MULHERES LÉSBICAS E VIOLÊNCIA COTIDIANA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8223117


Mariana Guimarães de Paula1


RESUMO

O presente artigo foi constituído como um desdobramento da dissertação de mestrado “Sentidos e significados da feminilidade na indústria pornográfica para mulheres que atuam nesse meio” e pretendeu, primeiramente, realizar uma revisão bibliográfica sobre a literatura que abarca mulheres lésbicas, assim como discorrer sobre o tema da violência e seus conceitos. Em um segundo momento, foi disponibilizado um questionário sobre o tema de violência contra mulheres lésbicas em grupos de WhatsApp e no Instagram, sob o critério de responderem a este questionário apenas mulheres lésbicas. Foram obtidas 40 respostas e, através delas, foi possível realizar análises, a partir da psicologia sócio-histórica, sobre a violência sofrida por mulheres lésbicas em diversos contextos sociais. Os contextos de violência contra mulheres lésbicas que mais se destacaram foram o ambiente familiar e o da rua. Foi possível constatar, também, que lésbicas desfeminilizadas sofrem violência de forma mais recorrente do que lésbicas feminilizadas.

Palavras-chave: lésbicas; violência; psicologia sócio-histórica; desfeminilizadas.

SUMMARY

The present article was constituted as a unfolding of the master’s thesis “Senses and meanings of femininity in the pornographic industry for women who work in this environment” and intends, first, to carry out a bibliographic review on the literature that includes lesbian women, as well as to discuss the theme of violence and its concepts. In a second moment, a questionnaire on the topic of violence against lesbian women was made available in WhatsApp groups and on Instagram, under the criterion that only lesbian women responded to this questionnaire. 40 responses were obtained and, through them, it was possible to carry out analyses, based on socio-historical psychology, on the violence suffered by lesbian women in different social contexts. The contexts of violence against lesbian women that stood out the most were the family environment and the street. It was also possible to verify that defeminized lesbians suffer violence more frequently than feminized lesbians.

Keywords: lesbians; violence; socio-historical psychology; defeminized

Introdução

O que é ser lésbica?

O que é ser lésbica? Para Clarke (1988), é um ato de resistência e todas as lesbiandades precisam ser respeitadas porque ser lésbica é lutar contra a estrutura homogênea heterossexual, é negar aos homens o acesso aos nossos corpos e descolonizar os mesmos, é não servir à nossa prerrogativa primária sexual de reprodutoras. Ser lésbica, portanto, é mais do que uma sexualidade. É um posicionamento político. Para M.L., ser lésbica é “[…] uma posição de resistência à heterossexualidade como regime político que reverte a sexualidade em categorias de poder ou da falta dele”. M.L. foi uma das quarenta mulheres lésbicas, que responderam ao questionário aplicado, que conseguiu entregar uma visão política da lesbiandade e é com essa visão que trabalharei neste artigo. Ao longo deste trabalho, algumas falas das mulheres que responderam ao questionário serão utilizadas para compor o referencial teórico a partir de suas iniciais.

Ainda para Clarke (1998), ser lésbica é, também, um ato de resistência à cultura de servidão a que mulheres são submetidas, tradicionalmente, nas relações heterossexuais. Rich (1993) explica esta noção de submissão a partir do conceito de heterossexualidade compulsória, que coloca a heterossexualidade como uma das instituições que, historicamente, culminam para o controle físico, intelectual e laboral de mulheres, ao mesmo tempo em que define o lesbianismo² como um desvio da normalidade:

Qualquer teoria ou criação cultural/política que trate a existência lésbica como um fenômeno marginal ou menos “natural”, como mera “preferência sexual”, como uma imagem espelhada de uma relação heterossexual ou de uma relação homossexual masculina seria, portanto, profundamente frágil […] Uma crítica feminista da orientação compulsoriamente heterossexual das mulheres já está longamente atrasada (Rich, p. 22, 1993).

Rich (1993) tece um contexto histórico que orienta a socialização de mulheres para a crença na inevitabilidade da heterossexualidade, mesmo que suas experiências com os homens tenham sido insatisfatórias ou opressivas. Atualmente, nota-se que pouco foi questionado em relação à orientação heterossexual. Os exemplos nas telas de televisão, nas igrejas, na literatura, no cinema etc. apontam invariavelmente para o mesmo contexto da idealização do amor romântico e do casamento heteropatriarcal, da mesma forma em que induzem crenças sexistas por meio de uma aprendizagem vicária³.

Heterossexualidade e feminilidade

Para Pateman (1993), existe um silêncio profundo sobre um tipo de contrato sexual firmado politicamente com os homens. O contrato sexual, segundo a autora, estrutura o contrato social, que legitima uma ordem social patriarcal e torna a liberdade civil um privilégio apenas masculino, gerando direitos políticos de homens sobre mulheres e afirmando o acesso sexual de homens aos corpos de mulheres, que são incorporados, continuamente, como propriedade:

A história do contrato social é tratada como um relato da constituição da esfera pública da liberdade civil. A outra esfera, a privada, não é encarada como sendo politicamente relevante. O casamento e o contrato matrimonial também são considerados, portanto, politicamente irrelevantes. Ignorar o contrato matrimonial é ignorar metade do contrato original (Pateman, p. 18, 1993).

