A TIPIFICAÇÃO PENAL DO STEALTHING COMO ESTUPRO NO BRASIL: ANÁLISE DA POSSIBILIDADE JURÍDICA E DOS EFEITOS NA PREVENÇÃO E REPRESSÃO À VIOLÊNCIA SEXUAL

THE CRIMINAL TYPIFICATION OF STEALTHING AS RAPE IN BRAZIL: ANALYSIS OF THE LEGAL POSSIBILITY AND EFFECTS ON THE PREVENTION AND REPRESSION OF SEXUAL VIOLENCE

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8284989


Kathellen de Oliveira Dias1
Sebastião Ricardo Braga Braz2


RESUMO

O Stealthing é a ação em que um dos parceiros, sem o consentimento ou sequer o conhecimento do outro, remove o preservativo no instante da relação sexual, quebrando o pacto antecipadamente estabelecido, violando a liberdade sexual e a vontade da vítima em ter relações sexuais mediante o uso do preservativo masculino. O objetivo deste artigo é: analisar a possibilidade de tipificação do Stealthing como estupro no Brasil. Para tal, realizou-se uma revisão de literatura, do tipo bibliográfica, de abordagem qualitativa e caráter descritivo. Verificou-se que embora, nos últimos anos, as mulheres tenham garantido o direito à liberdade sexual, tem ocorrido o seu consentimento no momento de uma relação sexual ser violada com a prática do Stealthing. Discutiu-se assim duas possíveis adequações ao Direito Penal Brasileiro, quais sejam, os de Violação Sexual Mediante Fraude e o Perigo de Contágio Venéreo, afastando-se, contudo, a possibilidade de aplicação de Estupro aos casos de Stealthing, nos casos em que não há violência ou grave ameaça, mesmo resultando em consequências físicas e psicológicas. Evidenciou-se que o Legislativo deve identificar a necessidade de reforma penal imediata, especialmente quanto ao Stealthing. E por fim, reconheceu-se a importância da educação sexual como principal instrumento contra séculos de dominação masculina, sobre ainda o direito à igualdade e a dignidade inerente a todos os seres humanos, principalmente às mulheres, sendo fundamental para prevenir e erradicar toda e qualquer forma de violência, em especial a violência de gênero.

Palavras-Chave: Estupro; Igualdade de gênero; Liberdade sexual; Stealthing.

ABSTRACT

Stealthing is the action in which one of the partners, without the consent or even the knowledge of the other, removes the condom at the moment of sexual intercourse, breaking the previously established pact, violating the sexual freedom and the victim’s will to have sexual intercourse through the use of the male condom. The purpose of this article is: to analyze the possibility of classifying Stealthing as rape in Brazil. For this, a literature review was carried out, of the bibliographical type, with a qualitative approach and descriptive character. It was found that although, in recent years, women have guaranteed the right to sexual freedom, their consent at the time of sexual intercourse has been violated with the practice of Stealthing. Thus, two possible adaptations to Brazilian Criminal Law were discussed, namely, those of Sexual Violation Through Fraud and the Danger of Venereal Contagion, ruling out, however, the possibility of applying Rape to cases of Stealthing, in cases where there is no there is violence or serious threat, even resulting in physical and psychological consequences. It was evident that the Legislature must identify the need for immediate penal reform, especially regarding Stealthing. And finally, the importance of sex education was recognized as the main instrument against centuries of male domination, on the right to equality and the inherent dignity of all human beings, especially women, being fundamental to prevent and eradicate any and all forms of violence, especially gender-based violence.

Keywords: Rape; Gender equality; Sexual freedom; Stealthing.

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, uma ação corriqueira entre os jovens parceiros têm chamado atenção do universo jurídico, o Stealthing, ação em que um dos parceiros, sem o consentimento ou sequer o conhecimento do outro, remove o preservativo no instante da relação sexual – quebrando o pacto antecipadamente determinado. Essa mudança nos termos do contrato verbal é feita de forma unilateral, e a quebra desse consentimento, desse vínculo de confiança entre os parceiros, além de estabelecer uma violação moral, constitui ainda uma violação sexual, que pode acarretar danos irreparáveis. 

Neste contexto, destaca-se que o Stealthing viola a liberdade sexual e a vontade da vítima em ter relações sexuais mediante o uso do preservativo masculino, ao obrigá-la participar de atos sexuais de forma diferente da esperada e de forma não consensual, quebrando o acordo antemão formado. Assim, se questiona neste estudo:  Como a tipificação penal do Stealthing como estupro pode ser uma medida efetiva para prevenir e reprimir a violência sexual?

