O DISCURSO DE BOLSONARO: DO LIBERALISMO AO NARCISISMO DA MORTE

BOLSONARO’S SPEECH: FROM LIBERALISM TO DEATH NARCISSISM

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8097408


Daniel de Souza Castilho1
Vanessa Souza Silva2


RESUMO: O presente artigo objetiva analisar o discurso do presidente Jair Bolsonaro em seu pronunciamento do dia 02 de junho de 2021. Para tal, utilizaremos a Análise de Discurso Francesa desenvolvida por Michel Pêcheux, convergindo conceitos de linguagem, discurso, ideologia e sujeito. As categorias utilizadas no dispositivo teórico reúnem-se para identificar as dimensões das formações discursivas que o liberalismo interpela no sujeito do inconsciente psicanalítico. Nesse agrupamento conceitual finalizamos nossa proposta localizando o discurso do presidente dentro de uma formação discursiva necropolítica.

Palavras-chaves: Análise de Discurso; Ideologia; Sujeito; Liberalismo; Pandemia do Coronavírus.

ABSTRACT: This article aims to analyze the President Jair Bolsonaro’s speech in his pronouncement on June 2, 2021. To this end, we will use the French Discourse Analysis developed by Michel Pêcheux, converging concepts of language, discourse, ideology and subject. The categories used in the theoretical device come together to identify the dimensions of the discursive formations that liberalism challenges the subject of the psychoanalytic unconscious. In this conceptual grouping, we finalize our proposal by locating the president’s discourse within a necropolitical discursive formation.

Keywords: Discourse Analysis; Ideology; Subject; Liberalism; Coronavirus Pandemic.

Momento pandêmico: Brasil x Coronavírus

O Brasil vivia um quadro alarmante de disseminação e contaminação massiva em virtude da Pandemia do novo Coronavírus. Estamos prestes a atingir meio milhão de pessoas mortas pela Covid-19, tendo o estado do Amazonas, sofrido o maior colapso no sistema de saúde já registrado, no início de 2021, afirma Schmidt (2021).

A maneira com que o presidente Jair Bolsonaro conduzia o enfrentamento da pandemia revela uma despreocupação com a vida, e fortemente, percebe-se tendências liberais e de viés mercadológico e capitalista, enquanto gestão ideológica de governo. Nesses termos, um estado liberal pressupõe um governo com estado mínimo, em que instituições privadas regulamentam a economia. Sendo esse liberalismo historicamente formado na sociedade brasileira de forma elitista, oligárquica e excludente, segundo Leibão (2015). Não podemos desconsiderar o efeito de seu modelo de gestão determinando, diretamente, a atual condição que o país se apresenta. 

Neste texto, desenvolvemos alguns conceitos sobre linguagem, princípio mediador do humano com a realidade; noções de ideologia, ou melhor, das formações ideológicas que funcionam como estruturas que aprisionam o sujeito que não é consciente das suas determinações, nem de sua imersão; voltamo-nos também para as dimensões do sujeito cindido, ou do sujeito do inconsciente, aquele cuja a existência é estabelecida por determinantes que dizem respeito a uma organização interna dos conteúdos recalcados da consciência, por processos tais que impossibilitam a execução das ações humanas, sem que se subentenda um contexto social e histórico.

A AD francesa, enquanto área do conhecimento que se constitui pela vinculação de aparatos teóricos da linguagem, do discurso, da ideologia e do sujeito, compreende que os inúmeros modos de ser presentes na sociedade são construídos historicamente de forma material. Essa constituição do sujeito é realizada a partir de formações discursivas que possibilitam a enunciação de discursos, cuja elaboração vincula-os e os insere em uma dimensão sócio-ideológica historicamente determinada.

 Portanto, a circunscrição do conceito-análise (objeto) de estudo deste trabalho será o sentido de “Pandemia do Coronavírus” para o presidente Jair Bolsonaro, a partir de seu pronunciamento do dia 02 de junho de 2021 (BRASIL, 2021).

Dispositivo teórico e analítico

         A AD francesa é um domínio de conhecimento desenvolvido pelo filósofo Michel Pêcheux, no final da década de 1960. Nela identifica-se uma convergência de várias áreas do conhecimento como a linguagem, o discurso, a ideologia e o sujeito.