Ainda segunda Pateman (1993), o contrato matrimonial permite que mulheres sejam exploradas e colocadas em posição de subordinação em relação aos seus maridos e deriva, diretamente, do capitalismo e de sua organização de produção. Federici (2017), em sua pesquisa de doutorado, explora, também, a origem do capitalismo e do contrato de casamento heterossexual e relaciona a caça às bruxas com a demonização de mulheres e com a necessidade de isolar mulheres no ambiente doméstico, a fim de concedê-las um trabalho necessário ao funcionamento capitalista, mas desvalorizado e que visa não inseri-las na vida pública.

Segundo Pateman (1993), o patriarcado, então, é visto pelo movimento feminista como um problema privado que está inserido no núcleo familiar e que seria compensado com políticas públicas de igualdade, mas enquanto mulheres forem “personificadas como seres sexuais” (Pateman, p. 36, 1993) e os homens reivindicarem o domínio e o acesso aos corpos de mulheres como públicos, como fizeram ao longo da história, mulheres não conseguirão sair deste lugar de objetificação. Um exemplo da amplitude patriarcal é os homens exigirem que mulheres estejam disponíveis como mercadoria através da prostituição (Pateman, 1993) e a normalização da prostituição é somente um exemplo de como a socialização e o capitalismo trabalham em prol de colocar mulheres em determinado espaço, limitando seus movimentos, seja convidando-as a ingressar na instituição do casamento ou a colocar-se à venda através da prostituição.

A heterossexualidade é veementemente defendida tanto pelo estado como pela igreja e ambos se beneficiam mutuamente com a subordinação e desvalorização de mulheres. A instituição do casamento confina mulheres no ambiente doméstico, mesmo que elas exerçam a mesma carga de trabalho que os homens exercem. O trabalho reprodutivo que mulheres realizam, tanto em relação aos filhos quanto na limpeza da casa, contribui, imperceptivelmente, por meio da desvalorização, com o sistema capitalista e com a manutenção do mesmo (Federici, 2017). Além disso, com o conluio da igreja, o estado mantém o poder nas mãos de grandes empresários e sustenta o mito da fragilidade da mulher, incutido no conceito de feminilidade.

Para Pisano (2001), na feminilidade não cabe autonomia, independência ou autogestão, já que este é um conceito criado por homens, para homens e que os integra, ou seja, a feminilidade só existe para contrapor o conceito de masculinidade, que engloba a virilidade, a assertividade e a independência. Mulheres se tornam, através da socialização, seres dóceis, cuidadores e delicados e são julgadas socialmente se não cumprem com esses requisitos. Por isso, o abandono desse sistema, tanto de forma comportamental, como figurada, é tão necessário, pois, somente saindo dessa ordem simbólica organizada para oprimir mulheres e baseando o nosso discurso em quaisquer outros meios possíveis é que conseguiremos nos afastar de um pensamento reformista (Pisano, 2001) que roga pela revolução utilizando-se de instrumentos opressivos.

Jeffreys (2005), faz uma crítica contundente à feminilidade quando questiona o fato de mulheres se sentirem inadequadas quando estão sem maquiagem, sem se depilarem, com o corpo fora do padrão etc. e conclui que todos esses elementos da estética feminina são, igualmente opressivos, já que tiram tempo, dinheiro e autenticidade de mulheres, que, tantas vezes, se consideram inadequadas quando não seguem alguns desses rituais. Além disso, as grandes indústrias estéticas são comandadas por homens, que estão lucrando com o empobrecimento de mulheres, com a competitividade entre elas e com objetivos de vida que interferem cada vez menos em seus interesses.

Dworkin (1989) percebe as práticas de beleza como prejudiciais à própria vida de mulheres, já que o psicológico e o potencial criativo de uma pessoa estão diretamente relacionados:

Normas de beleza descrevem em termos precisos a relação que um indivíduo tem com o próprio corpo dela. Elas descrevem a mobilidade dela, espontaneidade, postura, andar, os usos que ela pode fazer do próprio corpo. Elas definem as dimensões da liberdade psíquica dela. (Dworkin, 1974, p. 112, ênfase no original).

O capitalismo e o patriarcado precisam limitar mulheres para funcionarem e as normas de beleza são uma das armas utilizadas para este fim. Mulheres não podem ter o corpo intocado sem antes estarem sujeitas à violência da não aceitação social. Mulheres lésbicas desfeminilizadas4 estão sujeitas a uma tripla opressão. Elas não se submetem às normas de beleza da feminilidade, elas se recusam a ceder seus corpos para desfrute masculino e para o controle do sistema e elas são mulheres. E por isso são fervorosamente combatidas.