Sabendo-se que esse desrespeito à vontade antes manifestada pela mulher, reflete no seu bem estar físico, psíquico e sexual, nos seus relacionamentos interpessoais e sua qualidade de vida como um todo, causando danos emocionais, financeiros e físicos, podendo até mesmo derivar na contração de DST’s bastante graves ou em uma gravidez indesejada, é de extrema importância, principalmente social, um estudo que debata esta problemática, a fim de discutir a adequação do Stealthing ao direito penal brasileiro, para que se possa buscar a devida punição para o acontecimento de tais delitos, e o possível reparo legal dos danos causados a mulher. A realização da pesquisa é útil e necessária, uma vez que pode contribuir para a promoção da proteção dos direitos humanos e para o combate à violência sexual no país. Além disso, a pesquisa pode contribuir para a elaboração de políticas públicas mais efetivas e para o fortalecimento do sistema de justiça criminal no combate a essa forma de violência.

Desta forma, o objetivo geral deste estudo é analisar a possibilidade de tipificação do Stealthing como estupro no Brasil. Para tal, tem-se como objetivos específicos: avaliar a possibilidade jurídica da tipificação do Stealthing; investigar os efeitos da tipificação do Stealthing como estupro na prevenção e repressão à violência sexual no Brasil; e discutir os impactos da criminalização do Stealthing como estupro, levando em conta os direitos humanos e integridade física e psicológica das vítimas.

1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 

1.1 TIPIFICAÇÃO DO STEALTHING COMO ESTUPRO

O conceito de Stealthing representa uma ameaça séria aos direitos sexuais e de autonomia dos indivíduos, bem como à sua integridade física e psicológica. Embora essa prática ainda não tenha sido tipificada como crime em muitos países, é importante que o direito penal reconheça sua gravidade e promova uma abordagem mais adequada em relação a esse comportamento.

Esta prática é repudiada em âmbito social e jurídico por várias razões: exposição a infecções sexualmente transmissíveis (IST’s); risco de gravidez não planejada; constituir-se em uma forma de violência sexual e, também, caracterizar violência sexual e desrespeito aos Direitos Humanos Fundamentais, tanto no âmbito nacional quanto no âmbito internacional (Zanatta, 2021).

É nítido, nesta prática, que o autor do crime leva a vítima a crer que está em um ato sexual seguro, protegido, contudo, de forma furtiva remove o preservativo e passa a agir em contradição com a vontade da vítima. Assim, para maior compressão, vale destacar que, ainda que, no início, o ato sexual tenha sido acatado, a partir do momento em que se tem a falta de consentimento para a remoção do preservativo, o ato em si pode ser qualificado até mesmo como crime de estupro.

É nesse panorama que o Stealthing se configura como uma violência sexual, ou seja, quando impede que a vítima mantenha uma relação sexual segura e dentro dos limites determinados por ela como fatores preponderantes para que aconteça o ato sexual propriamente dito.

Deve-se deixar claro que o delito de violação sexual mediante fraude é também designado pela doutrina como estelionato sexual, uma vez que se trata de um delito desenvolvido por meio de fraude ou outro meio que impeça ou atrapalhe a livre manifestação da vontade da vítima. No delito, o agente utiliza de fraude para preterir a vítima sobre a sua identidade, fazendo com que ela acredite ser ele outra pessoa ou a engana acerca da legitimidade do ato sexual – ambos são empregados com o intuito de que a vítima aprove a prática do ato sexual, porém o seu consentimento é eivado de vício, já que se tivesse o real conhecimento acerca da realidade, não teria aceitado esta prática sexual (Salim e Azevedo, 2017).

A prática do Stealthing nesta concepção seria considerada um estelionatário, ou seja, o fato do parceiro enganar e realizar o ato sexual sem o consentimento da mulher tipificaria como estupro, ela consentiu na relação com o uso do preservativo, a negativa sem que ela saiba além de riscos à saúde outrora citados, se torna notório o engano, o abuso psicológico.

Percebe-se que no Stealthing, o parceiro se utiliza da fraude para praticar a conjunção carnal ou o outro ato libidinoso com a vítima, abusando-se da falha da parceira para a continuação da prática do ato sexual, já que, caso ela soubesse que o ato sexual estaria sendo realizado sem a proteção do preservativo, não aceitaria continuar. 

Em resumo, o Stealthing pode ser enquadrado como um crime de estupro ou violência sexual mediante fraude, abordado no artigo 215 do Código Penal (CP), quando a mulher não percebe a remoção do preservativo pelo parceiro. Em contrapartida, quando a mulher percebe esta remoção e se recusa a continuar o ato sexual, se o parceiro – mediante violência ou grave ameaça – prosseguir, caracteriza-se estupro (BRASIL, 1940, art. 213). 

