GESTÃO PÚBLICA, EDUCAÇÃO AMBIENTAL E PESCA: O CASO DA RAIA-VIOLA NO RIO GRANDE DO SUL

PUBLIC MANAGEMENT, ENVIRONMENTAL EDUCATION AND FISHING: THE CASE OF BRAZILIAN GUITARFISH IN RIO GRANDE DO SUL

GESTIÓN PÚBLICA, EDUCACIÓN AMBIENTAL Y PESCA: EL CASO DEL RAYA GUITARRA EN RIO GRANDE DO SUL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8170075


Ederson Pinto da Silva1
Lucia de Fátima Socoowski de Anello2
Felipe da Silva Justo3


RESUMO

O presente trabalho busca discutir aproximações entre educação ambiental, pesca e gestão pública. Para tanto, adota como pano de fundo um conflito entre Estado e pescadores artesanais da costa do estado do Rio Grande do Sul – Brasil, devido a inclusão da espécie de pescado conhecida como Raia-viola (Pseudobatos horkelii) nas listas oficiais de espécies ameaçadas de extinção. Utiliza como material de análise os elementos geradores de uma reunião articulada pelos pescadores, assim como a práxis educativa e o método presentes na mesma, articulando-os com os resultados alcançados. Compreendendo o caráter processual da gestão pública, as conclusões momentâneas apontam que a educação no processo de gestão ambiental está presente no processo analisado, indicando a mesma como um agente de aproximação entre gestão pública e gestão da pesca. 

PALAVRAS-CHAVE: Educação ambiental, gestão pública, pesca, gestão pesqueira, transdisciplinaridade. 

ABSTRACT

This paper aims to discuss approaches among environmental education, fisheries, and public management. A conflict between the State and artisanal fishermen on the coast of the State of Rio Grande do Sul – Brazil is adopted as a background, due to the inclusion of the species of fish known as Brazilian guitarfish (Pseudobatos horkelii) in the official lists of endangered species of extinction. As fundamentals of analysis, the generating elements of a meeting carried out by the fishermen are used, as well as the educational praxis and the method present in it. Then, these are linked with the results achieved. Understanding the procedural character of public management, the momentary conclu-sions indicate that education in the environmental management process is present within the analyzed process, which is pointed out as an agency of approach between public management and fisheries management. 

KEYWORDS: Environmental education, public management, fisheries, fisheries management, transdisciplinarity.

RESUMEN

El presente trabajo busca discutir aproximaciones entre educación ambiental, pesca y gestión pública. Con este fin, adopta como telón de fondo, un conflicto entre el Estado y pescadores artesanales de la costa del estado de Río Grande del Sur-Brasil, debido a la inclusión de la especie de pescado conocida como raya guitarra  (Pseudobatos horkelii) en las listas oficiales de especies en peligro de extinción. Utiliza como material de análisis los elementos generadores de una reunión articulada por los pescadores, así como la praxis educativa y el método presente en la misma, articulándolos con los resultados alcanzados. Comprendiendo el carácter procesal de la gestión pública, las conclusiones momentáneas apuntan que la educación en el proceso de gestión ambiental está presente en el proceso analizado, indicando la misma como un agente de aproximación entre ges-tión pública y gestión de la pesca. 

PALABRAS CLAVE: Educación ambiental, gestión pública, pesca, gestión pesquera, transdisciplinariedad.

INTRODUÇÃO

Este artigo compõe um esforço teórico reflexivo sobre uma experiência vivida no âmbito da gestão pesqueira. Desenvolve uma análise sobre como a concepção de educação ambiental no processo de gestão proposta por Quintas (2004, 2007) pode ser um agente de articulação de processos dialógicos em arenas de gestão pública que tratam sobre as questões que regem a atividade pesqueira. 

Little (2006) destaca que além dos problemas tidos como globais, no plano regional existem recorrentes crises ambientais que se manifestam, entre outros, na perda da biodiversidade e no esgotamento dos recursos naturais.  Santos (2006, 2008) atribui o conceito de verticalidades para as transformações que este processo global impõe aos territórios, levando a ressignificações nas relações sociais de produção e na ontologia dos atores presentes no território. Na mesma linha, Diegues (2008) afirma que

A expansão de economias de mercado baseadas em alta produtividade e consumo se deu, com maior ou menor intensidade, em todas as regiões da terra, com efeitos negativos e habitualmente devastadores sobre as populações humanas que mais dependiam e habitam ecossistemas frágeis […], causando, ao mesmo tempo, empobrecimento social e degradação ambiental. Em muitos casos, sistemas tradicionais de manejo altamente adaptados a ecossistemas específicos caíram em desuso, seja pela introdução da economia de mercado, pela desorganização ecocultural, seja por substituição por outros sistemas chamados “modernos” impostos de fora das comunidades. A pauperização dessas populações tradicionais como fruto desses processos, e muitas vezes a miséria extrema, associada à perda de direitos históricos sobre áreas em que viviam, tem levado muitas comunidades de moradores a sobreexplotar os recursos naturais. (p. 99)

No tocante à pesca, em nível regional este processo afetou diretamente o modo de vida das comunidades, fundamentalmente dos pequenos pescadores, tanto no que se refere a relação com os territórios, como na relação estabelecida com os estoques pesqueiros. Tais processos, ao se instalarem nos territórios, geram transformações nas relações que impactam as ontologias da pesca artesanal.