Se considerarmos o contexto histórico para a Análise de Discurso que Pêcheux propõe, temos em vista aspectos políticos da União Socialista das Repúblicas Soviéticas – URSS, o uso, então, do sentido de semântica propositalmente discriminado pela corrente linguística estruturalista hegemônica. Todo o percurso epistemológico em que a AD é desenvolvida, temos ainda a necessidade de reconhecer sua origem filosófico-analítica, assim como as questões da luta conceitual entre lógica e retórica. E pensar nesses termos, em Pêcheux (1988), significa reconhecer que as estruturas lógicas dos enunciados são impreteríveis para a compreensão e o entendimento da realidade recortada pelo sistema linguístico, porém, sem detrimento da dimensão semântica. Não há produção de conhecimento sem o reconhecimento da produção histórica de uma formação social determinada. O sentido está atrelado ao contexto, inevitavelmente. 

O conceito de ideologia, desenvolvido por Pêcheux, será diretamente influenciado pela formulação althusseriana. Toda a formação discursiva de um dado sujeito passará pela formação ideológica deste. Logo, a ideologia será sempre constituída por mecanismos que permitem o funcionamento de práticas sociais, sendo assim um conjunto de enunciações que possibilitam a reprodução de inúmeros modos de ser.

Pêcheux definirá a ideologia como constituinte de duas formas. Uma enquanto processo produtivo que tem por finalidade reconstituir a efetivação produtora e distribuidora de significados, criando uma cadeia de significação, obrigando-se a uma função semântica; e outra, que conduzirá as relações de produção tendo por finalidade criar relações naturalizadas entre os sentidos, dentro de uma organização sintática de normas e regras. Ambas são interdependentes, Siqueira (2017).

O duplo funcionamento lógico-ideológico não é neutro nem indiferente com relação à ideologia. Ele acoberta a descontinuidade ideologicamente. Cobrindo um terceiro elemento, nem lógico nem linguístico, e que coloca em funcionamento os domínios de pensamento quanto ao pré-construído (exterioridade-anterioridade) dando evocação ao elemento pensável, afirma Pêcheux (1988).

Compreende-se, assim, o funcionamento interno da ideologia a partir de uma dada sociedade. Seus modos de significar e de relacionar os sentidos de uma formação social demonstram o papel fundamental que esta possui no campo social. A normatização e consequente naturalização das relações sociais de produção desencadeiam num campo de possibilidades discursivas. Toda a dimensão ideológica cria as condições necessárias para uma produção discursiva.

O discurso é sempre enunciado a partir de dadas condições sociais de produção. Estas condições criam formações imaginárias nas quais o sujeito se insere sem observar sua posição historicamente determinada. Pêcheux (1988), assim ressaltaram, a partir desta, a noção de esquecimento. Nele o sujeito compreende-se como produtor e distribuidor de sentido, apesar de não o ser. O esquecimento empírico e especulativo são duas noções nas quais os processos metonímicos e metafóricos executam-se, constituindo uma dimensão organizativa de significantes gerando estruturas de sentido que fortemente influenciaram a constituição da subjetividade dos sujeitos.

Por tanto, existe uma característica dentro de uma dada formação discursiva que implica o sujeito enquanto instrumento de realização de sentido, o interdiscurso do pré-construído. Este consiste na dimensão do impensado, é o conformador e antecipador do que pode ser dito. Ele cria a condição de possibilidade para o discurso. Sírio Possenti afirma que este conceito traz um conjunto de coisas já ditas anteriormente à fala e assim serve como fundamento ao que será dito, Siqueira (2017).

Gostaríamos de ressaltar também que para Orlandi (1999, p. 15), “Na análise de discurso, procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social, constitutivo do homem e da sua história”. A análise de discurso entende a linguagem como um mediador entre o ser humano e a realidade social. Essa mediação torna possível a permanência, a continuidade, o deslocamento e a transformação do ser humano e da realidade em que ele vive. A função simbólica do discurso está na base da constituição da existência humana. Assim, a AD não desenvolve a língua como um sistema abstrato, no entanto, trabalha como forma de produzir sentidos e de significar, enquanto elementos de uma sociedade. 

         Após percorrer os caminhos teóricos que fundamentam o discurso, sua formação e consequente enunciação, partiremos para o sujeito, ou melhor, o não-sujeito para Análise de Discurso Francesa. Constitui-se em uma teoria que elimina a função do sujeito capaz de produzir sentido, ou seja, o sujeito assujeitado de Althusser é atravessado por formações discursivas e interpelado pela ideologia.   

