REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8245025
José Barbosa Costa1
Moisés Monteiro de Melo Neto2
RESUMO: Frankenstein, publicado em 1818, é um romance de ficção científica que extrapola o sobrenatural e que é marcado por sua originalidade, criatividade e atemporalidade, elementos que fizeram com que diversos escritores, dramaturgos, roteiristas e artistas promovessem adaptações da narrativa, por meio de diferentes semioses. No constante a isso, verificamos que, em pleno século XXI, mais de duzentos anos após a publicação desse clássico literário, muitos pesquisadores preocupam-se em investigar elementos que compõe a história, influências na criação, recepção da crítica literária do período e os pontos de encontro com a ciência atual. Nesse sentido, o presente trabalho tem como objetivo analisar a tríade mito, ciência e religião na obra Frankenstein, de Mary Shelley, partindo dos diálogos promovidos no interior da narrativa com o mito do Prometeu, o Paraíso Perdido e as discussões em torno do Galvanismo. Para tanto, realizamos uma pesquisa bibliográfica de base qualitativa, baseados na leitura da obra na íntegra, na exploração de críticas a respeito do romance e em pesquisas acadêmicas sobre Frankenstein como protagonista, a saber: Argôlo (2012), Lucas e Rodrigues (2017), Malrieu (1992), Rodrigues (2007), Gonçalves (2021), Ramos e Benedito (2019), Gomes (2018), entre outros. A partir da análise da obra, verificamos a presença de um diálogo próspero entre o mito, a ciência e a religião que auxiliaram na produção de um texto literário crítico, fruto de experiências teóricas e vivenciais da autora. Além disso, promoveu reflexões sobre os limites da ciência, e os mistérios da natureza.
Palavras-chave: Frankenstein. Mito. Ciência. Religião. Sobrenatural.
ABSTRACT: Frankenstein, published in 1818, is a science fiction novel that goes beyond the supernatural and that is marked by its originality, creativity and timelessness, elements that made several writers, playwrights, screenwriters and artists promote adaptations of the narrative, through different ways. semiosis. In constant this, we find that, in the 21st century, more than two hundred years after the publication of this literary classic, many researchers are concerned with investigating elements that make up the story, influences on creation, reception of literary criticism of the period and the points against current science. In this sense, the present work aims to analyze the triad myth, science and religion in Mary Shelley’s Frankenstein, starting from the dialogues promoted within the narrative with the myth of Prometheus, Paradise Lost and discussions around Galvanism. To this end, we carried out a qualitative bibliographical research, based on the reading of the work in its entirety, on the exploration of criticisms about the novel and on academic research on Frankenstein as a protagonist, namely: Argôlo (2012), Lucas and Rodrigues (2017) Malrieu (1992), Rodrigues (2007), Gonçalves (2021), Ramos and Benedito (2019), Gomes (2018), among others. From the analysis of the work, we verified the presence of a prosperous dialogue between myth, science and religion that helped in the production of a critical literary text, the result of the author’s theoretical and experiential experiences. In addition, it promoted reflections on the limits of science, and the mysteries of nature.
Keywords: Frankenstein. Myth. Science. Religion. Supernatural.
1-INTRODUÇÃO
A obra Frankenstein ou o moderno prometeu é um romance gótico escrito por Mary Shelley, em 1818, organizado em estrutura epistolar, ou seja, em formato de cartas que narram os acontecimentos. A narrativa gira em torno da vida de Victor Frankenstein, um jovem cientista que, obcecado por descobrir os segredos da vida, constrói uma criatura por meio de partes de cadáveres, retirados de cemitérios e matadouros. O jovem é movido pela ânsia do conhecimento e não mede esforços para que os seus estudos causem uma grande revolução na humanidade, no entanto, ele não esperava que isso pudesse prejudicar os acontecimentos da sua vida, das pessoas que estavam ao seu redor, como a família e os amigos.
Após concluir a criação, Frankenstein se horroriza com a aparência do monstro e foge, deixando-o abandonado e solitário. A criatura, então, começa a explorar o mundo e tenta entender a sua existência. Apesar de sua aparência assustadora, ele é dotado de sensibilidade e inteligência, porém, é rejeitado e maltratado pelas pessoas, o que o leva a buscar vingança contra o seu criador.
O romance explora temas como a ambição humana, a busca pelo conhecimento e o poder da ciência. Além disso, aborda a solidão, a alienação social e a responsabilidade moral das nossas ações. Frankenstein se tornou um clássico da literatura e inspirou inúmeras transmissões em outras mídias, como filmes, séries e peças de teatro. Sua narrativa atemporal e seus temas ainda ressoam nos dias de hoje, e a obra continua sendo estudada e admirada.
A narrativa aborda, de forma explícita, aspectos mitológicos, desde o título, que nos leva a refletir sobre as possíveis semelhanças simbologias da criação de Frankenstein e o mito do Prometeu; aspectos religiosos, com passagens da obra O paraíso perdido[3], o uso constante do termo “Deus” ao longo de toda a história e a relação entre criador e criatura; além do caráter científico, uma vez que a obra foi escrita em um período em que a ciência passava por profundas transformações, isso causava uma insegurança na sociedade, pois não conseguiam prever até onde a ciência poderia acessar, sobretudo, a partir das experiências com a eletricidade, ciência conhecida como Galvanismo, que prometia recuperar sinais vitais de animais.
Nessa conjuntura, a obra reúne discussões em torno desses três elementos, por meio de uma narrativa aterrorizante e sobrenatural que envolve roubo de corpos sepultados, a fim de dar-lhes novamente a vida. Foi a primeira obra produzida na vertente da ficção científica, ao tempo em que apresenta elementos do Romantismo (movimento literário vigente no período), a partir do subjetivismo da personagem principal e do inconformismo da criatura; e da Literatura Gótica, com base na construção dos mistérios e do lado obscuro da ciência.
Este clássico da literatura é dotado de complexidade, o que foi motivo de questionamentos quanto à sua autoria. No século XIX, as mulheres ainda não possuíam um espaço de visibilidade dentro das produções artísticas e literárias, uma vez que o conhecimento ainda era restrito aos homens, enquanto as mulheres assumiam o papel de dona de casa e de mãe. Em alguns casos, as mulheres produziam obras que eram assinadas por homens, principalmente, por medo de a obra não alcançar prestígio caso fosse revelada a verdadeira autoria (CARVALHO, 2019).
Em uma das introduções, produzida pela autora, em 1831, ela evidenciou como se deu a ideia da escrita e quais foram as orientações e inspirações que teve para a produção, deixando claro a sua autenticidade. Com isso, destacou o papel dos pais na sua educação, pois era filha do filósofo William Godwin e da feminista e escritora Mary Wollstonecraft, o que lhe proporcionou, desde cedo, um ambiente de aprendizagens complexas, rodeadas de livros e de intelectuais renomados do período, grandes amigos dos seus familiares. Conforme destaca: “Por ser filha de duas personalidades de notável celebridade literária, não é surpresa alguma que eu pretendesse escrever ainda no início de minha vida” (SHELLEY, 2019 p. 9).
Segundo a autora, a ideia de produzir a narrativa surgiu após um encontro com Lord Byron, poeta britânico do Romantismo, durante uma temporada de verão na Suíça, onde tornou-se sua vizinha, em companhia de Percy Bysshe Shelley, seu esposo e também poeta, foi lançado um desafio para todos que estavam na roda de conversa que era: “Cada um de nós vai escrever uma história de fantasmas” (SHELLEY,2019 p.12). Diante disso, Mary passou dias sem conseguir articular as ideias para a produção da história, até que, após ouvir longas conversas entre Lord Byron e Shelley sobre experiências do Dr. Darwin e sobre o galvanismo, foi dormir e teve um pesadelo, o qual deu origem à narrativa que, de início, seria apenas um conto, mas acabou se expandindo e se aperfeiçoando até atingir a dimensão que conhecemos hoje.