Diegues (1988) demonstra ainda como, associado às verticalidades ambientais, o processo de modernização da pesca brasileira mobilizou vultosos recursos para a pesca empresarial capitalista, levando à exaustão dos estoques pesqueiros, impondo queda nas capturas e competição desigual pelo acesso aos cardumes. Assim, nas últimas décadas, como uma das formas de responder aos impactos ambientais sobre os estoques pesqueiros, o Estado brasileiro passou a divulgar listas oficiais de espécies ameaçadas de extinção, restringindo ou proibindo a captura, de acordo com o nível de ameaça de cada espécie.  Desta forma, desde 2005 a espécie Raia-viola (Pseudobatos horkelii), tradicionalmente importante para a pesca costeira do estado do Rio Grande do Sul, passou a estar presentes nestas listas, tendo sua captura e comercialização proibida. 

Entretanto, desde a inclusão da Raia-viola nas listas oficiais de espécies ameaçadas, o Estado cumpriu apenas parcialmente os dispositivos previstos na legislação, mantendo a proibição da pesca, sem, no entanto, levar a cabo a elaboração dos planos de recuperação para a espécie. Desta forma, emergiu um conflito que envolve, entre outros, pescadores, conservacionistas e órgãos estatais, configurando uma arena tensionada por diferentes racionalidades, interesses e ideologias.

Neste contexto, tendo como tema gerador uma reunião promovida pela Câmara Técnica de Pesca do Conselho Gaúcho de Aquicultura e Pesca Sustentáveis – CONGAPES, inicialmente discutimos alguns pressupostos teórico-metodológicos para a análise proposta. Neste item, desenvolvemos um tensionamento sobre a racionalidade da gestão pesqueira para, na sequência trabalharmos uma aproximação entre gestão pública e educação ambiental. No próximo item trabalhamos a questão da Raia-Viola como uma situação-limite enfrentada pelos pescadores para, na sequência, discutir a realização da reunião como um ato-limite para a construção do inédito-viável. Por fim, tendo presente que se trata de um processo de futuro aberto, tece algumas considerações momentâneas que articulam a necessidade de distanciamento temporal e a realização de reflexões complementares.

PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICAS PARA A ANÁLISE

Tensionando a racionalidade da gestão pesqueira

Em uma tradução da definição de FAO (2005), gestão pesqueira pode ser entendida como o processo integrado de coleta de informações, análise, planejamento, consulta, tomada de decisão, alocação de recursos e formulação e execução, bem como imposição quando necessário, de regulamentos ou normas que regem as atividades de pesca para garantir a produtividade dos recursos e a realização de outros objetivos. Basicamente está alicerçada na ideia central de que, partindo do subsídio científico a respeito do comportamento biológico da espécie, a iniciativa privada ou o Estado devem promover a gestão da exploração dos recursos pesqueiros de forma a se obter o melhor rendimento econômico, garantindo a reprodução dos estoques. 

Como uma racionalidade criada originalmente na segunda metade do século XIX com a função de dar suporte científico e legitimar o processo de exploração privada dos estoques pesqueiros promovido pelo surgimento da indústria pesqueira associada ao processo de modernização, desenvolveu-se através de um combinado de biologia e economia liberal (Moura, 2014). Já na segunda metade do século XX a “Tragédia dos Comuns” de Hardin (1968) agregou força e impulsionou a posição acerca da necessidade de gestão privada do uso dos recursos pesqueiros. Segundo Foladori e Taks (2004), Hardin, ao considerar que o sistema capitalista seria o único existente e o único possível, propõe que os espaços coletivos são depredados porque, não sendo propriedade privada, não recebem o interesse de ninguém. Logo, na sua teoria carregada de ideologia, a solução passaria pela extensão às áreas comuns de direitos de propriedade privada.

Operado com um modelo de “sistema pesqueiro”, a gestão pesqueira propõe que a sustentabilidade da pesca pode ser obtida a partir do regramento da captura. Regramento este que deve ser aplicado aos usuários do recurso, estritamente com base nos dados gerados pelo seu campo científico. Entretanto, a utilização da categoria “usuário” implica em uma séria simplificação, pois trata como iguais as diferentes formas de organização social da produção pesqueira. Assim, na categoria usuários se apagam, entre outras, as diferenças existentes entre as formas e subformas de organização da produção pesqueira, conforme descrito por Diegues (1983, 1988). 

Um exemplo das implicações desta abordagem pode ser observado no Plano de Gestão para o Uso Sustentável da Tainha, Mugil liza, Valenciennes, 1836, no Sudeste e Sul do Brasil (Brasil, 2015). Analisando este documento, Walter, Caldasso, Fischer e Almeida (2018) denunciam as injustiças decorrentes de propostas de gestão baseadas estritamente no comportamento biológico da espécie, acirrando um conflito ambiental envolvendo pescadores artesanais, que têm na tainha uma das principais espécies para sua reprodução social e a indústria pesqueira de Santa Catarina, que promove a pesca durante a migração reprodutiva da espécie com o objetivo de capturar as tainhas ovadas para extrair as ovas e transformá-las em botarga, uma iguaria que atende basicamente ao mercado externo. 

Nas últimas décadas, diante da incapacidade de dar respostas viáveis aos problemas da pesca, principalmente no que tange a realidade da pesca artesanal, o modelo clássico da gestão pesqueira deu início a um processo de reinvenção, buscando utilizar-se de “novas abordagens”. Dentre estas abordagens alternativas, a proposta de gestão pesqueira compartilhada tem recebido grande atenção de governos, pesquisadores e organismos internacionais. Kalikoski e Silva (2007) afirmam que a gestão compartilhada da pesca passou a se destacar em nível mundial como uma alternativa de descentralização de decisões, tendo sido adotada em inúmeras iniciativas em nível nacional. Seixas et al. (2011) destacam algumas formas de arranjos institucionais que estão ligados à proposta de gestão compartilhada da pesca.