Violência

Segundo Minayo (2006), a palavra “violência” vem da palavra vis do latim, que significa força, no sentido de superioridade física sobre o outro. A mesma autora pontua que, se a análise sobre os eventos violentos for feita de modo histórico e cultural, a violência assume formas de disputas de poder e de domínio sobre o outro. Culturalmente, algumas formas de violência são aceitas, assim como outras são condenadas e quando falamos sobre violência estrutural, muitas vezes estes eventos não são sequer reconhecidos.

Para S., a “violência pode ser física, verbal […]. Pra [ela] a violência é quando [a] olham torto de mãos dadas com a […] namorada na rua, quando fazem comentários baixinhos pelos cantos quando passam, quando [a] discriminam na faculdade quando descobrem que [é] lésbica. Pra muito além da violência física, [para S.] existem outros tipos de violência nas entranhas da nossa sociedade, que é extremamente lesbofóbica”. S. indica, em sua escrita, a violência estrutural praticada contra mulheres lésbicas que não é condenada ou reconhecida. Esse tipo de violência é visto com normalidade pela sociedade e é aceito de maneira generalizada tanto pelos discursos da igreja quanto pelo estado, que dita normas de socialização sobre o que deveria ser certo ou errado.

Segundo Barroso (2021), a violência estrutural se configura como uma reprodução da lógica capitalista e, por isso, acaba adquirindo características normais e impessoais, tendo nestes mesmos atributos o fato de que não se procura tirar vantagem, diretamente, da vítima da violência, mas de um grupo social. Minayo (1998) entende que os beneficiários desse tipo de violência ganham, indiretamente, mais poder sobre o grupo dominado a partir do formato normal da sociedade capitalista e de como ela se estrutura com a divisão e luta de classes, que não é evidenciada. Ao contrário, é invisibilizada, pois, em grande parte das vezes, não é manifestada por um indivíduo específico e permanecem no anonimato, já que fazem parte da socialização ideológica da meritocracia e da organização social de quem é merecedor, de fato, de condições básicas de vida.

Davis (2016) coloca, ainda, que a violência estrutural vai se constituindo em formato de diferentes opressões, como as de sexo, raça e classe. E essas diferentes instituições corroboram para um discurso excludente de mulheres em relação a outras mulheres. Para Davis (2017), além da competitividade estimulada entre mulheres, determinante e estruturante do sistema capitalista, a ideologia da raça e da classe, classificadas em termos de superioridade e inferioridade, é mais um impeditivo para que mulheres se unam de forma efetiva e, além disso, é um fator resolutivo para que elas ingressem na ilusão criada de que exercem algum poder dentro desse mesmo sistema.

Para além dos pontos colocados por Davis (2016, 2017), a sexualidade também tem sido uma pauta de discussão, frequentemente, por mulheres lésbicas. Segundo Audi & Lahni (2013), por exemplo,

Às mulheres lésbicas recai a diferença hierarquizada do feminino (sempre em relação ao masculino como padrão hegemônico) e, soma-se a isso, a desigualdade relativa à homossexualidade. Duplamente desviantes, porque não homem e não heterossexual, as mulheres lésbicas sofrem, na maior parte do tempo, dupla discriminação, específicas desigualdades e muita invisibilidade no que se refere aos aspectos que definem sua identidade sexual e de gênero. (AUDI e LAHNI, 2013, p. 157).

Metodologia

Psicologia sócio-histórica e materialismo histórico-dialético

Segundo Bock (2015), o método do materialismo histórico-dialético pretende conhecer a realidade material vinculada a determinadas leis que possuem uma existência independente de ideias, pensamentos e racionalizações abstratas, leis essas que emergem da concretização palpável de um mundo que possui existência própria. Além disso, esse método postula uma concepção dialética em que a contradição, que envolve o desenvolvimento de novas ideias a partir da superação de conhecimentos passados, é a base para o movimento de superação e transformação da realidade: “o movimento da realidade está expresso nas leis da dialética” (Bock, 2015, p. 34). A historicidade, que somente se compreende por uma base materialista, ou seja, por meio de fatos concretos e não ideológicos, se baseia em regras que não se encontram fixas ou relacionadas a processos naturais, mas que estão em constante mudança, porque permeadas por ações humanas consistentes sobre o ambiente. Essas regras são objetivas, pois encontram-se expressas na realidade do trabalho e das relações sociais, e incluem a subjetividade do humano concreto que é dialeticamente, socialmente e historicamente construído (Bock, 2015).

Pelo exposto, faz sentido, então, que a psicologia se ocupe, inclusive, de contextos grupais, entendendo essas relações como mediadas ideologicamente por papeis que representam, ou não, o que é correto, esperado ou adequado em determinadas situações e a compreensão dessas condições ideológicas a partir da conscientização histórica de lugares comuns permite aos indivíduos a sobreposição de sua individualidade e, ao mesmo tempo, a identificação com os processos grupais que levam a uma unidade comum. A consciência de classe, então, tende a se formar na medida em que o processo de produção material se revela interposto por contradições que precisam ser superadas (Lane, 1989). A análise feita na pesquisa proposta leva em consideração o desenvolvimento de mulheres lésbicas como grupo social, que se depara com contradições iminentes e busca transformações históricas através de suas falas denunciativas.