Sem dúvidas, conseguimos observar a relevância dessa obra e da criatividade da autora que realizou uma fusão de vários elementos dentro de uma única narrativa, rica em detalhes, intertextualidades, conhecimentos e críticas. Desse modo, reconhecemos a necessidade de discutir sobre essa produção, uma vez que, mesmo sendo produzida originalmente em Língua Inglesa, contamos com traduções para o português, (dentre várias línguas) adaptações para o cinema, peças teatrais, contos, histórias em quadrinhos, entre outros, o que vêm proporcionando uma maior acessibilidade aos diversos públicos de diferentes faixas etárias.
Além disso, nos faz refletir sobre os trilhos seguidos pela ciência, haja vista a quantidade de críticas tecidas no século XIX e as experiências e elementos que observamos dois séculos depois.
Nesse sentido, o presente trabalho tem como objetivo analisar a tríade mito, ciência e religião, na obra Frankenstein, de Mary Shelley, partindo dos diálogos promovidos no interior da narrativa com o mito do Prometeu, o Paraíso Perdido e as discussões em torno das ciências. Para tanto, realizamos uma pesquisa bibliográfica de base qualitativa, baseados na leitura da obra na íntegra, na exploração de críticas a respeito do romance e em pesquisas acadêmicas que tomam Frankenstein como protagonista, a saber: Argôlo (2012), Lucas e Rodrigues (2017), Rodrigues (2007), Gonçalves (2021), Ramos e Benedito (2019), Gomes (2018), entre outros.
A partir da análise, verificamos a presença de um diálogo convergente entre o mito, a ciência e a religião que auxiliaram na produção de um texto literário crítico, fruto de experiências teóricas e vivenciais da autora.
Esta pesquisa segue organizada em quatro seções. Na primeira, apresentamos algumas características estilísticas e estruturais da obra, bem como algumas críticas difundidas por pesquisadores (FAGUNDES, 2019; MONTEIRO, 2004; BASSO; MARQUES, 2018) e adaptações; na segunda, discorremos sobre a presença de diálogos mitológicos na obra; na terceira, discutimos sobre a narrativa religiosa e o possível “castigo” vivido por Victor Frankenstein; por fim, evidenciamos o espelho da ciência naquele período e como isso implica na ciência moderna.
2- FRANKENSTEIN: POSSÍVEIS LEITURAS
A obra-prima de Mary Shelley é composta por vinte e cinco cartas e vinte e quatro capítulos, utiliza a estrutura epistolar para criar uma ilusão de que os eventos narrados são reais, seguindo a estratégia da literatura gótica. Nesse cenário, “com relatos dentro de relatos, a história é contada sob diferentes pontos de vista, de narradores diversos, com suas próprias perspectivas e limitações. Tal recurso, de narrativas encaixadas, influencia de forma relevante a composição da trama” (LUCAS; RODRIGUES, 2017, p. 20).
Em uma série de cartas endereçadas à sua irmã, o capitão Robert Walton descreve sua tentativa obsessiva de alcançar o Polo Norte e o seu encontro com Victor Frankenstein, um amigo que lhe faltava para compartilhar os seus anseios. Nesse cenário relativamente realista, o cientista conta a Walton a história de como ele criou e abandonou o monstro, feito de partes de cadáveres. A conversa entre ambos é centrada na discussão sobre a vida de Victor e como a sua ganância o levou até aquele lugar, alertando o amigo de que é preciso impor limites aos nossos objetivos, para que eles não extrapolem espaços que não devem ser acessados (BATISTA; MENON; BATISTA, 2020). Diante disso, em uma lição apropriada, o autor enfatiza a necessidade de conectar nossos objetivos a limites e regras aceitáveis de conduta, a fim de evitar que até mesmo nossos desejos mais poderosos nos façam passar por um campo de batalha que não podemos controlar.
Todos esses episódios geraram consequências ao cientista, pois, ao ser rejeitada pela sociedade, a criatura se vinga de seu criador, sobretudo, porque ele a priva do direito de ter uma companheira, conforme destacado na seguinte passagem:
— Retire-se! Não existe mais promessa! Desisti de criar outro ser tão feio e torpe como você.
— Tendo-o sob meu jugo, fui condescendente com você, mas demonstrou ser indigno disso. Lembre-se de que sou poderoso. Você se julga desgraçado, mas posso torná-lo muito mais infeliz do que supõe. Você é meu criador, mas o senhor sou eu. E terá de obedecer-me.
— Passou a hora da minha irresolução e também do seu poder. Suas ameaças não me intimidam, mas antes confirmam o meu acerto em desistir de criar uma companheira à sua semelhança. Vá-se embora! Minha decisão é firme e suas palavras podem apenas exasperar-me (SHELLEY, 2019 p. 195).
Neste trecho, há um diálogo tenso entre Victor Frankenstein e a criatura, pois o cientista expressa a sua decisão em desistir de criar uma companheira para a criatura, acreditando que seria mais um ser que poderia trazer riscos à humanidade. Se antes do pedido, o mostro já havia realizado ações horrendas, como a morte do irmão de Frankenstein; após a negação, ele se empenha em, de fato, acabar com qualquer motivo de felicidade para a vida do seu criador, chegando ao extremo que foi a morte de Elizabeth (amada de Victor), depois do casamento.
Após testemunhar a destruição da sua família e dos amigos, Frankenstein sucumbe à exaustão e submete-se à uma perseguição da criatura, até chegar no destino final, nas geleiras do norte, em que foi encontrado pelos tripulantes, resgatado e cuidado, no entanto, entrega-se à morte. Neste momento, Walton encontra a criatura, que está disposta a tirar sua própria vida por ter perdido aquele que dizia ser seu pai. Dessa forma, “esta obra pode ser objeto de várias leituras, desde aquelas que partem da crítica literária à interpretação política, passando pelas análises histórica, filosófica, epistemológica, sociológica, educacional, psicanalítica, científica, feminista, marxista e mitológica” (BATISTA; MENON; BATISTA, 2020, p. 125).
Este romance está inserido na literatura gótica em voga no final do século XVIII, durante o movimento romântico. Ela é caracterizada pela criação de atmosferas abandonadas, misteriosas e assustadoras, explorando temas como o sobrenatural, a morte, o medo e o macabro. Além disso, evoca sentimentos de terror e de suspense no leitor, por meio de elementos como castelos abandonados, cenários sombrios, personagens sobrenaturais, eventos inexplicáveis e situações ameaçadoras (SILVA, 2013).
Esse tipo de narrativa explora a tensão entre o racional e o irracional, o natural e o sobrenatural e, muitas vezes, apresenta personagens em conflito com suas próprias paixões, medos e obsessões. Malrieu (1992) assinala que o fantástico nunca saiu completamente dessa situação confusa, tanto na teoria quanto na prática, desde sua origem no romantismo europeu. Para Malrieu, o fantástico existe numa época em que a realidade apresenta assombrados contrastes. A estética gótica influenciou profundamente outros gêneros literários, como o horror, o mistério e a ficção científica (AZEVEDO, 2013). Ainda, a literatura gótica aborda temas como a natureza humana, a dualidade do bem e do mal, e os limites da razão. Alguns exemplos famosos incluem, além do Frankenstein, de Mary Shelley; Drácula, de Bram Stoker e os contos de Edgar Allan Poe.