A gestão compartilhada do uso de recursos pesqueiros pode ocorrer através de arranjos institucionais diversos, formais ou informais […] os quais são nomeados de diversas formas, entre elas: gestão compartilhada, gestão participativa, co-gestão, manejo comunitário, manejo participativo, manejo local, co-manejo e co-gerenciamento. (p. 23)

Contudo, mesmo nestas novas roupagens, o foco central continua sendo na gestão do uso do recurso pesqueiro, ou seja, na captura, divergindo apenas na forma de implementação dos instrumentos. Segundo Berkes, Mahon, McConney, Pollnac e Pomeroy (2006), a principal diferença entre estas novas abordagens e as anteriores estaria na forma de tomar as decisões sobre quando e como aplicar as mesmas ferramentas que tradicionalmente foram propostas. 

Outro questionamento que pode ser feito a esta racionalidade é o fato de ignorar em sua análise todas as demais verticalidades ambientais que o modelo hegemônico opera no território. Ao mesmo passo que ignora a produção de outros campos da ciência, desconsidera todas as verticalidades que provocam transformações ambientais nos ecossistemas e trata como externalidades todos os demais fatores que contribuem para degradação dos oceanos e estuários e na diminuição da produtividade pesqueira (Walter et al., 2018). 

Cabe ainda destacar que, alegando uma neutralidade que não está na sua gênese, esta racionalidade, ao mesmo tempo em que se propõe impor a sua verdade, faz um movimento em que busca distanciar-se dos processos tecno-políticos responsáveis pela construção das normas que regulamentam a pesca. Assim, o pouco (ou inexistente) diálogo entre o conhecimento produzido e os processos tecno-políticos responsáveis pela construção das normas faz com que, em regra, os instrumentos de gestão acabam incorporando apenas os interesses daqueles “usuários” que possuem maior força de influência. Neste sentido, Foladori e Taks (2004) afirmam que

Os enfoques das ciências naturais sobre a degradação ambiental perdem de vista as contradições no interior das sociedades, e tomam o grupo social como uma unidade. O resultado são propostas de sustentabilidade ecológica que, paradoxalmente, podem acarretar insustentabilidade social: práticas agronômicas sustentáveis podem marginalizar pequenos produtores; limites a exploração de recursos naturais podem empobrecer camponeses, coletores, caçadores e pescadores; o ordenamento territorial urbano pode remover assentamentos precários sem oferecer alternativa. (p. 341)

No Brasil, a racionalidade da gestão pesqueira tem forte influência no aparelho estatal, no qual a gestão do uso dos recursos pesqueiros é disciplinada pela Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Atividade Pesqueira, instituída pela Lei nº 11.959/2009, que busca conciliar “o equilíbrio entre o princípio da sustentabilidade dos recursos pesqueiros e a obtenção de melhores resultados econômicos e sociais” (BRASIL, 2009, p. 2). Entretanto, o que se tem visto é que o olhar dualista (pescador x peixe) da gestão pesqueira, associado ao seu afastamento dos processos tecno-políticos em busca de uma neutralidade cada vez menos possível, além de não conseguir responder aos complexos problemas da pesca, sobretudo no que se refere às comunidades de pesca artesanal, têm relegado a esta racionalidade um lugar com progressiva perda de protagonismo.  

Ao contrário do que se propõe enquanto parte de uma ciência hegemônica para tratar dos problemas da pesca, nem o modelo clássico, nem as novas roupagens da gestão pesqueira conseguiram evitar o impacto das verticalidades ambientais nos territórios pesqueiros e, por consequência, no colapso dos estoques de várias espécies pesqueiras (Quadro 01).

Quadro 1 Número de peixes e invertebrados aquáticos constantes nas Listas das Espécies da Fauna Brasileira Ameaçadas de Extinção

ANO20042014
Peixes154409
Invertebrados aquáticos7766
Total de espécies231475

Fonte: MMA, 2019

Como pode ser observado, em aproximadamente dez anos o número de espécies de peixes e invertebrados aquáticos constantes nas listas oficiais de espécies ameaçadas de extinção saltou de 231 para 475. Este aumento significativo pode ser considerado como um indicativo preocupante sobre a real capacidade desta racionalidade em dar respostas aos complexos problemas da pesca.

Gestão pública e educação ambiental 

O campo da gestão pública admite que as questões que evidenciam situações-problema, análise da realidade, estudos de possibilidades e implementação de alternativas, são questões que fazem parte de um todo complexo que se determina em um processo dinâmico e não linear. Neste sentido, Matus (2005) afirma que no âmbito da gestão pública ocorrem práticas sociais que ultrapassam os limites da formação especializada proporcionada pela ciência tradicional. Entre outras posturas, tais práticas exigem que 

se explique a realidade, que se identifiquem e avaliem problemas e causas críticas, que se calcule sobre o futuro incerto, que se façam e avaliem-se propostas sobre os produtos e resultados de nossas ações, que se resolvam conflitos de conhecimento, que se faça análise estratégica para construir viabilidade, que se estudem os outros atores que participam no jogo social, que se faça o monitoramento da evolução das mudanças na realidade que esteja sob intervenção, e que se projetam ou modernizem organizações (Matus, 2005, p. 22).

Desta forma, segundo este autor, para responder de forma adequada aos problemas da gestão pública é necessário superar as barreiras impostas pelo conhecimento departamentalizado e adotar uma abordagem transdepartamental, que se debruce sobre o jogo social que permeia as arenas onde ocorrem as disputas em relação a ação do Estado. Esta departamentalização do conhecimento é apontada por Matus como um dos fatores que fazem com que muitas vezes diagnósticos com excelentes metodologias acadêmicas e grande geração de informações sejam incapazes de contribuir de forma efetiva para a resolução dos problemas complexos existentes no contexto da gestão pública.