Pêcheux desenvolve algumas noções de sujeito: o sujeito da máquina discursiva, que  são equivalentes às instituições, na medida em que são constituídos pelo seu processo de produção; o sujeito como dispersão, ou seja, relações entre as máquinas discursivas, uma função que desempenha práticas dependendo da posição que ocupa e de onde enuncia (o lugar do professor, do político, determina o que pode ou não ser dito), descentralizando-se; e o sujeito clivado, ao invés de ser uma posição ou uma função de enunciação, agora o sujeito é possuidor de um inconsciente que torna suas ações imprevisíveis e passíveis de serem vinculadas a dimensão do inconsciente psicanalítico. Um constituinte desconhecido passa a ser parte integrante do sujeito, Pêcheux (1988).

Para Siqueira, citando Pêcheux (2017), em uma enunciação exercida por um sujeito, existem as dimensões: interdiscursiva, constituída pelo conjunto das formações discursivas e, a interdiscursiva, equivalente à prática discursiva imediata, ou seja, um ato de fala enunciativo. Ambas, relacionam-se dando sentido ao acontecimento, o ponto de encontro entre a memória e a atualidade. Esse conceito nos permite compreender as variações de sentido presentes em uma dada formação social. O interdiscurso garante a existência das formações sociais e o intradiscurso a atualização desta. Desta perspectiva, compreende-se que os acontecimentos históricos são sempre acompanhados de acontecimentos discursivos.

Ao final deste dispositivo, temos a memória discursiva cuja função principal é dar regularidade e suporte semântico ao discurso. Ela invoca a significação através do pré-construído ou implícito, que permite a repetição de uma dada formação discursiva, equivalente ao conceito de comentário, em Michel Foucault (1996).

Não podemos esquecer de compreender a forma de governo liberalista, que para Leibão citando Heywood (2015), afirma que o liberalismo defende a primazia do indivíduo, e essa percepção está diretamente atrelada à condição capitalista em que esse indivíduo foi pensado. Portanto, entende que uma sociedade não é composta por uma coletividade, mas por um conjunto de indivíduos.

A questão que precisamos ressaltar é que essa noção de liberdade contrapõe toda a proposta da Análise de Discurso. Vejamos a citação a seguir: 

A liberdade no liberalismo defende que os indivíduos têm o direito de fazer suas próprias escolhas, como, por exemplo, para onde ir, qual profissão seguir, onde morar, do que se alimentar, como se expressar, entre outros fatores. (LEIBÃO, citando STUART MILL, 2015, p. 259)

A liberdade defendida pelo liberalismo é inalcançável dentro da proposta da não subjetividade, das dimensões do sujeito do inconsciente. Na medida em que o presidente estabelece tais critérios como doutrina de governo, precisamos pautar as problemáticas desta e de suas consequências deletérias para a sociedade brasileira.

Safatler (2021) demonstrará como os valores morais são mobilizados em uma sociedade para difundir e fortificar a perspectiva liberal. A mobilização de processos psicológicos levou a sociedade a um discurso econômico moralizador, que imputa no sujeito uma pretensa autodeterminação de suas condições, que, pela nossa perspectiva, são históricas, e nunca, individuais.

Safatler continua: 

É cada vez mais evidente como lutas políticas tendem a não ser mais descritas a partir de termos eminentemente políticos, como justiça, equidade, exploração, espoliação, mas através de termos emocionais, como ódio, frustração, medo, ressentimento, raiva, inveja, esperança. (p.17, 2021)

Precisamos ainda direcionar nosso dispositivo no que tange à perspectiva lacaniana. Este faz releituras interessantes sobre a teoria saussuriana e freudiana para inscrever dimensões e conceitos de significante e significado para a psicanálise, assim como o intrigante entendimento de que “o inconsciente é estruturado com uma linguagem”(LACAN, 1979, p. 25). 

Para ingressar na afirmação acima, Lacan refaz um longo percurso da compreensão freudiana de inconsciente. Nisto, abre mão das aproximações deste conceito, como algo muito além do recalcado, e vincula-o à dimensão de um não-conceito (Unbegriff), na perspectiva de uma hiância, ou seja, daquilo que está na iminência de existir, mas que ainda inexiste. Na observação daquilo que gera uma descontinuidade e que apaga (oblivium) a função do significante, Lacan (1979).

Khel (2002), compreende bem o que Lacan designa, ao afirmar que os pensamentos apenas possuem acesso à consciência, pelas palavras, visto que, nesses termos, ele não pode ter outra estrutura senão a de uma linguagem.