O estilo gótico permeia a obra Frankenstein, através dos cenários que evocam um senso de terror e de assombração. A criação do monstro, por exemplo, é uma abominação contra as leis da natureza, gerada em uma figura grotesca e apavorante:
Sua pele amarela mal encobria os músculos e artérias da superfície inferior. Os cabelos eram de um negro luzidio e como que empastados. Seus dentes eram de um branco imaculado. E, em contraste com esses detalhes, completavam a expressão horrenda dois olhos aquosos, parecendo diluídos nas grandes órbitas em que se engastavam, a pele apergaminhada e os lábios retos e de um roxo enegrecido (SHELLEY, 2019 p. 68).
Essa mistura de ciência e horror contribui para a atmosfera gótica do romance, explorando os limites da razão humana e a busca pelo conhecimento, além do que é considerado aceitável. A dualidade entre o bem e o mal é construída a partir dos personagens Victor e de sua criação, pois o cientista, consumido pela ambição e arrogância, cria um ser que se torna símbolo da destruição e da vingança.
A dualidade moral acrescenta uma camada de complexidade e de profundidade à narrativa, ou seja, leva-nos a refletir sobre qual dos dois é mais cruel: o criador que abandona a criatura, assim como um pai que abandona o seu filho ou o mostro que realiza atrocidades para se vingar da atitude do criador? Essa discussão em torno do bem e do mal é um dos aspectos mais intrigantes da obra, pois o leitor é levado a participar de um jogo em que ora sente-se comovido com a realidade vivida pelo monstro e sente raiva de Victor por ter o abandonado e ora sente raiva de todas as maldades que ele provoca se sensibilizando com a situação na qual o cientista vive (ZOBOLI; MANSKE; DANTAS JÚNIOR, 2019).
Outro ponto relevante a ser explorado é a crítica produzida sobre a obra, na época e lugar, quando uma obra ganhou notoriedade, ou depois os pesquisadores e amantes desse tipo de produção observaram possíveis lacunas ou novas construções de sentidos. Com a obra Frankenstein, em que algumas críticas estão centradas, por exemplo, na representação das personagens femininas.
Segundo Fagundes (2019), as personagens femininas são estereotipadas e têm papéis limitados, sendo retratadas como figuras passivas e dependentes, em que desempenham o papel de vítimas ou de interesse romântico dos personagens masculinos, como é o caso da mãe de Victor, da empregada assassinada e da esposa dele, também assassinada.
Alguns críticos discorrem sobre a falta de desenvolvimento e complexidade da criatura, pois, apesar de ser a figura central da história, é retratada de forma unidimensional, sem que alegam explorá-las completamente suas motivações, emoções e dilemas. Isso levanta questões sobre a falta de profundidade e empatia com o personagem, até mesmo pelo fato dele não possuir nome, sendo chamado de criatura ou monstro: “o monstro continuava a proferir palavras incoerentes, amaldiçoando a si próprio” (SHELLEY, 2019, p. 250).
Os aspectos éticos e científicos também fizeram com que a obra fosse criticada. A criação do monstro, por meio da ciência, levanta questões sobre a responsabilidade científica e os perigos da manipulação da vida. Além disso, a obra também foi interpretada como uma crítica à arrogância humana ao desafiar as leis naturais, refletindo preocupações éticas e filosóficas sobre a busca pelo conhecimento e suas consequências, reverberadas no comportamento dos personagens, pois “ao realizar o experimento, Victor não considerou as consequências que poderiam daí surgir, principalmente com relação ao futuro, mas somente a satisfação pessoal no presente” (RAMOS; BENEDITO, 2019, p. 29).
Para elencar apenas mais uma crítica, a estrutura é considerada complexa, pelo fato de a história ser contada em formato epistolar e em múltiplas camadas, através das cartas de Robert Walton, dos relatos de Victor Frankenstein e das experiências da criatura. Por isso, alguns leitores consideraram a narrativa confusa e argumentaram que a estrutura dificulta a fluidez da leitura.
Em relação às duas primeiras críticas apresentadas, corroboramos que, de certo modo, as personagens femininas da obra não possuem profundidade e nem desempenham um papel notório. Trata-se, pois, de um posicionamento incoerente, visto o cenário político e social de produção da obra em que as mulheres não possuíam um espaço na literatura. Assim, Shelley apresentou-se como uma grande representante na busca pelo lugar feminino na produção intelectual, e por que não trouxe isso para as suas personagens? Talvez, ela foi conduzida pelos ideais do período. Nesse sentido, a voz da “mulher é ouvida de forma indireta, canalizada pelas vozes dos narradores masculinos. No discurso patriarcal, assim, a representação do feminino é feita pelo silêncio, é aquilo que foge à representação” (MONTEIRO, 2004, p. 121-122).
Ademais, com base na crítica sobre o personagem do monstro, é observável que ele é o grande destaque da obra e, por sua vez, carecia de mais complexidade em sua construção. Muitos leitores, associam o nome “Frankenstein” ao monstro e não ao cientista que o criou, confundindo o papel de ambos dentro da narrativa, levando a crer que são apenas um.
Em algumas adaptações cinematográficas, é possível observar, inclusive, a semelhança estética e psicológica dos personagens, em que o mostro não parece ter uma identidade própria (BASSO; MARQUES, 2018), apresentando-se como uma representação do próprio criador (adaptação de 1931). De acordo com Gomes (2018, p. 865), “criador e criatura encontram-se de tal forma unidos, muitas vezes, partilhando das mesmas vontades e com características individuais tão semelhantes” e acrescenta: “o romance embaça os desejos dos dois personagens, sendo em algumas passagens difícil de distinguir qual é a vontade de um e qual a do outro”.
No que diz respeito às críticas que tomam como base a complexidade da obra e a temática abordada, deve-se considerar que cada escritor possui um estilo próprio, portanto, por a estória ser voltada ao suspense e ao terror, consideramos que a estruturação epistolar utilizada facilitou a construção do enredo, uma vez que desperta a curiosidade do leitor e o faz navegar na narrativa em busca de desvendar a trama.
Sobre o tema, observamo-lo por meio de um viés desafiador, isto é, quando Shelley produziu essa obra, certamente, não quis representar ser a favor de uma ciência irracional que desafia a própria natureza, pelo contrário, ela utiliza “a ciência para criticá-la, ou seja, instaurá-la em sua textura de mundo para superá-la, porque radicaliza seu questionamento através da imaginação e da produção humana” (FAGUNDES, 2019, p. 13). A partir dos castigos os quais o próprio Victor é submetido, podemos depreender que existe uma reflexão sobre até onde a ânsia por conhecimento pode nos levar, além de discutir sobre as incertezas frente aos experimentos que estavam acontecendo naquele período, que caminhavam para a busca por reanimação de corpos.
As discussões em torno da obra não se esgotam, são tópicos polêmicos que ela aborda, mesmo para século XXI, marcado por profundas transformações, a narrativa mostra-se atual. O que faz essa obra ser considerada um clássico da literatura mundial é, justamente, a sua atemporalidade, originalidade e criatividade, no mais, é necessário ressaltar a importância das obras adaptadas que favoreceram para novas leituras do texto original, propagação em diversas semioses e atinge públicos de diferentes idades. Sendo assim, “o desenvolvimento de novos textos recontando as mesmas histórias, com suas alterações, adições, aperfeiçoamentos e atualizações, mantêm aquela obra viva na sociedade na qual esse fenômeno ocorre” (LUCAS; RODRIGUES, 2017, p. 28).