A problemática ambiental que envolve a gestão da pesca brasileira, situada aqui como especificidade enquanto uma problemática de gestão ambiental pública, pode ser tomada como um interessante exemplo. São inegáveis e incontestáveis os avanços da Ciência no tocante ao conhecimento dos ecossistemas e da ecologia das espécies capturadas na pesca comercial. Entretanto, o pouco (ou inexistente) diálogo entre este conhecimento produzido e os processos tecno-políticos responsáveis pela construção das normas estatais que tratam da gestão das pescarias leva ao fato de que, via de regra, os instrumentos de gestão acabam incorporando apenas os interesses daqueles atores ligados ao setor pesqueiro que possuem maiores recursos de poder. Para Rua (2009), recursos de poder

são capacidades que um ou vários atores podem utilizar para pressionar por decisões que sejam favoráveis aos seus interesses. Podem envolver desde reputação, posição social, contato com redes de influência, controle de dinheiro, de armas, capacidade de denunciar e chantagear, inserção internacional, poder de mobilização de grandes grupos […], controle de recursos tecnológicos […], capacidade de infligir prejuízos. (p. 44)

 Assim, enquanto os atores políticos da pesca com maior poder se beneficiam de forma desproporcional em relação aos pequenos pescadores, ao conhecimento departamentalizado o Estado delega apenas a função de subsidiar os documentos que declaram o fracasso da gestão ambiental pública e a ineficiência da gestão pesqueira, como é o caso das listas oficiais de espécies ameaçadas de extinção. 

Diante desta problemática, a abordagem transdepartamental da gestão pública propõe a utilização de categorias, entre outras, como arenas políticas e atores políticos, as quais servem de base para a compreensão que determinada realidade não pode ser explicada apenas por um único diagnóstico. Nesta perspectiva a realidade assume um caráter dinâmico, uma vez que pode ser explicada de múltiplas formas, de acordo com os interesses que estão em jogo e que mobilizam o ator que a analisa, explica e faz recomendações ou sugestões com vistas a transformá-la ou reafirmá-la. 

A explicação que cada ator constrói sobre uma realidade não é apenas um amontoado de dados e informações: os dados e informações podem ser objetivos e podem ser igualmente acessíveis a todos. A explicação é uma leitura dos dados e informações que expressam a realidade. Cada ator retira da realidade uma interpretação dos fatos, conforme as lentes com que os observa. Toda explicação é declarada por alguém, e esse alguém é um ser humano que tem seus valores, suas ideologias e seus interesses. Sua leitura está carregada de subjetividade e está animada por um propósito. Ainda mais no caso de tratar-se não de simples observadores, mas de atores interessados no resultado do jogo, a explicação é guiada por esses interesses (Matus, 2014, p. 30).

Assim, principalmente em processos multiplamente tensionados, como os que discutem normas relacionadas à atividade pesqueira, é fundamental considerar que, devido a motivações diversas ou eventuais conflitos de interesses, os atores não possuem a mesma leitura da realidade. Desta forma, torna-se necessária a construção de espaços de discussão onde estas diferentes visões possam ser apresentadas para que só então se passe a construir os acordos necessários que garantam a efetiva participação e, consequentemente, o devido compromisso de todos para com o resultado do acordado.

Matus (2014) não deixa dúvidas sobre a forma como os interesses particulares influenciam as leituras e explicações da realidade entre os diferentes atores presentes em uma determinada arena. No caso das arenas que tratam da gestão da pesca, as explicações da realidade ainda são motivadas por diferentes racionalidades e ideologias no que se refere a organização da sociedade e na relação desta com o meio físico natural, criando um ambiente político-institucional amplamente tenso e complexo onde convivem visões que vão desde o conservadorismo tradicional até o estímulo à apropriação privada da natureza, amplamente embasada pela ideologia proposta por Hardin (1968) para legitimar a privatização dos bens naturais de uso comum.

Neste contexto, pensar uma reunião para dar início a um processo com vistas a tratar da situação da Raia-viola é pensar na constituição de uma arena tensionada formada por um conjunto de atores com diferentes posições sociais, visões de mundo e interesses, explícitos ou ocultos. Diante deste desafio, a concepção de Educação Ambiental proposta por Quintas (2004, 2007) aporta os conhecimentos e habilidades necessários para o estabelecimento de processos de mediação e diálogo com vistas à construção coletiva de caminhos possíveis no âmbito da gestão pública. 

Por ser produzida no espaço tensionado, constituído a partir do processo decisório sobre a destinação dos recursos ambientais na sociedade, a Educação no Processo de Gestão Ambiental exige profissionais especialmente habilitados, que dominem conhecimentos e metodologias específicas para o desenvolvimento de processos de ensino-aprendizagem com jovens e adultos em contextos sociais diferenciados […] Cabe esclarecer que, ao se falar em Educação no Processo de Gestão Ambiental, não se está falando de uma nova Educação Ambiental. Está se falando sim, em uma outra concepção de educação que toma o espaço da gestão ambiental como elemento estruturante na organização do processo de ensino-aprendizagem, construído com os sujeitos nele envolvidos, para que haja de fato controle social sobre decisões, que via de regra, afetam o destino de muitos, senão de todos, destas e de futuras gerações. (Quintas, 2004, p. 115-116)

Neste sentido, a educação ambiental, ancorada em uma perspectiva crítica e transformadora, pode contribuir com a articulação de processos de ensino-aprendizagem que promovam uma apropriação, por parte dos pescadores artesanais, sobre como funcionam os espaços de gestão pública que determinam as questões ambientais que incidem sobre a pesca artesanal. Assim, na disputa realizada no âmbito destas arenas a educação ambiental pode contribuir para que os grupos sociais com menores recursos de poder possam gestar as condições para se inserir de forma gradual e efetiva na gestão ambiental pública, disputando assim, futuros que lhes sejam mais favoráveis.