Em linhas gerais, o inconsciente freudiano vincula-se à dimensão econômica (investimento de energia – catexia) e dinâmica (fixação dessa energia em determinadas áreas relacionadas a um trauma originário) do funcionamento psíquico, enquanto Lacan (não desprezando essa identificação freudiana) adentra e aprofunda tais perspectivas, direcionando-se aos limites dos significantes. Compreendendo que aquilo que nos incorpora e nos insere a uma dada subjetividade e a um específico modo de ser, está intimamente ligado à dimensão simbólica.

E, nesse entremeio teórico, a Análise de Discurso materializa-se, a partir de Michel Pêcheux, para dar sentido às formações discursivas. Localizá-las em suas formações ideológicas, direcionando-nos para uma compreensão mais aprofundada e qualificada da realidade.

Salientamos ainda que outros dispositivos podem ser utilizados no decorrer desta análise, visto que o aparato que fundamenta este trabalho, percorre caminhos conceituais diversos e que serão desenvolvidos no decorrer do processo analítico.

Análise Discursiva

Para iniciar um processo de análise, Orlandi afirma que é necessário considerar a constituição do corpus, e para tal, seguimos o que afirma Freire (2021), propondo três perguntas heurísticas, ou seja, a arte de pesquisar.

A primeira pergunta heurística, volta-se para a definição do conceito-análise do discurso que se pretende analisar. A partir da leitura flutuante do texto, identificamos o conceito-análise a priori, denominado, Pandemia do Coronavírus.

         Em seguida, a segunda pergunta heurística objetiva identificar como esse conceito-análise é constituído dentro do texto que nos propomos analisar. Para verificar este aspecto, analisaremos as marcas textuais, os modalizadores e as paráfrases presentes no discurso oriundo de um enunciador, Freire (2021).

Partiremos, então, para a leitura do pronunciamento do presidente, abaixo: 

Boa noite, sinto profundamente cada vida perdida em nosso país. Hoje alcançamos a marca de 100 milhões de doses de vacinas distribuídas a estados e municípios. O Brasil é o quarto país que mais vacina no planeta. Neste ano, todos os brasileiros, que assim o desejarem, serão vacinados. Vacinas essas que foram aprovadas pela Anvisa. Ontem, assinamos acordo de transferência de tecnologia para a produção de vacinas no Brasil entre a AstraZeneca e a Fiocruz. Com isso, passamos a integrar a elite de apenas cinco países que produzem vacinas contra a Covid no mundo. O Nosso governo não obrigou ninguém a ficar em casa, não fechou o comércio, não fechou igrejas ou escolas e não tirou o sustento de milhões de trabalhadores informais. Sempre disse que tínhamos dois problemas pela frente, o vírus e o desemprego, que deveriam ser tratados com a mesma responsabilidade e de forma simultânea. Destinamos, em 2020, 320 bilhões para o Auxílio Emergencial para atender aos mais humildes. Esse montante equivale a mais de 10 anos de Bolsa Família. E mais de 190 bilhões para ajudar estados e municípios. Alguns setores como bares e restaurantes, turismo, entre outros, em grande parte foram socorridos pelo nosso governo por meio do PRONAMPE (Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno porte.)  Hoje mesmo sancionou a nova lei do PRONAMPE, agora permanente, que pode destinar a vários setores até 25 bilhões de reais, onde 20% será destinado ao setor de eventos. Terminamos 2020 com mais empregos formais que em 2019. Somente nos primeiros quatro meses deste ano, o Brasil criou mais de 900 mil novos empregos. O PIB projetado para 2021 prevê um crescimento da economia superior a 4%. Só no 1º trimestre deste ano, a economia mostrou seu vigor, estando entre os países do mundo que mais cresceram. Com o Congresso Nacional avançando, aprovamos: – A nova lei do gás; – O marco legal do saneamento; – A MP da Liberdade Econômica; – O Banco Central independente; e – É o novo marco fiscal. Realizamos leilões de rodovias, portos e aeroportos. Levamos internet para mais de 8 milhões de brasileiros em grande parte para as regiões Norte e Nordeste. Ontem, a Bolsa de Valores bateu recorde histórico, a moeda brasileira se fortaleceu, e estamos avançando no difícil processo de privatizações. A CEAGESP sob um comando honesto e responsável apresentou, além de lucro, um ambiente salutar entre os permissionários e funcionários. Essa Companhia socorreu nossos irmãos de Aparecida e Araraquara, entre outras cidades do interior de São Paulo, doando dezenas de toneladas de alimentos. As estatais, no passado, davam prejuízo de dezenas de bilhões de reais devido à corrupção sistêmica e generalizada. Hoje são lucrativas. Nos dois primeiros anos do nosso Governo, a Caixa Econômica Federal bateu recorde de lucro mesmo reduzindo os juros do cheque especial, da casa própria, das micros e pequenas empresas e dos empréstimos às Santas Casas. Estamos avançando na transposição do Rio São Francisco, levando água para todo o Nordeste. Na infraestrutura, o nosso Governo tem construído pontes, duplicado rodovias, terminando obras paradas há décadas, como a BR-163 no Pará. Ainda neste ano, será concluída a Ferrovia Norte-Sul, que ligará o Porto de Itaqui, no Maranhão, ao Porto de Santos, em São Paulo, e a retomada do modal ferroviário no Brasil. Seguindo o mesmo protocolo da Copa Libertadores e Eliminatórias da Copa do Mundo, aceitamos a realização, no Brasil, da Copa América. O nosso Governo joga dentro das 4 linhas da constituição, considera o direto de ir e vir, o direito ao trabalho e o livre exercício de cultos religiosos inegociáveis. Todos os nossos 22 ministros consideram o bem maior de nosso povo a sua liberdade. Que Deus abençoe o nosso Brasil. (BRASIL, 2021, p. 1)

