REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8274752
Luiza Dias Seghese
Victor Volpe Albertin Fogolin
Júlio César Franceschet
Resumo: Este artigo discute a necessidade de transcender a perspectiva unidisciplinar do direito, influenciada pelo positivismo jurídico, que se fixa na interpretação literal da lei, negligenciando a realidade e outras áreas do conhecimento. O texto explora figuras jurídicas que confrontaram a unidisciplinariedade, advogando por uma abordagem mais crítica e interdisciplinar do direito. Em síntese, o estudo conclui que é premente estimular uma visão mais crítica e interdisciplinar do direito, viabilizando uma atuação mais eficaz dos juristas na sociedade e a introdução de inovações no âmbito jurídico. O ensino jurídico é apontado como fator influente na adoção de uma visão restrita do direito por muitos estudantes. Enfatiza-se a relevância de integrar o ensino do direito com outras disciplinas, capacitando os juristas a embasar suas decisões de maneira mais sólida e contribuir para a solução de questões sociais. Essa transformação pode promover a abertura de discussões políticas pertinentes e o surgimento de juristas habilitados a provocar mudanças significativas na sociedade.
Palavras-chave: Perspectiva unidisciplinar; Abordagem interdisciplinar; Positivismo jurídico; Educação jurídica.
Abstract: This article addresses the necessity of overcoming the unidisciplinary view of law influenced by legal positivism, which focuses on the literal interpretation of the law without considering reality and other disciplines. The text presents jurists who fought against unidisciplinarity and advocated for a more critical and interdisciplinary approach to law, such as Orlando Gomes, Francisco San Tiago Dantas, and Raymundo Faoro. In summary, the article concludes that fostering a more critical and interdisciplinary perspective of law is essential for jurists to effectively engage in society and bring innovation to the legal field. Legal education is highlighted as responsible for many students adopting a closed view of the law. The importance of integrating legal education with other fields of knowledge is emphasized, allowing jurists to make well-founded decisions and contribute to solving social issues. This shift would enable the opening of relevant political debates and the emergence of jurists capable of driving significant societal changes.
Keywords: Unidisciplinarity; Interdisciplinarity; Legal positivism; Legal education.
A expressão do positivismo jurídico teria surgido na Alemanha, no século XIX, com os debates sobre a necessidade de codificação travados entre os defensores de Savigny – quem seria essa codificação a cristalização da má lei e os defensores de Thibaut – para quem seria necessária maior segurança jurídica -, grande influência da França, que, em 1804 editou o Código Civil Napoleônico, levando ao surgimento da Escola.
Elinor Ostrom foi a primeira mulher a ganhar o Prêmio Nobel de Economia, em 2009. A economista americana fez seu nome, entre outras coisas, por seus comentários mordazes dirigidos a economistas que permaneceram principalmente no teórico-abstrato e se esqueceram de observar a prática.
Levando em conta essas críticas, como forma de homenagem, a jurista Lee Anne Fennell estabeleceu o axioma conhecido como Lei de Ostrom, que pode ser enunciado da seguinte forma: “Um arranjo de recursos que funciona na prática pode funcionar em teoria”[1]. Embora o axioma seja mais dirigido à uma crítica econômica, é possível a sua aplicação para uma crítica ao predominante modo de se pensar o direito, fundado em interpretações com o forte distanciamento da realidade e foco na letra da lei, sem viés crítico, que praticamente desconsidera a prática e separa o direito de outras disciplinas.
O positivismo jurídico tem como fundamentos principais as ideias de que o direito é baseado na coerção, que a fonte do direito é o direito – a menos que o uso do costume seja autorizado pelo -, a incontestabilidade do mérito das leis e do ideal de interpretação dos direitos, que “faz prevalecer o elemento declarativo sobre o elemento produtivo ou criador do direito”, conduzindo a uma quase sempre textual, desconsiderando a realidade, ou considerá-lo apenas se a lei o estabelecer, adotando uma abordagem unidisciplinar.