A adaptação mais famosa é Frankenstein, de James Whale (1931). Trata-se de um filme estrelado por Boris Karloff como a criatura. O monstro é representado por uma imagem icônica, de aparência grotesca e com parafusos no pescoço. O filme foi um grande sucesso de bilheteria e crítica, lançando as bases para uma série de filmes de monstros produzidos pela Universal Pictures e, ainda hoje, é considerado um marco do cinema de terror. A principal diferença entre a obra original e essa adaptação é que a primeira centra-se na complexidade emocional e psicológica dos personagens, enquanto a segunda enfatiza o aspecto assustador e monstruoso da criatura.
Essa produção ganhou uma sequência nomeada de A Noiva de Frankenstein, produzida pelo mesmo cineasta, em 1935. Nessa adaptação, observamos a introdução de uma nova criatura, interpretada por Elsa Lanchester, que se torna a companheira do monstro. O monstro (interpretado novamente por Boris Karloff) sobrevive à explosão da torre do castelo e escapa dos destroços. Enquanto isso, o Dr. Frankenstein (interpretado por Colin Clive) é persuadido por Pretorius (interpretado por Ernest Thesiger) a criar uma companheira para a criatura, para isso, usa a esposa de Frankenstein para forçá-lo a cooperar (SILVA, 2015).
Em 1994, foi lançada outra adaptação para o cinema, Frankenstein, de Kenneth Branagh, que foi dirigido e estrelado pelo autor e apresenta uma atuação memorável de Robert de Niro, como a criatura. Este filme segue a trama do romance original com atenção aos detalhes e fidelidade à história, além de sua cinematografia impressionante. No entanto, recebeu críticas negativas, que apontavam problemas de ritmo e ocorrências dramáticas de Branagh.
Além dessas adaptações apresentadas, tiveram inúmeras outras como: Abbott e Costello Encontram Frankenstein (1948), A Maldição de Frankenstein (1957), Frankenstein Contra o Mundo (1965), Carne para Frankenstein (1973), O Jovem Frankenstein (1974), The Rocky Horror Picture Show (1974), Frankenstein, o Monstro das Trevas (1990), Frankenstein (2004), Frankenweenie (2012), Frankenstein (2015), Penny Dreadful (2014-2016), Frankenstein: Monster Edition e Frankenstein: Anatomia de Monstro.
Entre as diversas releituras, os fãs do gênero de terror também puderam conferir o clássico em quadrinhos, produzido por Larissa Palmieri, Pedro Okuyama e Lais Bicudo (2021). Depois de anos de estudo e muita dedicação, os quadrinhos apresentam cenas de mistério e de aventura em torno da história, prendendo a atenção do início ao fim.
Ressaltamos a importância desse tipo de adaptação, bem como as adaptações em filme, pois tratam-se de caminhos para o leitor iniciante conhecer a obra e, posteriormente, realizar uma leitura na íntegra. Nesse sentido, corroboramos com Silva (2013, p. 16), quando aponta que “os leitores que não leram o livro irão compreender e conhecer a obra Frankenstein, além de conseguirem perceber o contexto histórico da obra, através da HQ”. Portanto, são um incentivo à leitura, não só para crianças, mas também para adultos.
3- O PROMETEU MODERNO: ASPECTOS MITOLÓGICOS DA OBRA
A obra apresenta relações com o mito do Prometeu que é “metaforizado de forma explícita por Mary Shelley […] prova disso é o subtítulo do romance” (GOMES, 2018, p. 859). O uso do termo “moderno” serve como uma âncora para que possamos entender o objetivo da narrativa que não é, de fato, fazer uma releitura deste mito, mas apresentar novos caminhos de discussão, uma vez que aborda temas que estavam sendo alvo de atenção no período, a saber, os avanços científicos. Diante disso, o moderno se estabelece como algo inovador, que está sendo descoberto, e, ao mesmo tempo, causa medo, receio e expectativas.
Prometeu é uma história da mitologia grega que conta sobre um titã chamado Prometeu e a sua relação com os deuses olímpicos, especialmente, Zeus. Trata-se, portanto, de uma alegoria que aborda temas como a criação do ser humano, a rebelião contra os deuses e a busca pelo conhecimento. De acordo com a história, no início dos tempos, os deuses governavam o mundo, enquanto os seres humanos eram primitivos e desprovidos de habilidades e conhecimentos. Prometeu, que tinha um amor especial pelos seres humanos, decidiu ajudá-los. Nesse cenário, Prometeu subiu ao Monte Olimpo, onde viviam os deuses, e roubou o fogo divino de Hefesto. Ele entregou esse fogo aos seres humanos, concedendo-lhes a capacidade de se aquecer, cozinhar alimentos e desenvolver tecnologias (LUCAS; RODRIGUES, 2017).
Essa ação desencadeou a ira de Zeus, que via o fogo como uma propriedade exclusiva dos deuses. Zeus decidiu punir Prometeu por seu ato de desobediência. Ele ordenou a criação de Pandora e a presenteou à Epimeteu, irmão de Prometeu, como sua esposa. Pandora trazia consigo uma caixa que continha todos os males do mundo. Zeus instruiu Pandora a não abri-la, mas sua curiosidade a levou a fazer exatamente isso, espalhando doenças, desgraças e sofrimentos pelo mundo.
Geralmente, essa narrativa leva à compreensão da importância do conhecimento e do progresso humano. Prometeu representa o arquétipo do herói que desafia a ordem estabelecida em busca do bem-estar da humanidade. Sua rebelião contra Zeus, mesmo sabendo das consequências, é vista como um ato nobre. Além disso, aborda temas como a curiosidade humana, a punição pelos excessos e a relação complexa entre deuses e mortais.
Em Frankenstein, há essa ultrapassagem dos limites éticos, na busca por conhecimento. Rocque e Teixeira (2001, p. 12), apontam que “através dos tempos, a literatura tem dado voz aos medos e esperanças gerados pelas descobertas científicas. A literatura fantástica, produzida desde a Antiguidade já havia especulado sobre os possíveis descaminhos do desenvolvimento tecnológico humano”.
A partir desse panorama, conseguimos identificar diversos elementos aproximativos entre esta história mitológica e a trama de Frankenstein. Em primeiro momento, o anseio de Prometeu em ajudar os humanos possui uma relação estreita com o desejo de Victor em conhecer os segredos da vida, principalmente, após presenciar a morte da sua mãe e a falta que ela gerou para o lar e para a família. Por meio da ciência e do gosto pelo conhecimento, ele vislumbrou caminhos em que as pessoas poderiam ser reanimadas após a morte, impedindo o sofrimento dos que sentiram a perda, o que podemos constatar no seguinte trecho:
É difícil conceber a variedade de sentimentos que me impeliam para a frente, no primeiro arrebatamento do êxito. Eu seria o primeiro a romper os laços entre a vida e a morte, fazendo jorrar uma nova luz nas trevas do mundo. Seria o criador de uma nova espécie — seres felizes, puros, que iriam dever-me sua existência. Indo mais longe, desde que eu tivesse a faculdade de dar vida à matéria, talvez, com o passar do tempo, me viesse a ser possível (embora esteja agora certo do contrário) restabelecer a vida nos casos em que a morte, no consenso geral, relegasse o corpo à decomposição. Ressurreição! Sim, isso seria nada menos que o poder de ressurreição (SHELLEY, 2019 p. 64, grifos nossos).