Gonçalves (2015) coloca que, para a psicologia sócio-histórica, o sujeito é constituído pelo contexto em que está inserido, mas, ao mesmo tempo, é racional, ativo e se relaciona com a sua realidade, modificando-a e sendo modificado por ela (Gonçalves, 2015).

É importante destacar que a psicologia sócio-histórica critica concepções naturalizantes de mundo, entendendo que o sujeito não se concebe de forma ahistórica e desvinculada de sua socialização, mas, ao contrário, se constrói a partir de suas condições materiais, que são postas de acordo com a ordem social capitalista, na qual nos inserimos atualmente: as classes sociais existem por um processo de opressão necessário para a estruturação do sistema e a luta de classes é o que promove mudanças, que não são interessantes às classes burguesas e que, a cada dia, se camuflam pelo discurso da pós-modernidade (Gonçalves, 2015).

A pós-modernidade, caracterizada por sua negação histórica e por não representar a superação das contradições postas pelo sistema capitalista, se caracteriza por apresentar a ideia de uma nova condição, considerando a história e o desenvolvimento capitalista como um progresso:

O capitalismo, com suas características intrínsecas, levaria a uma realidade social, econômica e política nova, totalmente atrelada e dependente do desenvolvimento tecnológico e do desenvolvimento dos signos e símbolos. Uma nova sociedade, cujas leis não seriam mais as da luta de classes, mas as da produção de símbolos e tecnologia. Tratar-se-ia da consolidação de uma sociedade tecnológica, com o fim das classes sociais e da dicotomia capital-trabalho (Gonçalves, 2015, p. 56).

Assim, segundo Gonçalves (2015), essa narrativa discute a complexidade do avanço tecnológico e da produção de signos e toma a diversidade como um fenômeno em que não cabem explicações únicas, revelando, dessa forma, o fim das ideologias, do conceito de totalidade, de teorias sociais, da ideia de historicidade, transformação etc. que se enquadram em ideias de um todo incompatível com a pluralidade. Os projetos coletivos, por exemplo, também não se sustentariam porque são focados em características comuns de uma comunidade e não em individualidades (Gonçalves, 2015).

Essa noção de pós-modernidade coloca o progresso não como um processo histórico de emancipação a serviço de uma coletividade, mas como tecnologicamente focado em resolução de problemas específicos e locais. Para Gonçalves (2015), segundo esse conceito, tudo que antes era atribuído ao sujeito, como, por exemplo, sua racionalidade, os signos dos quais se apropriava, a linguagem interposta ao seu discurso etc. é, agora, dimensionado por sua capacidade de sobrepor e criar a realidade, ganhando autonomia independente do sujeito concreto, ou seja, há a negação de que o processo histórico no qual estamos inseridos ainda está em curso, assim como as estruturas de poder, que são substituídas por signos capazes de ditar a realidade concreta a partir de uma força abstrata e não dialética. Essa concepção acaba negando tanto a objetividade, que não expressa a realidade criada por signos, quanto a subjetividade, tirando a capacidade do sujeito de transformação concreta: “o sujeito se torna fluido, também ele se modifica pelo signo” (Gonçalves, 2015, p. 59).

O enfoque adotado pela psicologia sócio-histórica em relação ao conceito de pós-modernidade é aquele que decorre de um processo histórico e ideológico: essas ideias que supervalorizam o individual, o diferente e o local são nada menos do que manifestações subjetivas da materialidade do sistema capitalista e de sua fragmentação. A noção de sujeito enquanto prática discursiva que não decorre de qualquer materialidade, denota esse sujeito como “volátil, que se constitui e se movimenta a partir de sua condição de produtor de significados, de sentidos, os quais têm como referência sua apreensão […] da realidade, mas uma realidade relativa, já que vai se configurando a partir dos próprios significados” (Gonçalves, 2015, p. 72).

A psicologia sócio-histórica, então, se propõe a resgatar o sujeito histórico que se constitui nas relações, que significa a partir de uma realidade concreta, mas que, também, vivencia, age e transforma a sua subjetividade (Bock, 2015). O sistema econômico competitivo e generificado em que se insere a realidade é analisado a partir do desenvolvimento de uma consciência histórica e factual, dentro da qual se desenvolve, também, a consciência individual e as possibilidades existenciais de cada grupo social.

A partir do exposto, o trabalho com diferentes autoras que trazem perspectivas críticas baseadas na análise histórica, social, econômica, cultural, material e de gênero e sexualidade torna-se fundamental. É através das construções do que é ser uma mulher lésbica que se pode chegar a subjetividades internalizadas e naturalizadas que revelam vivências demarcadas por construções de poder e ambiguidades decorrentes do próprio sistema capitalista que define âmbitos de sucesso e fracasso e cria estereótipos que diferenciam, ao mesmo tempo em que excluem, minorias sociais.

Participantes

O estudo foi realizado em âmbito nacional, a partir de um questionário divulgado em grupos de WhatsApp e pelo Instagram.