Apoiados na teoria pura da lei de Hans Kelsen, os agentes da lei se submeteram à condição de meros agentes da lei em resposta às tentativas de outros campos de conhecimento da lei.
José Eduardo Faria, a fim de ilustrar o que seriam os advogados fora da curva”, analisa a trajetória de três advogados: Orlando Gomes dos Santos, Francisco San Dantas e Raymundo Faoro.
Em comum entre os três juristas, José Eduardo Faria destaca a luta contra a unidisciplinariedade do direito e contra o fetichismo da legalidade, na busca por uma renovação da concepção Direito então vigente, que possuía forte enfoque positivista. O autor conclui de forma melancólica, destacando que a linhagem desses “juristas fora da curva” não deixou herdeiros e que o isolamento do direito levou à decadência do pensamento jurídico, e ao deslocamento dos centros de pesquisa para outras áreas mais abertas do conhecimento, dificultando o desenvolvimento do Direito vigente.
Orlando Gomes foi um privatista baiano que frequentemente utilizava abordagens heterodoxas, com aversão ao conservadorismo e à importância da sociologia para o direito e em conta em suas análises, especialmente do direito civil, sempre destacando as questões sociais, políticas e econômicas e apresenta, por exemplo, através de uma análise do direito do trabalho sob o ângulo da luta de classes.
San Tiago Dantas foi um jurista carioca que se tornou Ministro das Relações Exteriores e Ministro da Fazenda, formalismo frequente do positivismo e defensor de uma visão do direito e membro do assim-dito” esquerda”, crítica às pressões populistas, particularmente em relação ao projeto desenvolvimentista mencionado no início dos anos 1960.
Partindo de um raciocínio contrario sensu do pensamento de José Eduardo Faria, o jurista médio configurar-se-ia com um anti-intelectual, que não cria, não possui pensamento crítico, que congela o direito vigente com sua intepretação, vendida como verdade científica. Em razão da predominância desse perfil, os juristas – inclusive os fora da curva, devido ao estabelecimento de um estereótipo – são jogados para escanteio de debates políticos importantes, sendo acionados somente para esclarecer a lei vigente, dificilmente para inovar e melhorar o Direito vigente. Em suma, só se consultam os juristas para saber o que é legal e o que é ilegal. Consequentemente, as pesquisas jurídicas são menos incentivadas, tendo em vista que a sociedade possui mais interesse em saber como o Direito pode atuar para impulsionar um maior desenvolvimento econômico do que em saber as 10 interpretações diferentes de um artigo do Código Civil – modelo de pesquisa frequente.
Ressalva-se que a culpa da predominância de juristas médios deve-se em maior parcela ao ensino jurídico no país do que à falta de vontade de dedicar-se nos estudos interdisciplinares por parte dos próprios estudantes. O ensino jurídico, com um forte viés positivista e impulsionado pela febre dos concursos públicos, reduziu o direito à uma disciplina autopoiética e fechada, em que se objetiva saber a interpretação da lei em abstrato, sem levar em conta as consequências concretas e sem um viés crítico.
Interessante episódio, também influenciado pelo positivismo, destaca a perda de ambição das faculdades de direito e a dominância do jurista médio no Brasil. A introdução dos cursos de Direito no Brasil ocorrida em 1827, por Dom Pedro I, com a criação da Faculdade de Direito de Olinda e da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Os cursos inicialmente recebiam o nome de “Ciências Jurídicas e Sociais”, destacando o olhar social, em tese, inerente ao direito e a multidisciplinariedade. Entretanto, sob a influência positivista da unidisciplinariedade, a palavra “Sociais” foi excluída, sendo criado um curso diverso de “Ciências Sociais” em São Paulo, em 1934[2].
Destaca-se que a luta contra a unidisciplinariedade do Direito não é uma luta contra a segurança jurídica. Pelo contrário, trata-se de incentivar juízes a decidir com base na realidade e com conhecimento em diversas disciplinas, levando em conta as consequências práticas da decisão, inclusive os possíveis problemas da decisão judicial que podem afetar a segurança jurídica, não havendo fuga da lei, mas uma interpretação mais coerente com a realidade, já que o legislador é incapaz de prever no texto legal todos os casos possíveis. Outrossim, trata-se também de criar incentivos para que mais juristas pensem, de forma mais aprofundada, em maneiras de assegurar mais segurança jurídica.