Frankenstein descreve a intensidade dos sentimentos que vivenciava quando obtinha sucesso em suas experiências e “acaba por assumir o papel de Prometeu, ao criar uma raça humana a partir de matéria orgânica inanimada, pensando no amor que receberia em retorno da sua ação benéfica e no bem que ele estaria fazendo à humanidade” (GONÇALVES, 2021, p. 6). Observamos a motivação e o entusiasmo com a perspectiva de romper as fronteiras entre a vida e a morte, acreditando que ele seria capaz de criar uma nova espécie. No entanto, Victor apresenta outras ambições, sobretudo, a possibilidade de trazer de volta à vida os corpos que foram relegados à morte, por meio da ressurreição.
Para isso, era preciso ter materiais para que pudesse colocar em prática os seus conhecimentos. Neste momento, entra em discussão o roubo de cadáveres: “Coletava ossos dos necrotérios e profanava, com os dedos, os recônditos do corpo humano […]. O necrotério e o matadouro eram minhas fontes usuais de suprimento” (SHELLEY, 2019, p. 65). Essa situação se assemelha com o roubo do fogo divino, realizado por Prometeu.
Outros pontos que merecem destaque dizem respeito aos castigos que o cientista enfrentou ao desafiar a natureza humana (Deus) o que possui relação intertextual com a ira de Zeus frente ao ato de desobediência de Prometeu; e a caixa de Pandora que pode ser comparada ao monstro, pois ambas criações trouxeram uma série de males. Contudo, há uma diferença sobre o criador nas duas narrativas, enquanto na primeira quem cria é Zeus (responsável por castigar Prometeu), na segunda, é Victor que pode ser entendido como o próprio Prometeu. Portanto,
Com seus estudos e descobertas, Dr. Frankenstein pode ser comparado a um pequeno deus, alguém que foi capaz de realizar algo nunca antes pensado, desde os primórdios da humanidade. Mas, assim como Prometeu, Victor também teve de pagar um preço bem alto por toda sua audácia perante a ordem natural das coisas, pois roubou um dos maiores segredos da natureza, os mistérios que separam a morte da vida e, assim, ele concedeu vida a um corpo inanimado! Enquanto Prometeu foi condenado a ter seu fígado devorado e regenerado todos os dias, Victor foi condenado a sofrer até o fim de seus dias com a perda de seus entes queridos, assassinados brutalmente pela sua própria criação, que jurou se vingar pelo desprezo de seu criador e todos que conheceu ao longo de sua jornada (SILVA, 2015, p. 23).
Nesse interim, verificamos a importância da retomada histórica do mito do Prometeu, a partir da literatura, porque o personagem circula, em diferentes obras, como um benfeitor da humanidade, tendo as qualidades exaltadas, em que a sua punição é vista como injusta, pois há a compreensão de ele fez tudo isso por amor à humanidade. Desse modo, vemos o avanço da compreensão desse mito, ao longo do tempo, até chegar no período do Romantismo, que é a abordagem literária a qual Mary Shelley fazia parte (GONÇALVES, 2021).
Nas palavras de Alegrette (2010, p. 50), houve várias leituras do mito do Prometeu, sendo uma das primeiras manifestações, a obra Teogonia, escrita por Hesídio, (cerca de VIII a.C.). Três séculos mais tarde, entre 456 a 525 a.C., foi publicada a obra Prometeu acorrentado, tragédia atribuída ao dramaturgo grego Ésquilo. No período pré-romântico, tivemos Prometheus (1773) e Pandora (1808), de Goethe.
Durante o Romantismo, “o tema da rebeldia prometeica exerceu grande influência sobre os autores românticos, uma vez que vem ao encontro dos ideais de liberdade e criação artística, difundidos por esse movimento literário”, exemplo disso foi o drama lírico Prometeu libertado, de Percy Bysshe Shelley e o próprio Frankenstein [na antiguidade clássica, tivemos “as Metaformoses” de Ovídio. No entanto, a releitura de Mary Shelley é considerada uma das mais originais, por ser a primeira a relacionar este mito ao aspecto científico.
Para além do diálogo entre a narrativa de Frankenstein e o Prometeu, podemos visualizar outros elementos que nos remetem à questão da mitologia, como a relação entre criador e criatura, em que deuses criam seres e os abandonam ou se arrependem da criação. Na obra em questão, isso é explorado de forma intensa, pois o cientista se arrepende e fica horrorizado por ter criado um monstro:
Ninguém poderia suportar o horror do seu semblante. Uma múmia saída do sarcófago não causaria tão horripilante impressão. Quando o contemplara, antes de inocular-lhe o sopro vital, já era feio. Mas agora, com os nervos e músculos capazes de movimento, converteu-se em algo que nem mesmo no inferno dantesco se poderia conceber (SHELLEY, 2019, p. 69).
Esse trecho também lembra-nos da presença de figuras horrendas na mitologia, na qual é muito comum personagens que possuem poderes e que a sua própria construção estética foge dos moldes humanos. Para citar alguns exemplos, pensemos em Medusa que possuía serpentes venenosas em vez de cabelos e um olhar que transformava quem a encarava em pedra; Quimera que possuía corpo de leão, cabeça de cabra saindo do meio das costas e uma cauda de serpente; e Lâmia que era mulher e se tornou um demônio após ter seus filhos mortos por Hera, sendo retratada com corpo de serpente e rosto de uma mulher.
Além disso, identificamos referência à obra Inferno, que é a primeira parte da Divina Comédia, considerada obra-prima da literatura, escrita por Dante Alighieri, no século XIV. Ao longo da jornada para o inferno, o personagem principal encontra várias figuras históricas, mitológicas e contemporâneas, em que cada uma delas é punida de acordo com a gravidade de seus pecados e crimes cometidos em vida. Nesse cenário, observamos uma comparação entre o monstro e as figuras horrendas presentes no inferno dantesco, colocando-se o mostro como mais aterrorizador que as demais criaturas.
Com relação às temáticas veiculadas na obra, a discussão em torno da vingança é algo recorrente nas histórias mitológicas, retratando as consequências das ações humanas e as retribuições dos deuses. No entanto, é necessário identificar que a vingança nem sempre é retratada de forma positiva ou como um comportamento desejável, pois, geralmente, está associada a tragédias e a um ciclo interminável de violência. Algo que é observável na obra, em que os atos de vingança provocados pelo monstro só levaram à morte de pessoas inocentes, à destruição do seu criador e de si mesmo.
Suas horas hão de passar-se em terror e infortúnio, e não tardará em despenhar-se o raio que destruirá para sempre sua felicidade. Julga-se com direito a ser feliz enquanto eu vivo em maldição? Você pode privar-me de tudo a que eu possa aspirar. Mas não pode impedir minha vingança. Vingança que será doravante tão vital para mim quanto o ar e o alimento! Posso morrer, mas primeiro você, meu tirano e meu carrasco, amaldiçoará a luz que assistirá à sua desgraça (SHELLEY, 2019, p. 195).
Nessa passagem, o mostro mostra-se decidido a fazer o que fosse preciso para que o seu criador sofresse de forma semelhante a que ele sofrera, a vingança era o que movia a sua existência. Contudo, no final da trama, no momento em que o monstro conversa com Walton, após a morte de Victor, ele demonstra arrependimento por tudo que fez e justifica suas atitudes como formas de aliviar a dor do abandono e da repulsa que, tanto o seu dono como as demais pessoas que teve contato atribuíam-lhes. Desse modo,
Com a promessa quebrada, o monstro jura perseguir todas as pessoas amadas pelo seu criador, pois já que foi desprezado por ele e por todas as demais pessoas que encontrou em sua jornada em busca de um abrigo e mantimentos para se alimentar, ele ameaça vingar-se, dizendo que estaria presente na noite de núpcias de seu criador (SILVA, 2015, p. 19).