Participaram deste estudo quarenta mulheres lésbicas adultas, de grupos não clínicos. Responderam ao questionário quem, de livre e espontânea vontade, acessou o documento, considerando um acordo explícito de sigilo sobre a identidade das participantes.

Os critérios de inclusão foram: Ser uma mulher lésbica e concordar em participar da pesquisa, respondendo ao questionário de treze perguntas abertas. Os critérios de exclusão foram: ser uma mulher trans lésbica, ou, ainda, não concordar em participar do estudo. Este estudo teve aprovação no Comitê de Ética da PUC Goiás pelo Parecer Consubstanciado 4.936.800.

Questionário

O questionário foi utilizado como método de coleta de dados com o fim de obter informações sobre os contextos em que mulheres lésbicas sofrem violência, quais são os tipos de violência deferidos e quais, normalmente, são os agressores.

Segundo Neves et al. (2020), o questionário online tem diversos benefícios, como, por exemplo, o baixo custo envolvido, a abrangência geográfica, a velocidade da coleta de dados, a padronização na aplicação e a possibilidade de comparar respostas que não derivam da probabilidade de estímulos diferentes. Além disso, o número de respostas que se abrange é maior e a sinceridade da resposta pode vir a ocorrer de forma mais facilitada, visto que não há a presença de uma entrevistadora e que a entrevistada pode responder quando lhe for possível e conveniente.

Sue e Ritter (2007) definem algumas etapas para a construção de um questionário bem sucedido: definir os objetivos; deliberar, de forma específica, o público participante; ajustar a estratégia de coleta de dados; redigir e testar o questionário; aplicar o questionário coletando, consequentemente, os dados; trabalhar com estes dados criando uma codificação e analisando-os e divulgar os resultados. A pesquisa em questão seguiu estas etapas definidas por Sue e Ritter (2007).

Resultados e discussão

Violências parentais

Segundo o Dossiê sobre Lesbocídio no Brasil (Peres et al., 2018), alguns tipos de lesbocídio podem ser destacados. Um deles é o lesbocídio cometido por parentes homens da vítima, como o sogro, primos, pai etc. Estes ocorrem, normalmente, quando a motivação é zelar pela imagem familiar, exterminando o item estranho e conservando a família tradicional brasileira. O gráfico 52, da página 68 do Dossiê, por exemplo, mostra que 57% dos homicídios contra mulheres lésbicas acontecem por pessoas conhecidas ou pessoas com vínculos afetivos ou familiares com essas mulheres. No questionário aplicado, a violência intrafamiliar foi relatada como um tipo de violência corriqueira, que ocorre de forma normalizada e estruturada a partir da ideologia heterossexual:

“[Houve] indignação de minha mãe quando soube que eu era lésbica e expulsão da casa da minha avó […]” G.

“Meu pai me xinga de lésbica desde meus 11 anos e me ameaça fisicamente. Minha mãe é médica e dizia que era doença […]” M.

“Além da violência física, minha mãe me xingava e quando eu deitava no quarto, eu conseguia ouvir ela falando com meus familiares coisas horríveis de cunho preconceituoso sobre mim” B.

“[já sofri violência em casa] inúmeras vezes. A que mais me marcou foi quando a minha mãe viu uma conversa no meu celular e deduziu que minha amiga era a minha namorada. Ela me sentou em uma cadeira, me encurralou e bateu diversas vezes no meu rosto. Eu usava aparelho e por conta disso, minha boca sangrou muito” B.

“Sempre que voltava pra casa de algum rolê [minha mãe] vinha pra cima me bater, inclusive já tomei 5 pontos no braço” C.

“Na adolescência sofri eventos de violência doméstica por parte do meu pai. Fui torturada fisicamente a fim de dar informações sobre minha sexualidade quando tinha 16 anos e segui apanhando por motivos lesbofóbicos até resolver sair da casa dele. Fui tratada como anormal e como se minha sexualidade fosse algo à parte do mundo, muitas vezes ridicularizada ou recriminada. Foi constante até eu me questionar se só não tinha tentado o suficiente gostar de homens, o que gerou uma sucessão de traumas” M.L.

A violência praticada por parentes e, principalmente, pela figura materna, foi a que mais apareceu nas respostas obtidas. Trinta e sete (37) de quarenta (40) respostas mencionaram algum tipo de agressão (física ou psicológica) por parte dos pais. A família é uma instituição criada, dentro do capitalismo, para suprir as próprias necessidades do capital, ou seja, mulheres foram dispostas no ambiente doméstico e afastadas de outras mulheres, convenientemente, para que cuidassem do trabalho reprodutivo e para que se alienassem de suas próprias potencialidades (Federici, 2017).

A família, portanto, é um ambiente reprodutor das relações capitalistas e, consequentemente, da heterossexualidade compulsória (Rich, 1993). A família é a primeira instituição que atua na socialização das pessoas e é através dela que crianças aprendem regras do que é certo ou errado. Essas regras são definidas pela sociedade da qual a pessoas participa e os padrões de moralidade são instituídos por acordos entre o estado e a igreja.