Vale ressaltar que, caso o parceiro tenha conhecimento que possui alguma Doença Sexualmente Transmissível (DST) e ainda assim remover o preservativo sem o consentimento da parceira, pode responder pelo crime de perigo de contágio venéreo (art. 130 do CP), mesmo que a DST não seja de fato contraída.  No cenário deste estudo, o crime do artigo 130 do diploma penal brasileiro estaria assinalado se por meio da relação sexual, o parceiro removesse ou furasse o preservativo sem o consentimento da vítima, e que, como decorrência desta remoção, a vítima viesse a se contaminar com esta doença (SALIM e AZEVEDO, 2017).  Sendo assim é importante que o tema seja discutido e debatido para que a legislação possa ser aprimorada e as vítimas de Stealthing possam ter a proteção necessária contra esse tipo de conduta.

No Direito Comparado, e em outros países, o Stealthing também é ainda pouco debatido, sobretudo em âmbito judiciário, com carência legislativa tratando sobre a conduta e de casos julgados. 

Nos Estados Unidos, por exemplo, até começo de 2021, nenhum Estado tipifica esta prática. Até que, segundo Guedes e Garbin (2022) que abordam sobre as possíveis consequências legais no Direito Penal da Califórnia, afirmam que em setembro de 2021, um projeto de Lei foi apresentado pela Deputada Cristina Garcia na Assembleia Estadual da Califórnia, e aprovado de forma unânime pelos legisladores na Câmara dos Deputados e no Senado, fazendo com que a referida conduta se tornasse um delito civil. 

Essa lei proíbe a conduta de remoção da camisinha sem o consentimento da vítima no decorrer do ato sexual, e foi sancionada pelo Governador Gavin Newsom no dia 07 de outubro de 2021. A partir desta nova legislação, tornou-se crime retirar o preservativo sem o consentimento do parceiro ou parceira durante o sexo, e as sanções aplicáveis tornam-se de caráter civil (De Carvalho e Junior, 2022).

Isso fez com que a Califórnia fosse o primeiro Estado dos Estados Unidos, a tornar ilegal de fato a prática do Stealthing, em que os agressores podem ser responsabilizados civilmente indenizando suas vítimas. Neste sentido, o território da Capital da Austrália também optou há pouco tempo por criar uma lei para cuidar desta temática. Elizabeth Lee, líder dos liberais, que apresentou esta legislação, afirmando que sua finalidade era proporcionar clareza na lei antes que houvesse uma vítima. Lee citou que não se podia esperar que os acontecimentos chegassem aos tribunais antes que o Stealthing fosse especificamente proibido. A líder afirmou que era necessário agir proativamente e expor a todos que essa conduta era inaceitável e um crime (De Carvalho e Junior, 2022).

Destaca-se também o Reino Unido que também já tem uma lei criminalizando esta prática, com uma norma com o nome de “estupro por remoção não consensual do preservativo”, ou seja, no Reino Unido, esta prática é vista como um estupro em um tipo penal específico para isso.

Ressalta-se que alguns países já reconheceram o Stealthing como crime à dignidade sexual. Tem-se como exemplo a condenação de um homem na Suíça pelo crime de estupro, que gerou grande repercussão interna. Portanto, na Europa, o Stealthing é visto como um crime de abuso sexual, até mesmo com uma pena rigorosa, com responsabilização civil na própria sentença penal. 

De tal modo, nos resta entender se um dos interventores da relação sexual, ao remover o preservativo no decorrer dela, sem a aceitação do outro interventor, comete ou não o crime de violação. Antecipadamente à alteração executada ao crime de violação pela Lei n.º 83/2015 de Portugal, este comportamento nunca poderia ser penitenciado por este artigo, já que, com ressalva das circunstâncias em que havia uma especial relação entre o agente e a vítima, demandava-se o uso de apontados meios típicos de constrangimento. Ora, tratando-se de uma relação sexual desejada por ambos os interventores, ainda que com o recurso ao preservativo, seria inacreditável enquadrá-la no n.º 1 do art.º 164.º do CP de Portugal, uma vez que o agente não violentou a vítima por nenhum dos meios típicos plasmado neste artigo.

Porém, com a consignação do atual n.º 1 do artigo 164.º do Código Penal de Portugal, o crime ampliou a criminalização a todos os comportamentos em que vítima tenha sido constrangida, por meio não tipificado no n.º 2 do mencionado artigo.

