos que impulsionam as interações sociais, revelam as reais condições de sobrevivência, as necessidades que deverão ser providas com a distribuição da renda, bem como os instrumentos complementares que permitam o desenvolvimento social dentro da comunidade alvo. “A explicação sociológica busca compreender e interpretar o sentido, o desenvolvimento e os efeitos da conduta de um ou mais indivíduos referida a outro ou outros – ou seja, da ação social […]” (QUINTANEIRO, 2003, p. 97).

Uma das características relevantes dos programas de distribuição de renda é a alternância das famílias ou de indivíduos, quando atingem a linha de referencial, como por exemplo, melhora considerável do padrão de vida ou ainda aumento da renda per capta intrafamiliar. Nesse sentido, o fundamento sociológico identifica os elementos responsáveis pela evolução da família ou do indivíduo e as possibilidades de manterem o novo padrão de vida fora do programa. 

A ação racional do indivíduo sob a ótica sociológica deve indicar o grau de segurança nesse novo status, pois “o agente individual é a unidade da análise sociológica, a única entidade capaz de conferir significado às suas ações. [ … ] ele o faz de acordo com os padrões que são específicos de tal ordem […]” (QUINTANEIRO, 2003, p. 105).  A análise desses fundamentos não busca uma justificativa ou a eliminação das críticas e questionamentos a respeito dos programas de distribuição de renda no Brasil, seja de qualquer corrente política ou ideológica. 

O que esse estudo consigna como fato, é que a diminuição da pobreza e da miséria (extrema pobreza), bem como o início do processo de redução dos índices de desigualdade econômica, não serão conseguidos sem uma distribuição de riqueza i) justa e equitativa, no sentido de dar mais, aquele que tem pouco ou não tem quase nada e, ii) sustentável, com a disposição de mecanismos reais de evolução das famílias ou indivíduos, que possam garantir sua autonomia e independência. Para isso, a mera racionalidade de uma decisão política, deverá conter o econômico, o antropológico e o sociológico com o fim de fundamentar as políticas de distribuição de renda, garantindo-lhes além do populismo político ideológico, legitimidade técnica científica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

A desigualdade no Brasil, medida pelo índice de Gini e divulgada pelo IBGE/PNADc, cresceu entre 2015 e 2018 de 0,524 para 0,545. A consequência dessa desigualdade é o aumento do número de famílias que retornam a linha de extrema pobreza ou linha de indigência, na qual fica comprometida a aquisição de alimentos, com níveis adequados de nutrientes, até para a própria sobrevivência. Outro fenômeno identificado, foi a ocorrência simultânea da concentração de riqueza/renda nas mãos de pequena parcela da sociedade brasileira responsável por mais de 60% da riqueza produzida. A consequência disso não infere apenas nos baixos índices da economia no país, do ponto de vista político, prejudica a imagem do pais no exterior, restringe as possibilidades de investimento privado na economia nacional e cria ambiente de recessão que só agrava mais a desigualdade econômica. Num país onde a distância entre o rico e o pobre é considerável, o mais agravante é que, no século XXI, ela caminha para o alargamento do fosso entre essas duas classes. 

Na região Nordeste, a situação observada pelas pesquisas é bem mais grave. A desigualdade nesta região apresenta índice de Gini de 0,559 maior do que aquele medido em nível nacional. Embora seja, dentre as outras macrorregiões, a que mais detém beneficiários dos programas de distribuição de renda, apresenta números consideráveis de famílias em estado de pobreza extrema. Outro fator que vale destacar, é o fato de que, o crescimento econômico da região Nordeste, no período de 2010 a 2018, indicado pelo PIB foi de 6,12% contra 4,5% do PIB nacional. Isso demonstra que o crescimento econômico não caminha junto com o desenvolvimento social, é a região nordeste que apresenta a maior concentração de renda no Brasil, portanto, a mais desigual dentre as outras regiões. O Ceará é um dos Estados da região Nordeste que apresenta altos índices de desigualdade, superando tanto os índices do Nordeste como o Nacional. O índice de Gini medido em 2016 foi de 0,553 e em 2017 aumentou 0,560, indicando que o Ceará amargou o crescimento da desigualdade com reflexos no número de pessoas em extrema pobreza, que em 2019, ultrapassou a casa de um milhão vivendo em indigência.

A justiça como equidade de Rawls e a igualdade econômica de Piketty foram utilizadas como teorias de base, no sentido de desenvolver elementos doutrinários para a formulação da fundamentação científica dos programas de distribuição de renda no Brasil, para além de um parâmetro exclusivamente político. Baseados numa metodologia que adote mecanismos básicos das ciências econômicas, antropológicas e sociológicas. A abordagem técnica-científica, feita no comparativo entre as teorias apresentadas e as estatísticas da desigualdade de renda, decorreu da necessidade de compreender as principais causas, e identificar mecanismos de combate às desigualdades sociais, esta, por sua vez, foi referendada como fenômeno que impede o desenvolvimento social justo, sustentável e equilibrado. 

Ao final, concluiu-se que os fundamentos científicos analisados asseguram a legitimidade técnica dos programas de distribuição de renda para além de uma base exclusivamente política. Os referenciais teóricos adotados de John Rawls e Thomas Piketty, iluminaram o caminho da cientifização dos programas de distribuição de renda no Brasil. Tal programa, se constitui em um instrumento eficiente para a redução das desigualdades regionais no Brasil, desde que, como política de Estado, a partir dos fundamentos científicos apresentados, possa resistir às diferentes ideologias de governo e alcançar solidez institucional como sistema de proteção e desenvolvimento social.

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1 Professora Dra. do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza – Unifor/Ce.
2 Doutorando em Direito Constitucional público e Teoria Política (Universidade de Fortaleza – UNIFOR). Mestre em Direito Constitucional público e Teoria Política (Universidade de Fortaleza – UNIFOR).