O conhecimento está disperso na sociedade, em fragmentos incompletos na mente de pessoas desconhecidas[3], da mesma forma, o potencial de inovação e criação. Com o ensino jurídico unidisciplinar, perde-se uma geração de gênios desconhecidos, que nunca tiveram aproveitadas suas capacidades de inovar na interação do Direito com determinada área, pois o ensino jurídico aplicado focou somente na letra da lei e ensinou uma concepção de Direito fechado, abstrato, sem viés crítico. O ensino jurídico deve criar os incentivos para que a capacidade dos estudantes seja aproveitada ao máximo, inclusive o potencial de criação de inovação das mentes.
Destaca-se que a redução de incentivos à critica social não parece ser sintoma que ocorre exclusivamente no Brasil e exclusivamente no campo do Direito. De acordo com Axel Honneth[4], sociólogo alemão, nas democracias avançadas hodiernas há um constante crescimento do número de intelectuais normalizados – especialmente em razão da expansão da educação e da disseminação da mídia – e por outro lado, se tem a marginalização dos críticos sociais. Ao diferenciar os intelectuais dos críticos sociais, o autor destaca que os intelectuais se mantêm dentro de um arcabouço conceitual e aceitam o sistema descritivo vigente, de forma rasa, com diretrizes conceituais da esfera pública, a fim de ganhar uma maior audiência, enquanto a crítica social, por sua vez, dedica-se a perfurar habilmente essas estruturas tentadas e testadas e continuamente fazê-las cessar, desfazendo mitos sociais que fazem parte do establishment.
Ainda, ressalta o Honneth que, diferentemente do constante fluxo de discussões levantadas pelos intelectuais normalizados, que debatem as necessidades, opiniões e posicionamentos dentro de um sistema descritivo democraticamente entendido, a crítica social, haja vista sua complexidade – de questionar os pressupostos por trás da suposta normalidade social –, necessita de um maior prazo antes que seus feitos atinjam a percepção social e a transformem. De fato, traçando-se um paralelo com os juristas, nota-se um aumento significativo de intelectuais normalizados – juristas “dentro da curva” -, sem capacidade de formular críticas sociais e com pensamento raso, muito em razão do fetiche da legalidade, por se aterem quase exclusivamente a um estudo literal de leis.
O Direito se propõe a regular diversas áreas do conhecimento, que possuem disciplinas próprias, tais como a medicina e a economia, trazendo, para dentro de si, conceitos extrajurídicos. Mostra-se imprescindível que os juristas também estudem outras áreas do conhecimento, inclusive para uma mais efetiva aplicação da lei, que leve em conta a realidade, e não somente teorias que parecem belas em abstrato. Não há como um jurista aplicar o princípio constitucional da livre concorrência (art. 173, § 4º) sem uma base de conhecimento em economia; não há como um jurista decidir pela proibição de um tratamento sem uma base de conhecimento médico.
De forma análoga, faz-se necessário integrar o ensino do Direito com outras áreas do conhecimento, como a sociologia, e ultrapassar a mera interpretação conforme a vontade do legislador e a letra da lei para que normas mais antigas sejam aplicadas em consonância com a atualidade, levando em conta as mudanças sociais. Como exemplo, cita-se o crime de ato obsceno (art. 233 do Código Penal), que certamente poderia levar o juiz a punir uma pessoa que andasse de biquíni no centro de uma cidade praiana há 60 anos atrás. Se a aplicação continuasse exclusivamente conforme a letra da lei e a vontade de legislador, sem uma análise do modelo cultural de atitude, tal conduta continuaria sendo crime.