         O pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro, no dia 02 de junho de 2021 (BRASIL, 2021), em rede nacional, inicia com a seguinte marca textual: “Sinto profundamente cada vida perdida em nosso país”, enquanto objetiva demonstrar empatia pelo ser humano, pela população brasileira que é assolada por um vírus de alta contaminação. No entanto, esta afirmação não equivale à postura do presente, frente à recusa de compra de vacina: “O ex-presidente da Pfizer Brasil Carlos Murillo esclareceu hoje na CPI da Covid que não foram apenas três oferecimentos de vacina ao Brasil, mas o dobro deste número” (GUEDES, 2021, p.1). A contradição dentro do discurso demonstra a necessidade do uso de modalizadores, ou seja, dispositivos que tem a finalidade de suavizar o sentido posto pelo discurso, segundo Freire (2021). Essa suavização permite que se exerça um poder de atualização e manutenção do domínio de uma formação discursiva oriunda de uma formação ideológica dada.

         Mais adiante, temos o seguinte: “Todos os brasileiros, que assim desejarem, serão vacinados”, nesta paráfrase, ainda de acordo com Freire (2021) um efeito de sentido diferente é implementado para que se produza uma atualização da formação discursiva. Ou seja, se sempre existiu uma recusa direta por vacinas, nunca houve um desejo real de imunização da população. Esse processo parafrástico sugere para a população uma possibilidade ilusória de escolha (como se ela não existisse, visto que a vacinação não é obrigatória), na medida em que afirma uma liberdade para a imunização. Indiretamente, deixa a partir do não-dito sua postura antivacina, e consequentemente, não-empática em relação às mortes ocasionadas pelo Coronavírus.

Nas descrições a seguir: “Nosso governo não obrigou ninguém a ficar em casa”, “Não fechou o comércio, não fechou igrejas ou escolas”, “Não tirou o sustento de milhões de trabalhadores informais”, entendemos que o presidente e sua equipe eximem-se de qualquer responsabilidade sobre as consequências do não cumprimento de medidas de segurança como o lockdown, o distanciamento social e o uso de máscaras, como forma de diminuir a proliferação do Coronavírus. Tais atitudes afirmam posições sociais que reiteram formações discursivas perversas e narcisistas, frente ao que a psicanálise chama de libido objetal e libido do ego, Rocha (2016).

Na metapsicologia freudiana, desenvolve-se o conceito de narcisismo. Neste, a libido, a energia psíquica é direcionada para o próprio ego. Nesse investimento, o objetivo é manter a integridade ideal do ser, frente às circunstâncias que ameaçam o sujeito, o que desencadeia num forte egoísmo como forma de proteção psíquica. Ou seja, um movimento saudável de investimento psíquico exigiria que esta energia fosse direcionada para um objeto fora do sujeito, almejando um Ideal do Ego, afirma Rocha (2016).