Isso evidencia também o tema da solidão, comum na mitologia, em que os seres buscam por uma companhia, mas não conseguem esse retorno. Essa questão é nítida quando o mostro pede para que Victor crie uma fêmea da sua espécie para que seja a sua companheira e esse pedido não é realizado, alimentando-lhe o sentimento de vingança, diante do qual se ele não tem o direito de ter uma companheira, o seu criador também não o terá.
Para finalizar as discussões sobre a presença de aspectos mitológicos na obra, longe de esgotar as discussões, vemos o diálogo entre Frankenstein e o mito do Narciso, revelado por meio da busca por identidade, protagonizada pelo monstro. Em uma das adaptações fílmicas – Frankenstein (2004)[4] – existe uma cena [1:01:54 min.] em que o monstro olha para a sua imagem refletida no rio, momento em que é visto por uma criança que residia na fazenda que ele se abrigou. Na próxima seção, discorremos sobre os pontos a religiosidade na obra.
4- O DIVINO E O PROFANO
A obra em estudo nos leva a diversas compreensões que atravessam a religião, a principal delas é a criação. Ninguém nunca conseguiu desvendar a origem da vida, por mais que existam diversas teorias sobre a humanidade, elas sempre apresentam desencontros que nos fazem questionar o que, de fato, pode ter acontecido. Entre as explicações científicas, temos a teoria do Big Bang, por exemplo, e as explicações religiosas, como a criação do homem a partir do barro, existe uma série de incógnitas que, em alguns momentos, são colocadas em xeque.
Para quem é cristão e vivencia a religião por meio da fé, tem a Deus como único criador e soberano, com seu dom de dar a vida e de também mortificar a matéria, “a partir da experiência de Frankenstein, a morte e a ressureição deixam de ser mistérios sagrados para se tornarem objetos de estudo do cientista, manipuláveis no laboratório” (SILVA, 2015, p. 24). Observamos um homem comum, cientista, que tenta descobrir os segredos da vida e da morte, a partir dos seus experimentos, algo considerado inaceitável, para a natureza, uma vez que o ciclo da vida é organizado pelo nascimento, desenvolvimento e morte, ou seja, inevitavelmente, todos os seres vivos passarão por isso.
Essa interpretação levanta discussões sobre os limites e as instruções morais, pois a ambição desmedida e o orgulho de Victor o levam a consequências trágicas, que podem ser interpretadas como uma punição divina pelo pecado da presunção ao tentar ocupar o lugar de Deus: “após dias e noites de incrível esforço e cansaço, logrei descobrir a causa fundamental da geração e da vida. E mais do que isso, tornei-me capaz de animar a matéria sem vida.” (SHELLEY, 2019, p. 63).
Diante disso, Araújo (2014) chama atenção para as possíveis perspectivas adotadas por Victor, nessa tentativa de superar o ciclo natural da vida, na qual ele assume o papel de cientista e de pai, sendo que
O propósito de Victor Frankenstein, como apóstolo devotado da Ciência como uma nova religião e admirador dos seus milagres seria de criar, de um lado, um homem novo, com recurso ao saber e às técnicas científicas mais evoluídas do seu tempo e, de outro, alguém que estivesse para além dos limites naturais próprios da humanidade, ou seja, que escapasse do nascimento natural, da morte e da doença (ARAÚJO, 2014, p. 21).
É sabido que ciência e religião sempre tiveram embates, uma respaldada na comprovação dos dados e outra na crença. A teoria científica do Big Bang, que postula uma origem do universo há aproximadamente 13,8 bilhões de anos, entrou em conflito com interpretações religiosas da criação do mundo. Para algumas tradições religiosas, a narrativa da criação divina descrita em seus textos sagrados entra em conflito direto com uma origem do universo baseada em processos naturais e leis físicas.
Outras questões que demarcam esse duelo é a Teoria da Evolução, desenvolvida por Charles Darwin. A ideia de que as espécies evoluem ao longo do tempo por meio de processos naturais contradiz algumas interpretações religiosas da criação, que enfatizam uma origem divina específica para a diversidade na Terra; o ser humano como resultado de um processo evolutivo e que compartilha um aspectos em comum com outros seres vivos; e as explicações científicas para fenômenos naturais, como terremotos, epidemias, doenças e eventos climáticos, têm entrado em conflito com interpretações religiosas que atribuem esses eventos à vontade de Deus.(o criacionismo).
De acordo com Rodrigues (2007), o conflito entre religião e ciência pode ser analisado como um fenômeno cultural, onde o conhecimento científico é considerado um produto construído e desenvolvido por determinados grupos sociais, com seus próprios interesses e objetivos. Essa perspectiva ajuda a compreender a competição que ocorreu na sociedade inglesa do século XIX, entre o clero e os cientistas profissionais (HARRISON, 2007).
Ambos os grupos disputavam poder e influência, cada um defendendo sua visão de mundo e buscando promover suas próprias perspectivas sobre a natureza, o universo e o papel do homem. No entanto, cabe ressaltar a importância de cada uma delas na vida dos seres humanos, exercendo posições diferentes que nos aproximam do conhecimento sobre o mundo e sobre nós mesmos, uma vez as duas “podem ser entendidas como criações humanas, portanto, sujeitas a modificações e adaptações ao longo do tempo” (RICETO; COLOMBO JÚNIOR, 2019, p. 172).
Por isso, vale dizer que é possível conciliar as crenças religiosas com a aceitação das descobertas científicas, encontrando diferentes níveis de harmonia entre os dois domínios, tendo em vista que a relação entre religião e ciência é complexa e os embates podem ser compreendidos de diferentes maneiras, dependendo dos contextos históricos, culturais e individuais. Nessa perspectiva, Argôlo (2012, p. 2) destaca que
Por volta do século XVIII e do século XIX, propriamente dito, a aceitabilidade aos projetos científicos não era tão fácil como hoje, até mesmo porque o pensamento religioso era predominante na época. Mas mesmo diante de todos os dogmas religiosos que diziam pertencer somente a Deus os segredos da vida e da morte, o pensamento humano se volta para a busca por respostas concretas aos mais diversificados questionamentos que atormentam a mente humana. E a literatura, assim como toda a arte, incorpora em si, por meio das mais belas imagens, essa busca do homem pelo desvendamento das obscuridades do universo e ao mesmo tempo o medo das respostas obtidas.
Com a chegada do iluminismo racionalista, a Europa abandonou certas convicções religiosas e embarcou em uma jornada de descobertas no vasto horizonte de experiências e oportunidades fornecidas pela ciência. Vivia-se um período de “declínio da religião, na verdade, selava a derradeira separação entre o científico e o sobrenatural, de forma que não se tratava de um movimento contra a Igreja em si, mas sim de uma suplantação da teologia pela metafísica”, do mesmo modo que “as descobertas da ciência e da medicina nutriam um sentimento coletivo de ‘progresso’”, mas que despertavam um novo tipo de medo (AZEVEDO, 2013, p. 44). Esses acontecimentos foram refletidos na escrita de Mary Shelley.
Além dos elementos relacionais apontados nos parágrafos anteriores, em uma rápida pesquisa no livro, verificamos a presença das palavras “Deus” (26 vezes), “criação” (17 vezes), “criador” (29 vezes), “criatura” (51 vezes), “demônio” (42 vezes), e outros termos correlatos como: divino, castigo e inferno, todos associados aos discursos religiosos. Diante disso, compreendemos que o propósito do texto literário não é fornecer informações, ensinar, doutrinar, pregar, documentar ou provar algo. Contudo, ocasionalmente, por meio da narrativa de histórias, análises filosóficas, princípios científicos e dogmas religiosos, a literatura exerce essa tarefa.