O Direito, tomado como unidisciplinar, fechado e focado na interpretação da letra da lei é significantemente menos capaz de ajudar nos problemas da sociedade do que um Direito multidisciplinar e com viés crítico, tanto por estimular o pensamento na solução de problemas sociais, como por sofisticar tais soluções, com uma maior base de conhecimento. Muitos dos problemas sociais não são solucionados ou ao menos mitigados somente com a publicação de uma nova lei, necessita-se também pensar em políticas públicas – incentivadas pelo viés crítico e mais sofisticadas com a multidisciplinariedade – que levam a uma concretização do previsto na lei. Se bastasse a publicação de uma lei e a aplicação das leis pelas decisões dos juízes, todos os brasileiros teriam moradia e educação.
Felizmente, verifica-se atualmente uma adesão maior – embora não totalmente consolidada – à luta contra a unidisciplinariedade do direito, destacando-se o avanço com a publicação da Lei 13.655/18, que alterou a LINDB, estabelecendo uma nova redação ao seu artigo 20:
“Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.”
A lei é fruto de um projeto apresentado pelo Senador Antonio Anastasia, elaborado pelos Professores da USP Carlos Ari Sundfeld e Floriano de Azevedo Marques Neto. Tal alteração objetiva fazer com que os juristas adotem uma interpretação jurídica que leve em conta a realidade, balanceando as consequências práticas, vedando a decisão fundamentada exclusivamente em valores jurídicos abstratos.
Outrossim, destacam-se recentes avanços na jurisprudência nesse sentido. No HC 124.520, em que detento pleiteava a remissão ficta da pena, alegando que o Estado não o proporcionou condições de trabalho e estudo, venceu na 1ª Turma do STF o voto proferido pelo ministro Luís Roberto Barroso, que apesar de reconhecer no caso a omissão estatal, negou a remição pelo trabalho ficto, tendo em vista as consequências da decisão, o impacto sistêmico e estrutural que ocorreria no sistema penitenciário, principalmente que quase todos os presos virtualmente teriam a oportunidade de descontar da pena a cumprir dias nos quais não desempenharam nenhuma atividade. No STJ, no julgamento do RE 1.163.283, anulou-se decisão judicial que concedia uma revisão de prestações do saldo devedor e repetição de indébito em um contrato de financiamento habitacional, sob o argumento, baseado na análise econômica do direito, de que o efetivo cumprimento dos contratos de financiamento de imóveis é pressuposto para o funcionamento de todo o sistema de financiamento habitacional, já que, com constantes revisões judiciais sem motivos fortemente justificáveis, financiadores se sentiriam desmotivados em firmar novos contratos, prejudicando interessados nessa espécie de financiamento.
Espera-se que a ainda tímida luta contra a unidisciplinariedade do direito avance, para que juristas readquiram papel central nas discussões políticas, pesquisas jurídicas sejam mais interessantes à sociedade e mais incentivadas, a aplicação do direito seja menos alienada e mais eficiente e para que surjam cada vez mais juristas fora da curva.
Por fim, o jurista fora da curva, além de conhecer o Direito, também age para mudá-lo. Um ensino jurídico que ensine somente as interpretações da lei vigente condena uma grande parte de uma geração de estudantes a se contentar ao congelamento de seu Direito, levando ao desperdício do potencial de mentes brilhantes de pensar em uma sociedade melhor, que não agem por falta de incentivos, e consequentemente condena a sua sociedade a um ritmo mais lento e menos efetivo de evoluções.
BIBLIOGRAFIA
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[1] FENNEL, Lee Anne. “Ostrom’s Law: Property Rights in the Commons”. John M. Olin Program in Law and Economics Working Paper No. 584, 2011.
[2] UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Anuário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (1934 – 1935). São Paulo: Revista dos Tribunaes, 1937.
[3] HAYEK, Friedrich. O Uso do Conhecimento na Sociedade. 1948. Disponível em: <https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1665> Acesso em: junho de 2018.
[4] HONNETH, Axel. Idiosyncrasy as a Tool of Knowledge: Social Criticism in the Age of the Normalized Intellectual. 2007.