Ora, o n.º 1 do artigo 164.º do CP de Portugal radica na criminalização dos comportamentos no constrangimento da vítima à prática do ato sexual, que estabelecia um elemento típico imprescindível, não consentindo às conjunturas envolventes ao seu consentimento. Entretanto, caso a vítima se apercebesse que o agente retira o preservativo e este a constranger a permanecer no ato sexual de relevo, encontrar-se-iam preenchidos as condições para a punição pelo crime de violação. Para o enquadramento do comportamento nesta norma legal importa que a vítima seja constrangida à prática do ato sexual de relevo, independentemente do momento em que este constrangimento aconteça, desde que entre o constrangimento e o ato sexual houvesse um nexo causal.

A partir da exposição neste estudo das principais compreensões sobre a possibilidade jurídica da tipificação do Stealthing como estupro à luz do ordenamento jurídico brasileiro, incluindo a Constituição Federal, o Código Penal e a jurisprudência nacional e internacional, é necessário aprofundar acerca da tipificação do crime de Stealthing de forma a investigar os seus efeitos na prevenção e repressão à violência sexual no Brasil, expondo alguns casos que vieram a público desta prática, bem como medidas que visam extinguir este tipo de conduta.

1.2 EFEITOS DA TIPIFICAÇÃO DO STEALTHING COMO ESTUPRO NA PREVENÇÃO E REPRESSÃO À VIOLÊNCIA SEXUAL NO BRASIL

Segundo Cheeser (2021), em um estudo desenvolvido em 2018 pela Monash University juntamente com a Melbourne Sexual Health Centre, em que foram entrevistadas 2.000 pessoas, descobriu-se um quantitativo aterrorizante a respeito do Stealthing, onde uma em cada três mulheres, e quase um em cada cinco homens que têm relações sexuais com homens, foram vítimas desta conduta. Cheeser (2021) também citou a pesquisa divulgada, em 2019, pela National Library of Medicine, nos Estados Unidos, em que se relata que 12% das mulheres entrevistadas entre 21 e 30 anos já foram vítimas ao menos uma vez de Stealthing. 

De Carvalho e Junior (2022) afirmam que até o ano de 2020, apenas um caso foi levado à justiça brasileira abrangendo Stealthing. Contudo, neste caso, no decorrer do ato sexual, o parceiro removeu o preservativo e coagiu a parceira a continuar com a relação, ocasionando uma gravidez não prevista. Nesta situação, a partir da negativa que a vítima teve por parte do governo do Estado, ela recorreu à justiça para que lhe fosse reconhecido o direito de cumprir o aborto humanitário, uma vez que em seu entendimento tratou-se de estupro, e de tal modo, entendeu os desembargadores da 7ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, concedendo-lhe este direito. 

O episódio ocorreu no Distrito Federal, onde foi permitido um aborto humanitário por conta da prática do Stealthing. Nota-se que o colegiado reconheceu que a saúde é direito de todos e dever do Estado, cabendo a ele a obrigação de prestar assistência integral à mulher em caso de gravidez resultante de relação sexual não voluntária ou não desejada, violência sexual, coerção, dentre outros. Neste caso mencionado, coube pensar na possibilidade do aborto legal, já que se fala de estupro, por não ter o consentimento da vítima, sendo destacado no Código Penal em seu art. 213, como sendo o primeiro dos crimes contra a liberdade sexual, havendo a conjunção carnal sem o consentimento da vítima.

Fica nítido assim o quão é grave a conduta do Stealthing, dado que a negativa da mulher em permanecer na relação sexual pode resultar em uma violência muito maior, como o estupro ou até chegar ao feminicídio, diante da cultura machista e patriarcal que, em pleno século XXI, ainda existe.

Barrucho (2022) destaca a reportagem da BBC News, em 2022, sobre um caso que ocorreu em 2021, onde uma brasileira foi até a delegacia relatando ter sido vítima do Stealthing, até mesmo com a confissão do parceiro. Mas depois de diversos constrangimentos na caça por justiça, se deparou com a notícia do arquivamento do seu caso, já que o Delegado e o Promotor de Justiça que avaliaram o caso compreenderam que este caso não constituía crime, e uma possível reparação teria que se dar na seara cível, a menos que ela estivesse infectada por uma alguma doença que foi transmitida no ato sexual. 

Depois de uma extensa conversa com a vítima, o promotor conseguiu entender que estava diante de um crime e a respondeu que abriria um inquérito para averiguar seu caso. Mas a vítima soube que um segundo promotor avaliou em seguida seu caso e o arquivou, em que segundo ele o modus operandi do investigado não se assinala como fraude, pois a vítima não foi levada ao erro, mas sim pega de surpresa pela conduta dele, que em tese sem o seu consentimento, continuou a relação sexual sem o uso de preservativo. Assim sendo, fica claro que, frente à falta de um tipo penal específico, a falta de jurisprudência e o desconhecimento geral sobre o Stealthing, comportamentos como este continuam encobertos pela incerteza e pela impunidade. 