Pois bem, além da dimensão psicanalítica em que propusemos uma Análise Psicodinâmica do Discurso, se assim podemos denominar a expressão da postura psíquica do presidente, percebem-se no texto efeitos de sentido oriundos de formações ideológicas vinculadas a formações discursivas liberais, e portanto, exposta pela postura narcisista. A memória discursiva identificada no interdiscurso mostra o reiterar do acontecimento histórico capitalista e burguês. Uma preocupação com a vida, porém, com o intuito de manter o sistema e as engrenagens do capitalismo funcionando sem perturbações.

         Na medida em que lemos: “Passamos a integrar a elite”, “A bolsa de valores bateu recorde histórico”, “Avançando no difícil processo de privatização”, “A Caixa Econômica Federal bateu recorde de lucro”, convencemo-nos de que estas descrições constituem uma excessiva preocupação em atender interesses capitais, ao invés de se ter a vida, o bem-estar e a saúde da população como prioridade. Marcas de silenciamento e de opressão mostram a imposição de uma política de governo que expõe dados para a população à esmo e que não sente no cotidiano nenhum dos efeitos do liberalismo.

Essa imposição de uma política liberal nos permite associá-la a uma perspectiva bourdiesiana extremamente pertinente à nossa proposta. Nesta, afirmam Jourdain e Naulin (2017) que uma postura de valorização da cultura da elite impõe significações dadas como legítimas, além de dissimular as relações na base da sociedade ocidental. A este conceito Bourdieu denominou de Violência Simbólica. 

         O presidente ainda encerra seu discurso afirmando: o “Livre exercício de cultos religiosos inegociáveis”, “Que Deus abençoe o nosso país”. Ou seja, a cristalização do que foi dito e do não-dito é costurada pela dimensão religiosa. Uma potente episteme em conceitos foucaultianos, que se pensarmos em aspectos históricos, ceifou a última vida entre 1824 e 1825 (o professor Cayetano Ripoll). Isto é, pouco menos de 200 anos, a inquisição ainda mantinha um controle direto dos corpos daqueles que confrontavam o teocentrismo da igreja católica.

Segundo Pêcheux (1988), tendo em vista a ideologia determinante e que interpela o sujeito, podemos asseverar que o problema da pós-modernidade tem origens construídas por um processo de legitimidade do conhecimento de uma dada época sempre de modo incisivo, irredutível e implacável, sem relação causal analisada, de fato, e em detrimento da realidade social histórica. 

Vale ressaltar, ainda, a dimensão do funcionamento do pré-construído, reiterando a episteme teocêntrica, por mais que ela tenha sido nesses tempos subsumida pelo capitalismo. O presidente, regido pelo esquecimento de que ele não é produtor de sentido quando reproduz os meios de produção capitalista, e do esquecimento que se dá no nível do intradiscurso, desconhecendo o real sentido daquilo que fala, criando uma cadeia de significantes que prendem o sujeito numa realidade contornada por sentidos. Tais esquecimentos causam uma coerência interna que mantém as estruturas da sociedade.

Para Pêcheux (1988), o que acontece com o sujeito, nessa dimensão de não-subjetividade do sujeito, é um processo de imposição/dissimulação. Ele cria uma significação sobre o que ele é ou deveria ser, no primeiro termo; e no segundo, elabora uma ilusão de autonomia que supostamente o constitui (assujeitamento). Isso justifica uma relação entre inconsciente (no sentido freudiano) e ideologia (no sentido marxista).

         As formações discursivas expressas nas marcas textuais do pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro expõem uma ideologia de mercado, uma indireta postura de controle dos corpos e controle da população, segundo Foucault (1999). Esse controle excessivo demonstra uma discursividade de estrutura narcísica (psicanaliticamente, falando), possibilitada por uma formação ideológica liberal visto que recusar a compra de vacinas, manter a população em atividade, e a não implementação oficial do distanciamento social, convergem para uma expectativa de que a morte do povo seja justificada para atender ao grande capital, para que investidores tragam dinheiro para o Brasil. No entanto, além de esta postura nos levar para um discurso liberal do presidente, precisamos localizá-lo em outra discursividade mais intrincada: a necropolítica.