Outrossim, Shelley faz menção, em algumas passagens da obra, ao Paraíso Perdido, narrativa épica escrita por John Milton (1667). Esse poema narra a queda de Satã e sua habilidade em corromper Adão e Eva, movido por ciúmes diante da sua felicidade (GONÇALVES, 2021). O pecado original é retratado e visto como resultando da queda da humanidade, uma vez que Adão e Eva perdem a imortalidade após desobedecerem a Deus. Essa referência é realizada pelo monstro que, ora se identifica com a figura cruel e invejosa de Satã, ora com a figura de Adão, uma criatura feita à semelhança de Deus e em busca de conhecimento. Podemos observar essa menção na passagem a seguir:
O Paraíso perdido produzia-me emoções de outra espécie, muito mais profundas. Li-o, tal como os outros volumes de que me apossara, como se fosse história verdadeira, que, nesse caso, me despertava todos os sentimentos de admiração e terror que a figura de um Deus onipotente, combatendo suas próprias criaturas, era capaz de excitar. Por vezes, relacionava várias situações com a minha própria. Tal como Adão, eu não era ligado por qualquer elo a outro ser existente, mas suas condições eram bem diversas das minhas em todos os sentidos. Ele fora produzido pelas mãos de Deus como criatura perfeita e feliz, sob a proteção de seu Criador; tinha a faculdade de comunicar-se com seres de natureza superior e beber-lhes o conhecimento, mas eu era desgraçado, desamparado e só. Muitas vezes, considerei Satã como um símbolo mais adequado à minha condição. De fato, não raro, como ele, o fel da inveja me espicaçava ao ver a felicidade dos meus protetores (SHELLEY, 2019, p. 150).
No trecho acima, verificamos a referência a um Paraíso Perdido, que atravessa a narrativa e que cria uma dualidade entre o bem e o mal em um mesmo ser que, a depender das circunstâncias, acredita ser mais parecido com Adão (advindo de Deus) ou com Satã. Esse elemento além de revelar questões envoltas à religiosidade, por meio da crença do bem e do mal, retoma à mitologia que discutimos na seção anterior, com a figura do Prometeu. Neste momento, é possível verificar pontos de interrelação entre religião e mito, ao tempo em que evidencia que os seres humanos possuem dentro de si tanto o bem quanto o mal, em constante combate.
As discussões traçadas até o momento permitiram-nos relacionar o mito à religião, além de alguns elementos que dizem respeito à ciência. Na próxima seção, evidenciaremos outras discussões que giram em torno do caráter científico da época em contraposição aos dias atuais.
5- EXISTEM LIMITES PARA A CIÊNCIA?
A obra em estudo faz referência a algumas perspectivas científicas que estavam passando por experimentações no período em que a narrativa foi escrita, são elas: a Alquimia e o Galvanismo (LIMA, 2019). A alquimia pode ser entendida como uma prática que busca transformar substâncias comuns em materiais de maior valor ou em busca de conhecimento e compreensão mais profundos. No trecho a seguir, observamos uma passagem em que Victor fala sobre a sua chegada na universidade, remetendo-se à conversa que teve com o seu professor a respeito das leituras que fizera, nos últimos anos:
Antes disso eu não estava ainda familiarizado com as mais elementares leis da eletricidade. Aconteceu encontrar-se em nossa companhia um homem de grande saber no campo da ciência natural, que, a propósito da catástrofe, começou a explicar uma teoria que criara, sobre o tema da eletricidade e do galvanismo, fenômenos novos e surpreendentes para mim. Sua dissertação lançou em profunda obscuridade as teorias de Cornélio Agripa, Alberto Magno e Paracelso, os senhores de minha imaginação. Esse acontecimento desestimulou-me a prosseguir nos estudos que então me empolgavam (SHELLEY, 2019, p. 50, grifos nossos).
Nesse contexto, é possível observar a presença direta da discussão sobre o galvanismo dentro da obra, algo que foi refletido nos métodos e técnicas utilizados pelo cientista para realizar os seus experimentos até conseguir encontrar a combinação perfeita para a criação de um novo ser. Além disso, identificamos uma crítica à Alquimia que foi a corrente na qual “Frankenstein começa sua vida científica ao deslumbrar-se com as promessas supernaturais feitas pelos alquimistas e detestar a ciência moderna, o que causa um conflito em sua vida quando ele ingressa na universidade” (GONÇALVES, 2021, p. 14).
Em relação ao Galvanismo, a menção à essa área de estudos não se deu somente na fala do personagem, visto que a própria autora confirma, na introdução da edição de 1831, que teve inspirações nesse método científico que estava sendo discutido à época, inclusive, por ser algo que causa receio à sociedade, gerando certo medo. Conforme verificamos abaixo:
Eles falavam das experiências do Dr. Darwin (…) que havia guardado um pedacinho de vidro até que, por algum meio extraordinário, ele começou a se mover voluntariamente. Afinal de contas, não era assim que a vida devia ser criada. Talvez se pudesse reanimar um cadáver; as correntes galvânicas tinham dado sinal disso; talvez se pudesse fabricar as partes componentes de uma criatura, juntá-las e animá-las com o calor da vida (SHELLEY, 2019, p. 13).
Segundo Mary Shelley, ela tomou como inspiração as conversas entre Lord Byron e seu marido, nas quais discutiam sobre os princípios da vida e as experiências que estavam acontecendo no período. Certamente, a própria conversa já direciona a um caráter de suspense, de medo e até mesmo de horror, pelo fato de acreditarem ser possível haver a reanimação de cadáveres, algo totalmente contrário aos princípios da vida. Nesse sentido, a narrativa produziu uma tensão que fez com que a escritora tivesse um pesadelo, e, a partir disso, surgisse a ideia de construir a história de Frankenstein, a então narrativa de terror solicitada no grupo de amigos, dias antes.
Para que possamos discutir de forma mais profícua a presença da ciência nesta obra, cabe explicar o que é, de fato, o galvanismo. É considerado uma teoria relacionada à eletricidade e aos efeitos elétricos no corpo humano, que desenvolvido e popularizado por Luigi Galvani, um médico italiano do século XVIII. Galvani começou a investigar os efeitos da eletricidade nos músculos de rãs e observou que, ao tocar nos nervos e músculos de uma rã com dois metais diferentes, como cobre e zinco, eles se contraíam, mesmo sem a aplicação de uma corrente elétrica externa.
A eletricidade observada por Galvani era o resultado de uma reação química entre os metais e os tecidos biológicos. Dessa forma, “o galvanismo tornou-se mais conhecido ao servir de base para eventos espetaculosos em que animais e até mesmo cadáveres eram usados para comprovar as descobertas de Galvani” (GOMES, 2018, p. 856). Ele desenvolveu a primeira pilha voltaica, também conhecida como pilha galvânica, que consistia em pilhas de metais diferentes separadas por um eletrólito, criando uma diferença de potencial elétrico (BLUM, 2013). Seus experimentos e ideias no campo do galvanismo tiveram um marco significativo no desenvolvimento da ciência elétrica e impactaram muitos campos da medicina e da biologia.
De acordo com Batista, Menon e Batista (2020, p. 130), “semelhante ao uso do Galvanismo, o romance de Shelley demonstra o impacto das ciências práticas e ideias de sua época, particularmente as que envolvem o corpo humano”. Nesse contexto, conseguimos observar que a narrativa não trata dessa corrente científica fica como algo inovador que promoverá um avanço na sociedade, pelo contrário, é retratado como um caminho que só trouxe tragédia e destruição para a humanidade. Diante disso, “ao torna-se criador, Dr. Victor se esqueceu que também era criatura e que convivia numa sociedade com normas morais previamente estabelecidas, criando seu próprio e egocêntrico mundo, onde o que quer que fosse feito teria a justificativa científica” (RUIZ, 2009, p. 198).