Tendo em vista a falta de conhecimento acerca dessa figura delituosa bastante comum, a população se encontra desprotegida já que não é de conhecimento de todos que retirar o preservativo sem o consentimento do parceiro se trata de um crime. Contudo, a grande questão é que não há no Código Penal brasileiro um tipo penal específico para este comportamento, e como resultado tem-se uma figura com peculiaridades próprias, mas quando conhecida é confundida com outros tipos penais, ou ainda considerado um ato lícito.  Neste viés é importante ressaltar que em 19 de maio de 2022 foi apresentado o Projeto de Lei n. 965/22 do Deputado Federal Marcelo Freitas, partido União Brasil, que altera o Código Penal, acrescentando o artigo 215-B, com a finalidade de tipificar a conduta do Stealthing no Código Penal Brasileiro, entretanto até o momento não foi aprovado.

De acordo com Mariana Bianco (Defensora Pública do Estado de São Paulo), a falta de um artigo penal que enquadre essa violência em sua totalidade pode levar à absolvição do agressor. E assim, destacamos mais uma vez a reportagem da BBC News, em que uma mulher brasileira buscou a delegacia relatando ter sido vítima do Stealthing, com a confissão em sede policial do parceiro, porém o agressor continuou sem punição no Brasil. 

Assim, é necessário aprofundar a discussão acerca dos impactos socioeconômicos e culturais da criminalização do Stealthing como estupro, levando em conta aspectos como a educação sexual, a igualdade de gênero, os direitos humanos e a proteção da dignidade e integridade física e psicológica das vítimas de violência sexual.

1.3 IMPACTOS DA CRIMINALIZAÇÃO DO STEALTHING COMO ESTUPRO LEVANDO EM CONTA DIREITOS HUMANOS E INTEGRIDADE DAS VÍTIMAS

Brodsky (2017) assinala o Stealthing sob o ponto de vista da violação dos direitos fundamentais. De acordo com a autora, a retirada não consensual do preservativo durante a relação sexual é um comportamento compreendido pela vasta categoria de violência de gênero, causando decorrências físicas, psíquicas e políticas para as vítimas, e após realizar entrevistas com vítimas de práticas do Stealthing, a autora averiguou que esta prática é, de fato, um exemplo nítido da violência de gênero. 

Sabe-se que existem várias formas de confrontar os direitos fundamentais e a liberdade sexual da mulher mesmo que não se tenha o uso de força física, principalmente preterindo a pessoa no contexto em que existe consenso quanto à efetivação de prática sexual, porém enganando a pessoa. O Stealthing, neste âmbito, é uma prática não consensual cometida em uma relação sexual consensual. 

Tem-se ainda o direito fundamental à igualdade como um direito que é ferido pela violência de gênero, diante de ações violentas ou que vão contra a igualdade procurada pelas mulheres, passando a ser casos criminais gravíssimos. Pois, os componentes mais frágeis de uma comunidade política têm direito à mesma importância e respeito assegurado aos membros mais poderosos, assim, se um homem tem sua liberdade de decisão, todos os homens (compreendendo homens e mulheres) devem gozar do mesmo direito. Logo, o Stealthing, seja feito com o uso ou não de violência, é um comportamento que fere os direitos fundamentais das mulheres, erguendo o debate sobre a violência de gênero. Sendo que esta violação de direitos por conta do gênero agride ainda a dignidade humana. Assim, o Stealthing é uma conduta que fere absolutamente a liberdade de escolha da mulher. 

Brodsky (2017) ressalta que não existe lei que obrigue o emprego do preservativo nas relações sexuais, entretanto, quando acontece a prática do Stealthing, tem-se a violação dos direitos fundamentais das mulheres, já que elas são desprestigiadas em função dos interesses individuais da pessoa do sexo masculino. 

Sabendo-se que a CF protege e detém força máxima para resguardar com isonomia os direitos fundamentais de todos os sujeitos, o Stealthing afronta não apenas à dignidade da mulher, que fica exposta a fatores de risco, como ainda ao constituinte e à lei suprema que vale em países como o Brasil. 

Portanto, o Stealthing deixa de ser configurado quando existe consenso por parte da vítima, porém a persuasão de que a mulher deve renunciar ao seu desejo de usar o preservativo pode haver a caracterização da violência de gênero, mesmo sem a caracterização da citada conduta sexual em caráter objetivo. Neste contexto, a repressão verbal com o emprego de argumentos psicológicos (chantagem de abandono, afirmação de que a pessoa está equivocada em não acatar a ordem de um comportamento sexual, dentre outros), distinguem uma modalidade de violência e privação dos direitos fundamentais. 