Quando afirmamos que a estrutura narcísica do presidente é possibilitada pela formação ideológica liberal, consideramos que esta, enquanto proposta política de gestão e de governo, assume diretamente que cada ser humano é capaz de alçar posições sociais equivalentes a seus esforços, o que se chamaria de meritocracia, no entanto, este termo desobriga-se o reconhecimento de regimes de poder, como afirmou Foucault (2001), questões da própria subjetividade e condições da realidade material. O narcisismo que apoia a postura do presidente, reitera uma dimensão inconsciente que pressupõe um mundo constituído de modo a satisfazer seus desejos e satisfações. Essa é a postura narcísica que desconhece a alteridade e a diferença (voltaremos a este ponto), que comparadas ao liberalismo, são termos quase equivalentes.

Mbembe afirmou que a forma máxima de expressão do poder está na sua capacidade de dizer quem pode viver e quem pode morrer, sendo esse seu principal atributo. O exercício da soberania é exatamente a decisão sobre o controle da mortalidade como forma de manifestação de poder (2018).

         Mbembe citado por Bontempo (2020), apoiando-se nas dimensões de biopoder foucaultiana, compreenderá que a necropolítica justifica-se na capacidade daquele que detém o poder ditar o destino de sua via ou morte. Essa decisão é pautada por uma estrutura de extermínio de grupos específicos que são evidenciados na forma pela qual o governo Bolsonaro administrou o período pandêmico do Brasil: 

O que a pandemia tem evidenciado é o que vários estudos já mostravam em relação ao maior prejuízo da população pobre e negra ao acesso à saúde. A covid-19 encontra um terreno favorável porque essas pessoas estão em um cenário de desigualdade de saúde e de precarização da vida. (BBC, 2020, p.1) 

As atitudes do presidente Jair Bolsonaro, sua forma de fazer política, sua implementação e imposição liberal, assim como suas formações discursivas nos levam para uma política de segregação e de morte. Uma capacidade que o governo assume para decidir quem deve viver e quem deve morrer, propriamente dita. Portanto, localiza-se o conceito-análise Pandemia do Coronavírus no Discurso Necropolítico, terminologia de Mbembe. 

Para o presidente a pandemia é um motivo direto para eliminar aqueles que não convergem em seus ideais. Esse confronto entre os discursos, percebido por Foucault (1996) para recriar, na vida real, a luta entre os discursos, mostra a imersão ideológica do presidente em tais condições discursivas. Ou, em princípios psicanalíticos, no que Lacan denominou de Eixo do Imaginário. Neste o sujeito encontra-se submergido em noções objetivas cujas relações desconhecem a alteridade. A inexistência do Outro que possibilitaria a capacidade de simbolizar a realidade e inscrevê-la em sua subjetividade,

No plano do imaginário, as narrativas, as lendas e mitos, tinham a função de nomear a origem e a razão de ser das prescrições tradicionais, além de situar os agentes criadores desta num passado ancestral, tempo do Pai fundador primordial. No simbólico inscrevem-se os lugares dos membros de um agrupamento humano na estrutura do grupo. Desse modo, é facilitado o reconhecimento do valor particular de cada um, além de seus direitos e deveres. (KEHL, 2002, p.68-69)

Aqui, Maria Rita Kehl nos possibilita entender a importância dos eixos pelos quais Lacan demonstra o funcionamento psíquico da mente, localizando bem as realizações nas quais trabalha o inconsciente nas determinações ideológicas e nas formações discursivas desta instância, estruturada como uma linguagem. 

Entendemos que quanto mais um dado sujeito é regido pelo eixo do imaginário, menos assumirá as relações causais que lhe constitui enquanto sujeito assujeitado. Permanece sob a alienação da formação ideológica impedindo o trânsito entre as inúmeras formações de uma dada sociedade. Isto, por sua vez, não concede abertura para o diálogo, ponto necessário para qualquer processo dialético, eixo fundante do materialismo-histórico (extrair-se do pensamento abstrato para uma construção concreta da realidade pensada).

Considerações finais

Nas linhas que se sucederam o término deste trabalho, dos percursos e tentativas teóricas que objetivaram desnudar os reais sentidos dos discursos acima analisados, vemos-nos na obrigação de reiterar a dimensão imparcial desta ferramenta de análise da realidade, a Análise de Discurso.

Reiteramos o caráter não-valorativo deste texto, mesmo que, em algumas nuances, tenhamos caído, inevitavelmente, no dispositivo ideológico. Permanecemos humanos, inseridos nas dimensões daquilo que falha, como afirmaria Lacan (1964), sempre regidos por perspectivas que nos escapam, descontinuam e nos impõem à guerra dos significantes.