Os discursos sobre a heterossexualidade são aqueles definidos como moralmente corretos, política e ideologicamente, e falam sobre a suposta verdade sobre as pessoas definindo o que é, de fato, significante. Esses discursos nos negam a capacidade de construir as nossas próprias categorias (Wittig, 1992) e nos colocam, todos os dias, frente a definição que deveríamos fazer de nós e a opressão por nos recusarmos a cumprir com essas expectativas:

“A minha mãe não aceita o fato de eu ser lésbica, eu não posso trazer minha namorada na minha própria casa. Sou discriminada pela forma com que eu me visto também, minha mãe uma vez me falou que não me criou pra ser um homem […]” J.

“[Já houve] pedido dos meus pais para me depilar as pernas e axilas. Pedido no sentido de me constranger para que eu faça isso” D.

“Fui proibida de levar mulheres para a casa da minha mãe, fui chamada de aberração pelo meu padrasto, ele falou que eu adoecia minha mãe por eu ser lésbica, e ele convenceu ela que eu estava envolvida com drogas por este motivo (sem ser verdade), fui criticada pela maneira que eu me vestia e alegaram que eu gostaria de ser um homem” A.C.

“Sim. Minha mãe é evangélica e quando me assumi lésbica fui levada algumas vezes por ela a lugares ermos da cidade em que nasci e ela levava a bíblia para ler pra mim [porque] que eu era uma abominação diante de deus” S.

J., D, A.C., e S. trouxeram, em suas falas, como os pais esperam que elas se vistam ou se comportem como mulheres, interpondo o discurso sexual ao da feminilidade e destacando importantes aspectos sobre o que define uma mulher. Beauvoir (1974) destaca o quanto a socialização de meninas é voltada para a feminilidade, com o objetivo de alcançar desejabilidade e respeito em uma sociedade que coloca sobre mulheres a responsabilidade pela reprodução da beleza para alcançar algum tipo de sucesso. Para além dessa definição, Beauvoir (1974) especifica a autoobjetificação incentivada, a passividade, a docilidade e o cuidado como características legitimadoras do papel de uma mulher. J., D., A.C., e S., quando subverteram em algum aspecto essa lógica, se tornaram reféns da opressão lesbomisógina interposta por seus familiares.

Lésbicas desfeminilizadas

Mulheres lésbicas desfeminilizadas sofrem, além da opressão por sua sexualidade ‘desviante’ da heterossexualidade, a coação por subverterem todo o conceito de feminilidade destinado às mulheres desde que nascem. E, por não se encaixarem nesse estereótipo do que uma mulher deveria reproduzir, são consideradas menos mulheres. Beauvoir (1974) coloca o sucesso da socialização feminina como interligado ao conceito de mulher “de verdade”:

“Minha irmã e minha mãe costumavam fazer comentários desagradáveis sobre os meus pêlos, corte de cabelo e roupas. Diziam que tudo bem ser lésbica, mas não é ok “parecer uma” ou “parecer um homem”” L.

“[já sofri violência] física só por parte dos meus pais quando não aceitavam que sou lésbica ou desfeminilizada. […] Sempre aqueles mesmos tipos de fala que já estamos acostumadas, nos comparando com homens ou agindo como se fosse melhor uma filha super sexualizada ou que usa drogas ou comete coisas ilícitas em geral” I.

“[Fui] expulsa de casa, perseguida por não ser feminina reiteradas vezes de “por que quero ser um homem”” M.

“Já se referiram a mim como um homem diversas vezes, fui alvo de xingamentos, olhares e já cuspiram em mim também” D.

“Algumas vezes as pessoas vêm em tom de chacota perguntando se eu sou homem ou mulher” A.C.

“[já sofri] violência psicológica em relacionamento com lésbica feminilizada que me colocava em simetria a homens para que eu me sentisse culpada e quisesse me redimir. Enfim, uma dinâmica butch-femme” L.S.

“Já fui expulsa de banheiro. Já ouvi xingamentos enquanto dirigia “nem tem barba ainda” dizem eles. Já li também que “pareço homem”” M.E.

“Aos 13 anos estava de mão dada com a minha namorada da época (ela era desfem) e meu pai viu, chegando em casa me bateu. Ouvi coisas como “prefiro que tu seja usuária de drogas”, “prefiro que mores na rua”. [Já sofri] expulsão de provador de roupa ou banheiro público” M.E.

“Meus pais aceitavam o fato de eu ser lésbica porém não o fato de eu “parecer uma” (pela minha forma de me vestir)” Li. Fem.

“Sempre sou xingada, já falaram que iam me matar, e até mesmo fui tratada no masculino por ser desfem mesmo após falar meu nome. [Sofri] pressão para mudar o cabelo, depilar e até jeito de me comportar” Lu.