Entretanto, nesta concepção de educação ambiental, o método vai além de um conjunto de procedimentos e técnicas aplicáveis a determinado grupo social. Antes da técnica, o método reflete a postura que assume o educador ambiental perante determinada realidade, propondo e desenvolvendo ações orientadas por uma intencionalidade pedagógica previamente planejada, a qual assume que o caminho vai se construindo no processo. Para tanto, é fundamental que a mesma esteja ancorada em uma perspectiva teórica em que “a produção, transmissão e apropriação de conhecimentos […] visam contribuir para o enfrentamento intencional das relações sociais alienadas, e se definem no movimento de explicitação e superação da crise ambiental enquanto uma expressão da crise societária”. (Loureiro, 2015, p. 173)

Nesta perspectiva, Moura e Loureiro (2015) utilizam as categorias freireanas “situação-limite”, “ato-limite” e “inédito-viável” para analisar a educação ambiental crítica em um processo de construção de um arranjo regional proposto por pescadores artesanais para lidar com as questões relacionadas à gestão ambiental pública da pesca. Para estes autores, a utilização de tais categorias ajuda a compreender pedagogicamente os processos sociais e não-escolares, particularmente relevantes para a educação ambiental. 

Em Pedagogia do Oprimido, Freire (2011a) aborda situações-limite como aquelas em que, num determinado momento histórico, os homens as percebem como um freio, algo que não pode ser ultrapassado por eles. Funcionam como obstáculos à libertação dos homens, que até então não conseguem conceber outra possibilidade senão aquela em que as relações sócio históricas lhe colocaram.  Entretanto, afirma Freire (2011ª), 

No momento em que a percepção crítica se instaura, na ação mesma, se desenvolve um clima de esperança e confiança que leva os homens a se empenharem na superação das “situações-limite”. Esta superação, que não existe fora das relações homens-mundo, somente pode verificar-se através da ação dos homens sobre a realidade concreta em que se dão as “situações-limite” (p. 126)

 A estas ações, que partem da negação e do dado e da aceitação dócil e passiva da realidade, buscando transformá-la por meio da superação das situações-limite, Freire (2011a) chama de atos-limite, atitudes “que implicam uma postura decisória frente ao mundo, do qual o ser se “separa”, e, objetivando-o, o transforma com sua ação” (p. 126). Ainda segundo Freire (2011a), na constituição dos atos-limite os homens, “através de sua ação sobre o mundo, criam o domínio da cultura e da história […] são seres da práxis. Práxis esta que, sendo reflexão e ação verdadeiramente transformadora da realidade, é fonte de conhecimento reflexivo e criação” (p. 127). Neste processo, em que deixam de aceitar de forma passiva as situações de opressão e passam a lutar pela transformação da realidade vivida, os oprimidos constroem e experimentam o inédito-viável. 

As situações-limite implicam, pois, a existência daqueles e daquelas a quem diretamente servem, os dominantes; e daqueles e daquelas a quem se “negam” e se “freiam” as coisas, os oprimidos. Os primeiros veem os temas-problemas encobertos pelas “situações-limite” daí os consideram como determinantes históricos e que nada há a fazer, só se adaptar a elas. Os segundos quando percebem claramente que os temas desafiadores da sociedade não estão encobertos pelas situações-limite quando passam a ser um percebido destacado, se sentem mobilizados a agir e a descobrirem o “inédito viável’’ […] O “inédito viável” é na realidade uma coisa inédita, ainda não claramente conhecida e vivida, mas sonhada, e quando se torna um “percebido-destacado” pelos que pensam utopicamente, esses sabem, então, que o problema não é mais um sonho, que ele pode se tornar realidade (Freire, A. M. in Freire, 2011b, p.278-279).

Assim, considerando a questão da Raia-viola no Rio Grande do Sul e partindo da observação de que tal problema está inserido em uma arena multitensionada, torna-se importante observar o processo na perspectiva da educação ambiental no processo de gestão. Daí resulta a importância do emprego das categorias freireana utilizadas por Moura e Loureiro (2015) para a compreensão pedagógica deste processo social relacionado à gestão pública.

A QUESTÃO DA RAIA-VIOLA COMO SITUAÇÃO-LIMITE ENFRENTADA PELOS PESCADORES

A Raia-viola (Pseudobatos horkelii) passou a ser reconhecida pelo Estado brasileiro como espécie ameaçada de extinção por meio da Instrução Normativa do Ministério do Meio Ambiente – IN-MMA nº 05/2004, que reconheceu as espécies de invertebrados aquáticos e peixes ameaçadas de extinção e espécies sobreexplotadas ou ameaçadas de sobreexplotação. Ao mesmo tempo em que reconheceu a situação das espécies, a norma proibiu a pesca comercial daquelas reconhecidas como ameaçadas de extinção, dentre elas a Raia-viola. A mesma norma indicou que em um prazo máximo de cinco anos fossem desenvolvidos planos de recuperação a serem elaborados e implementados, sob coordenação do IBAMA, envolvendo a participação de órgãos estaduais, comunidade científica e sociedade civil organizada. 

Para as espécies consideradas ameaçadas de extinção […], deverão ser desenvolvidos planos de recuperação que serão elaborados e implementados sob a coordenação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis-IBAMA com a participação dos órgãos estaduais, da comunidade científica e da sociedade civil organizada, em prazo máximo de cinco anos, a contar da publicação desta Instrução Normativa (MMA, 2004a, p. 1, Grifo nosso).