Desta forma, quando existe coação verbal para que a mulher rejeite o preservativo, ela está cedendo seu direito de escolha e de igualdade, sendo possível enquadrar o Stealthing como fato típico. Sabe-se que em muitas práticas sexuais acontece a dissimulação ou o emprego de mentiras, sendo que estes elementos agridem absolutamente a liberdade sexual da parte hipossuficiente, ou seja, da mulher. 

Assim sendo, ainda que considerado o enquadramento típico do Stealthing ao crime de Violação sexual mediante fraude, verifica-se a necessidade de se aceitar a interpretação extensiva da Lei Penal, no sentido de assegurar que as vítimas desse tipo de violência tenham também acesso aos mecanismos legais de proteção aplicáveis aos casos de estupro. Tal medida garante a dignidade das vítimas e põe a salvo a saúde destas, pela realização apropriada do procedimento invasivo. Esta prática ocasiona danos de várias índoles. A reprimenda penal a esta prática precisa de lei específica. Nesse ínterim, contudo, deve-se admitir o enquadramento dessa conduta no crime de Estupro ou, pelo menos, no crime de Violência sexual mediante fraude.

Parte-se então para a educação sexual, abordagem da igualdade de gênero e direitos humanos, sendo extremamente importante para a compreensão das situações de abuso, o que pode levar as vítimas a reportar esses casos, e promover o impedimento e repressão desta prática, ao conscientizar possíveis abusadores. Acredita-se ser imprescindível em qualquer escola do país a discussão e ter nas grades a educação sexual como um tema transversal. Pois, sabendo que todas as classes sociais são atingidas pela violência sexual, é necessário levar informações para todas as escolas e famílias, com a finalidade precípua da prevenção à violência.

Pois, o processo de educação sexual nas escolas faz com que toda a comunidade escolar reflita, onde os pais são parte essencial em um país em que a cultura do estupro é constante, seja nas novelas, nos filmes, nas músicas e na interação com os indivíduos. É necessário atingir a todos para trazer uma reflexão sobre o que é violência sexual e seus danos, sobretudo falando sobre crianças e adolescentes, já que a violência sexual deixa marcas que são muito complexas de serem ressignificadas.

É preciso humanizar o tratamento dado às vítimas, tanto nas delegacias, quanto no momento da perícia, para que ela possa ter a sua saúde mental e a sua dignidade minimamente poupada, já tão estremecida por conta da barbaridade e da crueldade da conduta praticada. Pois a violência de gênero está no núcleo da cultura machista e patriarcal no mundo em que vivemos. Porém é preciso uma modificação na legislação para que o Stealthing possa ter uma tipificação própria, e felizmente, mesmo com pouca informação, muitas mulheres já detêm conhecimento sobre essa conduta. No entanto, para muito além de tipificar e penalizar aqueles que cometem tais práticas de violência de gênero, é necessário mudar a sua mentalidade, pois assim se conseguirá viver com maior justiça e equidade.

Por fim, estas foram algumas das perspectivas fundamentais para o aprofundamento do Stealthing quanto ao ordenamento jurídico, da violência de gênero, da afronta aos direitos fundamentais das mulheres, levando em conta aspectos como a educação sexual, a igualdade de gênero, os direitos humanos e a proteção da dignidade e integridade física e psicológica das vítimas de violência sexual.

2. METODOLOGIA

Para alcançar os objetivos deste estudo, foi realizada uma revisão de literatura, do tipo pesquisa bibliográfica.  Esta revisão foi fundamentada em publicações, na área da Direito, de dissertações, teses, artigos científicos de periódicos e capítulos de livros disponíveis em bibliotecas de instituições de ensino superior e virtuais como a Scientific Electronic Library Online – SciELO. 

O levantamento bibliográfico foi realizado entre fevereiro e março de 2023. Os descritores usados foram: estupro, igualdade de gênero, liberdade sexual e Stealthing; nos idiomas: português, inglês e espanhol. Esses descritores foram utilizados no intuito analisar a possibilidade de tipificação do Stealthing como estupro no Brasil.

A forma de abordagem do problema foi qualitativa de caráter descritivo, visto que buscou compreender a complexidade do tema, levando em conta aspectos sociais, culturais e jurídicos envolvidos no fenômeno do Stealthing.  Assim, a pesquisa foi exploratória e teórica, tendo como principal finalidade a investigação do tema, a fim de levantar possíveis contribuições para a jurisprudência e a doutrina.