No questionário aplicado, 62,5% das mulheres lésbicas que o responderam se declararam desfeminilizadas, enquanto 37,5% se colocaram como feminilizadas. Jeffreys (2014) elabora como a moda feminina é sexual, comparada à masculina. Segundo a autora, a exigência de que mulheres exibam seus corpos nega a sua dignidade ao mesmo tempo em que exalta a diferença de poderes entre os sexos. Lésbicas que se declaram desfeminilizadas não se eximem completamente de sua socialização, que ainda é voltada para a construção de uma mulher, inclusive, comportamentalmente. Mas são mulheres que renegam esses ensinamentos e compreendem o significado de todos os signos interpostos a elas. Tendo em vista que os aprendizados são responsáveis pela constituição da personalidade, mas que, também, são mutáveis a partir da apreensão do mundo histórica, cultural e dialeticamente (Rego, 2003), pode-se compreender que mulheres que se declaram desfeminilizadas estão, constantemente, em movimento de desinstitucionalização em relação ao capitalismo, ao patriarcado e à heterossexualidade que molda a família tradicional brasileira.

Segundo Jeffreys (2014) e Dworkin (1974), as práticas de beleza, como o uso de maquiagens e a depilação, foram, surpreendentemente, transformadas, por um feminismo de cunho mais liberal e pós-moderno, em sinônimo de empoderamento e de poder de escolha, apesar de, materialmente, continuarem exatamente as mesmas e com as mesmas características:

Esta é uma incógnita, já que o uso de batom, por exemplo, pode ser visto como uma prática peculiar em que mulheres aplicam substâncias tóxicas nos lábios várias vezes ao dia, principalmente antes de saírem em público, e absorvem no corpo uma estimativa de 3 a 4,5 quilos dessas substâncias durante toda a vida (Erickson, 2002; Farrow, 2002). O uso de batom, como as outras práticas que observaremos neste capítulo, consomem tempo, dinheiro e carga emocional das mulheres. A falta de interesse em examiná-las sugere que elas são vistas como “naturais” para as mulheres e, portanto, indignas de análise (Jeffreys, 2014, p. 26).

As práticas de beleza, encaradas, muitas vezes, como expressões de identidade, não são consideradas como opções para mulheres. Dworkin (1974) as caracteriza como obsessivas e fruto de anos de convivência social, a ponto de distúrbios alimentares e implantes de silicone serem considerados normais, mesmo que apresentem grandes riscos para a saúde da mulher. As falas a seguir incorporam o constante estado de luta em que lésbicas desfeminilizada vivem, quando se colocam contra este sistema desproporcional de símbolos femininos:

“Percebo que os comentários e olhares se referem principalmente, as minhas roupas e meu jeito desfeminilizado. […] quando ando com minha namorada pelas ruas […] nos olham com desaprovação e ódio, ficam escancarado. Minha namorada prefere não demonstrar afeto em público, nem sequer andamos de mãos dadas, mas não deixamos de sofrer com a violência” T.

“Um homem que treina comigo desde que eu era criança, ano passado levantou um pouco a barra da minha calça quando eu estava sentada, segurou os meus pelos da perna e fez alguma piada na frente dos outros sobre já estar na hora de eu me depilar. Fiquei congelada e só falei com ele sobre isso um mês depois. Senti o meu espaço plenamente invadido, eu jamais encostaria na perna dele dessa forma” L.S.

“Já várias vezes, uma vez em uma ida a sorveteria eu descobri que estavam a apostando se eu era um [homem] ou uma mulher. Já fui xingada na rua por uma kombi que estava passando. Olhares tortos em banheiro de shopping” J.

“Estudantes tentaram me impedir de usar o banheiro feminino. Colegas deslegitimando fala sobre minhas vivências. Já fui parada na rua e xingada estando sozinha – por conta das minhas roupas e pelos. Também já fui xingada por estranhos estando junto com minha namorada” Ma.

“Já recebi comentários sobre os pelos das minhas pernas, olhadas de desconforto em banheiros e mau atendimento em estabelecimentos” L.S.

“Na graduação o professor […] gratuitamente me chamou no meio de uma aula, deduzo que por conta da minha aparência, e prosseguiu com uma humilhação pública. […] Esse dia […] me levou a ter uma crise de pânico severa. Era meu último semestre, eu fui embora da cidade e terminei remotamente, com atestado médico” Mo.

“Uma funcionária da administração do meu instituto sabendo que eu sou uma mulher, me tratou no masculino diversas porque eu sou desfeminilizada e uma professora disse que pra eu estar no laboratório dela, eu deveria deixar o cabelo crescer. Em ambos os casos, eu não tive forças pra reprimir o ato” Br.

Segundo Peres (2018), entre 2014 e 2017, 66% das lésbicas que sofreram homicídio eram desfeminilizadas. Lésbicas desfeminilizadas não são homens, não querem parecer homens e muito menos assumir o papel de homens. Essa comparação não leva em consideração a realidade material de mulheres, já que a socialização masculina envolve uma gama de aprendizados, validações e questões de âmbito social, cultural e histórico que colocam homens em posição de privilégio. Ser mulher envolve violências reais e simbólicas e o pós-modernismo apaga reivindicações grupais, exalta uma percepção individualizada de mundo e encerra a percepção coletiva da luta (Gonçalves, 2017) de mulheres. Ainda segundo Peres (2018), 83% dos assassinos de mulheres lésbicas são do sexo masculino. Tendo em vista que este é um número significativamente alto, é relevante que mulheres questionem todos os tipos de opressão que recaem sobre elas.