No ano de 2014 a portaria MMA nº 43/2014 instituiu o Programa Nacional de Conservação das Espécies Ameaçadas de Extinção – Pró-Espécies, com o objetivo de “adotar ações de prevenção, conservação, manejo e gestão, com vistas a minimizar as ameaças e o risco de extinção de espécies” (MMA, 2014a, p. 1). Nesta portaria o Estado apresentou os instrumentos, estabeleceu o processo para definição de espécies ameaçadas e definiu responsabilidades no âmbito do Programa. Assim, no que se refere aos instrumentos, o Pró-Espécies é composto por:

I – Listas Nacionais Oficiais de Espécies Ameaçadas de Extinção, com a finalidade de reconhecer as espécies ameaçadas de extinção no território nacional, na plataforma continental e na zona econômica exclusiva brasileira, para efeitos de restrição de uso, priorização de ações de conservação e recuperação de populações; II – Planos de Ação Nacionais para Conservação de Espécies Ameaçadas de Extinção-PAN, elaborados com a finalidade de definir ações in situ e ex situ para conservação e recuperação de espécies ameaçadas de extinção e quase ameaçadas; e III – Bases de dados e sistemas de informação voltados a subsidiar as avaliações de risco de extinção, bem como o processo de planejamento de ações para a conservação, com a identificação das áreas de maior importância biológica para as espécies ameaçadas de extinção e as áreas de maior incidência de atividades antrópicas que colocam em risco sua sobrevivência (MMA, 2014a, p. 2-3, grifo nosso)

No que se refere ao processo para definição das espécies ameaçadas de extinção esta portaria estabelece que o mesmo seria composto por cinco etapas. Articuladas sequencialmente estas etapas formariam um ciclo que partiria da geração de dados, no sentido de aplicação e monitoramento de planos de recuperação para as espécies. 

I – criação e gerenciamento de bases de dados e sistemas de informação voltados a subsidiar as avaliações de risco de extinção e o planejamento de ações para conservação; II – realização de avaliação do estado de conservação das espécies para enquadrá-las nas categorias de ameaça de extinção, com base nas informações científicas existentes; III – publicação da Lista Nacional Oficial das Espécies Ameaçadas de Extinção; IV – elaboração dos Planos de Ação Nacionais para Conservação de Espécies Ameaçadas de Extinção-PAN; e V – monitoramento da implementação dos PAN e do estado de conservação das espécies constantes da lista das ameaçadas (MMA, 2014a, p. 3, grifo nosso)

Já em relação às listas nacionais oficiais de espécies ameaçadas de extinção, ficou estabelecido que as atualizações das mesmas “serão divulgadas anualmente pelo Ministério do Meio Ambiente a partir das avaliações do estado de conservação das espécies da fauna e da flora brasileira” (MMA, 2014a, p. 4, grifo nosso). Impondo um caráter estratégico e contínuo para os processos de avaliação do estado de conservação das espécies, a portaria estabeleceu em seu artigo sétimo que

As avaliações do estado de conservação das espécies da fauna brasileira serão realizadas pelo Instituto Chico Mendes, em um processo contínuo onde o estado de conservação de cada grupo de espécies será revisado com uma periodicidade máxima de cinco anos, as quais subsidiarão a publicação pelo Ministério do Meio Ambiente da Lista Nacional Oficial das Espécies da Fauna Ameaçadas de Extinção (MMA, 2014a, p. 5, grifo nosso).

No que tange aos Planos de Ação Nacionais para Conservação de Espécies Ameaçadas de Extinção – PAN, o Pró-Espécies determinou que fossem construídos de forma participativa e articulada. Já a responsabilidade de elaboração e implementação dos PANs ficou a cargo do Instituto Chico Mendes, que, conforme o artigo 10º da Portaria MMA 43/2014, ficou ainda responsável pelo cumprimento das metas previstas no Pró-Espécies relativas à fauna, cabendo a ele as seguintes ações:  

I – organizar e gerenciar informações científicas disponíveis sobre espécies da fauna brasileira e sobre os processos ecológicos associados, por meio de um sistema de informações capaz de subsidiar as avaliações de risco de extinção e planejar ações para a conservação destas espécies; II – avaliar o estado de conservação das espécies da fauna brasileira, subsidiando a atualização periódica da Lista Nacional Oficial das Espécies da Fauna Brasileira Ameaçadas de Extinção; III – elaborar e publicar os PAN para as espécies da fauna brasileira […]; IV – executar, no âmbito de suas competências, as ações previstas nos PAN para a fauna […]; V – captar e mobilizar recursos para a implementação do Pró-Espécies, em articulação com o Ministério do Meio Ambiente; VI – formalizar os atos ou instrumentos de cooperação com parceiros externos para a elaboração dos PAN; e VII – elaborar mapas de ocorrência e de áreas prioritárias para a conservação das espécies ameaçadas da fauna brasileira (MMA, 2014a, p. 6-7, grifo nosso)

Dando consequência aos artigos 6º e 7º da portaria que criou o Pró-Espécies, em dezembro de 2014 o Ministério do Meio Ambiente – MMA publicou a Portaria 445/2014, que reconheceu as espécies de peixes invertebrados aquáticos da fauna brasileira ameaçadas de extinção por meio da publicação da “Lista Nacional Oficial de Espécies da Fauna Ameaçadas de Extinção – Peixes e Invertebrados Aquáticos”. Utilizando critérios da União Internacional para Conservação da Natureza – UICN, a Portaria 445/2014 classificou as espécies em quatro categorias: extintas na natureza (EW); criticamente em perigo (CR); em perigo (EN) e vulnerável (VU). 

Assim, na Portaria 445/2014 a Raia-viola foi enquadrada na categoria de espécies criticamente em perigo, as quais passaram a ser “protegidas de modo integral, incluindo, entre outras medidas, a proibição de captura, transporte, armazenamento, guarda, manejo, beneficiamento e comercialização” (MMA, 2014b, p. 1). Entretanto, no seu artigo sexto, o documento indicou a possibilidade de realização de atualizações específicas da lista, desde que estas fossem embasadas em “dados atualizados de monitoramento ou mediante o aporte de conhecimento científico sobre o estado de conservação da espécie de acordo com o disposto no § 4º, art. 6º, da Portaria nº 43, de 2014 (MMA, 2014b, p. 1, grifo nosso). 