Na análise de dados, optou-se por uma abordagem qualitativa, buscando interpretar e compreender as informações coletadas a partir da análise de bibliografias especializadas. A finalidade foi analisar o fenômeno do Stealthing à luz do ordenamento jurídico brasileiro e da jurisprudência, buscando identificar possíveis lacunas e contribuições para o tema.

Os procedimentos técnicos adotados foram bibliográficos, com o objetivo de levantar e analisar a literatura existente sobre o tema, além de analisar decisões judiciais e legislação relacionada. Quanto aos métodos, utilizou-se o método indutivo, que permitiu a análise de dados a partir de decisões judiciais e literatura especializada sobre o tema. Essa abordagem teve como objetivo compreender a realidade do fenômeno do Stealthing e suas implicações jurídicas a partir de fatos, buscando levantar possíveis elementos que possam contribuir para a tipificação do Stealthing como estupro no Brasil.

Por fim, a metodologia adotada previu o uso do método funcional, que permitiu a análise das funções e finalidades do fenômeno do Stealthing no contexto social e cultural em que se insere. Em suma, a metodologia proposta foi coerente e eficaz para o desenvolvimento da pesquisa sobre a tipificação penal do Stealthing como estupro no Brasil, uma questão importante e relevante no âmbito do Direito Penal e da proteção às vítimas de violência sexual.

3. ANÁLISE DOS RESULTADOS

Verifica-se nos capítulos explanados que o crime de estupro sempre fora assinalado pela violência de gênero contra a mulher, diante de uma determinação da dominância do sexo masculino diante da subordinação e passividade do sexo feminino. A configuração do Stealthing como violência de gênero procede do fato de que a prática acontece mais comumente entre um homem e uma mulher, admitindo componente específico da violência de gênero. O homem, neste panorama, comete violência contra a mulher, desconsiderando seu consentimento e colocando em risco sua integridade física. O homem, dentro desse contexto, pratica violência contra a mulher, deixando de contar com seu consentimento e colocando sua integridade física em risco. 

Os autores levantaram uma questão importante e atual sobre a prática do Stealthing, e como essa prática se enquadra como uma forma de violência de gênero. Ao tirar a autonomia da mulher sobre o seu próprio corpo e colocar sua saúde em risco, o homem perpetua a cultura do estupro e reforça a ideia de que o consentimento não é importante. Assim, conforme foi visto, é preciso conscientizar a sociedade sobre a importância do respeito à autonomia e à integridade física das mulheres e combater essa prática como uma forma de violência de gênero.

Verificou-se que apesar da sociedade mundial andar em passos lentos no tratamento correto em relação ao instituto do Stealthing, já há alguns países levando em conta a gravidade do tema, assim como já existem alguns episódios com condenações em nível internacional. Logo, deve o Brasil, com o intuito de efetivar a segurança e proteção jurídica, acompanhar os exemplos daqueles que efetivam esta proteção.

Pois, o reconhecimento do Stealthing como um crime à dignidade sexual por alguns países é um avanço importante na proteção dos direitos sexuais e reprodutivos das pessoas. É uma prática sexual que viola o consentimento e pode levar a consequências graves, como a transmissão de doenças sexualmente transmissíveis e a gravidez indesejada. A existência de legislação específica para punir o agente infrator é fundamental para garantir que as vítimas possam buscar justiça e que a prática seja desencorajada. No entanto, é necessário um esforço contínuo para conscientizar a população sobre a gravidade do Stealthing e prevenir sua ocorrência.

Pois, existe uma janela para que o autor do Stealthing não seja punido, já que não há no Brasil um tipo penal específico para incriminar a conduta. Esta margem se deve aos princípios norteadores do Direito Penal, qual seja o princípio da legalidade e o da taxatividade. Percebe-se que é necessário que ocorra a criação, por parte do poder legislativo, de um tipo penal que compreenda todas as particularidades do Stealthing, assim como suas possíveis consequências, para circunstâncias como a divulgada pela reportagem da BBC News não fiquem impunes. Destaca-se que por se tratar de uma conduta com muitas particularidades, ainda que difícil, não é impossível de se provar o seu acontecimento.

Embora o Stealthing seja uma violência sexual intimamente conectada à violência de gênero e à violação dos direitos fundamentais das mulheres, o tratamento dado aos agressores é mais um exemplo do descaso em relação aos direitos das mulheres nos dias atuais. 