No entanto, a AD permanece, mesmo nesses termos, um forte aparato conceitual para analisar, e sem dúvida, confrontar as dimensões sociais que eliminam e oprimem a população em formações que extraem a empatia, a humanidade e o enaltecimento da diferença como forma de discriminação, em detrimento da alteridade. 

Referências

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

BONTEMPO, Valéria Lima. (2020). Achille mbembe e a noção de necropolíticaSapere Aude11(22), 558-572. Disponível em: <https://doi.org/10.5752/P.2177-6342.2020v11n22p558-572> Acesso em: 13 jul. 2021. 

BRASIL. Presidente (2018 – 2022: Jair Messias Bolsonaro). Pronunciamento do senhor presidente da república, Jair Bolsonaro, em cadeia nacional de rádio e televisão. Brasília, 02 jun. 2021. Disponível em: <https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/pronunciamentos/pronunciamentos-do-presidente-da-republica/pronunciamento-do-senhor-presidente-da-republica-jair-bolsonaro-em-cadeia-nacional-de-radio-e-televisao-02-06-2021> Acesso em: 12 jun. 2021.

CARMAGNANI, Anna Maria Grammatico et GRIGOLETTO, Marisa (org). Língua, discurso e processos de subjetivação na contemporaneidade. São Paulo: Humanitas, 2013.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France. Pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola: 1996.

FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo:  Martins Fontes, 2001.

FREIRE, Sérgio. Análise de discurso: procedimentos metodológicos. 2ª ed. Manaus: EDUA, 2021.

GUEDES, Octavio. Sobe para 14 o número de vezes que o governo Bolsonaro deixou vacinas contra Covid para lá. G1. Rio de Janeiro, 13 mai. 2021. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/blog/octavio-guedes/post/2021/05/13/sobe-para-14-numeros-de-vezes-que-governo-bolsonaro-deixou-vacinas-para-la.ghtml> Acesso em: 12 jun. 2021.

JOURDAIN, Anne et NAULIN, Sidonie. A teoria de Pierre Bourdieu e seus usos sociológicos. Tradução de Francisco Morás. Petropólis, RJ: Vozes, 2017.  

KEHL, Maria Rita. Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

LACAN, J. O Seminário (1964) livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário de psicanálise. Santos: Martins Fontes, 1998.

LEIBÃO, Matheus de Carvalho. Conceitos do liberalismo e educação individual, propriedade e liberdade na educação brasileira. Revista de Educação Movimento. ISSN 2359-3296, Rio de Janeiro. Ano 2, número 3, p. 253-272, 2015.

LEITE, Priscila de Souza Chisté. Materialismo histórico-hialético e suas relações com a pesquisa participante: contribuições para pesquisas em mestrados profissionais. Revista Anhanguera, v. 18, n. 1, p. 52–73, 2018. Disponível em:  <https://proceedings.ciaiq.org/index.php/ciaiq2017/article/download/1405/1362>

MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.

ORLANDI, Eni P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 1999.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni P. Orlandi. Campinas: Ed. da Unicamp, 1988.

Por que o coronavírus mata mais as pessoas negras e pobres no Brasil e no mundo. BBC, 12 jul. 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53338421> Acesso em: 12 jun. 2021.

RIBEIRO, Benair Alcaraz Fernandes. Arte e inquisição na península ibérica: a arte, os artistas e a inquisição. 2006. Tese (Doutorado em Filosofia). Universidade de São Paulo: São Paulo, 2006.  

ROCHA, Zeferino. Ensaios psicanalíticos em interface com a filosofia. Recife: Cepe, 2016.

SAFATLE, Vladimir Pinheiro. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico: São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo: 2021. 

SCHIMIDT, Stefanie. Morrer sem oxigênio em Manaus, a tragédia que escancara a negligência política na pandemia. El País Brasil. São Paulo, 14 Jan 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-01-15/morrer-sem-oxigenio-em-uma-maca-em-manaus-a-tragedia-que-escancara-a-negligencia-politica-na-pandemia.html> Acesso em: 20 jun. 2021. 

SIQUEIRA, Vinicius. Análise do discurso: conceitos fundamentais de Michel Pêcheux. Ed 1ª. São Paulo: Edição Colunas Tortas, 2017.


1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras – PPGL da Universidade Federal do Amazonas – UFAM, na linha de pesquisa Teoria e Análise Linguística.
2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras – PPGL da Universidade Federal do Amazonas – UFAM, na linha de pesquisa Teoria e Análise Linguística.