Paralelo ao processo federal, no estado do Rio Grande do Sul a Raia-viola consta em dois instrumentos estaduais que, assim como o governo federal, publicaram listas oficiais de espécies ameaçadas (Rio Grande do Sul 2002; 2014a). No Decreto estadual nº 41.672/2002, a espécie foi enquadrada na categoria vulnerável. Já no Decreto nº 51.797/2014, utilizando os critérios da UICN, o Rio Grande do Sul declarou as espécies da fauna silvestre ameaçadas de extinção no estado. Neste último instrumento, a Raia-viola passou a constar na categoria Criticamente em Perigo (CR). 

Embora não tenha estabelecido prazos fixos, como no caso do Pró-Espécies, o Decreto nº 51.797/2014 previu reavaliações sobre a situação das espécies ao estabelecer que “a reavaliação periódica da lista ficará sob a responsabilidade da Secretaria do Meio Ambiente” (RIO GRANDE DO SUL, 2014a, p. 2). No tocante às espécies constantes na lista do Rio Grande do Sul, o Decreto estabeleceu como competência da Secretaria de Meio Ambiente

[…] estabelecer medidas urgentes para a conservação das espécies […], em especial as das categorias criticamente em perigo e em perigo, promovendo a articulação de ações com institutos de pesquisa, universidades e demais órgãos que tenham por objetivo a investigação científica e a conservação da fauna silvestre do Estado do Rio Grande do Sul, bem como com órgãos federais responsáveis pela execução de programas de pesquisa, proteção, preservação e conservação da biodiversidade (Rio Grande do Sul, 2014a, p. 3)

Entretanto, no que se refere a pescaria da Raia-viola, até o presente momento a espécie não conta com o plano de recuperação previsto na IN MMA 05/2004. Soma-se a isto o fato de que o Estado, tanto no nível federal como no estadual, apenas implementou de forma parcial os instrumentos, procedimentos e ações previstos nas Portarias MMA 43/2014, MMA 445/2014, assim como no Decreto estadual nº 51.797/2014. 

A manutenção da Raia-viola em tais listas, associada à ausência de dados científicos atualizados e a ausência de um plano de manejo para a espécie, passou a ser tema gerador de um conflito entre pescadores, pesquisadores e órgãos de Estado. No centro deste conflito está o questionamento dos pescadores, uma vez que, segundo eles, com o passar dos anos houve um significativo aumento da captura incidental da espécie, o que, na sua ótica, indicaria uma recuperação do estoque. Diante da indisposição ao diálogo, tanto por parte do Estado, como de um segmento da pesquisa epistemologicamente alinhado com as ciências naturais e ideologicamente pró-conservacionista, proibidos de capturar a espécie e sendo obrigados a descartar as capturas incidentais, os pescadores gaúchos passaram a denunciar a situação de descaso com a resolução do problema e começaram a reagir e reivindicar a realização de novos estudos para a avaliação do atual status da espécie. A manutenção da Raia-viola nas listas oficiais de espécies ameaçadas de extinção, e a consequente manutenção da proibição de sua pesca, sem que alguma ação fosse posta em prática pelo Estado, passou a ser encarada pelos pescadores como uma situação-limite a ser enfrentada.

A REUNIÃO COMO PROCESSO: DO ATO-LIMITE À CONSTRUÇÃO DO INÉDITO-VIÁVEL 

Para analisar a reunião no contexto do processo, inicialmente cabe considerar à luz da gestão pública, os elementos que propiciaram a realização da mesma. Neste sentido, merece destaque o processo desencadeado pelo CONGAPES.

Criado pela Lei Complementar nº 14.476, de 22 de janeiro de 2014 o CONGAPES se constitui como “órgão colegiado de caráter consultivo, deliberativo, disciplinador da política pesqueira do Estado e com atribuição normativa sobre a execução e a fiscalização da aquicultura e da pesca” (Rio Grande do Sul, 2014b). Sua estrutura hierárquica é composta pela plenária, presidência, uma secretaria executiva e duas câmaras técnicas, sendo uma de aquicultura e outra de pesca.

Ainda que seja um conselho relativamente novo, tem se constituído como uma importante ferramenta de articulação política do setor pesqueiro do Rio Grande do Sul. Neste sentido, a câmara técnica de pesca passou a se referenciar como o “espaço da pesca”, criando um ambiente institucional que abriu possibilidade para o estabelecimento de processos tecno-políticos que deram voz aos pescadores perante o governo. Sendo reconhecido pelos pescadores como de um canal de comunicação entre o setor e Estado, o Conselho passou a receber demandas de lideranças pesqueiras de várias regiões do Rio Grande do Sul, principalmente no que se refere à intermediação junto a órgãos públicos estaduais e federais. 

Na articulação destas demandas o CONGAPES trouxe importantes conquistas para os pescadores, como a publicação de duas resoluções que aprovaram os procedimentos para a realização de estudos científicos com vistas a construção de possibilidades para a pesca do tubarão azul (Prionace glauca) e dos bagres (Genidens barbus e Genidens planifrons), espécies estas constantes no Decreto estadual nº 51.797/2014, o que proibia a pesca das mesmas no estado do Rio Grande do Sul. Outra importante conquista foi a publicação da Lei nº 15.223/2018 que “institui a Política Estadual de Desenvolvimento Sustentável da Pesca no Estado do Rio Grande do Sul e cria o Fundo Estadual da Pesca” (Rio Grande do Sul, 2018).