Ademais, o galvanismo não conseguiu se consolidar como ciência, no entanto, sempre surgem outras experiências que acabam tocando no mesmo ponto: os segredos da vida. Atualmente, convivemos com os avanços da ciência e da tecnologia, e um dos métodos que tem sido bastante discutido é a criogenia. Ramos e Benedito (2019) realizaram uma pesquisa discorrendo sobre a questão da criogenia nos dias atuais e como ela pode acabar se transformando em um método parecido com o galvanismo, ou seja, capaz de trazer à vida corpos inanimados.
A criogenia é uma técnica que busca congelar corpos para que, depois de alguns anos, eles possam ser descongelados. Nesse método, o congelamento manteria as células do corpo vivas e ativas, para a qualquer momento reanimá-las. Essa discussão tem causado muitas polêmicas envolvendo questões éticas e jurídicas, em que, mais uma vez, nos deparamos com a ciência interrompendo o ciclo natural da vida, o que “leva a uma reflexão sobre a ideia da imortalidade, sobre o desejo de uma vida eterna, ou mesmo sobre o ideal de parar o tempo e manter-se naquele instante por muitos e muitos anos” (RAMOS; BENEDITO, 2019, p. 23).
Trata-se de uma questão polêmica e que ainda está em fase de discussão, por esse motivo, não há como saber quais os caminhos serão percorridos e quais serão os resultados desses experimentos a longo prazo. Contudo, cabe a ressalva de que todo método científico inovador causa estranhamento da sociedade, assim como aconteceu com o galvanismo. Por isso, cabe a ciência, dentro das suas normas éticas, impor limites aos conhecimentos teóricos e práticos para que não haja um descontrole que coloque em risco a vida humana e a natureza.
Portanto, observamos que, principalmente nos últimos anos, a ciência tem contribuído muito, sobretudo, na área da saúde, a partir do desenvolvimento de vacinas, remédios e aparelhos que ajudam no tratamento de doenças até então desconhecidas, como foi o caso da Covid-19; e doenças que, há anos, busca-se uma resposta preventiva ou paliativa, como o câncer e a AIDS. Desse modo, não podemos desconsiderar esse tipo de conhecimento em decorrência de algumas técnicas ainda iniciantes e das quais nem sabemos a que ponto irão chegar.
Dito isso, compreendemos a importância da obra Frankenstein, uma vez que ela relaciona três tipos de conhecimentos de suma importância para a humanidade: o mito, a religião e a ciência. Todos nós, convivemos com esses três eixos em nossas vidas talvez, por isso, esta obra tenha ganhado tanta visibilidade, pois “articula elementos diferentes entre si, sem desarmonizá-los, trazendo uma narração que consegue encadeá-los, bem como gerar uma reflexão sobre bem e mal, ético e antiético, proibição e punição, entre outros” (GONÇALVES, 2017, p. 20). A obra em questão não critica a ciência, critica a ciência irracional e antiética.
CONCLUSÃO
Ao longo deste trabalho, nos propusemos a analisar a tríade mito, religião e ciência que se interrelacionam na composição da trama de Frankenstein. Para tanto, iniciamos esta pesquisa falando, brevemente, sobre a estrutura da obra (organizada em formato epistolar); sobre as temáticas abordadas (solidão, limites da ciência, castigos divinos, criação de um novo ser, vingança, etc.); e sobre algumas adaptações realizadas em diversas semioses, que contribuem para que a obra continue viva, promovendo novos sentidos.
Além disso, destacamos pontos que vêm sendo alvo de discussões pela crítica literária, dentre elas: a falta de profundidade do personagem representado como o monstro, o caráter secundário das personagens femininas, as temáticas abordadas e a estrutura. Nesse quesito, reafirmamos que os dois últimos pontos mencionados, não parecem-nos “defeitos” da narrativa, uma vez que ela não dá margem à promoção de uma ciência irracional, por outro lado, Shelley se utiliza de elementos científicos para realizar uma crítica à própria ciência do período, mais especificamente, os experimentos envolvendo o Galvanismo; e sobre a estrutura da obra, também acreditamos ser um modelo favorável para manter o suspense e o horror, questões intrínsecas à literatura gótica.
Durante toda a obra, verificamos alguns elementos que são exploradores de maneira explícita, como os aspectos mitológicos que se fazem presentes desde o título, convidando-nos a refletir sobre as possíveis simbologias e semelhanças entre a criação de Frankenstein e o mito de Prometeu; os aspectos religiosos, evidenciados por passagens de O paraíso perdido, a menção recorrente ao termo “Deus” e outros correspondentes que desvendam uma relação complexa entre criador e criatura; e, por fim, a dimensão científica, uma vez que o romance foi escrito em uma época em que a ciência passava por profundas descobertas, gerando insegurança na sociedade, que não conseguiu discernir até onde os experimentos poderiam chegar.
Diante do exposto, podemos elencar as seguintes conclusões:
1. A obra Frankenstein traz uma nova leitura do mito do Prometeu, relacionando-o com a evolução cientifica dos séculos XVIII e XIX, culminando no período do Romantismo, ao qual Mary Shelley pertencia e que serve de base para sua abordagem literária;
2. Presença significativa de referências ao Paraíso Perdido, estabelecendo uma dualidade entre o bem e o mal dentro de um mesmo ser. Isso retoma à mitologia, no que concerne aos deuses que ora desempenhavam funções para salvar a humanidade, ora eram movidos pelo sentimento de vingança, proporcionando a destruição da vida de quem ousasse lhes confrontar;
3. Recorre-se à ciência com base nos experimentos e estudos do Galvanismo, com o intuito de desvendar os segredos da vida e da morte.
Nessas conclusões revelam vários pontos de intersecção entre mito, religião e ciência: a criação de um ser (comum no mito e na religião, a qual a ciência busca também um lugar); o castigo (promovido tanto no mito, como na religião e na ciência é visto como uma consequência de experimentos mal sucedidos); a responsabilidade moral (algo presente nas relações entre os deuses, nos preceitos religiosos e também na ciência), entre outros elementos. Tudo isso está articulado na mesma trama, que configura-se rica em intertextualidades, sem que para isso haja uma desarmonização narrativa.
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1 https://orcid.org/0000-0003-4761-271X .Licenciando do Curso de Letras/Inglês pela Universidade Estadual de Alagoas – Uneal – Campus III Palmeira dos Índios Al- Brasil. jose.costa5@alunos.uneal.edu.br
2 https://orcid.org/0000-0002-1186-7334 . Mestrado e doutorado em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (2011). É professor da UNEAL (Universidade Estadual de Alagoas) e da UPE (Universidade Estadual de Pernambuco). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura, nas seguintes Áreas: Dramaturgia, Literatura Comparada, Estudos Culturais, Produção Textual, Literaturas em Língua Portuguesa, Cordel, Literatura Indígena, Representações dos Gêneros na Literatura, Bioficção, Literatura e História, Literatura e Cinema. É professor desde 1992 – UPE-Universidade de Pernambuco -Campus Garanhuns. UNEAL-Universidade Estadual de Alagoas–SE –Brasil. E-mail: moises@moisesneto.com.br
3 Obra escrita por John Milton que retrata o pecado original a partir das figuras de Adão e de Satã. Essa narrativa é bastante difundida no âmbito religioso.
4 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ci7iLbvo1Qo&t=19s.