Violências diversas

Além dos tipos de violências mencionados, surgiram, no questionário, outros tipos de violência igualmente relevantes que mulheres lésbicas sofrem no seu cotidiano, como, por exemplo, a violência física (já mencionada em algumas respostas nas análises acima), a violência no contexto universitário, a violência no contexto conjugal, a violência no ambiente virtual e a violência na rua, desferida por pessoas desconhecidas. Além disso, a maioria das lésbicas (vinte e seis) que responderam ao questionário, mencionaram que, normalmente, os autores de violência são os homens.

Dentre os tipos de violência mencionados, ganhou destaque a violência sofrida nas ruas, por pessoas desconhecidas:

“[já sofri violência] principalmente quando acompanhada de minha ex-namorada. Ocorreram várias situações, mas a principal foi uma ameaça de estupro corretivo “isso aí é falta de pau”” I.

“São incontáveis as vezes em que isso aconteceu, considerando as violências cotidianas como os olhares tortos e os xingamentos. Mas o pior de todos foi uma mulher evangélica no metrô que me empurrou ao me ver de mãos dadas com a minha namorada” S.

“Um homem tentou me atropelar quando atravessava uma rua de mãos dadas com uma mulher” A.C.

“Já ouvi muitos comentários ao entrar no banheiro feminino. Uma vez solicitaram meu RG pra confirmar que eu realmente era uma mulher” B.

“Fui perseguida por um motoqueiro por não aceitar uma agressão verbal gratuita” R.

“Estava em um ônibus coletivo e ao passar na catraca, logo após minha ex namorada, o cobrador começou a perguntar se somos mulheres, […] que era falta de homem! Precisávamos encontrar com um homem de verdade pra ver… Isso em um ônibus coletivo as 13h e não teve uma pessoa se quer para falar nada. Descemos em nossa parada e prestamos queixa! Foi uma das situações mais desafiadoras da minha vida, ter que sofrer perseguição nos dias de audiência, só poder sair da audiência com a advogada, o medo pela sensação de insegurança nos cercou por muito tempo!” Bnn.

“Uma vez que um homem tentou me atropelar na rua do nada e me chamou de “sapatão vagabunda”” Mo.

“[…] Observar baterem na minha ex-namorada […] foi uma cena de violência traumática para ambas” M.

“[…] já fui expulsa de um restaurante pelo próprio dono, de maneira grosseira, pois demonstrei afeto junto à minha então namorada” G.

A revista “chana com chana” (1981-1987) traz, em suas páginas, escritas entre os anos de 1981 a 1987, que, enquanto considerarmos o lesbianismo uma forma de sexualidade diferente ou uma pulsão qualquer, em referência à Freud, não conseguiremos enxergar o potencial político e tomar a escolha consciente de não nos submetermos à ideologia do opressor. Segundo ela, “somos inadaptadas sociais” (p. 3, 1981) e devemos insurgir como resistência. Benedito (2019), recupera o conceito de O pessoal é político que surgiu na segunda onda do feminismo, e considera que o direito dos homens é assegurado sobre o corpo, sobre trabalho e sobre a subjetividade de mulheres por meio da invisibilidade da possibilidade de nos relacionarmos entre nós e de não conhecermos a potencialidade que teríamos juntas. Essa potencialidade está para além do relacionamento romântico entre mulheres, mas na afetividade que foi arrancada de nós quando fomos confinadas no ambiente doméstico (Federici, 2017).

Considerações finais

A partir do exposto, conclui-se que mulheres lésbicas sofrem violências físicas e psicológicas em diversos ambientes. Os ambientes que mais se destacaram foram o doméstico intrafamiliar, com violências deferidas por parente e, principalmente, pelos pais e o contexto desconhecido da rua e de pessoas que essas mulheres não conseguem nomear. Outros contextos de violência foram apontados e não foram abordados com profundidade neste artigo por uma questão de limite de páginas.

Nota-se, também, que mulheres lésbicas desfeminilizadas sofrem opressões de forma mais violenta do que mulheres lésbicas feminilizadas, porque, além da opressão devido à sua sexualidade, a opressão de gênero também se faz presente. Essas mulheres, muitas vezes, não conseguem viver de forma digna porque são comparadas com homens e consideradas não-mulheres.

Além disso, gostaria de destacar que esta é uma pesquisa feita em âmbito nacional com 40 mulheres que se dispuseram a responder ao questionário proposto. Portanto, apresenta limitações.


²Esta terminologia foi utilizada para fazer referência ao movimento lésbico como um movimento político.
³A aprendizagem vicária é a aprendizagem por observação e análise de consequências. O termo foi cunhado por Albert Bandura, em 1959. Para saber mais, a seguinte referência é recomendada: Bandura, A. & Walters, R.H. Adolescent Aggression. Ronald press: New York, 1959.
4Termo usado para se referir às mulheres lésbicas que subvertem as regras da feminilidade.

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¹Psicóloga e mestre pelo programa de Mestrado em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Go).