Neste contexto, há aproximadamente quinze anos reivindicando diálogo e construção de alternativas para a questão da Raia-viola, alguns pescadores passaram a se negar aceitar com docilidade a manutenção daquele estado de coisas. A manutenção da proibição da pesca da espécie sem a realização de novos estudos e sem qualquer iniciativa para a recuperação da mesma deixou de ser visto como algo natural por algumas lideranças. Vendo no CONGAPES uma oportunidade de se fazer ouvir, os pescadores da Associação dos Pescadores Artesanais e Aquicultores da Praia do Cassino – APAAC demandaram à câmara técnica de pesca do conselho a realização de um processo de articulação político-institucional com vista a abrir o diálogo a respeito do tema. Assim, no dia 15 de março de 2019, a APAAC e Câmara Técnica de Pesca promoveram a reunião “A situação da Raia-viola: problemáticas e perspectivas de monitoramento”, reunião esta realizada no município do Rio Grande, envolvendo representantes do setor pesqueiro, membros de organizações não governamentais – ONGs, pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande e representantes de órgãos públicos. 

Esta reunião teve o objetivo de dar início a um processo no sentido de criar os meios para avaliar o atual estado de conservação da Raia-viola e discutir uma futura elaboração de um plano de recuperação para a espécie. As ações e a postura metodológica estiveram orientadas pela busca da construção de um ambiente dialógico pautado pela diminuição de assimetrias e construção de acordos possíveis. Como resultado, ao final da reunião foi aprovada uma matriz contendo diversas ações organizadas em quatro temas a serem trabalhados: I) legislação; II) articulação institucional; III) pesquisa e IV) financiamento (Quadro 2).

Quadro 2 temas e ações para continuidade do processo

TemasAções/Passos
LegislaçãoElaborar um estudo, mapeando a legislação existente que se relaciona com o tema da Raia-viola.
Articulação InstitucionalPromover o esclarecimento de todos os órgãos fiscalizadores, buscando construir uma harmonização de entendimentos quanto ao que se pretende.
Formação de um grupo de trabalho com diversos segmentos da sociedade.
PesquisaRealizar um levantamento sobre os programas e pesquisas relacionados à Raia-viola.
Realização de cruzeiro científico.
Realização de pescarias científicas.
Elaboração e implementação de planos de monitoramento (pesca de praia e embarcada).
Desenvolver estratégias de automonitoramento da captura.
Verificar as formas de monitoramento existentes em outros estados.
Utilizar raias-violas capturadas mortas como recurso de pesquisa.
Avaliar a adoção em outras pescarias de artes de pesca que não capturem viola.
Construir alternativas para destino das violas capturadas mortas.
FinanciamentoBuscar fontes de recursos e parcerias
Articular recursos junto a organizações internacionais

Para que sejam avaliados os encaminhamentos decorrentes desta reunião é necessário que se tenha certo distanciamento temporal, o que permitirá a avaliação acerca da efetividade dos mesmos. No entanto, a aprovação de uma matriz contendo um conjunto de ações representa um importante passo na construção de uma nova realidade. Ao fim e ao cabo, a aprovação da matriz significa o atestado por parte de todos os atores de que é necessário agir no sentido de buscar avaliar o real estado de conservação da espécie para que se construa uma resposta adequada à complexidade do problema. Os primeiros passos na construção do inédito-viável foram dados. 

CONCLUINDO POR HORA

A reflexão que permeia este trabalho é parte de uma pesquisa maior que busca fazer aproximações entre os conteúdos abordados no campo teórico da gestão pública com a gestão da pesca, tendo a educação ambiental como agente desta aproximação e de construção de espaços dialógicos com vistas a superação da visão compartimentalizada das disciplinas acadêmicas. Em síntese, esta perspectiva busca, partindo da concepção da educação no processo de gestão ambiental, construir pontes para uma práxis da gestão pública da atividade pesqueira.  

Para muito além dos resultados obtidos na reunião discutida, considera-se que é necessário ajustar o foco para os aspectos contextuais em que a mesma foi realizada. Neste sentido, além de considerar que no processo da Raia-viola, estão presentes os elementos da educação no processo de gestão, conclui-se que a mesma pode ser agente de aproximação entre o campo da gestão pública e a gestão pesqueira, promovendo a superação do conhecimento departamentalização das disciplinas ancoradas nas ciências naturais que tratam da pesca.

Entretanto, por se tratar de um processo de final aberto, é importante que se mantenha uma preocupação constante com o método na condução das ações futuras, garantindo a manutenção de um ambiente dialógico propício para construção de um processo tecnopolítico em que os pescadores sejam autores de sua história. Assumir a necessidade de diálogo sobre a questão da Raia-viola, na perspectiva da gestão pública, já é um importante ponto de partida

Por hora, podemos afirmar que, tomando o processo como um todo, na perspectiva dos pescadores, é possível identificar nele as categorias pedagógicas situação-limite, ato-limite e inédito-viável. Ao promover um caminho rumo à construção de um diálogo sobre o tema da Raia-viola, os pescadores do litoral do Rio Grande do Sul põem em marcha a construção, pela práxis, de um futuro por eles sonhado. Um futuro que passa a pensar sem as barreiras impostas pela situação inicial.

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1Doutor em Educação Ambiental pela FURG (2022). Eco Sapiens Consultoria.
E-mail: ederson.tga@gmail.com
Orcid-ID: https://orcid.org/0000-0002-6917-2674
2Doutora em Educação Ambiental. Docente no Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental da Universidade Federal de Rio Grande.
E-mail: luciaanello@hotmail.com
Orcid-ID: https://orcid.org/0000-0002-9139-9584
3Mestre em Educação Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande – PPGEA/FURG (2021). Integrante do Grupo de Pesquisa Educação Ambiental e Gênero, e do grupo Cidadania, Direitos e Justiça – CIDIJUS (CNPq).
E-mail: felipe.sjusto@gmail.com
Orcid-ID: https://orcid.org/0000-0003-4217-5936