É evidente que esta prática é uma enorme afronta aos direitos fundamentais (principalmente abrangendo igualdade e liberdade), sendo uma representação dos parâmetros da violência de gênero no país. Logo, é necessário reconhecer que a instituição escolar se exibe, em muitos casos, como um canal de rompimento da violência e da coerção disfarçadamente atribuída pelo agressor. A escola tem um potencial território para debate sobre esse tema, já que é espaço privilegiado de interação, socialização e aprendizagem de crianças e adolescentes e, ainda, de interlocução com suas famílias. Assim, assumir discussões transversais sobre gênero e sexualidade no espaço escolar, mediante um processo dialógico que englobe famílias e comunidades pode ser visto como um dos caminhos possíveis de combate da realidade da violência sexual, e ainda violência de gênero.

CONCLUSÃO

Com o presente estudo, ficou nítido que o Stealthing é considerado um crime sexual que constatando a fraude, a melhor tipificação na legislação atual está inserida no artigo 215 do Código Penal, como violência sexual mediante fraude (art. 215 CP), já que esta prática viola a dignidade sexual da vítima, ocasionando inclusive graves consequências como: gravidez não desejada, doenças infecciosas, estresse pós traumático, depressão, ansiedade e falta de autoestima, dificuldades em determinar novos vínculos afetivos e inibições do desejo sexual, como maneira de impedir um novo contato sexual que possa repetir a situação vivenciada por ela. 

Portanto, evidenciou-se assim a necessidade do Direito Penal atuar de forma eficaz para proteger os direitos humanos e a proteção da dignidade e integridade física e psicológica das vítimas e coibir essa prática prejudicial. Pode-se abranger a revisão das leis existentes ou a introdução de novas legislações específicas que possam prevenir, punir e educar sobre essa conduta. Evidenciou-se a necessidade ainda de se proporcionar proteção legal às vítimas, ajudando em seu acolhimento, uma vez que os traumas causados, físicos e psicológicos, podem perdurar por toda a vida da mesma, impedindo-a de se reintegrar dignamente à sociedade por achar que pode vivenciar esta situação novamente e constrangimento dada a falta de leis mais claras e específicas.

Neste sentido, os objetivos do artigo foram alcançados, já que foi possível entender a conduta como violência à mulher, designadamente como um crime contra a dignidade sexual ante a falta de consentimento. Notou-se que o termo Stealthing é, de fato, desconhecido, sobretudo porque uma grande parte da sociedade faz vista grossa sobre quase todo e qualquer tipo de violência fruto da cultura patriarcal e machista que estabelece a proteção dos direitos e garantias individuais das mulheres. Todavia, reconheceu-se a importância da educação sexual como principal instrumento contra séculos de dominação masculina, sobre ainda o direito à igualdade e a dignidade inerente a todos os seres humanos, principalmente às mulheres, até mesmo como mecanismo de apoio a crianças e adolescentes para desenvolver ferramentas de autoproteção. 

REFERÊNCIAS

BARRUCHO, L. Retirou a camisinha e confessou, mas a Justiça não puniu o caso da brasileira vítima de stealthing. BBC News. 15. Abr. 2022. 

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto De Lei Nº 965 de 2022. Altera dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, acrescentando o artigo 215-B, a fim de tipificar o ato de remoção proposital de preservativo, sem o consentimento do parceiro ou da parceira, “stealthing”, e dá outras providências. Brasília, DF, 2022.

BRODSKY, A. Rape-Adjacent”: Imagining legal responses to non-consensual condom removal. Columbia Journal of Gender and Law, vol. 32, n. ° 2, Nova Iorque, Columbia University School of Law, p. 183-210, 2017.

CHESSER, B. New Zealand’s first successful ‘stealthing’ prosecution leads the way for law changes in Australia and elsewhere. The Conversation. 27. abr. 2021.

DE CARVALHO, B. A.; JÚNIOR, W. de C. F. L. Stealthing: sua melhor adequação ao direito brasileiro diante da possibilidade de um novo tipo penal. Revista Jurídica Legalislux, v. 4, n. 1, p. 25-38, 2022.

GUEDES, E. A. S.; GARBIN, M. A. Violência de gênero contra a mulher e a adequação típica da prática stealthing no direito penal brasileiro. Revista de Direito Contemporâneo UNIDEP, v. 1, n. 2, p. 212-227, 2022.

SALIM, A.; AZEVEDO; M. A. de. Direito Penal: Parte Especial – Dos crimes contra a pessoa aos crimes contra a família. Salvador: Editora JusPodivm, 2017.

ZANATTA, A. L. “Stealthing” A retirada não consensual do preservativo durante a relação sexual hétero em mulheres maiores que catorze anos. 2021.


1Acadêmica de Direito. E-mail: katdias17@gmail.com. Artigo apresentado ao Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas- CIESA, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito, Manaus/Am, 2023.
2Professor Mestre Orientador. Professor do Curso de Direito. E-mail: ricardobraz@mpf.mp.br.